CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 10 de Março de 2005(1)



Processo C-287/03



Comissão das Comunidades Europeias
contra
Reino da Bélgica



«Incumprimento de Estado – Livre prestação de serviços – Programas de fidelização dos consumidores – Aplicação de uma legislação nacional – Ónus da prova do incumprimento que incumbe à Comissão»






1.        No direito belga são proibidas, em princípio, as ofertas conjuntas de produtos ou de serviços. Todavia, é feita uma excepção a esta regra proibitiva no caso de serem oferecidos gratuitamente, em conjunto com a compra de um produto ou de um serviço principal, títulos que dêem direito, após várias compras, a uma oferta gratuita ou a uma redução de preço, na condição de essa vantagem ser respeitante a um produto ou a um serviço similar e ser concedida pelo mesmo vendedor .

2.        Pela presente acção, a Comissão das Comunidades Europeias pede, no essencial, que o Tribunal de Justiça declare que o Reino da Bélgica, ao aplicar de forma discriminatória e desproporcionada essas condições de «similitude» e de «vendedor único» como condição prévia para a execução, nesse Estado‑Membro, de um programa de fidelização dos consumidores, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

3.        Este processo diz respeito à matéria da promoção das vendas, que já foi objecto de estudos a nível comunitário apesar de, até ao presente, não ter ainda sido adoptado nenhum regulamento pelo legislador comunitário  (2) .

4.        Mais especificamente, a presente acção irá permitir‑me precisar que exigências abrange, em minha opinião, a regra segundo a qual, no âmbito de uma acção proposta nos termos do artigo 226.° CE, incumbe à Comissão provar o incumprimento por parte de um Estado‑Membro das suas obrigações comunitárias.

I – Quadro jurídico

A – Direito comunitário

5.        Nos termos do artigo 49.°, primeiro parágrafo, CE:

«No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

B – Legislação nacional

6.        O artigo 54.° da Lei belga, de 14 de Julho de 1991, relativa às práticas do comércio e à informação e protecção do consumidor  (3) (a seguir «lei belga») proíbe «qualquer oferta conjunta feita ao consumidor por um vendedor». É considerada oferta conjunta «a aquisição, gratuita ou não, de produtos, de serviços, de quaisquer outras vantagens, ou de títulos que permitem adquiri‑los [...] ligada à aquisição de outros produtos ou serviços, mesmo idênticos». A proposta conjunta ao consumidor é também proibida quando emana de «vários vendedores que agem com uma intenção única».

7.        Todavia, esta proibição de ofertas conjuntas tem excepções. Assim, o artigo 57.° da lei belga permite oferecer gratuitamente, em conjunto com um produto ou um serviço principal, títulos que dão direito a certas vantagens para o consumidor.

8.        Os títulos previstos no referido artigo, n. os  1 a 3, só podem ser emitidos pelos operadores económicos que estejam registados no Ministério competente, em conformidade com o artigo 59.°, primeiro parágrafo, da lei belga.

9.        Em contrapartida, o artigo 57.°, n.° 4, da referida lei prevê uma excepção à proibição das ofertas conjuntas, de que podem beneficiar os operadores económicos que não estejam inscritos nesse registo.

10.      Mais precisamente, o referido artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da lei belga permite que os operadores económicos ofereçam, conjuntamente com um produto ou com um serviço principal, «títulos que consistem em documentos que dão direito, após aquisição de um certo número de produtos ou de serviços, a uma oferta gratuita ou a uma redução de preço aquando da aquisição de um produto ou de um serviço similar, desde que essa vantagem seja concedida pelo mesmo vendedor e não ultrapasse um terço do preço dos produtos ou serviços adquiridos anteriormente».

11.      Além disso, o referido artigo dispõe que «[o]s títulos devem mencionar o eventual limite do seu prazo de validade, bem como as modalidades da oferta», e que, «quando o vendedor interrompe a sua oferta, o consumidor deve poder beneficiar da vantagem oferecida proporcionalmente às compras anteriormente efectuadas».

12.      A oferta gratuita de títulos não conforme com esta legislação pode, a pedido do Ministério da Economia, de um operador económico interessado ou de associações que tenham por objectivo a defesa dos interesses dos consumidores, ser objecto de um despacho que ordene a sua cessação, a proferir pelos tribunais de comércio.

