CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL
CHRISTINE STIX‑HACKL
apresentadas em 27 de Maio de 2004(1)



Processo C‑16/03



Peak Holding AB
contra
AxolinElinor AB


[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hovrätten över Skåne och Blekinge (Suécia)]

«Marcas – Directiva 89/104/CEE – Artigo 7.°, n.° l – Esgotamento do direito de marca – Colocação no mercado no EEE pelo titular da marca – Momento e função da colocação no mercado»






I – Introdução

1.        Através do presente processo, o Tribunal de Justiça deve, mais uma vez, interpretar o artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104/CEE  (2) (a seguir «Directiva 89/104»), relativo ao princípio do esgotamento do direito de marca no EEE.

2.        O processo principal tem por objecto mercadorias de marca fabricadas fora do EEE e para aí importadas pelo titular da marca ou, em todo o caso, por empresas a ele coligadas. A distribuição posterior destas mercadorias foi efectuada em parte por estas empresas coligadas e em parte por terceiros, sendo pacífico que a distribuição teve lugar no interior do EEE. Na sequência de o titular da marca ter tentado, mediante uma acção por violação de marca, influenciar essa distribuição no interior do EEE, colocou‑se ao juiz nacional a questão de saber se – e, eventualmente, a partir de que momento – havia que considerar que os direitos do titular da marca estavam esgotados.

3.        Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, fundamentalmente, se a colocação das mercadorias de marca no mercado, que origina o esgotamento, consiste na – simples – importação dessas mercadorias no EEE, ou se, pelo contrário, há que ter em conta actos posteriores do titular do direito de marca.

II – Enquadramento jurídico

4.        O artigo 5.° da Directiva 89/104 tem a seguinte redacção:

«Direitos conferidos pela marca

1.       A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)       De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

[…]

3.       Pode nomeadamente ser proibido, caso se encontrem preenchidas as condições enumeradas nos n.os 1 e 2:

[…]

b)       Oferecer os produtos para venda ou colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o sinal;

c)       Importar ou exportar produtos com esse sinal;

[…]»

5.        O artigo 7.° da Directiva 89/104, epigrafado «Esgotamento dos direitos conferidos pela marca», determina, no n.° 1:

«O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.»

6.        Nos termos do artigo 65.°, n.° 2, em conjugação com o anexo XVII, n.° 4, do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, o artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 foi alterado, para efeitos do referido acordo, substituindo as palavras «na Comunidade» por «numa Parte Contratante»

III – Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

7.        A Peak Holding AB (a seguir «Peak Holding») é titular de várias marcas registadas na Suécia e/ou na Comunidade. O direito de utilização das marcas foi cedido à empresa coligada Peak Performance Production AB (a seguir «Peak Production») que, utilizando essas marcas, fabrica e vende vestuário e acessórios na Suécia e no estrangeiro.

8.        Em Setembro de 2000, a Handelskompaniet Factory Outlet i Löddeköpinge AB, que passou a denominar‑se Axolin‑Elinor AB (a seguir «Axolin‑Elinor»), pôs à venda nos seus estabelecimentos um lote de mercadorias composto por cerca de 25 000 peças de vestuário destinadas ao consumidor final, nas quais tinham sido apostas as marcas da Peak Holding, e publicou nos jornais anúncios dessa venda. As peças de vestuário pertencentes a estes lotes foram fabricadas para a Peak Production fora da Europa  (3) . Foram importadas para a Europa para serem vendidas e pertenceram, entre 1996 e 1998, à gama de produtos habituais da Peak Production.

9.       É pacífico entre as partes no processo principal que, no referido período, 70% destas peças de vestuário se encontravam nos estabelecimentos para serem vendidas ao consumidor final. Enquanto a Axolin‑Elinor afirmava que essas peças estavam à venda em estabelecimentos independentes, a Peak Holding alegava que a venda era feita unicamente nos estabelecimentos da Peak Production.

10.      Em Novembro e Dezembro de 1999, todas as peças de vestuário dos lotes em questão foram postas à venda aos consumidores em Copenhaga nos armazéns locais Base Camp, pertencentes à sociedade irmã da Peak Production, a Carli Gry Denmark A/S. Seguidamente, a Peak Production vendeu o resto das peças de vestuário à empresa francesa COPAD International. A Peak Production afirma ter determinado que os lotes de mercadorias não fossem vendidos em nenhum outro país europeu, com excepção da Eslovénia e da Rússia, e que 5% da quantidade total podia ser vendida em França.

