CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PHILIPPE LÉGER

apresentadas em 25 de Novembro de 2004 (1)

Processo C‑266/03

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Grão‑Ducado do Luxemburgo

«Incumprimento de Estado – Transporte por via navegável – Competência externa exclusiva da Comunidade – Condições – Negociação, conclusão, ratificação e entrada em vigor de acordos bilaterais relativos à navegação fluvial – Artigo 10.° CE»





1.     No presente processo, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 10.° CE, bem como do Regulamento (CEE) n.° 3921/91 do Conselho, de 16 de Dezembro de 1991, que fixa as condições de admissão dos transportadores não residentes aos transportes nacionais de mercadorias ou de passageiros por via navegável num Estado‑Membro (2), e, por último, do Regulamento (CE) n.° 1356/96 do Conselho, de 8 de Julho de 1996, relativo a regras comuns aplicáveis aos transportes de mercadorias ou de pessoas por via navegável entre os Estados‑Membros, com vista a realizar a livre prestação de serviços neste sector (3).

2.     Com efeito, a Comissão acusa o Grão‑Ducado do Luxemburgo de ter individualmente negociado, concluído, ratificado, feito entrar em vigor e recusado denunciar os acordos bilaterais relativos à navegação fluvial que o ligam à República Federativa Checa e Eslovaca, à Roménia e à Polónia.

3.     O incumprimento invocado é contestado pelo Governo luxemburguês, ainda que este tenha manifestado a intenção de denunciar os acordos bilaterais controvertidos.

4.     Veremos que o presente processo é uma extensão ao domínio dos transportes por via navegável dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça nos processos ditos «Céu aberto» (4), que diziam respeito a acordos bilaterais celebrados por diversos Estados‑Membros com os Estados Unidos da América no domínio dos transportes aéreos.

I –    Enquadramento jurídico

A –    O direito comunitário

1.      O artigo 10.° CE

5.     Nos termos deste artigo:

«Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do presente Tratado ou resultantes de actos das instituições da Comunidade. Os Estados‑Membros facilitarão à Comunidade o cumprimento da sua missão.

Os Estados‑Membros abster‑se‑ão de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do presente Tratado.»

2.      As normas comunitárias em matéria de transportes por via navegável

6.     O título V do Tratado CE é dedicado aos transportes. No seu artigo 70.° CE, determina‑se que, nesta matéria, «os Estados‑Membros prosseguirão os objectivos do Tratado no âmbito de uma política comum dos transportes».

7.     A fim de aplicar esta política comum, o artigo 71.°, n.° 1, CE dispõe que «o Conselho, deliberando nos termos do artigo 251.° e após consulta ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, estabelece:

a)      Regras comuns aplicáveis aos transportes internacionais efectuados a partir de ou com destino ao território de um Estado‑Membro, ou que atravessem o território de um ou mais Estados‑Membros;

b)      As condições em que os transportadores não residentes podem efectuar serviços de transporte num Estado‑Membro;

c)      Medidas que permitam aumentar a segurança dos transportes;

d)      Quaisquer outras disposições adequadas».

8.     O artigo 80.°, n.° 1, CE precisa que «[a]s disposições do presente título são aplicáveis aos transportes por caminho‑de‑ferro, por estrada e por via navegável».

9.     A política comunitária dos transportes por via navegável abrange diversas vertentes, nomeadamente o saneamento estrutural da navegação interior, a harmonização das condições de obtenção e o reconhecimento recíproco dos certificados nacionais de condução de embarcações de navegação interior, os serviços de transporte por via navegável prestados num Estado‑Membro por transportadores não residentes e o transporte de mercadorias ou de passageiros por via navegável entre Estados‑Membros.

10.   Estas duas últimas vertentes da política comunitária dos transportes por via navegável foram postas em prática, respectivamente, pelos Regulamentos n.os  3921/91 e 1356/96.

11.   O Regulamento n.° 3921/91 tem por objectivo eliminar as restrições existentes, relativamente aos prestadores de serviços de transporte por via navegável, em razão da sua nacionalidade ou pelo facto de estarem estabelecidos num Estado‑Membro diferente daquele em que a prestação deve ser fornecida. Nos termos do princípio geral da igualdade de tratamento, os transportadores não residentes devem, assim, segundo o referido regulamento, poder efectuar transportes nacionais de mercadorias ou de pessoas por via navegável nas mesmas condições que o Estado‑Membro em causa impõe aos seus próprios transportadores.

12.   Esta faculdade de que beneficia, a partir de 1 de Janeiro de 1993, qualquer transportador de mercadorias ou de passageiros, de efectuar, a título temporário, transportes nacionais por conta de outrem num Estado‑Membro em que não está estabelecido, prática designada por «cabotagem», está sujeita a determinadas condições relativas ao transportador e às embarcações por ele utilizadas.

13.   No que diz respeito às condições relativas ao transportador, decorre do artigo 1.° do Regulamento n.° 3921/91 que a cabotagem num Estado‑Membro pode ser efectuada por qualquer transportador que esteja estabelecido num Estado‑Membro em conformidade com a legislação desse Estado e, se for caso disso, que aí esteja autorizado a efectuar transportes internacionais de mercadorias ou de passageiros por via navegável.

14.   Quanto às condições relativas às embarcações utilizadas pelo transportador para efectuar a cabotagem num Estado‑Membro, o artigo 2.°, n.° 1, estipula que devem ser navios cujo armador ou armadores sejam ou pessoas singulares domiciliadas num Estado‑Membro e nacionais de um Estado‑Membro, ou pessoas colectivas que tenham a sua sede social num Estado‑Membro e pertençam, na sua maioria, a cidadãos dos Estados‑Membros.

