CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 28 de Setembro de 2004(1)



Processo C‑350/03



Elisabeth Schulte

e

Wolfgang Schulte
contra
Deutsche Bausparkasse Badenia AG



[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Bochum (Alemanha)]

«Aproximação das legislações – Protecção dos consumidores – Venda ao domicílio – Directiva 85/577/CEE – Âmbito de aplicação – Operação financeira global que inclui um contrato de crédito imobiliário e um contrato de compra e venda de imóvel – Exclusão – Rescisão do contrato de mútuo – Incidência no contrato de venda – Exclusão»






1.        O presente processo surge na sequência do acórdão de 13 de Dezembro de 2001 no processo Heininger  (2) .

2.        Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais  (3) , se aplica aos contratos de «crédito imobiliário», ou seja, aos contratos de crédito celebrados com vista a financiar a aquisição de um bem imóvel. O Tribunal de Justiça deduziu daí que os consumidores que celebraram um contrato deste tipo numa situação de venda ao domicílio têm o direito de rescisão previsto no artigo 5.° da directiva.

3.        No caso em apreço, o Landgericht Bochum (Alemanha) convida o Tribunal de Justiça a esclarecer as consequências da sua jurisprudência. Pergunta se a directiva é aplicável a uma operação financeira global que compreende, além de um contrato de crédito imobiliário, um contrato de compra e venda de imóvel. Pergunta também se, neste tipo de operação financeira, o exercício do direito de rescisão pode implicar não só a rescisão do contrato de crédito imobiliário, mas também a do contrato de compra e venda de imóvel.

I – Quadro jurídico

A – Legislação comunitária

4.        A directiva visa garantir aos consumidores dos Estados‑Membros uma protecção mínima no âmbito da venda ao domicílio.

5.        O artigo 1.°, n.° 1, prevê que a mesma é aplicável aos contratos celebrados entre um comerciante e um consumidor durante uma excursão organizada pelo comerciante fora dos seus estabelecimentos comerciais ou durante uma visita do comerciante a casa do consumidor ou ao local de trabalho deste, quando a visita não se efectua a pedido expresso do consumidor.

6.        Ao invés, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), a directiva não é aplicável aos «contratos relativos à construção, venda e aluguer de bens imóveis, nem aos contratos respeitantes a outros direitos relativos a bens imóveis».

7.        O artigo 4.° da directiva dispõe que o comerciante deve informar o consumidor do direito que lhe assiste de rescindir o contrato nos prazos fixados no artigo 5.° da directiva.

8.        O artigo 5.° da directiva estabelece:

«1.     O consumidor tem o direito de renunciar aos efeitos do compromisso que assumiu desde que envie uma notificação, no prazo de pelo menos sete dias a contar da data em que recebeu a informação referida no artigo 4.°, em conformidade com as modalidades e condições prescritas pela legislação nacional [...]

2.       A notificação feita desvincula o consumidor de qualquer obrigação decorrente do contrato rescindido.»

9.        No que se refere às consequências da rescisão, o artigo 7.° da directiva refere que «[c]aso o consumidor exerça o direito de renúncia, os efeitos jurídicos dessa renúncia são regulados de acordo com a legislação nacional, nomeadamente no que respeita ao reembolso de pagamentos aferentes a bens ou prestações de serviços, assim como à restituição de mercadorias recebidas».

10.      No acórdão Heininger, o Tribunal de Justiça interpretou a directiva sob dois aspectos.

11.      Antes de mais, declarou que a directiva se aplica aos contratos de crédito imobiliário, isto é, aos contratos de crédito destinados a financiar a aquisição de um bem imóvel  (4) , ainda que estes contratos assentem numa garantia imobiliária  (5) . Entendeu, com efeito, que este tipo de contrato não tem por objecto «um direito relativo a bens imóveis» na acepção do artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva  (6) , mas a concessão de fundos ligada à obrigação correlativa de reembolso e de pagamento de juros  (7) . Daí deduziu que o consumidor que celebra este tipo de contrato numa situação de vendas ao domicílio dispõe do direito de rescisão instituído no artigo 5.° da directiva  (8) .

12.      A seguir, o Tribunal de Justiça lembrou que o prazo mínimo de sete dias para exercer o direito de rescisão deve ser calculado «a contar da data em que recebeu a informação» relativa ao seu direito de rescisão e que a obrigação de fornecer esta informação incumbe ao comerciante  (9) . Por conseguinte, declarou que a directiva se opõe a uma disposição nacional que prevê o prazo máximo de um ano a contar da celebração do contrato para o exercício do direito de rescisão instituído pelo artigo 5.° da directiva quando o consumidor não foi informado nos termos do artigo 4.° da referida directiva  (10) .

B – Legislação alemã

13.      Na Alemanha, a directiva foi transposta para o direito nacional pela Gesetz über der Widerruf von Haustürgeschäften und ähnlichen Geschäften (lei relativa à rescisão de contratos celebrados por venda ao domicílio e transacções similares), de 16 de Janeiro de 1986  (11) .

14.      O § 3, n.° 1, deste texto prevê que «no caso de rescisão, cada uma das partes está obrigada a restituir à outra as prestações recebidas». O § 3, n.° 3, da HWiG acrescenta que «o valor da cessão de uso bem como das outras prestações até ao momento da rescisão também deve ser reembolsado».

15.      Por outro lado, o legislador alemão transpôs a Directiva 87/102/CEE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao crédito ao consumo  (12) , adoptando a Verbraucherkreditgesetz (lei sobre o crédito ao consumo), de 17 de Dezembro de 1990  (13) . O § 9 desta lei dispõe:

«1.     O contrato de compra e venda constitui uma transacção conexa com o contrato de mútuo quando o crédito serve para o financiamento do preço de venda e os dois contratos devem ser considerados uma unidade económica. Existe uma unidade económica designadamente quando o mutuante obtém a colaboração do vendedor para a preparação ou a celebração do contrato de mútuo.

2.       A declaração de vontade do consumidor no sentido da celebração do contrato de compra e venda conexo apenas é válida se o consumidor não der sem efeito [...] a sua declaração de vontade no sentido da celebração do contrato de mútuo.