II – Procedimento pré‑contencioso

13.      Por ofício de 31 de Março de 1999, a Comissão chamou a atenção do Reino da Bélgica para a questão da compatibilidade dos artigos 54.° e 57.° da lei belga com o artigo 49.° CE. A Comissão referiu nesse ofício ter sido alertada por uma queixa apresentada por uma empresa, estabelecida nos Países Baixos, que tem por actividade a organização, por conta de outras empresas, de um programa de fidelização dos consumidores denominado «Air Miles», o qual pretendia alargar à Bélgica  (4) .

14.      Este tipo de actividade é exercido do seguinte modo: a sociedade organizadora do programa celebra com empresas ditas sponsors um contrato que tem por fim criar e gerir um programa destinado a fidelizar os clientes dessas empresas. Estes clientes são então munidos de um cartão de memória electrónica que lhes permite registar os pontos «Air Miles» acumulados através das compras de produtos ou serviços efectuadas às empresas sponsors . Quando atingem um determinado número, esses pontos dão direito a, por exemplo, viagens gratuitas.

15.      O Reino da Bélgica respondeu a essa notificação para cumprir por ofício de 2 de Junho de 1999. Aí referia, designadamente, que a jurisprudência e a doutrina nacionais interpretaram o conceito de «similitude» como pressupondo que os produtos ou os serviços principais e os produtos ou os serviços que são oferecidos gratuitamente ou a preço reduzido são habitualmente colocados à venda pelo mesmo circuito de distribuição e/ou pertencem ao mesmo ramo de actividade industrial ou comercial.

16.      Não satisfeita com as explicações contidas nessa resposta, a Comissão, em 1 de Agosto de 2000, dirigiu ao Reino da Bélgica um parecer fundamentado em que, no essencial, o censurava por aplicar de modo discriminatório e desproporcionado as condições de «similitude» e de «vendedor único» que figuram na lei belga. O Reino da Bélgica foi convidado a cumprir esse parecer fundamentado no prazo de dois meses.

17.      As autoridades belgas responderam a esse parecer fundamentado por ofício de 16 de Outubro de 2000. Nesse ofício, referiram essencialmente que lhes parecia oportuno aguardar as orientações adoptadas pela Comissão quanto a uma proposta de regulamentação comunitária em matéria de promoção das vendas, a fim de proceder a uma reforma global da legislação nacional relativa às ofertas conjuntas, em vez de se limitar a fazer uma alteração pontual do artigo 57.°, n.° 4, da lei belga.

18.      Essa resposta também não convenceu a Comissão que, com fundamento no artigo 226.° CE, intentou a presente acção por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 3 de Julho de 2003.

III – A acção

19.      Pela presente acção, a Comissão pede que o Tribunal de Justiça declare que «o Reino da Bélgica, ao aplicar, de forma discriminatória e desproporcionada, as condições de ‘similitude’ e de ‘vendedor único’ aos produtos e serviços adquiridos por um consumidor, por um lado, e aos produtos ou serviços tornados acessíveis gratuitamente ou a preços reduzidos no âmbito de um programa de fidelização, por outro, como condição prévia para a execução de tal programa enquanto prestação de serviços transfronteiriça entre empresas, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° do Tratado CE». A Comissão também pede que o Tribunal se digne condenar o Reino da Bélgica nas despesas.

20.      O Reino da Bélgica conclui pedindo que o Tribunal de Justiça julgue a acção inadmissível e infundada e condene a Comissão nas despesas.

A – Quanto à inadmissibilidade

21.      O Governo belga alega que a acção é inadmissível, dada a duração excessiva do período compreendido entre a resposta do Reino da Bélgica ao parecer fundamentado e a propositura da acção no Tribunal de Justiça, concretamente cerca de três anos.

22.      Esse prazo é incompatível com os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. O Governo belga refere, em especial, que pôde legitimamente considerar que a sua resposta ao parecer fundamentado era satisfatória, uma vez que não foi contraditada pela Comissão dentro desse prazo. Assim, a propositura da presente acção no Tribunal de Justiça «iludiu a confiança legítima» do Reino da Bélgica  (5) .