15.   Por último, o artigo 6.° do Regulamento n.° 3921/91 precisa que as suas disposições «não afectam os direitos adquiridos ao abrigo da Convenção Revista para a Navegação do Reno (Convenção de Mannheim)» (5).

16.   Quanto ao Regulamento n.° 1356/96, o seu objectivo é o de instituir a livre prestação de serviços no domínio dos transportes de mercadorias ou de pessoas por via navegável entre os Estados‑Membros. Nestes termos, visa, como o Regulamento n.° 3921/91, suprimir as restrições relativas aos prestadores de serviços em razão da sua nacionalidade ou pelo facto de estarem estabelecidos num Estado‑Membro diferente daquele onde a prestação deve ser fornecida.

17.   De acordo com o primeiro considerando do Regulamento n.° 1356/96, «a instauração de uma política comum dos transportes implica, designadamente, o estabelecimento de regras comuns aplicáveis ao acesso ao mercado dos transportes internacionais de mercadorias e de pessoas por via navegável no território da Comunidade; [...] essas regras devem ser estabelecidas de forma a contribuir para a realização do mercado interno dos transportes».

18.   Por outro lado, o terceiro considerando do referido regulamento refere o contexto e as razões da sua adopção. Dele decorre que, após a adesão de novos Estados‑Membros, os regimes divergentes resultantes de acordos bilaterais entre Estados‑Membros e novos Estados aderentes tornaram necessário estabelecer «regras comuns para garantir o bom funcionamento do mercado interno dos transportes e, mais especialmente, para evitar distorções da concorrência e perturbações na organização do mercado em causa».

19.   No essencial, decorre dos artigos 1.° e 2.° do Regulamento n.° 1356/96 que qualquer transportador de mercadorias ou de pessoas por via navegável está autorizado a efectuar operações de transporte entre os Estados‑Membros e em trânsito nos mesmos, sem discriminação em razão da nacionalidade e do seu local de estabelecimento, desde que respeite as seguintes condições: esteja estabelecido num Estado‑Membro em conformidade com a legislação desse Estado, esteja autorizado a efectuar nesse Estado transportes internacionais de mercadorias ou de pessoas por via navegável, utilize nessas operações de transporte embarcações registadas num Estado‑Membro ou disponha de um certificado que comprove pertencerem à frota de um Estado‑Membro e, por último, satisfaça as condições previstas no artigo 2.° do Regulamento n.° 3921/91 (6).

20.   Finalmente, o artigo 3.° do Regulamento n.° 1356/96 estipula que as disposições deste regulamento «não afectam os direitos adquiridos [pelos] transportadores de países terceiros ao abrigo da Convenção Revista para a Navegação do Reno (Convenção de Mannheim) [e] da Convenção da Navegação do Danúbio (Convenção de Belgrado) [(7)], nem os direitos decorrentes de obrigações internacionais da Comunidade».

B –    Os acordos bilaterais assinados e aprovados pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo

21.   Foram assinados pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo três acordos bilaterais relativos aos transportes por via navegável, respectivamente com:

–      a República Federativa Checa e Eslovaca, em 30 de Dezembro de 1992; este acordo foi aprovado pela Câmara dos Deputados do Grão‑Ducado do Luxemburgo em 10 de Abril de 1994 e entrou em vigor em 6 de Junho de 1994;

–      a Roménia, em 10 de Novembro de 1993; este acordo foi aprovado pela Câmara dos Deputados do Grão‑Ducado do Luxemburgo em 6 de Janeiro de 1995 e entrou em vigor em 3 de Fevereiro de 1995;

–      a Polónia, em 9 de Março de 1994; este acordo foi aprovado pela Câmara dos Deputados do Grão‑Ducado do Luxemburgo em 24 de Julho de 1995 e entrou em vigor em 1 de Outubro de 1995.

22.   Estes acordos bilaterais fixam as regras relativas aos transportes de passageiros e mercadorias por via navegável entre as partes contratantes e à utilização recíproca das vias navegáveis de cada parte pelas embarcações da outra parte. Determinam ainda que o tráfego das embarcações de uma parte entre os portos da outra parte e os portos de um Estado terceiro a esses acordos, incluindo o embarque e/ou desembarque de passageiros e o carregamento e/ou descarregamento de mercadorias (tráfego com Estados terceiros), está sujeito à autorização prévia das autoridades competentes.

C –    O projecto de acordo multilateral entre a Comunidade Europeia e diversos países terceiros

23.   No plano das relações externas da Comunidade com os países terceiros, o Conselho decidiu, na sessão de 7 de Dezembro de 1992, autorizar a Comissão «a negociar um acordo entre a Comunidade Económica Europeia, por um lado, e a Polónia e os Estados contratantes da Convenção do Danúbio (Hungria, Checoslováquia, Roménia, Bulgária, ex‑URSS, ex‑Jugoslávia e Áustria), por outro» (8). O objectivo geral das negociações era o de celebrar um acordo multilateral único entre a Comunidade e os referidos países, relativo às regras aplicáveis ao transporte fluvial de passageiros e de mercadorias entre as partes abrangidas.

24.   Estas negociações justificavam‑se, designadamente, pela necessidade de criar uma rede pan‑europeia eficaz de transportes por via navegável destinada a reduzir a saturação das redes de transporte Este‑Oeste, especialmente depois da abertura do canal Reno‑Meno‑Danúbio em 1992.