11.      A Axolin‑Elinor negou expressamente essa restrição e alegou que, pelo contrário, comprou os lotes de mercadorias à sociedade sueca Truefit Sweden AB.

12.     É pacífico entre as partes que os lotes controvertidos, entre o momento em que deixaram os armazéns da Peak Production na Dinamarca e a sua entrega à Axolin Elinor não saíram do domínio do EEE.

13.      Em Outubro de 2000, a Peak Holding propôs no Lunds Tingsrätt uma acção com o fundamento de que a comercialização pela Axolin Elinor constitui violação do direito de marca da Peak Holding. O Tingsrätt, que considerou que as mercadorias tinham sido colocadas no mercado pelo facto de terem sido postas à disposição dos consumidores no estabelecimento de Base Camp, e que, por essa razão, o direito de marca não podia ser restabelecido, julgou a acção improcedente. A Peak Holding recorreu da decisão do Tingsrätt para o Hovrätten över Skåne och Blekinge.

14.      O órgão jurisdicional de reenvio, considerando que a decisão do litígio dependia da interpretação do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, decidiu suspender a instância e colocar as seguintes questões prejudiciais:

«1.     Deve considerar‑se que um produto foi comercializado pelo titular do direito de marca no caso de:

a)       ter sido importado e desalfandegado no mercado comum com o objectivo de aí ser vendido?

b)       ter sido posto à venda no mercado comum nas lojas próprias do titular do direito de marca ou de sociedades do mesmo grupo, sem ter sido objecto de transmissão?

2.       Pode o titular do direito de marca, no caso de um produto ter sido comercializado segundo qualquer das alternativas supra e, portanto, se ter verificado o esgotamento do direito de marca sem que o produto tenha sido objecto de transmissão, interromper o esgotamento reconduzindo o produto para o armazém?

3.       Deve considerar‑se que um produto foi comercializado pelo facto de ter sido objecto de transmissão pelo titular do direito de marca para outra sociedade no mercado interno, se o titular do direito de marca, quando da transmissão, estabelecer como condição em relação ao comprador que este deixa de poder vender o produto no mercado comum?

4.       Tem influência para a resposta à questão 3 o facto de o titular do direito de marca, quando da transmissão do lote de mercadorias no qual o produto está incluído, permitir ao comprador revender uma parte mínima das mercadorias no mercado comum, sem indicar de forma individualizada quais as mercadorias a que a permissão se refere?»

IV – Apreciação

15.      Com a primeira questão prejudicial deve, em especial, determinar‑se o momento exacto a partir do qual se deve considerar que uma mercadoria que ostenta uma marca foi «colocada no mercado». A segunda questão prejudicial afigura‑se, por conseguinte, subsidiária, uma vez que é colocada para o caso de dever considerar‑se que, com base nos actos referidos pelo juiz nacional na primeira questão, existiu colocação no mercado. Dado que as duas primeiras questões prejudiciais estão estreitamente ligadas procederei à sua análise conjunta.

16.      As terceira e quarta questões prejudiciais referem‑se à relação entre o requisito da colocação no mercado e do consentimento referidos no artigo 7.°, n.° 1, ao passo que, na quarta questão, deverá unicamente examinar‑se uma especificidade, eventualmente determinante, do conteúdo do consentimento. Por conseguinte, as duas questões deverão ser igualmente examinadas em conjunto.

A – Primeira e segunda questões prejudiciais

17.      Nas duas primeiras questões trata‑se, essencialmente, de precisar o conceito de colocação no mercado a fim de poder determinar o momento a partir do qual uma mercadoria que ostenta uma marca pode ser comercializada como se tivesse sido colocada no mercado no EEE pelo próprio titular da marca. Esta problemática é de importância prática capital, uma vez que da solução que lhe for dada depende, em especial, a apreciação, à luz do direito das marcas, de transacções efectuadas no interior de grupos de empresas  (4) ou de operações auxiliares  (5) .

18.      Refira‑se, antes de mais, que, no artigo 5.° da Directiva 89/104, o direito conferido pela marca é definido como um direito exclusivo. O artigo 5.°, n.° 3, enumera pormenorizadamente os poderes do titular da marca; nos termos da alínea b), entre esses poderes figura o direito de proibir a oferta de mercadorias que ostentam a marca, a sua colocação no mercado ou a sua detenção para esse fim. Consequentemente, nos termos do direito comunitário em vigor, faz parte dos poderes fundamentais do titular da marca o de determinar o lugar e o momento da colocação no mercado no EEE dos produtos que ostentam a marca  (6) .