A informação relativa ao direito de rescisão [...] deve conter a indicação de que, em caso de rescisão, o contrato de compra e venda conexo com o contrato de mútuo deixa de ser válido [...]. Se o montante líquido do crédito foi já pago ao vendedor, o mutuante assume relativamente ao consumidor os direitos e obrigações do vendedor decorrentes do contrato de venda no que se refere aos efeitos jurídicos da rescisão [...]»

16.      O § 3, n.° 2, ponto 2, da VerbrKrG esclarece que algumas das disposições desta lei, designadamente o § 9, não são aplicáveis aos «contratos de mútuo nos termos dos quais o crédito está sujeito à constituição de uma garantia real e é concedido nas condições habituais para os créditos com garantia real e seu financiamento intercalar».

II – Matéria de facto e tramitação no processo principal

17.      Desde finais dos anos 80, o Deutsche Bausparkasse Badenia (a seguir «Banco») financia a aquisição de apartamentos antigos.

18.      Regra geral, trata‑se de imóveis construídos no âmbito da construção de habitação social durante os anos 60 e 70, e que foram adquiridos pela Allgemeine Wohnungsvermögens AG, tendo sido depois renovados e colocados à venda. A sociedade Heinen & Biege GmbH, que se dedica à mediação imobiliária e financeira, encarregou‑se da comercialização dos apartamentos e da mediação do financiamento.

19.      Neste âmbito, o casal Schulte foi contactado em Fevereiro de 1992 por um agente da sociedade Heinen & Biege GmbH, que lhes propôs uma aplicação financeira com vista à aquisição de um bem imóvel financiado a crédito. Por razões fiscais, o apartamento devia ser utilizado por terceiros e a sua aquisição integralmente financiada pelo contrato de mútuo, não sendo permitidas amortizações no decurso do contrato de mútuo.

20.      Assim, em 28 de Abril de 1992, o casal Schulte adquiriu um apartamento pelo preço de 90 519 DEM. O contrato de compra e venda foi celebrado perante o notário, de acordo com as disposições da legislação alemã na matéria.

21.      Com o objectivo de financiar esta aquisição, o casal Schulte contraiu, em 7 de Abril de 1992, junto do Banco um empréstimo no montante de 105 000 DEM, garantido por uma hipoteca do mesmo valor. Esta garantia real foi constituída por acto notarial de 8 de Maio de 1992. Nesse acto, o casal Schulte assumiu também a responsabilidade pessoal pelo pagamento da hipoteca e aceitaram a possibilidade de execução imediata do contrato de empréstimo sobre a totalidade do seu património.

22.      O casal Schulte aderiu igualmente a um regime de comunhão dos rendimentos locativos. Em virtude deste regime, renunciavam à gestão do seu bem imóvel: a sociedade Heinen & Biege GmbH recebia os rendimentos locativos e distribuía‑os aos proprietários na proporção do seu investimento, após dedução dos custos suportados com a manutenção dos apartamentos.

23.      Por último, o casal Schulte celebrou com o Banco dois contratos de «poupança‑construção» para reembolso do seu empréstimo.

24.      Após a celebração destes diferentes contratos, o Banco, por ordem do casal Schulte, pagou directamente o montante líquido do empréstimo, a saber, 101 850 DEM, ao vendedor do apartamento.

25.      Não tendo o casal Schulte cumprido as suas obrigações, o Banco exigiu o reembolso do empréstimo e requereu a execução do contrato com base no acto notarial de 8 de Maio de 1992.

26.      Em Novembro de 2002, o casal Schulte rescindiu o contrato de mútuo com fundamento na HWiG e deduziu oposição à execução no tribunal de reenvio.

III – Pedido prejudicial

27.      Na decisão de reenvio, o Landgericht Bochum recorda que, por força do § 3 da HWiG, as partes são obrigadas a restituir uma à outra as prestações recebidas e a indemnizar o valor do uso proporcionado até ao momento da rescisão. Explica igualmente que, por força de jurisprudência assente do Bundesgerichtshof (Alemanha), órgão jurisdicional supremo em matéria cível, o empréstimo é considerado «recebido» ainda que a instituição financeira tenha pago o montante directamente a um terceiro por ordem do mutuário.

28.      Daí resulta que, no caso de rescisão, as disposições da HWiG obrigam o mutuário ao reembolso do montante líquido do empréstimo, acrescido dos juros à taxa do mercado. Além disso, esta obrigação de reembolso tem efeitos imediatos e abrange a totalidade do montante do empréstimo.

29.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que esta consequência é grave para o consumidor e que poderão ser perspectivadas outras soluções no direito interno.

30.      Assim, poderá entender‑se o contrato de empréstimo e o contrato de compra e venda de imóvel como uma «unidade económica» na acepção do § 9 da VerbrKrG. Neste caso, a rescisão do contrato de mútuo implica a rescisão do contrato de compra e venda nos termos do § 9, n.° 2, da VerbrKrG. O consumidor já não será, portanto, obrigado a reembolsar o montante do empréstimo à instituição mutuante, mas unicamente a restituir‑lhe a propriedade, indemnizando‑o pelo uso que fez do imóvel até ao momento da rescisão.

31.      Outra solução consiste em reconhecer a unidade económica constituída pelo contrato de mútuo e o contrato de compra e venda sem recorrer ao § 9 da VerbrKrG. Neste caso, a rescisão de um dos contratos implicaria igualmente a anulação do outro.

32.      O órgão jurisdicional de reenvio esclarece, no entanto, que o Bundesgerichtshof afastou estas duas soluções, mesmo na jurisprudência posterior ao acórdão Heininger. O Bundesgerichtshof baseia‑se fundamentalmente no § 3, n.° 2, ponto 2, da VerbrKrG, que prevê que as disposições do § 9 da VerbrKrG, relativas às transacções conexas, não se aplicam aos contratos de empréstimo com garantia real. Assim, em acórdão de 9 de Abril de 2002, o Bundesgerichtshof declarou:

«Se, em razão do [acórdão Heininger], o direito de rescisão [deve ser reconhecido nos contratos de crédito imobiliário], no momento de examinar as consequências jurídicas da rescisão [...], ter‑se‑á em consideração o facto de que, por força do § 3, n.° 2, ponto 2, da VerbrKrG, o § 9 da VerbrKrG (na versão vigente até 30 de Setembro de 2000) não é aplicável aos créditos imobiliários na acepção desta disposição.