25.   Tendo em conta, nomeadamente, as alterações políticas e económicas que então viviam certos Estados da região do Danúbio, o Conselho decidiu, em 8 de Abril de 1994, que devia ser dada prioridade à condução das negociações com a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Eslováquia.

26.   Na sequência dessas negociações, a Comissão apresentou ao Conselho, em 13 de Dezembro de 1996, uma proposta de decisão relativa à conclusão do acordo que estabelece as condições para o transporte de mercadorias e passageiros por via navegável interior entre a Comunidade Europeia, por um lado, e a República Checa, a República da Polónia e a República Eslovaca, por outro (9).

27.   Esta proposta de decisão não foi até hoje adoptada pelo Conselho.

II – O processo pré‑contencioso

28.   Após a decisão do Conselho, de 7 de Dezembro de 1992, já referida, que autoriza a Comissão a negociar com determinados países terceiros da Europa Central e Oriental um acordo multilateral em matéria de transporte fluvial, a Comissão, por carta de 24 de Abril de 1993, pediu a diversos Estados‑Membros, entre os quais o Grão‑Ducado do Luxemburgo, que «se abstivessem de quaisquer iniciativas susceptíveis de comprometer o bom desenvolvimento das negociações encetadas a nível comunitário e, em especial, que renunciassem à ratificação dos acordos [bilaterais] já rubricados ou assinados bem como à abertura de novas negociações com os países da Europa Central e Oriental em matéria de navegação interior».

29.   Após o envio de uma nova carta em 12 de Abril de 1994, à qual as autoridades luxemburguesas responderam com uma tomada de posição em 9 de Maio de 1994, a Comissão, nos termos do artigo 169.° do Tratado CE (actual artigo 226.° CE), deu início ao processo pré‑contencioso através de uma notificação para cumprir de 10 de Abril de 1995. Considerava, com efeito, que a continuação, pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo, de processos de conclusão de acordos bilaterais com a República Checa e a Eslováquia violava o direito comunitário.

30.   Por carta de 2 de Dezembro de 1998, a Comissão remeteu ao Governo luxemburguês uma notificação para cumprir complementar pela qual alargava as suas acusações aos acordos bilaterais concluídos pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo com a Roménia e a Polónia.

31.   Não satisfeita com as explicações avançadas por este governo, a Comissão enviou‑lhe, por carta de 28 de Fevereiro de 2000, um parecer fundamentado. O Governo luxemburguês respondeu a este parecer fundamentado por carta de 17 de Maio de 2000.

32.   Esta resposta não convenceu a Comissão que, por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 18 de Junho de 2003, intentou, com base no artigo 226.° CE, a presente acção.

III – A acção

33.   Em apoio do seu pedido, a Comissão deduz três acusações contra o Grão‑Ducado do Luxemburgo.

34.   A primeira acusação assenta na violação por este Estado‑Membro da competência externa exclusiva da Comunidade, na acepção da jurisprudência «AETR» (10).

35.   A segunda acusação diz respeito ao incumprimento pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo das suas obrigações decorrentes do artigo 10.° CE.

36.   A terceira acusação prende‑se com a incompatibilidade com o Regulamento n.° 1356/96 dos acordos bilaterais concluídos entre o Grão‑Ducado do Luxemburgo, por um lado, e a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia, por outro.

A –    Quanto à primeira acusação relativa à violação da competência externa exclusiva da Comunidade na acepção da jurisprudência AETR

1.      Argumentos das partes

37.   A Comissão acusa o Grão‑Ducado do Luxemburgo de ter violado a competência comunitária exclusiva, na acepção da jurisprudência AETR, ao negociar, concluir, ratificar e fazer entrar em vigor os acordos bilaterais com a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia. Com efeito, na sua opinião, estes acordos afectam as regras comuns adoptadas pela Comunidade no Regulamento n.° 3921/91, que fixa as condições de admissão dos transportadores não residentes aos transportes nacionais de mercadorias ou de passageiros por via navegável num Estado‑Membro.

38.   Em especial, a Comissão considera que os acordos bilaterais em questão, designadamente as disposições que permitem, mediante uma autorização especial, o acesso dos transportadores dos países terceiros em causa à cabotagem no Grão‑Ducado do Luxemburgo, afectam as regras comuns contidas no Regulamento n.° 3921/91, na medida em que estas harmonizam de forma exaustiva, a partir de 1 de Janeiro de 1993, as condições relativas à cabotagem nos Estados‑Membros da Comunidade. Deste modo, ao reservar‑se o direito de conferir unilateralmente direitos de acesso a transportadores de países terceiros fora do quadro comunitário, o Grão‑Ducado do Luxemburgo violou a competência externa exclusiva da Comunidade.

39.   Fazendo alusão aos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça nos processos «Céu aberto», já referidos, a Comissão considera que o Regulamento n.° 3921/91 não visa apenas os transportadores comunitários mas também os transportadores de países terceiros, o que é confirmado pelo artigo 6.° do referido regulamento quando reconhece os direitos de acesso dos transportadores suíços à cabotagem nos Estados‑Membros por força da Convenção de Mannheim (11).

40.   Em resposta a estes argumentos, o Governo luxemburguês refere desde logo que a conclusão dos acordos bilaterais controvertidos se justificou pela dupla necessidade de evitar, por um lado, qualquer discriminação entre os seus operadores económicos nacionais e os operadores económicos de outros Estados‑Membros que concluíram acordos bilaterais com países terceiros e, por outro, uma situação de vazio jurídico na expectativa da conclusão de um hipotético acordo comunitário.