19.      O princípio do esgotamento comunitário, conforme se encontra delineado no artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, destina‑se a realizar uma compensação entre a importância da livre circulação de mercadorias, por um lado, e o exercício do direito da marca, por outro. Se este princípio não existisse, o titular da marca poderia impedir a colocação no mercado de determinado Estado‑Membro das mercadorias que ostentam a marca, que ele próprio ou um terceiro com o seu consentimento tivessem colocado no mercado de outro Estado‑Membro. Essa situação afectaria negativamente o funcionamento correcto do mercado interno. No interesse de um funcionamento correcto do mercado interno, o princípio do esgotamento comunitário, doravante contido no artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, permite superar a protecção, essencialmente territorial, dos direitos de marcas nacionais a nível nacional  (7) . Em razão dessa compensação, cabe ao titular da marca decidir sobre a primeira colocação no mercado das mercadorias – no EEE –  (8) ao passo que lhe é vedado, através do direito de marca, controlar a distribuição posterior.

20.      Uma especificidade da harmonização (parcial) das normas nacionais relativas às marcas, levada a cabo pela Directiva 89/104 consiste no facto de o princípio do esgotamento comunitário, que foi inicialmente instituído tendo em vista o mercado interno, ter adquirido importância igualmente no que respeita ao comércio com Estados terceiros  (9) . A este propósito, o Tribunal de Justiça esclareceu que a colocação no mercado fora do EEE não esgota o direito de o titular da marca se opor à importação dessas mercadorias feita sem o seu consentimento, e daí concluiu que «o legislador comunitário permitiu assim ao titular da marca controlar a primeira comercialização no EEE dos produtos que ostentam a marca»  (10) , sem, porém, ter analisado o sentido e objectivo do princípio do esgotamento para além das considerações, que não são pertinentes para o caso presente, relativas ao funcionamento correcto do mercado interno  (11) .

21.      Por último, refira‑se que, em princípio, o reforço dos direitos do titular da marca, por exemplo, através do adiamento de um acto que seja determinante para considerar que existe esgotamento, implica restrições provavelmente maiores à livre circulação de mercadorias no interior do EEE.

22.      A resposta às duas primeiras questões prejudiciais, relativas ao requisito essencial da colocação no mercado na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, supõe uma interpretação desta disposição segundo os métodos de interpretação habituais, no âmbito dos quais há que analisar a interpretação proposta pelo juiz nacional para a primeira questão.

Interpretação literal do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104

23.      Não obstante as eventuais diferenças entre as diferentes versões linguísticas do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104  (12) , o Governo sueco refere, com razão, que, com base na linguagem corrente, do teor literal da referida disposição infere‑se que, de qualquer forma, é necessário um acto do titular da marca que afecte o mercado para poder considerar que está preenchido o requisito da colocação no mercado. Uma retrospectiva histórica confirma esta afirmação. No acórdão Centrafarm/Winthrop  (13) , o Tribunal de Justiça declarou o seguinte: «[n]ão se justifica tal obstáculo [à livre circulação de mercadorias] quando o produto foi licitamente comercializado no mercado do Estado‑Membro de onde foi importado, não podendo assim estar em causa qualquer possibilidade de abuso ou de contrafacção de marca» (o sublinhado é meu).

24.      Do carácter determinante da orientação do acto do titular do direito de marca – designadamente para o mercado – em relação com o esgotamento do direito de marca, na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, resulta, desde logo à luz da redacção desta disposição, que não se pode considerar que actos internos da empresa – como, por exemplo, a cessão das mercadorias que ostentam a marca a uma filial distribuidora – ou actos preparatórios – como, por exemplo, a importação de Estados terceiros pelo titular da marca de mercadorias que este aí faz fabricar – constituam actos de colocação no mercado de mercadorias que ostentam a marca.

25.      Quanto às mercadorias que ostentam a marca fabricadas fora do EEE, observe‑se, além disso, que, no momento da sua importação para o EEE, não é necessário que o titular da marca já tenha decidido sobre a forma e a modalidade da sua primeira distribuição no EEE. Se a mera importação e desalfandegamento de mercadorias que ostentam marcas, por determinação do titular da marca, levassem ao esgotamento do próprio direito de marca, o titular da marca deixaria, definitivamente, de poder impedir a primeira distribuição no EEE das mercadorias que ostentam a marca.