De acordo com uma longa jurisprudência uniforme de várias secções do BGH, o crédito imobiliário e a compra e venda de imóveis financiada pelo crédito não são, em princípio, considerados contratos conexos que constituam uma unidade económica [...]. Com efeito, na aquisição de imóveis, o particular sem conhecimentos jurídicos e experiência nos negócios não ignora que o mutuante e o vendedor são normalmente pessoas diferentes. O legislador teve tal facto em consideração ao prever no § 3, n.° 2, ponto 2, [da VerbrKrG] que as regras relativas aos contratos conexos (§ 9 da VerbrKrG) não são aplicáveis aos créditos imobiliários na acepção do § 3, n.° 2, ponto 2, da VerbrKrG.»

33.      O Landgericht Bochum esclarece que, em função desta jurisprudência, a rescisão do contrato de crédito imobiliário não tem qualquer incidência sobre a validade do contrato de compra e venda de imóvel. Os consumidores são, portanto, obrigados a reembolsar imediatamente o montante do empréstimo, acrescido de juros.

34.      O órgão jurisdicional de reenvio considera esta solução contrária ao direito comunitário. Com efeito, mesmo se, em conformidade com o artigo 7.° da directiva, os efeitos jurídicos da rescisão devem ser regulados pelo direito nacional, é pacífico que as normas adoptadas pelos Estados‑Membros não podem fazer perigar a eficácia do direito comunitário e, em especial, a do direito de rescisão conferido pela directiva.

35.      Ora, no caso em apreço, o consumidor que exerce o seu direito de rescisão encontra‑se numa situação bem menos favorável do que no caso de manutenção do contrato de mútuo, uma vez que é obrigado a reembolsar imediatamente o montante do empréstimo, acrescido de juros.

36.      Nestas condições, o Landgericht Bochum considera que as autoridades alemãs não adoptaram as medidas adequadas para assegurar a aplicação da directiva e para garantir uma protecção efectiva dos consumidores.

IV – Questões prejudiciais

37.      O Landgericht Bochum decidiu, por isso, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as quatro questões prejudiciais seguintes:

«1)
O artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da Directiva [85/577/CEE] abrange igualmente os contratos de compra e venda de bens imóveis que são considerados unicamente parte integrante de um investimento financiado com recurso ao crédito e cujas negociações até à celebração do contrato decorreram, tanto no que respeita ao contrato de compra e venda do imóvel como ao contrato de mútuo exclusivamente destinado ao financiamento, no domicílio do mutuário, na acepção do § 1 [da HWiG]?

2)
Uma ordem jurídica nacional, ou a interpretação dela feita, que restringe as consequências jurídicas da rescisão da declaração de vontade relativa à celebração de um contrato de mútuo, mesmo no domínio dos investimentos relativamente aos quais o crédito jamais teria sido concedido sem a aquisição do imóvel, à anulação do contrato de mútuo, preenche os requisitos da fixação de um nível de protecção elevado em matéria de defesa dos consumidores (artigo 95.°, n.° 3, do Tratado CE), e da efectividade da protecção dos consumidores, assegurada pela directiva [85/577]?

3)
Uma disposição nacional sobre os efeitos jurídicos da rescisão do contrato de mútuo, segundo a qual o consumidor que rescinde o contrato tem de reembolsar o capital à instituição bancária financiadora apesar de o mútuo, de acordo com o previsto para efeitos do investimento, se destinar exclusivamente ao financiamento do imóvel e ser pago directamente ao vendedor do imóvel, satisfaz o escopo de protecção das regras relativas à rescisão constantes do artigo 5.°, n.° 2, da directiva [85/577]?

4)
Uma disposição nacional que prevê uma consequência da rescisão que consiste em ser o consumidor obrigado, após a declaração de rescisão, a reembolsar imediatamente o capital que – com base no previsto para efeitos do investimento– ainda não tiver sido amortizado, acrescido de juros de mora à taxa do mercado, é contrária a um nível de protecção elevado em matéria de defesa dos consumidores (artigo 95.°, n.° 3, do Tratado CE), e à efectividade da protecção dos consumidores assegurada pela directiva [85/577]?»

V – Quanto à admissibilidade do pedido prejudicial

38.      A título preliminar, importa apreciar a admissibilidade do pedido prejudicial.

39.      Com efeito, o Banco sublinha que, no caso em apreço, o Landgericht Bochum não se pronunciou sobre a questão de saber se o contrato de mútuo tinha sido celebrado numa situação de venda ao domicílio e, enquanto esta questão não for decidida, o pedido prejudicial apresenta carácter hipotético.

40.     É sabido que, segundo jurisprudência constante  (14) , o processo previsto no artigo 234.° CE constitui um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais. No âmbito desta cooperação, compete aos órgãos jurisdicionais nacionais chamados a conhecer do litígio e aos quais cabe a responsabilidade pela decisão a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial como a pertinência das questões submetidas  (15) . Consequentemente, quando as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir  (16) .

41.      Contudo, o Tribunal de Justiça declarou igualmente  (17) que lhe cabe, a fim de verificar a sua própria competência, apreciar as condições em que lhe foi submetido o pedido do órgão jurisdicional nacional. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é a de contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros e não formular opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas  (18) .

42.      Além disso, o Tribunal considera que, para fornecer uma interpretação do direito comunitário que seja útil, o juiz nacional deve, antes de lançar mão do reenvio, dar como assente a matéria de facto do processo  (19) .

43.      No caso em apreço, é certo que o órgão jurisdicional de reenvio não decidiu se o contrato de crédito se insere numa situação de venda ao domicílio, embora as partes se tenham firmemente oposto quanto a este aspecto  (20) .

44.      O órgão jurisdicional de reenvio considerou que a solução do litígio dependia, antes de mais, de saber se, no caso de rescisão do contrato de crédito, a directiva impõe ao consumidor o reembolso do montante do empréstimo. Entendeu que, se o Tribunal responder afirmativamente a esta questão, deixa de ser necessário verificar se o contrato controvertido cai no âmbito de aplicação da directiva uma vez que, mesmo admitindo que seja esse o caso, o casal Schulte seria, em todo o caso, obrigado a reembolsar o montante do empréstimo ao Banco.

45.      Mesmo que se possam entender as razões desta abordagem, não é menos certo que ela coloca o Tribunal de Justiça numa situação difícil à luz da sua jurisprudência. Com efeito, diferentemente do processo Heininger, em que o órgão jurisdicional de reenvio partiu claramente da premissa de que o contrato de crédito era abrangido pelo âmbito de aplicação da directiva  (21) , no caso em apreço, o Landgericht Bochum deixou expressamente esta questão em aberto  (22) .