41.   Além disso, na expectativa da conclusão de um acordo multilateral pela Comunidade, esta não teria o direito de impedir os seus Estados‑Membros de se munirem de instrumentos bilaterais provisórios.

42.   O Governo luxemburguês alega também que a admissão de transportadores não residentes ao direito de cabotagem no Grão‑Ducado do Luxemburgo está sujeita, por força do artigo 7.° dos acordos bilaterais, à autorização do Ministro dos Transportes luxemburguês, autorização essa que, de resto, nunca foi concedida.

43.   Por outro lado, sustenta que o Regulamento n.° 3921/91 só diz respeito aos Estados‑Membros da Comunidade, e não aos países terceiros.

44.   Por último, argumenta que, a partir de 1 de Maio de 2004, data da adesão da República Checa, da Polónia e da Eslováquia à União Europeia, os acordos controvertidos concluídos deixarão de ter qualquer valor jurídico.

2.      Apreciação

45.   Antes de mais, saliento que o argumento relativo à perda do valor jurídico dos acordos bilaterais por força da adesão das partes em causa à União Europeia, em 1 de Maio de 2004, não tem, em qualquer caso, influência na apreciação da presente acção. Com efeito, é de jurisprudência constante que «a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, não sendo as alterações posteriormente ocorridas tomadas em consideração pelo Tribunal» (12). Ora, no caso em apreço, este prazo terminou em 28 de Abril de 2000.

46.   Para apreciar a primeira acusação suscitada pela Comissão, importa lembrar as condições com base nas quais a Comunidade pode invocar uma competência externa exclusiva, na acepção da jurisprudência resultante do acórdão AETR, já referido.

47.   É sabido que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça lançou as bases do que é uso designar por «teoria das competências externas implícitas da Comunidade». O Tribunal de Justiça admitiu assim que o princípio das competências de atribuição previstas explicitamente pelo Tratado não impedia a existência de competências implícitas nascidas do sistema do Tratado. Mas, para além do modo de atribuição – explícito ou implícito – das competências externas da Comunidade, o Tribunal de Justiça definiu também as condições de exclusividade de tais competências. E é apenas este último aspecto que aqui analisarei, na medida em que a dimensão externa da competência da Comunidade em matéria de transportes por via navegável não é contestada pelo Governo luxemburguês.

48.   Segundo o Tribunal de Justiça, «sempre que, para a execução de uma política comum prevista pelo Tratado, a Comunidade tome disposições que instituem, sob qualquer forma, regras comuns, os Estados‑Membros, quer agindo individual quer colectivamente, deixam de ter o direito de contrair para com Estados terceiros obrigações que afectem estas regras». Com efeito, «à medida que se instituem essas regras comuns, só a Comunidade está em condições de assumir e executar, com efeitos em todo o domínio de aplicação da ordem jurídica comunitária, os compromissos assumidos em relação a Estados terceiros» (13).

49.   Com estas duas posições de princípio, o Tribunal de Justiça entendia já que a aquisição pela Comunidade de uma competência externa exclusiva é por natureza progressiva, na medida em que depende estreitamente do grau de cobertura de uma matéria pela regulamentação comunitária interna (14). Além disso, o Tribunal de Justiça destacava aquilo que a sua jurisprudência posterior confirmou ser o critério central da exclusividade das competências comunitárias externas, isto é, o critério da afectação das regras comuns pelas obrigações internacionais contraídas pelos Estados‑Membros com países terceiros.

50.   A jurisprudência subsequente, que resulta principalmente de um conjunto de pareceres proferidos pelo Tribunal de Justiça com base no artigo 228.° do Tratado CEE (que passou a artigo 228.° do Tratado CE, o qual por sua vez passou, após alteração, a artigo 300.° CE) (15), permitiu precisar em que consiste este critério da afectação. Assim, o Tribunal de Justiça indicou que afectação não significa contradição, isto é, que as regras comuns estabelecidas no plano comunitário podem muito bem ser afectadas por disposições de acordos internacionais, mesmo nos casos em que estas não estejam de forma alguma em contradição com aquelas. A afectação nasce, portanto, da constatação de que um acordo internacional «decorre de um domínio que, em grande parte, está já abrangido por regras comunitárias progressivamente adoptadas [...]» (16).

51.   O Tribunal de Justiça fez a síntese destes elementos nos seus acórdãos «Céu aberto», já referidos, a propósito de acordos bilaterais que vinculavam os Estados‑Membros em causa relativamente aos Estados Unidos da América (17). Recordou assim em que condições o âmbito de regras comuns pode ser afectado ou alterado pelos compromissos internacionais e, por conseguinte, em que circunstâncias a Comunidade adquire uma competência externa exclusiva através do exercício da sua competência interna. Segundo o Tribunal de Justiça, «é isso que acontece quando os compromissos internacionais pertencem ao domínio de aplicação das regras comuns [...] ou, em todo o caso, a um domínio já em grande parte coberto por essas regras» (18).

52.   O Tribunal de Justiça inferiu daí que «quando a Comunidade tiver incluído nos seus actos legislativos internos cláusulas relativas ao tratamento a conceder aos nacionais de países terceiros ou quando tiver conferido expressamente às suas instituições competência para negociar com os países terceiros, ela adquire uma competência externa exclusiva na medida abrangida por esses actos [...]» (19).