23.      Parece‑me que estes argumentos são destituídos de pertinência, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à articulação entre, por um lado, o poder discricionário da Comissão quanto ao decurso e ao resultado do procedimento pré‑contencioso e, por outro, a necessária protecção do direito de defesa de um Estado‑Membro demandado nos termos do artigo 226.° CE.

24.      Com efeito, é sabido que a Comissão dispõe de liberdade de apreciação não apenas quanto à faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça mas igualmente quanto ao momento que considera oportuno para propor uma acção no Tribunal de Justiça. Este princípio foi formulado pelo Tribunal de Justiça do seguinte modo: «o exercício da acção de declaração de incumprimento pelo Estado [...] não está limitado a um prazo preestabelecido, uma vez que esse processo, devido à sua natureza e ao seu objectivo, dá à Comissão o poder de decidir quais os fundamentos e prazos mais apropriados para pôr fim aos eventuais incumprimentos»  (6) .

25.      Todavia, este princípio conhece uma atenuação nos casos em que «a duração excessiva do processo pré‑contenciosos [...] é susceptível de aumentar, para o Estado demandado em causa, a dificuldade em refutar os argumentos da Comissão e de, desse modo, violar os direitos de defesa»  (7) . Incumbe então ao Estado‑Membro contra o qual a acção por incumprimento foi intentada provar que essa duração do processo pré‑contencioso teve uma incidência negativa sobre a organização da sua defesa.

26.      A este respeito, e sem que o Tribunal de Justiça tenha de tomar posição sobre o carácter excessivo ou não do período que, no caso em apreço, separa a resposta do Estado‑Membro ao parecer fundamentado e a propositura da presente acção, basta, em minha opinião, observar que o Reino da Bélgica não invoca nenhum argumento específico susceptível de demonstrar que esse prazo influenciou o modo como organizou a sua defesa  (8) .

27.      Na realidade, todos os argumentos desenvolvidos pelo Reino da Bélgica vão unicamente no sentido de criticar, por um lado, o exercício pela Comissão da sua liberdade de apreciação quanto à tramitação da acção proposta nos termos do artigo 226.° CE e, por outro, o modo como a preparação dessa acção foi coordenada com a reflexão feita ao nível comunitário sobre uma proposta de regulamentação sobre as promoções das vendas.

28.      Verifica‑se, ainda, que a objecção formulada pelo Reino da Bélgica quanto à admissibilidade da acção é principalmente baseada no argumento segundo o qual a Comissão deveria responder ao ofício enviado em 16 de Outubro de 2000 por esse Estado‑Membro à Comissão, em resposta ao parecer fundamentado, de outra forma que não fosse a propositura da acção.

29.      Ora, o Tribunal de Justiça já decidiu que, «mesmo supondo que a fase contenciosa tenha sido iniciada por uma acção da Comissão que não teve em conta eventuais novos elementos, de facto ou de direito, avançados pelo Estado‑Membro em causa na sua resposta ao parecer fundamentado, os direitos de defesa deste Estado não foram com isso lesados. Com efeito, este pode, no quadro do processo contencioso, invocar plenamente os referidos elementos desde o seu primeiro acto de defesa. Incumbirá ao Tribunal examinar a sua pertinência para os efeitos da decisão a proferir quanto à acção por incumprimento»  (9) .

30.      Assim, a Comissão também não pode ser censurada por não ter tomado posição quanto à argumentação que figura na resposta do Reino da Bélgica ao parecer fundamentado.

31.      Tendo em conta todos estes elementos, considero, portanto, que a objecção do Governo belga quanto à admissibilidade da acção não procede.

B – Quanto ao mérito

1. O objecto da acção

32.      A apreciação dos fundamentos apresentados pela Comissão em apoio da presente acção implica, desde logo, que se limite com precisão o seu objecto.

33.      Como já referi, a Comissão censura o Reino da Bélgica de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, ao aplicar, de modo discriminatório e desproporcionado , as condições de «similitude» e de «vendedor único» que figuram no artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da lei belga, como condição prévia para a execução de um programa de fidelização enquanto prestação de serviços transfronteiriça entre empresas.