46.      Daí resulta que, na fase actual dos autos, o Tribunal de Justiça ignora se a directiva se aplica ao processo principal. Não tem, pois, a certeza de que o acórdão a proferir será aplicado no processo principal uma vez que, após verificação, o Landgericht Bochum poderá muito bem concluir que o contrato de crédito imobiliário não foi celebrado numa situação de venda ao domicílio.

47.      Nestas condições, parece difícil considerar que o pedido de decisão prejudicial seja admissível. Com efeito, como salientou o Banco, o mesmo apresenta, no estado actual dos autos, carácter hipotético.

48.     É, portanto, a título subsidiário, que apreciaremos as questões apresentadas pelo Landgericht Bochum.

VI – Quanto às questões prejudiciais

49.      O pedido de decisão prejudicial do Landgericht Bochum coloca três séries de questões, que importa examinar sucessivamente.

50.      Estas questões relacionam‑se com o âmbito de aplicação da directiva  (23) (ponto A, infra ), as incidências da rescisão do contrato de crédito sobre o contrato de compra e venda de imóvel  (24) (ponto B, infra ) bem como os efeitos da rescisão no que se refere ao próprio contrato de crédito imobiliário  (25) (ponto C, infra ).

A – Âmbito de aplicação da directiva

51.      A primeira questão do Landgericht Bochum versa sobre as disposições do artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva.

52.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, atentas estas disposições, a directiva pode ser aplicável a um contrato de compra e venda de imóvel quando este contrato se integra numa operação financeira global que compreende, além do referido contrato, um contrato de crédito imobiliário celebrado exclusivamente com o objectivo de financiar a aquisição do bem imóvel, a adesão a um regime de comunhão dos rendimentos locativos e dois contratos de «poupança‑construção».

53.      Como já vimos, o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva exclui do seu âmbito de aplicação os «contratos relativos à construção, venda e aluguer de bens imóveis».

54.      Esta exclusão explica‑se pelo facto de a directiva pretender proteger os consumidores contra o elemento surpresa inerente à venda ao domicílio  (26) . Com efeito, os contratos celebrados fora dos estabelecimentos comerciais do comerciante caracterizam‑se geralmente pelo facto de a iniciativa das negociações provir do comerciante e de o consumidor não estar, de forma nenhuma, preparado para tais negociações  (27) . O consumidor não está, portanto, em condições de comparar a oferta do comerciante com outras ofertas  (28) e pode, por isso, ver‑se impossibilitado de apreciar todas as implicações dos seus actos  (29) .

55.      Ora, este elemento surpresa não se encontra nos contratos relativos a imóveis e, em especial, nos contratos de compra e venda de imóveis.

56.      Com efeito, na maioria, senão mesmo em todos os Estados‑Membros, a celebração deste tipo de contrato é obrigatoriamente rodeada de um determinado formalismo. Este pode traduzir‑se no facto de o contrato dever ser celebrado perante um funcionário público, encarregado de redigir o acto e de esclarecer as partes quanto ao alcance dos seus compromissos. Pode igualmente traduzir‑se no facto de obrigatoriamente ter de decorrer um certo tempo entre a assinatura provisória do contrato e a sua celebração definitiva.

57.      Nestas condições, é quase impossível que um contrato de compra e venda de imóvel possa ser validamente celebrado numa situação de venda ao domicílio. É, portanto, lógico que a directiva exclua este tipo de contrato do seu âmbito de aplicação.

58.      No caso vertente, o Landgericht Bochum pergunta se esta exclusão deve ser mantida mesmo quando o contrato de compra e venda de imóvel se integra na operação financeira global que abrange, além deste, um contrato de crédito imobiliário subscrito com o escopo de financiar a aquisição do bem imóvel  (30) .

59.      A este propósito, o Governo francês propôs, na audiência, que o Tribunal de Justiça aplicasse a solução que tinha adoptado no acórdão de 22 de Abril de 1999, Travel Vac  (31) .

60.      Neste processo, uma das questões colocadas visava determinar se, atento o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva, esta se podia aplicar aos contratos de «multipropriedade» na acepção da Directiva 94/47/CE  (32) .

61.      Quanto a este ponto, o Tribunal de Justiça declarou que os contratos de multipropriedade, como o que estava em causa no processo principal, «não [são] abrangido[s] pela exclusão referida no artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da Directiva 85/587»  (33) . Considerou, com efeito, que este tipo de contrato «não se reporta apenas ao direito de utilização de um imóvel a tempo parcial, mas abrange também o fornecimento de serviços distintos de um valor superior ao do direito de utilização do bem imóvel»  (34) .

62.      Daí resulta que um dos elementos determinantes neste processo era o de que o contrato não incidia unicamente sobre a aquisição de um direito relativo a um bem imóvel, mas igualmente, e sobretudo, no fornecimento de determinados serviços, tais como a manutenção do imóvel, a gestão e a administração da multipropriedade, a utilização dos serviços comuns de loteamento e a inscrição na organização internacional que permite ao comprador trocar as suas permanências de férias  (35) .

63.      Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça atribuiu uma importância determinante ao facto de esses serviços terem um «valor superior ao do direito de utilização do bem imóvel». Com efeito, nos termos do contrato, o adquirente devia pagar o montante de 1 090 000 PTA (ou seja, 5 436,90 euros), dos quais apenas 285 000 PTA (ou seja, 1 421,57 euros) representavam o valor imobiliário da parte indivisa. O restante correspondia ao imposto sobre o valor acrescentado, aos serviços acima mencionados e à inscrição na organização internacional já referida  (36) .

64.      Ora, no caso em apreço, a operação financeira controvertida não apresenta estas características.

65.      Com efeito, vimos que esta operação incide principalmente, senão exclusivamente, sobre a aquisição do direito de propriedade de um bem imóvel.

66.     É certo que a sociedade Heinen & Biege GmbH se comprometeu também a prestar determinados serviços ligados à gestão e administração do complexo imobiliário  (37) . Contudo, é pacífico que, no plano económico, estes serviços apenas representavam uma parte ínfima da operação financeira controvertida  (38) .