53.   E, em sua opinião, «[i]sso acontece, mesmo na falta de uma cláusula expressa que habilite as instituições a negociarem com países terceiros, quando a Comunidade tenha realizado uma harmonização completa num domínio determinado, pois as regras comuns assim adoptadas poderiam ser afectadas, na acepção do já referido acórdão AETR, se os Estados‑Membros conservassem uma liberdade de negociação com os países terceiros [...]» (20).

54.   A partir destes elementos relativos à definição pelo Tribunal de Justiça do carácter exclusivo da competência externa da Comunidade, importa agora determinar se as regras comuns invocadas pela Comissão no âmbito da presente acção, isto é, as que decorrem do Regulamento n.° 3921/91, são susceptíveis de ser afectadas pelos compromissos internacionais assumidos pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo.

55.   Decorre da argumentação desenvolvida pela Comissão que esta faz depender a competência externa exclusiva da Comunidade do facto de, nos termos utilizados pelo Tribunal de Justiça, a «Comunidade [ter] incluído nos seus actos legislativos internos cláusulas relativas ao tratamento a conceder aos nacionais de países terceiros» (21).

56.   Ora, como sugere o Governo luxemburguês, considero justamente que o Regulamento n.° 3921/91 não inclui nenhuma cláusula que defina o tratamento a conceder aos transportadores de países terceiros.

57.   Com efeito, importa lembrar que este regulamento, que fixa as condições de admissão dos transportadores não residentes aos transportes nacionais de mercadorias ou de passageiros por via navegável num Estado‑Membro, apenas visa os transportadores que estão estabelecidos num Estado‑Membro e que utilizam embarcações cujo(s) armador(es) sejam pessoas singulares domiciliadas num Estado‑Membro e nacionais de um Estado‑Membro, ou pessoas colectivas que tenham a sua sede social num Estado‑Membro e que pertençam maioritariamente a cidadãos dos Estados‑Membros (22).

58.   Por outro lado, observo que o facto de o artigo 6.° do Regulamento n.° 3921/91 determinar que as suas disposições «não afectam os direitos adquiridos ao abrigo da Convenção Revista para a Navegação do Reno (Convenção de Mannheim)» confirma, em meu entender, a interpretação segundo a qual o legislador comunitário não regulou o acesso dos transportadores de países terceiros ao mercado intracomunitário dos transportes por via navegável. Na minha opinião, com este artigo, a Comunidade limitou‑se a tomar em consideração os direitos que decorrem para a Suíça da Convenção de Mannheim. Sustentar outra posição levaria, além do mais, a retirar qualquer utilidade às negociações levadas a cabo a nível comunitário, por iniciativa do Conselho, com vista à conclusão de um acordo multilateral destinado, designadamente, a regular a situação dos transportadores dos países terceiros em causa.

59.   Desta forma, em aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça, tal como fixada por último nos seus acórdãos «Céu aberto», entendo que as regras comuns que constam do Regulamento n.° 3921/91, na medida em que apenas dizem respeito aos transportadores comunitários, não podem ser afectadas por acordos bilaterais que, estes sim, abrangem os transportadores de países terceiros que neles são partes.

60.   Além disso, e em conformidade com o que o Tribunal de Justiça precisou nos acórdãos «Céu aberto», o próprio facto de o regulamento em que a Comissão se baseia não disciplinar a situação dos transportadores de países terceiros que operam no interior da Comunidade é susceptível de demonstrar que a harmonização efectuada por este regulamento não é completa (23).

61.   Na minha opinião, decorre destes elementos que a Comunidade não pode invocar uma competência externa exclusiva, na acepção da jurisprudência AETR, baseada no facto de as regras comuns enunciadas no Regulamento n.° 3921/91 serem afectadas pelas obrigações internacionais assumidas pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo nos acordos bilaterais postos em causa pela Comissão.

62.   Nestas condições, e cingindo‑me à acusação tal como está fundamentada pela Comissão na petição inicial, entendo que a negociação, conclusão, ratificação e entrada em vigor dos acordos bilaterais entre o Grão‑Ducado do Luxemburgo, por um lado, e a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia, por outro, não constituem uma violação de uma competência externa exclusiva da Comunidade.

63.   Por isso, proponho que o Tribunal de Justiça considere improcedente a primeira acusação deduzida pela Comissão.

B –    Quanto à acusação de violação do artigo 10.° CE

1.      Argumentos das partes

64.   Com esta segunda acusação, a Comissão entende que o Grão‑Ducado do Luxemburgo não respeitou as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 10.° CE. Com efeito, ao continuar a negociar, assinar, ratificar e fazer entrar em vigor os acordos bilaterais em questão após o Conselho ter, em 7 de Dezembro de 1992, decidido autorizar a Comissão a negociar um acordo em nome da Comunidade, o Grão‑Ducado do Luxemburgo pôs em risco a realização desta decisão do Conselho. Deste modo, a negociação pela Comissão de um acordo em nome da Comunidade, bem como a sua posterior conclusão pelo Conselho, foram inevitavelmente dificultadas pela interferência de iniciativas individuais de um Estado‑Membro. A posição negocial da Comunidade foi também enfraquecida face aos países terceiros, em virtude de a Comunidade e os seus Estados‑Membros negociarem separadamente.

65.   Para além dos argumentos expostos nos n.os 40 e 41 das presentes conclusões, o Governo luxemburguês sustenta que os acordos bilaterais controvertidos foram negociados antes de 7 de Dezembro de 1992, data em que o Conselho autorizou a Comissão a negociar um acordo multilateral entre a Comunidade, por um lado, e a Polónia e os Estados contratantes da Convenção do Danúbio, por outro.