26.      Assim, se se excluir que o simples acto da importação para o EEE possa ser determinante para fixar o momento da colocação no mercado, continua por resolver a questão de saber se a oferta das mercadorias no EEE constitui colocação no mercado ou se, pelo contrário, para efeitos de colocação no mercado se exige a sua alienação, ou em todo o caso, uma cessão do poder de disposição que não seja meramente provisória.

27.      A solução desta questão é praticamente impossível com base numa interpretação literal do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, uma vez que tanto a oferta como a alienação das mercadorias que ostentam a marca «são dirigidas ao mercado». No âmbito de uma interpretação literal poderia, quando muito, observar‑se como, por exemplo, fez o Governo sueco, que a referência à alienação das mercadorias não é convincente, uma vez que é precisamente por efeito da sua alienação que a mercadoria é retirada do mercado. Em termos semelhantes, a Axolin‑Elinor alega que a oferta de mercadorias num estabelecimento é justamente característica da presença destas no mercado.

Interpretação sistemática do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104

28.      Do ponto de vista sistemático, há que analisar antes de mais a relação entre o artigo 5.°, n.° 3, e o artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104. Segundo o artigo 5.°, n.° 3, alínea b), o titular da marca pode, nomeadamente, proibir «oferecer os produtos para venda ou colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esse fim […] sob o sinal». Com base nesta formulação é concebível distinguir consoante as mercadorias são simplesmente oferecidas para venda ou são colocadas no mercado.

29.      Cabe, no entanto, perguntar se a colocação no mercado na acepção desta disposição coincide com o conceito de igual teor que figura no artigo 7.°, n.° 1. Em favor de resposta afirmativa milita, por um lado, o facto de ter sido utilizado o mesmo conceito e, por outro, a distinção, subjacente às duas disposições, entre os actos que são dirigidos ao mercado e actos de natureza meramente interna  (14) . Contra uma interpretação uniforme milita, porém, a finalidade diferente das duas disposições. Enquanto o artigo 5.° determina concretamente o âmbito de protecção do directo exclusivo conferido pela marca, o artigo 7.°, n.° 1, impõe um limite a esse direito exclusivo  (15) .

30.      A interpretação sistemática do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 não conduz, por conseguinte, a nenhuma conclusão clara.

Interpretação teleológica do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104

31.      No âmbito de uma interpretação teleológica do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, cabe analisar a função anteriormente mencionada  (16) de compensação do princípio do esgotamento. Consequentemente, há que rejeitar soluções interpretativas que eventualmente limitem o poder de o titular da marca decidir da primeira colocação no mercado no EEE das mercadorias que ostentam a marca. Simultaneamente, há que ter presente que a limitação do direito do titular da marca prevista no artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 não se destina unicamente ao funcionamento do mercado interno mas também à segurança jurídica, uma vez que se opõe a um controlo de toda a distribuição posterior por parte do titular da marca, possibilitando desta forma uma «aquisição de boa fé» igualmente a nível do direito das marcas.

32.      No âmbito da interpretação teleológica, há que garantir igualmente que o titular da marca pode exercer o seu direito exclusivo dentro dos limites atrás descritos  (17) e daí retirar uma vantagem económica sem efeitos negativos sobre a segurança jurídica.

33.      Já foi anteriormente referido que, para que se verifique o requisito da colocação no mercado de mercadorias que ostentam a marca, não basta o simples facto de as ter importado para o EEE  (18) .

34.      Tanto a Comissão como o Governo sueco reconheceram que é determinante que se possa tirar proveito económico da marca, mas extraem daí consequências diferentes. Assim, enquanto a Comissão defende que a referida utilidade económica apenas pode realizada através da distribuição das mercadorias que ostentam a marca, o Governo sueco considera que basta que o titular da marca possa oferecer as suas mercadorias ao consumidor final, pois, neste caso, o titular da marca pode definir as circunstâncias da primeira distribuição, independentemente da eventual alienação efectiva das mercadorias.