67.      Nestas condições, pensamos que a solução que se pode inferir do acórdão Travel Vac, já referido, não é aplicável à operação financeira controvertida.

68.      Propomos, portanto, ao Tribunal que responda à primeira questão prejudicial no sentido de que, atento o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva, esta não se aplica a um contrato de compra e venda de imóvel, mesmo quando este contrato se integra numa operação financeira global que abrange, para além do mesmo, um contrato de crédito imobiliário celebrado com o objectivo de financiar a aquisição do bem imóvel, a adesão a um regime de comunhão dos rendimentos locativos e dois contratos de «poupança‑construção».

B – Incidência da rescisão sobre o contrato de compra e venda de imóvel

69.      A segunda questão prejudicial visa a interpretação das disposições do artigo 95.°, n.° 3, CE e da directiva.

70.      O Landgericht Bochum pergunta se, no caso de uma operação financeira global que abrange um contrato de compra e venda de imóvel e um contrato de crédito imobiliário celebrado para financiamento da compra do bem imóvel, o artigo 95.°, n.° 3, CE e a directiva se opõem a uma disposição nacional que prevê que o exercício do direito de rescisão instituído no artigo 5.° da directiva implica unicamente a rescisão do contrato de crédito e não a do contrato de compra e venda de imóvel.

71.      No que toca ao artigo 95.°, n.° 3, CE, pensamos que a resposta à questão do Landgericht Bochum resulta da redacção desta disposição. Esta prevê, com efeito, que:

«[a] Comissão, nas suas propostas [de directiva] em matéria de saúde, de segurança, de protecção do ambiente e de defesa dos consumidores, basear‑se‑á num nível de protecção elevado, tendo nomeadamente em conta qualquer nova evolução baseada em dados científicos. No âmbito das respectivas competências, o Parlamento Europeu e o Conselho procurarão igualmente alcançar esse objectivo.»

72.      Como realçou o Governo alemão, os destinatários desta obrigação não são os Estados‑Membros, como no caso do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE  (39) , mas os intervenientes no processo legislativo comunitário. O artigo 95.°, n.° 3, CE dirige‑se assim à Comissão das Comunidades Europeias, ao Parlamento Europeu e ao Conselho da União Europeia, mas não às autoridades dos Estados‑Membros. Não permite, portanto, impor obrigações a estas autoridades com vista a assegurar a transposição correcta ou efectiva de uma directiva comunitária.

73.      Nestas condições, a primeira parte da segunda questão do Landgericht Bochum deve merecer resposta negativa.

74.      Relativamente à segunda parte desta questão, lembremos que a directiva deixa aos Estados‑Membros o cuidado de determinar as consequências do exercício do direito de rescisão previsto no artigo 5.°

75.      Com efeito, vimos que o artigo 7.° da directiva prevê que «os efeitos jurídicos d[a] renúncia são regulados de acordo com a legislação nacional».

76.      Além disso, no que respeita especificamente aos contratos de crédito imobiliário, o Tribunal de Justiça declarou que a directiva autoriza os Estados‑Membros a determinar os efeitos da rescisão sobre o contrato de compra e venda de imóvel. No acórdão Heininger, esclareceu, com efeito, que:

«se um contrato de crédito [imobiliário] [...] é [...] abrangido pela aplicação da directiva relativa à venda ao domicílio, as consequências de uma eventual rescisão desse contrato [...] sobre o contrato de compra do bem imóvel e a constituição da garantia imobiliária são reguladas pelo direito nacional» 40  –N.° 35..

77.      Daí resulta que a determinação dos efeitos da rescisão sobre o contrato de compra e venda de imóvel é da competência dos Estados‑Membros.

78.      No caso vertente, o órgão jurisdicional de reenvio e alguns intervenientes, como o casal Schulte e a Comissão, consideram que o direito comunitário impõe limites ao exercício desta competência.

79.      Referem‑se ao objectivo prosseguido pela directiva bem como ao conceito de «efeito útil» ou de «eficácia» do direito comunitário. Em seu entender, embora as autoridades nacionais tenham a liberdade de determinar os efeitos da rescisão, as mesmas devem, ao aprovar as respectivas regras, zelar para que seja assegurada a plena eficácia da directiva e do objectivo que a mesma prossegue, a saber, a protecção dos consumidores.

80.      Ora, não é assim no caso vertente uma vez que, ao prever que a rescisão do contrato do crédito imobiliário não afecta a validade do contrato de compra e venda de imóvel, a legislação alemã torna o exercício do direito de rescisão praticamente impossível ou excessivamente difícil.

81.      A este propósito, importa realçar que as disposições da directiva em matéria de contratos imobiliários são particularmente claras e precisas.

82.      Como já vimos, o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), deste texto exclui expressamente do âmbito de aplicação da directiva os contratos relativos à «construção, venda e aluguer de bens imóveis». A directiva não apresenta, portanto, qualquer ambiguidade ou equívoco quanto ao facto de a mesma não se aplicar aos contratos de compra e venda de imóveis.

83.      Nestas condições, pensamos que não é possível recorrer ao objectivo da directiva ou ao conceito de «efeito útil» como fundamento para uma solução contrária.

84.      Com efeito, como já mencionámos nas nossas conclusões no processo Schilling e Nehring  (41) , a chamada interpretação «teleológica» e o conceito de «efeito útil» não são instrumentos utilizados em qualquer circunstância pelo Tribunal de Justiça.

85.      Uma análise atenta da jurisprudência mostra que só é de recorrer à interpretação finalista quando a disposição em causa é passível de várias interpretações.

86.      Assim, este método é muitas vezes utilizado para confirmar o sentido de uma disposição que, sem ser absolutamente clara e inequívoca, deixa geralmente um pequeno lugar a dúvidas. Nesse caso, o recurso à letra e à finalidade das regras comunitárias preenchem uma função complementar no processo de interpretação  (42) .

87.      A interpretação teleológica desempenha igualmente um papel, primordial desta feita, quando o texto em causa é difícil de interpretar tomando unicamente como ponto de partida a sua redacção. Tal acontece quando a disposição controvertida é ambígua  (43) . É também esse o caso quando a disposição constitui um «padrão jurídico», que revela assim a vontade do legislador de deixar ao tribunal o cuidado de definir o respectivo conteúdo, caso a caso, para permitir uma aplicação adaptada aos factos que lhe são submetidos  (44) .