66.   Por outro lado, considera que a decisão do Conselho de 8 de Abril de 1994, que convida a Comissão a conceder uma atenção especial às negociações com a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Eslováquia, constitui, na realidade, um novo mandato de negociação que substitui o constante da decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992.

67.   Por último, o Governo luxemburguês afirma que se declarou disposto a denunciar todos os seus acordos bilaterais em matéria de navegação interior logo após a entrada em vigor de um acordo multilateral.

2.      Apreciação

68.   Em primeiro lugar, decorre dos autos que, embora os acordos bilaterais em causa tenham provavelmente sido negociados em parte antes da decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992 que autoriza a Comissão a negociar um acordo multilateral, não é menos verdade que todos eles foram assinados e aprovados em data posterior à referida decisão comunitária. Acresce que as negociações relativas aos acordos bilaterais concluídos com a Roménia e a Polónia foram muito possivelmente prosseguidas depois da decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992, uma vez que a sua assinatura teve lugar em, respectivamente, 10 de Novembro de 1993 e 9 de Março de 1994.

69.   Além disso, entendo que nada nos autos permite sustentar que, como faz o Governo luxemburguês, a decisão do Conselho de 8 de Abril de 1994, que convida a Comissão a conceder uma especial atenção às negociações com a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Eslováquia, foi, na realidade, um novo mandato de negociação substitutivo do conferido pela decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992. Em minha opinião, deve entender‑se que esta decisão de 1994 veio apenas precisar as directivas iniciais de negociação, tal como constam da decisão de 1992.

70.   Feitos estes esclarecimentos, penso, como a Comissão, que o comportamento de que o Grão‑Ducado do Luxemburgo vem acusado consubstancia certamente uma violação do seu dever de cooperação leal, tal como expresso no artigo 10.° CE.

71.   Com efeito, este artigo obriga designadamente os Estados‑Membros, de uma forma positiva, a facilitarem à Comunidade o cumprimento da sua missão e, de uma forma negativa, a absterem‑se «de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do presente Tratado».

72.   Também penso que, independentemente da questão de saber se a competência comunitária externa tem ou não carácter exclusivo, os Estados‑Membros devem respeitar deveres especiais de acção e abstenção quando o Conselho decidiu iniciar uma acção comunitária específica (24).

73.   No caso em apreço, a execução da decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992, que autoriza a Comissão a negociar um acordo multilateral em nome da Comunidade, opunha‑se assim a um comportamento estatal consistente na negociação, assinatura, ratificação e entrada em vigor de acordos bilaterais concorrentes relativos ao mesmo domínio.

74.   Com efeito, é de admitir que a negociação, assinatura, ratificação e a entrada em vigor de tais acordos bilaterais, num domínio abrangido pela autorização expressa para negociar de que beneficiou a Comissão, tenham podido comprometer a adopção de um acordo multilateral a nível comunitário. Acrescento mesmo que a situação de vazio jurídico em matéria de transporte fluvial que o Governo luxemburguês alega ter querido evitar foi, pelo contrário, provavelmente agravada a nível comunitário pelo efeito paralisante dos acordos bilaterais assim concluídos.

75.   Além disso, resulta dos autos que o Governo luxemburguês não procurou minimamente colaborar com a Comissão nem a consultou relativamente aos seus projectos de acordos bilaterais, tendo assumido, pelo contrário, um comportamento isolado e paralelo à negociação conduzida pela Comissão a nível comunitário.

76.   A este respeito, entendo que o facto de o Governo luxemburguês ter declarado estar pronto a denunciar todos os seus acordos bilaterais em matéria de navegação interior logo após a entrada em vigor de um acordo multilateral vinculativo da Comunidade e ter incluído nesses acordos bilaterais cláusulas com esse objectivo não é susceptível de demonstrar que o artigo 10.° CE foi respeitado.

77.   Tendo em conta estes elementos, proponho que o Tribunal de Justiça considere procedente a acusação da Comissão relativa à violação do artigo 10.° CE pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo.

C –    Quanto à acusação relativa à incompatibilidade com o Regulamento n.° 1356/96 dos acordos bilaterais concluídos entre, por um lado, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e, por outro, a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia

1.      Argumentos das partes

78.   A Comissão alega que os acordos bilaterais concluídos entre o Grão‑Ducado do Luxemburgo, por um lado, e a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia, por outro, são incompatíveis com o Regulamento n.° 1356/96, relativo a regras comuns aplicáveis aos transportes de mercadorias ou de pessoas por via navegável entre os Estados‑Membros, com vista a realizar a livre prestação de serviços neste sector.

79.   Mais concretamente, a Comissão considera que a manutenção, nesses acordos bilaterais, após a adopção do Regulamento n.° 1356/96, de disposições que prevêem a possibilidade de embarcações registadas em países terceiros efectuarem serviços entre o Grão‑Ducado do Luxemburgo e outros Estados‑Membros da Comunidade, mediante uma autorização especial da autoridade competente, é incompatível com o referido regulamento. Com efeito, este regulamento aplica‑se aos transportes de mercadorias ou de pessoas por via navegável entre os Estados‑Membros e em trânsito nos mesmos (artigo 1.°) e fixa as condições que qualquer transportador de mercadorias ou de pessoas por via navegável deve satisfazer para ser autorizado a efectuar as operações de transporte entre os Estados‑Membros e em trânsito nos mesmos (artigo 2.°).