35.      A favor da tese do Governo sueco milita certamente uma concepção económica que equipara a colocação no mercado à comercialização, entendida no sentido de uma introdução das mercadorias no mercado e, assim, interpreta a alienação completa das mercadorias como uma saída do mercado. Partindo de uma definição do mercado como o lugar onde se procede ao livre intercâmbio de prestações e contraprestações, onde o preço se forma em função da oferta e da procura, há que assinalar, no entanto, que a interpretação que o Governo sueco propõe não é, de modo nenhum, obrigatória. A formação dos preços no mercado resulta da interacção da oferta e da procura e, definitivamente, só se concretiza com a alienação das mercadorias, pelo que alguns elementos corroboram a interpretação da Comissão. Esta interpretação é a única que corresponde à ideia do mercado como lugar de livre intercâmbio de prestações e contraprestações  (19) .

36.      Segundo a Axolin‑Elinor, não se pode, no entanto, negar que as mercadorias oferecidas num estabelecimento foram colocadas no mercado. Considera, além disso, que há que recordar que o facto de se tomar por base a oferta ao consumidor final garante, desde logo, a função principal da marca, a denominada garantia de origem.

37.      Esta tese não é convincente sob vários pontos de vista. Embora deva considerar‑se que, nesse caso, existe um acto dirigido ao mercado, a referida tese não tem suficientemente em conta os interesses do titular da marca, uma vez que a oferta para venda de mercadorias não pode, só por si, realizar a protecção dos investimentos na marca  (20) .

38.      Considerações de ordem prática militam igualmente no sentido de não tomar por base o critério da oferta das mercadorias para venda. A Peak Holding alega, a este propósito, que a referência à oferta suscita dificuldades, uma vez que, em relação a produtos armazenados, não resulta com clareza quais foram as mercadorias relativamente às quais se produziu o esgotamento do direito de marca. Neste ponto, há que remeter para o acórdão no processo Sebago  (21) , nos termos do qual «[…] os direitos conferidos pela marca só se esgotam para os exemplares do produto que foram comercializados no território definido por esta disposição com o consentimento do titular. Para os exemplares deste produto que não foram comercializados nesse território com o seu consentimento, o titular pode sempre proibir o uso da marca em conformidade com o direito que lhe confere a directiva». Deste acórdão infere‑se que, para poder considerar que se produziu o esgotamento, é necessário determinar quais os exemplares da mercadoria que foram colocados no mercado pelo próprio titular da marca ou com o seu consentimento. Se a mera oferta das mercadorias fosse suficiente para considerar que foram colocadas no mercado, haveria que perguntar, no entanto, como pode proceder‑se com a suficiente segurança jurídica à necessária identificação das mercadorias armazenadas que possivelmente não se destinem a ser vendidas.

39.      Assinale‑se, além disso, que a referência ao momento da oferta não permitiria que se proibissem as importações paralelas de Estados terceiros nos casos em que as mercadorias se encontrassem inicialmente no EEE. No processo Silhouette International Schmied/Hartlauer Handelsgesellschaft  (22) , na base do qual se encontram factos deste género, o Tribunal de Justiça examinou, como se sabe, a admissibilidade do esgotamento internacional com base no direito nacional, o que, logicamente, pressupõe que se considere que os direitos conferidos pela marca não se esgotaram pelo simples facto de as mercadorias terem sido postas à venda num Estado‑Membro.

40.      Se, do ponto de vista económico, se considerar que a alienação dos produtos que ostentam a marca constitui o momento determinante para efeitos da colocação destas mercadorias no mercado  (23) , há que determinar, por último, se, do ponto de vista jurídico, é necessária uma modificação das relações de propriedade. O despacho de reenvio, na medida em que se refere, na primeira questão, à inexistência de «transmissão da propriedade», sugere que essa modificação é necessária. A Comissão também se pronunciou, especialmente na audiência, pelo carácter determinante da «transmissão».

41.      Observe‑se, a este respeito, que, mesmo que o direito de propriedade se modifique, coloca‑se, no entanto, a questão de saber se o titular da marca pode retirar proveito económico da marca. Por outras palavras, em razão da abordagem económica proposta, a modificação dos direitos de propriedade das mercadorias que ostentam a marca é irrelevante  (24) .

42.      Se a modificação dos direitos de propriedade é irrelevante, há que tomar por base a cessão do poder efectivo de disposição das mercadorias. Assim, uma mercadoria é colocada no mercado quando um terceiro, cujas decisões relativas à distribuição das mercadorias não podem ser imputadas ao titular da marca – por exemplo, em razão da independência efectiva desse terceiro  (25) – tenha obtido o poder efectivo de disposição das mercadorias.