88.      Ao invés, a interpretação teleológica não é utilizada quando, como no caso vertente, o texto em causa é absolutamente claro e unívoco. Neste caso, com efeito, as disposições do direito comunitário são suficientes por si mesmas. Assim, no caso de um regulamento agrícola, por exemplo, o Tribunal de Justiça declarou que o texto da disposição em causa era «claro e sem ambiguidade» e não teve, portanto, necessidade de se referir à finalidade prosseguida  (45) .

89.      Impõe‑se a mesma apreciação no que concerne ao conceito de «efeito útil» em direito comunitário.

90.      Sabemos, com efeito, que o propósito de assegurar a eficácia do direito comunitário conduz muitas vezes o Tribunal de Justiça, quando uma disposição de direito comunitário é susceptível de várias interpretações, a dar prioridade à mais adequada para salvaguardar esse efeito útil  (46) . Contudo, esta jurisprudência aplica‑se, por definição, quando a norma em causa é «susceptível de várias interpretações»  (47) . Não se aplica, pois, a uma disposição que, como no caso vertente, apresenta todas as características de clareza e precisão exigidas.

91.      Em nosso entender, esta análise relativa à interpretação finalista e ao efeito útil do direito comunitário impõe‑se igualmente quando, como no caso em apreço, a redacção da disposição contradiz a finalidade da directiva em que se insere.

92.      Com efeito, sabemos que, tendo em conta o artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da directiva, as disposições da mesma e, designadamente, as que instituem o direito de rescisão não são aplicáveis aos contratos de compra e venda de imóveis. Sabemos também que o objectivo da directiva, ou seja, a protecção dos consumidores, exige, no entanto, uma outra interpretação, que permita, de um modo ou outro, que a rescisão do contrato de crédito imobiliário afecte a validade do contrato de compra e venda de imóvel. Existe, pois, uma certa contradição entre o texto da directiva e o objectivo que a mesma prossegue.

93.      Contudo, como indicámos no processo Schilling e Nehring, já referido  (48) , uma contradição desta natureza deve necessariamente ser resolvida à luz do princípio da segurança jurídica. Este princípio, que é um princípio fundamental da ordem jurídica comunitária  (49) , exige que a legislação comunitária seja clara e que a sua aplicação seja previsível para todos os que por ela são abrangidos  (50) .

94.      A única solução possível neste caso é pois a de optar pela interpretação que a própria letra da disposição impõe, em detrimento do objectivo prosseguido pela directiva em que a mesma se integra. Seria, com efeito, incompatível com as exigências da segurança jurídica recorrer à interpretação teleológica ou ao conceito de «efeito útil» para atribuir a uma disposição comunitária um sentido que ela não pode manifestamente ter, dado a sua redacção não contribuir para a realização do objectivo prosseguido pela directiva em que se integra.

95.      Atentos estes elementos, pensamos que a interpretação finalista da directiva, tal como o seu efeito útil, não permitem exigir que a rescisão do contrato de crédito imobiliário afecte, de um modo ou outro, a validade do contrato de compra e venda de imóvel.

96.      Qualquer outra solução redundaria em considerar que, não obstante o seu artigo 3.°, n.° 2, alínea a), a directiva impõe aos Estados‑Membros a aplicação das disposições relativas ao direito de rescisão aos contratos de compra e venda de imóveis.

97.      Consequentemente, propomos que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão prejudicial no sentido de que, no caso de uma operação financeira global que abrange um contrato de compra e venda de imóvel e um contrato de crédito imobiliário celebrado para financiamento da aquisição do bem imóvel, o artigo 95.°, n.° 3, CE e a directiva não exigem que a rescisão do contrato de crédito imobiliário implique também a rescisão do contrato de compra e venda de imóvel.

C – Efeitos da rescisão no que se refere ao contrato de crédito

98.      As duas últimas questões prejudiciais visam também a interpretação do artigo 95.°, n.° 3, CE e da directiva.

99.      O Landgericht Bochum pergunta se, no caso de uma operação financeira global que inclui um contrato de crédito imobiliário e um contrato de compra e venda de imóvel, os artigos 95.°, n.° 3, CE e 5.°, n.° 2, da directiva se opõem a uma disposição nacional que prevê, no caso de rescisão do contrato de mútuo, a obrigação por parte do consumidor de reembolsar imediatamente o montante do empréstimo, acrescido dos juros, ao passo que o montante deste empréstimo, por ordem do consumidor, foi pago directamente pela instituição bancária financiadora ao vendedor do bem imóvel.

100.    Independentemente da solução que propomos nos n. os  40 a 48 das presentes conclusões, parece‑nos que, de todo o modo, as duas últimas questões do Landgericht Bochum levantam um problema de admissibilidade.

101.   É sabido que, segundo jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça entende que, no âmbito do procedimento instituído pelo artigo 234.° CE, lhe compete apreciar as condições em que foi chamado a conhecer do litígio pelo juiz nacional. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é a de contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros e não formular opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas  (51) .

102.    O Tribunal de Justiça considera também que, para fornecer uma interpretação do direito comunitário que seja útil, é indispensável que o juiz nacional explique as razões pelas quais considera que é necessária uma resposta às suas questões  (52) .

103.    Ora, no caso vertente, pensamos que o Landgericht Bochum não explicou claramente as razões subjacentes às suas duas últimas questões prejudiciais.

104.    Com efeito, lendo o pedido prejudicial, afigura‑se que estas duas questões são unicamente destinadas a chamar a atenção do Tribunal de Justiça para as consequências da rescisão do contrato de crédito imobiliário se o Tribunal de Justiça declarar que esta rescisão não afecta a validade do contrato de compra e venda de imóvel. Não é, portanto, seguro que o órgão jurisdicional de reenvio se interrogue sobre a validade dessas consequências enquanto tais. De todo o modo, o órgão jurisdicional de reenvio não refere em momento algum as razões pelas quais estas consequências podem ser contrárias ao direito comunitário.

105.    Na realidade, essas razões parecem ressaltar da leitura do despacho de reenvio noutro processo prejudicial, a saber, o processo C‑229/04, Crailsheimer Volksbank  (53) .

106.    Neste processo, foram submetidos ao Hanseatisches Oberlandesgericht in Bremen (Alemanha) vários litígios comparáveis ao do processo principal. Além de uma questão relativa aos elementos constitutivos da venda ao domicílio na acepção da directiva, este órgão jurisdicional esclarece que retomou e pormenorizou as duas últimas questões colocadas pelo Landgericht Bochum.