34.      Assim, resulta expressamente do dispositivo da petição inicial que a presente acção de modo nenhum visa o teor literal do artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da lei belga, mas unicamente a aplicação , alegadamente discriminatória e desproporcionada, das condições que figuram nessa disposição.

35.      Aliás, esse elemento foi expressamente confirmado pela Comissão na audiência, em resposta a uma pergunta feita pelo Tribunal de Justiça.

36.      O objecto da presente acção, tal como expresso pela Comissão, exclui que o Tribunal de Justiça examine in abstracto a compatibilidade da referida disposição com o artigo 49.° CE.

37.      Assim, ao Tribunal de Justiça apenas se pede que declare que a aplicação que do artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da lei belga é feita pelas autoridades nacionais, quer dizer, pela administração nacional e pelos tribunais nacionais, é contrária ao artigo 49.° CE.

2. A prova do incumprimento

38.      Tendo a Comissão limitado expressamente a sua acção à aplicação discriminatória e desproporcionada, na Bélgica, das condições de «similitude» e de «vendedor único» que figuram na lei belga, compete‑lhe fornecer ao Tribunal de Justiça os elementos de prova suficientes para demonstrar, no quadro assim traçado, o incumprimento do artigo 49.° CE por parte desse Estado‑Membro.

39.      A este respeito recordo que, segundo jurisprudência constante, no quadro de uma acção por incumprimento compete à Comissão provar a existência do alegado incumprimento e fornecer ao Tribunal de Justiça os elementos necessários à verificação por parte deste da existência desse incumprimento, sem que a Comissão possa basear‑se numa qualquer presunção  (10) .

40.      No caso presente, considero que a Comissão não forneceu ao Tribunal de Justiça elementos suficientes para provar que o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

41.      Com efeito, quando, como se passa no presente caso, a acção visa a execução concreta de uma disposição nacional, a demonstração de um incumprimento de Estado exige o fornecimento de elementos de prova de uma natureza específica relativamente aos que entram habitualmente em linha de conta numa acção por incumprimento que vise exclusivamente o conteúdo de uma disposição nacional.

42.      Nesta última situação, que é de longe a mais frequente, a confrontação dos termos da disposição nacional contestada com os da norma comunitária de referência pode ser suficiente para revelar a existência de um incumprimento de Estado.

43.      Pelo contrário, quando o objecto da acção por incumprimento diz respeito à aplicação de uma disposição nacional, o incumprimento só pode ser provado graças a uma demonstração suficientemente documentada e circunstanciada da prática censurada à administração e/ou aos órgãos jurisdicionais nacionais e imputável ao Estado‑Membro em causa.

44.      Ora, é necessário referir que, no presente processo, essa demonstração não foi feita pela Comissão.

45.      Em primeiro lugar, quanto à prática administrativa nacional censurada ao Reino da Bélgica, partilho a opinião do Governo belga segundo a qual a circunstância de determinadas empresas estabelecidas na Bélgica desenvolverem programas de fidelização contestáveis à luz do artigo 57.°, n.° 4, primeiro parágrafo, da lei belga sem serem objecto de acções intentadas nos tribunais nacionais, por iniciativa das autoridades administrativas competentes, com o fim de pôr termo a essa prática, não é susceptível de demonstrar que o referido artigo é aplicado de modo discriminatório.

46.      Com efeito, considero que esses exemplos, apresentados pela Comissão, não provam que a aplicação pela administração belga das condições mencionadas no referido artigo varia consoante a empresa em causa esteja situada dentro ou fora do território belga.

47.      Além disso, outros exemplos mencionados pelo Reino da Bélgica na contestação tendem, pelo contrário, a demonstrar a existência de acções propostas nos tribunais belgas contra campanhas promocionais contrárias à lei belga  (11) .

48.      Em segundo lugar, há que precisar que, embora um comportamento de um Estado que consiste numa prática administrativa contrária às exigências do direito comunitário possa constituir um incumprimento na acepção do artigo 226.° CE  (12) , ainda é necessário, segundo o Tribunal de Justiça, que essa prática administrativa «apresente um certo grau de constância e de generalidade»  (13) .