43.      Por conseguinte, proponho que à primeira questão se responda que a mera importação e desalfandegamento no EEE de mercadorias que ostentam uma marca e a sua colocação à venda no estabelecimento do titular da marca ou nos de empresas coligadas não constituem actos de colocação no mercado. Pelo contrário, existe colocação no mercado no EEE que produz esgotamento na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 quando um terceiro independente obteve o poder de dispor das mercadorias que ostentam a marca.

44.     À luz da resposta proposta, não há que analisar a segunda questão prejudicial.

B – Terceira e quarta questões prejudiciais

45.      Com as duas últimas questões trata‑se, no essencial, de determinar se e em que medida uma declaração de vontade de carácter contratual, feita pelo titular da marca quanto à distribuição das mercadorias que ostentam a marca, tem relevância para efeitos do requisito do consentimento, fixado no artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104.

46.      Esta questão tem por base a tese segundo a qual, no caso de se poder provar o incumprimento da referida vontade contratual, não existiria consentimento na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, pelo que já não teria relevância a questão de saber se as mercadorias que ostentam a marca foram ou não colocadas no comércio no EEE.

47.      Resulta do despacho de reenvio que a distribuição da grande maioria dos lotes restantes devia ter sido efectuada em Estados terceiros de acordo com a vontade do titular da marca, a Peak Holding. Esta tinha introduzido uma cláusula nesse sentido no contrato celebrado com a sociedade francesa COPAD. As terceira e quarta questões remetem manifestamente para as afirmações da Peak Holding segundo as quais a violação da referida cláusula quanto à limitação territorial da distribuição equivale a falta de consentimento na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, pelo que era de excluir que se tivesse produzido o esgotamento dos direitos conferidos pela marca.

48.      Esta tese não tem em conta a natureza jurídica do esgotamento como limite legal dos direitos conferidos pela marca, como justamente o Governo sueco objecta. Tanto à luz do seu teor literal como da sua finalidade, no caso do esgotamento, há que distinguir entre colocação no mercado pelo próprio titular da marca e colocação no mercado por um terceiro, embora com o consentimento do titular  (26) . O conceito de consentimento que consta do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 constitui um critério de imputação em função do qual deve determinar‑se se a colocação no mercado de mercadorias no EEE, efectuada por um terceiro, deve ser imputada ao titular da marca  (27) .

49.      Quando é o próprio titular da marca a colocar no mercado no EEE as mercadorias que ostentam a marca, o esgotamento ocorre ex lege, independentemente do contrato entre o titular da marca e o comprador. A violação eventual de uma cláusula de restrição territorial da distribuição das mercadorias que ostentam a marca, imposta pelo titular da marca ao comprador em relação à sua distribuição no EEE, pode, eventualmente, ser fonte de acções baseadas no contrato, mas, em princípio, carece fundamentalmente de pertinência do ponto de vista do direito das marcas.

50.      Esta conclusão também não é invalidada pela referência ao acórdão Davidoff e o.  (28) no qual o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que «uma lei nacional que tomasse em conta um simples silêncio do titular da marca admitiria não um consentimento implícito mas um consentimento presumido. Ignoraria, desse modo, a exigência de um consentimento dado positivamente, conforme resulta do direito comunitário»  (29) . Daí se conclui certamente que o consentimento do titular da marca na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, ou seja, o consentimento para a colocação das mercadorias no mercado no EEE por um terceiro, não pode ser inferido do simples facto de o contrato celebrado entre o titular da marca e o seu comprador não prever restrições territoriais à distribuição.

51.      Ora, a questão de saber se a inclusão de uma restrição territorial da distribuição no referido contrato exclui, em princípio, o consentimento do titular da marca na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 só é pertinente na medida em que o esgotamento deva inferir‑se do consentimento. Esta é a questão que se coloca nos casos de reimportação de países terceiros de mercadorias que ostentam a marca  (30) . Não é esta, no entanto, a situação no processo principal, no qual se trata unicamente de determinar em que momento as mercadorias que ostentam a marca foram colocadas no EEE pelo próprio titular da marca.

52.      Não é necessário examinar se a restrição territorial fixada no contrato entre a Peak Holding e a COPAD é criticável do ponto de vista do direito da concorrência, uma vez que esta circunstância é irrelevante para a resposta à terceira questão.