107.    Assim, relativamente à obrigação de reembolso imediato do empréstimo, o Hanseatisches Oberlandesgericht in Bremen refere que esta obrigação pode dissuadir o consumidor de exercer o seu direito de rescisão. Com efeito, na medida em que lhe impõe o reembolso imediato da totalidade do empréstimo, em lugar dos pagamentos escalonados que podia efectuar em cumprimento do contrato de mútuo, a execução da obrigação controvertida pode ser susceptível de provocar a insolvência do consumidor.

108.    Do mesmo modo, relativamente à obrigação de pagamento de juros, o Hanseatisches Oberlandesgericht in Bremen observa que tal obrigação pode igualmente dissuadir o consumidor de exercer o seu direito de rescisão. Com efeito, esses juros podem representar um montante importante, sobretudo quando a rescisão ocorre muito tempo após a celebração do contrato e traduzirem‑se, por conseguinte, numa sanção aplicada ao consumidor em consequência do exercício do seu direito de rescisão. Ora, no acórdão Travel Vac, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que a directiva se opõe a que um contrato imponha ao consumidor o pagamento de uma indemnização fixa pelo simples facto do exercício do seu direito de rescisão.

109.    Acresce que, no caso em análise, a omissão do Landgericht Bochum parece ter tido incidência directa no direito dos Estados‑Membros e de outras partes interessadas de apresentarem observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça.

110.    Com efeito, resulta dos autos que os diferentes intervenientes, com excepção do Banco e do Governo alemão  (54) , entenderam as três últimas questões do Landgericht Bochum no sentido de que as mesmas versavam unicamente sobre as consequências da rescisão do contrato de crédito imobiliário para o contrato de compra e venda de imóvel. Apreciaram, portanto, estas questões conjuntamente sem apresentarem observações específicas quanto às terceira e quarta questões prejudiciais.

111.    Nestas condições, pensamos que o Tribunal de Justiça não dispõe de todos os elementos necessários para dirimir estas duas últimas questões.

112.    Propomos, portanto, ao Tribunal de Justiça que as declare inadmissíveis.

VII – Conclusão

113.    Com base nas considerações desenvolvidas, propomos, portanto, que o Tribunal de Justiça declare:

«O pedido de decisão prejudicial submetido pelo Landgericht Bochum, por decisão de 29 de Julho de 2003, é inadmissível.»

114.    A título subsidiário, para o caso de o Tribunal de Justiça não subscrever esta análise, propomos que responda do seguinte modo às duas primeiras questões colocadas pelo Landgericht Bochum:

«1)
O artigo 3.°, n.° 2, alínea a), da Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais, deve ser interpretado no sentido de que a mesma não se aplica a um contrato de compra e venda de um bem imóvel, mesmo quando este contrato se integra numa operação financeira global que abrange, para além deste, um contrato de crédito imobiliário celebrado exclusivamente com o objectivo de financiar a aquisição de um bem imóvel, a adesão a um regime de comunhão dos rendimentos locativos e dois contratos de ‘poupança‑construção’.

2)
No caso de uma operação financeira global que abrange um contrato de compra e venda de imóvel e um contrato de crédito imobiliário celebrado com o objectivo de financiar a aquisição de um bem imóvel, o artigo 95.°, n.° 3, CE e a Directiva 85/577 não se opõem a uma disposição nacional que prevê que o exercício do direito de rescisão instituído no artigo 5.° da referida directiva implica unicamente a rescisão do contrato de crédito imobiliário e não a do contrato de compra e venda de imóvel.»


1
Língua original: francês.


2
C‑481/99, Colect., p. I‑9945 (a seguir «acórdão Heininger»).


3
JO L 372, p. 31; EE 15 F6 p. 131 (a seguir também designada «directiva»).


4
Acórdão Heininger (parte decisória, n.° 1).


5
. Ibidem (n.° 34).


6
. Ibidem (n.° 32).


7
. Ibidem (n.° 33).


8
. Ibidem (parte decisória, n.° 1).


9
. Ibidem (n.° 45).


10
. Ibidem (parte decisória, n.° 2).


11
BGBl. I, p. 122 (a seguir «HWiG»).


12
JO L 42, p. 48.


13
BGBl. I, p. 2840 (a seguir «VerbrKrG»).


14
Desde o acórdão do Tribunal de Justiça de 1 de Dezembro de 1965, Schwarze (16/65, Recueil, pp. 1081, 1094, Colect. 1965‑1968, p. 239).


15
V., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 38); de 22 de Janeiro de 2002, Canal Satélite Digital (C‑390/99, Colect., p. I‑607, n.° 18); de 19 de Fevereiro de 2002, Arduino (C‑35/99, Colect., p. I‑1529, n.° 24); e de 9 de Dezembro de 2003, Gasser (C‑116/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 23).


16
V., designadamente, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 59); PreussenElektra (já referido, n.° 38); Canal Satélite Digital (já referido, n.° 18); e Arduino (já referido, n.° 24).


17
Acórdão de 16 de Dezembro de 1981, Foglia (244/80, Recueil, p. 3045, n.° 21).


18
V., designadamente, acórdãos, já referidos, Bosman (n.° 59); PreussenElektra (n.° 38); Canal Satélite Digital (n.° 38); bem como acórdãos de 21 de Março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, Colect., p. I‑3193, n.° 16); de 10 de Dezembro de 2002, Der Weduwe (C‑153/00, Colect., p. I‑11319, n.° 32); e de 30 de Março de 2004, Alabaster (C‑147/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 54).


19
V., designadamente, acórdãos de 10 de Março de 1981, Irish Creamery Milk Suppliers Association e o. (36/80 e 71/80, Recueil, p. 735, n.° 6), e de 16 de Julho de 1992, Lourenço Dias (C‑343/90, Colect., p. I‑4673, n.° 19).


20
V. pedido prejudicial (p. 5); observações escritas do casal Schulte (p. 7) e observações escritas do Banco (ponto 1).


21
V. acórdão Heininger (já referido, n. os  25 e 26).


22
V. despacho de reenvio (pp. 6 e 8).


23
Primeira questão prejudicial.


24
Segunda questão prejudicial.


25
Terceira e quarta questões prejudiciais.


26
V. preâmbulo da directiva (quarto considerando) bem como as nossas conclusões no processo Heininger (n. os  33 a 38).


27
Preâmbulo da directiva (quarto considerando).


28
. Idem .