80.   A Comissão considera que, através das disposições controvertidas dos acordos bilaterais, o Grão‑Ducado do Luxemburgo modifica, de forma unilateral e fora do controlo da Comunidade, a natureza e o alcance das regras relativas à livre prestação de serviços intracomunitários de navegação interior definidas pelo direito comunitário. Consequentemente, a concessão unilateral de direitos de acesso feita por esse Estado‑Membro, ou pelo menos o facto de este se reservar o direito de conceder unilateralmente direitos de acesso, nas ligações no interior da Comunidade, a bateleiros que não preenchem as condições previstas no Regulamento n.° 1356/96, é incompatível com o sistema instaurado pelo referido regulamento. Com efeito, segundo a Comissão, é evidente que os bateleiros e as empresas de navegação polacas, romenas, checas e eslovacas susceptíveis de ser autorizados, nos termos dos acordos bilaterais, a efectuar um transporte entre o Grão‑Ducado do Luxemburgo e os outros Estados‑Membros da Comunidade não cumpriam, na época em causa na presente acção, nenhuma dessas condições.

81.   O Governo luxemburguês responde que decorre da redacção do regulamento em questão que este apenas visa os transportadores comunitários, estando os transportadores de países terceiros excluídos ou sob a alçada de outras disposições comunitárias.

2.      Apreciação

82.   Considero que esta última acusação formulada pela Comissão não tem fundamento, pelas seguintes razões.

83.   Importa desde logo ter em atenção o objectivo principal do Regulamento n.° 1356/96, a saber, a realização da livre prestação de serviços no sector dos transportes de mercadorias ou de pessoas por via navegável entre os Estados‑Membros. A esse título, visa a eliminação de restrições, no que se inclui qualquer discriminação dos prestadores de serviços em razão da sua nacionalidade ou no facto de estarem estabelecidos num Estado‑Membro diferente daquele em que a prestação deve ser fornecida.

84.   Segundo o artigo 2.° do referido regulamento, o benefício deste regime de livre prestação de serviços de transporte fluvial entre os Estados‑Membros está sujeito a diversas condições: estar estabelecido num Estado‑Membro em conformidade com a legislação desse Estado, estar autorizado a efectuar nesse Estado transportes internacionais de mercadorias ou de pessoas por via navegável, utilizar, nessas operações de transporte, embarcações registadas num Estado‑Membro ou que disponham de um certificado que comprove pertencerem à frota de um Estado‑Membro e, por último, satisfazer as condições previstas no artigo 2.° do Regulamento n.° 3921/91 (25).

85.   A definição e o enquadramento de um tal regime de liberdade de prestação de serviços de transporte fluvial entre os Estados‑Membros da Comunidade, e em benefício dos transportadores estabelecidos num desses Estados‑Membros, não devem, na minha opinião, ser entendidos como uma proibição absoluta de as embarcações registadas em países terceiros prestarem serviços entre diversos Estados‑Membros da Comunidade.

86.   Com efeito, entendo que, embora o Regulamento n.° 1356/96 possa ser interpretado, como sugerem as alegações da Comissão, no sentido de estabelecer uma preferência comunitária em matéria de transporte fluvial no território da Comunidade, esta preferência apenas diz aparentemente respeito ao benefício do regime de liberdade de prestação de serviços que, como vimos, só aproveita aos transportadores estreitamente ligados a um Estado‑Membro. Em contrapartida, nada no conteúdo do referido regulamento indicia que tenha por objectivo ou por efeito impedir de maneira geral as embarcações registadas nos países que não pertencem à Comunidade Europeia de prestarem serviços entre diversos Estados‑Membros desta.

87.   De resto, a Comissão não sustenta que os acordos bilaterais tenham organizado um sistema paralelo de livre prestação de serviços em benefício de embarcações registadas na República Federativa Checa e Eslovaca, na Roménia e na Polónia. Tem bem presente nas suas alegações o facto de estes acordos bilaterais preverem apenas a possibilidade, e não o direito, de estas embarcações registadas nesses países terceiros efectuarem serviços entre diversos Estados‑Membros da Comunidade. Refere, com efeito, que esta possibilidade de prestação de serviços está sujeita a uma autorização especial da autoridade competente.

88.   Os acordos bilaterais em causa não instituem, portanto, a livre prestação de serviços de transporte fluvial de mercadorias ou de pessoas entre os Estados‑Membros da Comunidade pelos transportadores checos, eslovacos, romenos e polacos, mas estabelecem apenas um regime restritivo à luz do qual tais prestações de serviços são possíveis em casos estritamente definidos e sujeitos a autorização.

89.   Assim, se atendermos à letra dos acordos bilaterais, podemos verificar que, de acordo com o artigo 1.°, n.° 2, alínea d), «o termo ‘tráfego com Estados terceiros’ [(26)] designa o tráfego de embarcações de uma parte entre os portos de outra parte e os portos de um Estado terceiro, incluindo o embarque e/ou desembarque de passageiros e o carregamento e/ou descarregamento de mercadorias» (27). Neste domínio, o artigo 6.° dos acordos bilaterais estabelece, no essencial, que o tráfego com os Estados terceiros está sujeito à autorização das autoridades competentes das partes e/ou só pode ocorrer nos casos previstos pela comissão mista encarregada da execução dos acordos. Não se trata, portanto, de um regime de liberdade de prestação de serviços.

90.   Deste modo, tendo em conta a diferença de natureza entre o regime comunitário e os regimes bilaterais relativos aos serviços de transporte de mercadorias ou de pessoas por via navegável, considero que, através das disposições controvertidas dos acordos bilaterais, o Grão‑Ducado do Luxemburgo, contrariamente ao que alega a Comissão, não modificou a natureza e o alcance das regras relativas à livre prestação de serviços intracomunitários de navegação interior que estão definidas no Regulamento n.° 1356/96.