53.      No que respeita à quarta questão, basta observar que, se a existência de uma restrição territorial da distribuição não afecta o esgotamento num caso como o do processo principal  (31) , o mesmo deverá acontecer, por maioria de razão, quando se trate de uma configuração especial de uma cláusula desse tipo.

54.      Por conseguinte, há que responder às terceira e quarta questões que, para determinar se se produziu o esgotamento nos termos do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104 em caso de alienação de mercadorias que ostentem uma marca a outra empresa no interior do EEE, é irrelevante que o titular da marca tenha imposto ao adquirente restrições territoriais relativas à distribuição das mercadorias.

V – Despesas

55.      As despesas efectuadas pelo Governo sueco e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de um incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

VI – Conclusão

56.      Por conseguinte, propõe‑se ao Tribunal de Justiça que responda nos seguintes termos às questões prejudiciais submetidas pelo Hovrätten över Skåne och Blekinge:

1.
O artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104/CEE deve ser interpretado no sentido de que a mera importação e desalfandegamento no EEE de mercadorias que ostentam uma marca e a sua colocação à venda no estabelecimento do titular da marca ou nos de empresas coligadas não constituem actos de colocação no mercado. Pelo contrário, uma mercadoria que ostenta a marca é colocada no mercado no EEE quando um terceiro independente obteve o poder de dispor dessas mercadorias, por exemplo, mediante compra.

2.
Em caso de alienação de mercadorias que ostentem uma marca a outra empresa no interior do EEE pelo próprio titular da marca, é irrelevante, para determinar se se produziu o esgotamento nos termos do artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104/CEE, que o titular da marca tenha imposto ao adquirente restrições territoriais relativas à distribuição.


1
Língua original: alemão.


2
Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho de 21 de Dezembro de 1988 que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO L 40, p. 1).


3
Não se infere, com absoluta certeza, do despacho de reenvio, se a referência à Europa significa (unicamente) os Estados signatários do acordo EEE. Para efeitos destas conclusões, considera‑se que o lote em questão foi fabricado fora do EEE.


4
Deve, por exemplo, considerar‑se que o titular da marca esgotou o seu direito exclusivo de marca pelo facto de ter alienado a uma empresa coligada as mercadorias que ostentam a marca?


5
Deve, por exemplo, considerar‑se que o titular da marca esgotou o seu direito exclusivo de marca pelo facto de ter entregue a um transitário as mercadorias que ostentam a marca?


6
É precisamente o que acontece – em razão do princípio do esgotamento no âmbito do EEE – quando as mercadorias tenham sido colocadas no mercado, em primeiro lugar, pelo titular da marca fora do EEE, v. Fezer, Markenrecht, 3.a ed., Munique 2001, § 24 MarkenG., n.° 93. V., para uma crítica, Justice Laddie, despacho de reenvio de 18 de Maio de 1999 no processo C‑414/99 (publicado por extracto in IIC vol. 30, n.° 5/1999, p. 567) (n.° 36): «In my view this illustrates how Silhouette has bestowed on a trade mark owner a parasitic right to interfere with the distribution of good which bears little or no relationship to the proper function of the trade mark right. It is difficult to believe that a properly informed legislature intended such a result, even if it is the proper construction of Article 7 (1) of the Directive».


7
V., igualmente, quanto à função de compensação do princípio do esgotamento, as minhas conclusões de 5 de Abril de 2001 nos processos Davidoff e o. (C‑414/99 a C‑416/99, acórdão de 20 de Novembro de 2001, Colect., p. I‑8691, n.os 80 e segs.).


8
Conforme expressamente referido no acórdão no processo Davidoff e o. (referido na nota 7), n.° 33, e jurisprudência aí referida.


9
V., a este respeito, as minhas conclusões no processo Davidoff e o. (referido na nota 7), n.os 78 e 84, e observações constantes da nota 6.


10
Acórdão no processo Davidoff e o. (referido na nota 7), n.° 33. V., igualmente, acórdão anterior, de 1 de Julho de 1999, Sebago e Maison Dubois (C‑173/98 Colect., p. I‑4103, n.° 21).


11
V., igualmente, Hays, Thomas, Parallel importation under European Union Law, Londres 2004, n.os 7.55 e segs., bem como 10.20 e segs. e 10.11 e segs.