29
Acórdãos de 17 de Março de 1998, Dietzinger (C‑45/96, Colect., p. I‑1199, n.° 19), e Heininger (n.° 24).


30
A este propósito, observe‑se que o órgão jurisdicional de reenvio partiu da premissa de que os contratos controvertidos, a saber, o contrato de crédito imobiliário e o contrato de compra e venda de imóvel, constituem uma operação única. Ora, no despacho de reenvio, o próprio explicou que o Bundesgerichtshof não admitira esta qualificação. De acordo com jurisprudência assente, o Bundesgerichtshof considera, com efeito, que «o crédito imobiliário e a compra de imóvel financiada pelo crédito não são, em princípio, considerados contratos conexos que constituam uma unidade económica» (v. n.° 32 das presentes conclusões). A primeira questão do Landgericht Bochum parece, portanto, basear‑se numa premissa que, segundo ele próprio admite, é errada à luz do direito nacional. Contudo, mesmo com base na qualificação acolhida pelo órgão jurisdicional de reenvio, pensamos que a directiva não se aplica à operação controvertida, pelas razões expostas nos n. os  60 a 68 das presentes conclusões.


31
C‑423/97, Colect., p. I‑2195.


32
Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 1994, relativa à protecção dos adquirentes quanto a certos aspectos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis (JO L 280, p. 83).


33
Acórdão Travel Vac (já referido, n.° 25).


34
. Ibidem .


35
. Ibidem (n.° 10).


36
. Ibidem (n.° 11).


37
V. observações escritas do casal Schulte (p. 8).


38
Com efeito, vimos que o preço total da operação controvertida (ou seja, o montante do empréstimo subscrito pelo casal Schulte) atingia 105 000 DEM e que o preço do apartamento adquirido pelos interessados era de 90 519 DEM. Vimos igualmente que o montante líquido do crédito, após dedução de todas as despesas ligadas à celebração dos contratos, atingia 101 850 DEM e que este montante tinha sido integralmente pago pelo Banco ao vendedor do apartamento.


39
Nos termos desta disposição, «[a] directiva vincula o Estado‑Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios».


40
N.° 35.


41
Acórdão de 16 de Maio de 2002 (C‑63/00, Colect., p. I‑4483, n. os  23 a 29).


42
V., por exemplo, acórdãos de 7 de Maio de 1998, Lease Plan (C‑390/96, Colect., p. I‑2553, n.° 28); de 16 de Julho de 1998, Silhouette International Schmied (C‑355/96, Colect., p. I‑4799, n.° 22); e de 6 de Abril 2000, Comissão/ICI (C‑286/95 P, Colect., p. I‑2341, n.° 60).


43
No acórdão de 19 de Junho de 1980, Roudolff (803/79, Recueil, p. 2015), o Tribunal de Justiça declarou que, quando o texto de uma disposição é ambíguo, há que o interpretar à luz das finalidades da regulamentação em que esta disposição se insere.


44
V., por exemplo, acórdãos de 12 de Dezembro de 1996, Kontogeorgas (C‑104/95, Colect., p. I‑6643, n. os  25 a 27); de 14 de Setembro de 1999, DE + ES Bauunternehmung (C‑275/97, Colect., p. I‑5331, n. os  31 e 32); e de 21 de Junho de 2001, SONAE (C‑206/99, Colect., p. I‑4679, n. os  22 a 26).


45
Acórdão de 16 de Dezembro de 1999, DAT‑SCHAUB (C‑74/98, Colect., p. I‑8759, n.° 31). V., para outro exemplo, acórdão de 24 de Outubro de 1996, Picard (C‑335/95, Colect., p. I‑5625, n. os  18 a 20), no qual, após ter citado uma disposição de um regulamento comunitário, o Tribunal de Justiça conclui que o referido regulamento «consagra sem ambiguidade» o princípio de direito comunitário útil ao seu raciocínio. Por fim, no acórdão de 12 de Dezembro de 1990, Vandemoortele/Comissão (C‑172/89, Colect., p. I‑4677, n.° 13), o Tribunal de Justiça declarou que a regulamentação não se prestava a interpretação e que as condições de aplicação da sanção prevista na regulamentação controvertida eram suficientemente claras para não deixar margem a outra leitura.


46
V., por exemplo, acórdãos de 28 de Março de 1996, Ruiz Bernáldez (C‑129/94, Colect., p. I‑1829, n.° 19); de 24 de Fevereiro de 2000, Comissão/França (C‑434/97, Colect., p. I‑1129, n.° 21); de 9 de Março de 2000, EKW e Wein & Co (C‑437/97, Colect., p. I‑1157, n.° 41); e de 4 de Outubro de 2001, Itália/Comissão (C‑403/99, Colect., p. I‑6883, n.° 28).


47
Acórdão Schilling e Nehring (já referido, n.° 24).


48
N. os  31 a 33 das conclusões que apresentámos.


49
V., designadamente, acórdãos de 17 de Julho de 1997, National Farmers’ Union e o. (C‑354/95, Colect., p. I‑4559, n.° 57), e de 16 de Outubro de 1997, Banque Indosuez e o. (C‑177/96, Colect., p. I‑5659, n.° 27).


50
Acórdão de 16 de Junho de 1993, França/Comissão (C‑325/91, Colect., p. I‑3283, n.° 26).


51
V. jurisprudência referida na nota 18 das presentes conclusões.


52
V., designadamente, acórdão de 12 de Junho de 1986, Bertini e o. (98/85, 162/85 e 258/85, Colect., p. 1885, n.° 6), bem como os acórdãos, já referidos, Foglia (n.° 17), Lourenço Dias (n.° 19), Der Weduwe (n. os  37 a 39) e Gasser (n.° 24).


53
Este processo deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de Junho de 2004, ou seja, alguns dias antes da audiência no presente processo realizada em 15 de Junho de 2004. Contudo, por razões de tradução, só pudemos tomar conhecimento da decisão de reenvio no referido processo nos finais de Junho de 2004.


54
Os intervenientes no presente processo são o casal Schulte, o Banco, a República Federal da Alemanha, a República Italiana, a República Francesa e a Comissão.