91.   O conjunto destes elementos leva‑me portanto a considerar que a Comissão não demonstrou a justeza da acusação assente na incompatibilidade com o Regulamento n.° 1356/96 dos acordos bilaterais concluídos entre, por um lado, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e, por outro, a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia.

92.   Por último, nos termos do artigo 69.°, n.° 3, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e na medida em que sugiro que apenas seja dado provimento parcial à acção intentada pela Comissão, cada uma das partes deverá suportar as suas próprias despesas.

IV – Conclusão

93.   Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça:

«1)      Declare que, ao negociar, assinar, ratificar e fazer entrar em vigor, posteriormente à decisão do Conselho de 7 de Dezembro de 1992, relativa ao início das negociações entre a Comunidade e os países terceiros sobre as regras aplicáveis ao transporte fluvial de passageiros e de mercadorias entre as partes abrangidas, os acordos bilaterais relativos aos transportes por via navegável com a República Federativa Checa e Eslovaca, a Roménia e a Polónia, o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 10.° CE;

2)      Julgue a acção improcedente quanto ao mais;

3)      Condene cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas.»


1 – Língua original: francês.


2  – JO L 373, p. 1.


3  – JO L 175, p. 1.


4  – Acórdãos de 5 de Novembro de 2002, Comissão/Reino Unido (C‑466/98, Colect., p. I‑9427); Comissão/Dinamarca (C‑467/98, Colect., p. I‑9519); Comissão/Suécia (C‑468/98, Colect., p. I‑9575); Comissão/Finlândia (C‑469/98, Colect., p. I‑9627); Comissão/Bélgica (C‑471/98, Colect., p. I‑9681); Comissão/Luxemburgo (C‑472/98, Colect., p. I‑9741); Comissão/Áustria (C‑475/98, Colect., p. I‑9797); e Comissão/Alemanha (C‑476/98, Colect., p. I‑9855).


5  – Esta convenção, que foi assinada em 17 de Outubro de 1868 em Mannheim, institui os princípios da liberdade de navegação no Reno e da igualdade de tratamento dos bateleiros e das frotas. Dela são partes o Reino da Bélgica, a República Federal da Alemanha, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Confederação Helvética.


6  – V. n.° 14 das presentes conclusões.


7  – Esta convenção, relativa ao regime da navegação no Danúbio, foi assinada em 18 de Agosto de 1948, em Belgrado, pela Bulgária, Hungria, Roménia, Checoslováquia, Ucrânia, União Soviética e Jugoslávia. Tem, designadamente, por objectivo garantir a livre navegação no Danúbio.


8  – Doc. 10828/92 Trans 178 Relex 72. Tendo em conta que o período de referência a ter em consideração para a apreciação da presente acção é anterior a 1 de Maio de 2004, data da adesão de alguns desses países à União Europeia, estes últimos são designados nas nossas considerações por «países terceiros».


9  – COM(96) 634 final.


10  – Acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, Colect., p. 69).


11  – V. n.° 15 das presentes conclusões.


12  – V., designadamente, acórdão de 2 de Maio de 1996, Comissão/Bélgica (C‑133/94, Colect., p. I‑2323, n.° 17).


13  – Respectivamente, n.os  17 e 18 do acórdão AETR, já referido.


14  – É por isso que «a competência externa exclusiva da Comunidade não decorre ipso facto do seu poder normativo no plano interno». Parecer 1/94, de 15 de Novembro de 1994 (Colect., p. I‑5267, n.° 77) (acordos GATS e TRIPs).


15  – Cito, designadamente, os seguintes pareceres: 1/75, de 11 de Novembro de 1975 (Colect., p. 457) (acordo relativo a uma norma para as despesas locais); 1/76, de 26 de Abril de 1977 (Colect., p. 253) (Fundo Europeu de Imobilização da Navegação Interior); 2/91, de 19 de Março de 1993 (Colect., p. I‑1061) (Convenção n.° 170 da Organização Internacional do Trabalho); 1/94, já referido, e 2/92, de 24 de Março de 1995 (Colect., p. I‑521) (terceira decisão revista do Conselho da OCDE relativa ao tratamento nacional).


16  – V., designadamente, parecer 2/91, já referido, n.° 25.


17  – V. nota 4.


18  – V., designadamente, acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.os  81 e 82.


19  – Ibidem, n.° 83.


20  – Ibidem, n.° 84.


21  – Ibidem, n.° 83.


22  – V. os n.os  13 e 14 das presentes conclusões.


23  – V., designadamente, acórdão Comissão/Dinamarca, já referido, n.° 93.


24  – V. acórdão de 5 de Maio de 1981, Comissão/Reino Unido (804/79, Recueil, p. 1045, n.° 28). Este acórdão inscreve‑se no contexto específico da competência exclusiva da Comunidade em matéria de medidas de conservação dos recursos marítimos. No entanto, o princípio segundo o qual o artigo 10.° CE impõe deveres especiais de acção e de omissão aos Estados‑Membros quando a Comunidade tomou a decisão de iniciar uma acção comunitária deve, em minha opinião, ser aplicado de forma geral.


25  – V., a este respeito, o n.° 14 das presentes conclusões.


26  – Trata‑se dos Estados que não fazem parte dos acordos bilaterais em causa.


27  – No caso do acordo bilateral concluído com a Roménia, importa ter em conta o artigo 1.°, alínea k).