12
Enquanto a versão alemã se refere à colocação no mercado («Inverkehrbringen»), tanto as versões francesa («mis dans le commerce»), espanhola e portuguesa, de teor igual («comercializado» e «comercializados», respectivamente), como a italiana («immessi in commercio») e a neerlandesa («in de handel zijn gebracht») referem‑se à distribuição no comércio, ao passo que as versões inglesa («put on the market»), sueca («marknaden») ou dinamarquesa («markedsfoert») se referem directamente ao mercado.


13
Acórdão de 31 de Outubro de 1974 (16/74, Colect., p. 501, n.os 9 a 11).


14
V., neste sentido, em relação à disposição de transposição para o direito alemão: Ingerl/Rohnke, Markengesetz, 2.ª ed., Munique 2003, § 24, n.° 18.


15
V., em relação às disposições de transposição alemãs, Fezer (já referido na nota 6), n.° 7d; Ströbele/Hacker, Markengesetz, 7.a ed., Colónia, 2003, § 24, n.° 33, e referências indicadas.


16
V., supra, n.° 19.


17
V., supra, n.° 19.


18
V., supra, n.os 24 e segs.


19
V., igualmente, num contexto diferente, conclusões do advogado‑geral P. Léger de 13 de Novembro de 2003 nos processos Björnekulla Fruktindustrier (C‑371/02), n.° 40: «[o]ra, quem diz mercado diz encontro entre a oferta e a procura, ou troca, transacção […]».


20
Neste contexto, há que recordar, a este propósito, que o Tribunal de Justiça, no acórdão de 12 de Novembro de 2002, Arsenal Football Club (C‑206/01, Colect., p. I‑10273), confirmou a função tradicional da marca como indicação da origem das mercadorias, embora o advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer nas alegações correspondentes (conclusões de 13 de Junho de 2002, n.° 46) tenha sublinhado a sua crescente importância enquanto suporte de investimento e publicidade. Nesta óptica, a tese da Axolin‑Elinor afigura‑se restritiva.


21
Referido na nota 10 (n.° 19).


22
Acórdão de 16 de Julho de 1998 (C‑355/96, Colect., p. I‑4799).


23
O que se poderia igualmente inferir do acórdão de 23 de Outubro de 2003, Rioglass e Transremar (C‑115/02, Colect., p. I‑0000, n.° 28), quando neste se declara que uma operação de trânsito (que consiste no transporte de mercadorias legalmente fabricadas num Estado‑Membro através do território de outro ou outros Estados‑Membros) «pela sua natureza, não constitui uma [comercialização] [no sentido de uma colocação no mercado – v., igualmente, n.° 25]».


24
Em caso de venda de uma mercadoria que ostenta a marca com reserva de propriedade, a transmissão do poder de disposição é anterior à modificação dos direitos de propriedade. Por conseguinte, a reserva de propriedade não produz qualquer efeito sobre o início do esgotamento do direito de marca. Em caso de cessão do activo é, em geral, duvidoso se existe um acto dirigido ao mercado, uma vez que as mercadorias às quais diz respeito se mantêm na posse daquele que presta a garantia. V., a este propósito, Mulch, Der Tatbestand der markenrechtlichen Erschöpfung, Köln 2001, p. 20.


25
A este respeito, há que distinguir entre operações no interior de um grupo de empresas e operações no âmbito de um sistema de distribuição.


26
V., igualmente, as minhas conclusões referidas na nota n.° 6, n.° 42.


27
No acórdão de 22 de Junho de 1994, IHT Internationale Heiztechnik e Danzinger (C‑9/93, Colect., p. I‑2789, n.° 43), o Tribunal de Justiça tinha declarado que «[o] consentimento que qualquer cessão implica não é o que é exigido para que funcione o esgotamento do direito».


28
Referido na nota 7.


29
Atrás referido, n.° 58.


30
Quando as mercadorias que ostentam a marca não tenham sido colocadas no mercado no EEE pelo titular da marca, mas tenham sido importadas por terceiros, por exemplo, no âmbito de importações paralelas, a questão que se coloca, em relação com um eventual esgotamento dos direitos conferidos pela marca, não é a de saber se os produtos foram colocados no mercado no EEE pelo próprio titular da marca, mas sim a de saber se esse terceiro colocou essas mercadorias no EEE com o consentimento do titular da marca.


31
V., supra, n.° 51.