49.      Ora, a Comissão não demonstra no presente processo a existência de uma prática administrativa que reúna as características de constância e de generalidade exigidas pelo Tribunal de Justiça.

50.      Assim, a tomada em consideração dos factos que estão na origem da denúncia apresentada pela empresa organizadora do programa de fidelização «Air Miles» não é suficiente para demonstrar a existência de um incumprimento de Estado que consiste numa prática provada de aplicação discriminatória e desproporcionada das condições de «similitude» e de «vendedor único»  (14) .

51.      Além disso, saliento que a resposta, embora negativa, que deu o Ministério da Economia belga à empresa organizadora do programa de fidelização «Air Miles», sobre a questão da conformidade do referido programa com a legislação belga, tem apenas a natureza de um parecer e não de uma decisão que recuse a extensão à Bélgica do programa de fidelização «Air Miles».

52.      Em terceiro e último lugar, quanto à interpretação da lei pelos órgãos jurisdicionais belgas, há que recordar que o Tribunal de Justiça fixou nitidamente as condições em que uma prática judicial nacional pode constituir um incumprimento de Estado na acepção do artigo 226.° CE  (15) .

53.      Assim, o Tribunal de Justiça decidiu que «não podem ser tomadas em conta as decisões judiciais isoladas ou francamente minoritárias num contexto jurisprudencial marcado por diversa orientação, ou ainda uma interpretação desmentida pelo órgão jurisdicional nacional supremo. O mesmo não sucede com uma interpretação jurisprudencial significativa não desmentida pelo referido órgão jurisdicional supremo, ou mesmo por este confirmada»  (16) .

54.      Portanto, a jurisprudência nacional só é susceptível de constituir um incumprimento de Estado se for «de natureza estrutural»  (17) .

55.      Numa acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, compete à Comissão demonstrar que é esse o caso.

56.      Observo que a Comissão baseia em larga medida a sua análise na interpretação que prevalece no direito belga, segundo a qual uma oferta conjunta corresponde à condição de «similitude» quando os produtos ou serviços principais e os produtos ou serviços oferecidos gratuitamente ou a preço reduzido são habitualmente colocados à venda pelo mesmo circuito de distribuição e pertencem ao mesmo ramo de actividade industrial ou comercial.

57.      Segundo a Comissão, a regra que proíbe ofertas conjuntas de produtos não similares é objecto de um desvio, na prática, em benefício das empresas estabelecidas na Bélgica que disponham da sua própria rede de distribuição. Refere que «[e]sse desvio da regra de princípio foi facilitado pela interpretação que foi feita pelos tribunais nacionais do conceito de similitude»  (18) .

58.      Ora, no caso em apreço, a Comissão não menciona nenhuma decisão dos tribunais belgas para ilustrar a corrente jurisprudencial em que baseia a sua análise.

59.     É um facto que o próprio Reino da Bélgica reconheceu, na sua resposta à notificação para cumprimento, que a jurisprudência e a doutrina nacionais têm interpretado o conceito de «similitude» no sentido de pressupor que os produtos ou os serviços principais e os produtos ou os serviços que são oferecidos gratuitamente ou a preço reduzido são habitualmente colocados à venda pelo mesmo circuito de distribuição e/ou pertencem ao mesmo ramo de actividade industrial ou comercial. E que, em apoio dessa interpretação, evoca uma decisão do tribunal de commerce de Bruxelas de 26 de Junho de 1978  (19) .

60.      Todavia, considero que esta circunstância não dispensava a Comissão de apresentar elementos precisos ao Tribunal de Justiça para provar e explicitar a tendência jurisprudencial nacional que invocou.

61.      O fornecimento de tais precisões era particularmente necessário no presente processo, dado que todos os desenvolvimentos que o Reino da Bélgica consagra na sua contestação ao conceito de «similitude», bem como as declarações do seu representante na audiência, apoiam efectivamente a ideia de que a interpretação desse conceito definida pelos órgãos jurisdicionais e pela doutrina belgas não é unívoca.

62.      Tendo em conta todas estas considerações, considero que a Comissão não fez prova de que o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, por ter aplicado de modo discriminatório e desproporcionado as condições de «similitude» e de «vendedor único» aos produtos e serviços adquiridos por um consumidor, por um lado, e aos produtos ou serviços tornados acessíveis gratuitamente ou a preços reduzidos no quadro de um programa de fidelização, por outro, como condição prévia para a execução de tal programa enquanto prestação de serviços transfronteiriça entre empresas.

IV – Conclusão

63.      Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que, por insuficiência de prova, julgue improcedente a acção proposta pela Comissão das Comunidades Europeias e a condene nas despesas, em conformidade com o artigo 69.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo.


1
Língua original: francês.


2
V. comunicação da Comissão de 2 de Outubro de 2001, relativa às promoções de vendas no mercado interno [COM (2001) 546 final], bem como a proposta alterada de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2002, relativo às promoções de vendas no mercado interno [COM (2002) 585 final]. O sétimo considerando desta proposta de regulamento refere que «o seu âmbito de aplicação inclui os programas de fidelidade e os esquemas de «passageiros aéreos» (milhas aéreas).


3
. Moniteur belge de 29 de Agosto de 1991.


4
A empresa em questão tinha interrogado o Ministério da Economia belga sobre a compatibilidade desse programa de fidelização com a lei belga. Por ofício de 7 de Abril de 1998, esse Ministério respondeu‑lhe que o prémio concedido no quadro do programa não podia ser considerado «um produto similar aos produtos que são vendidos pelos sponsors a favor dos quais a sociedade em questão intervém».


5
V. contestação, p. 11.


6
Acórdão de 14 de Dezembro de 1971, Comissão/França (7/71, Colect., p. 391, n.° 5).


7
Acórdão de 16 de Maio de 1991, Comissão/Países Baixos (C‑96/89, Colect., p. I‑2461, n.° 16).


8
V. neste sentido, acórdão de 12 de Setembro de 2000, Comissão/Reino Unido (C‑359/97, Colect., p. I‑6355). Nesse processo decorreram cerca de oito anos entre a resposta do Reino Unido ao parecer fundamentado e a propositura da acção.


9
Acórdão de 19 de Maio de 1998, Comissão/Países Baixos (C‑3/96, Colect., p. I‑3031, n.° 20).


10
V., nomeadamente, acórdãos de 25 de Maio de 1982, Comissão/Países Baixos (96/81, Recueil, p. 1791, n.° 6); de 20 de Março de 1990, Comissão/França (C‑62/89, Colect., p. I‑925, n.° 37); de 29 de Maio de 1997, Comissão/Reino Unido (C‑300/95, Colect., p. I‑2649, n.° 31); de 9 de Setembro de 1999, Comissão/Alemanha (C‑217/97, Colect., p. I‑5087, n.° 22); e de 29 de Abril de 2004, Comissão/Áustria (C‑194/01, Colect., p. I‑0000, n.° 34).


11
V. contestação pp. 21 e 22.


12
V. nomeadamente, acórdãos de 14 de Julho de 1988, Comissão/Bélgica (298/86, Colect., p. 4343), e de 2 de Dezembro de 2004, Comissão/Países Baixos (C‑41/02, Colect., p. I‑0000).


13
Acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Alemanha (C‑387/99, Colect., p. I‑0000, n.° 42).


14
Na verdade, o Tribunal de Justiça entendeu que, no contexto especial de um mercado caracterizado pela presença de apenas algumas empresas, como o dos aparelhos de franquia postal, a atitude adoptada pela administração nacional em relação a uma única empresa podia dar origem à verificação de um incumprimento de Estado (acórdão de 9 de Maio de 1985, Comissão/França, 21/84, Recueil, p. 1355, n.° 13). Todavia, o presente processo é, pelo contrário, respeitante ao mercado da promoção das vendas, que envolve numerosos operadores económicos.


15
Acórdão de 9 de Dezembro de 2003, Comissão/Itália (C‑129/00, ainda não publicado na Colectânea).


16
. Ibidem , n.° 32.


17
V. conclusões do advogado‑geral L. A. Geelhoed no processo Comissão/Itália, já referido, n.° 114.


18
V. petição, n.° 21.


19
V. contestação, p. 23.