Processo C‑200/02

Kunqian Catherine Zhu e Man Lavette Chen

contra

Secretary of State for the Home Department

(pedido de decisão prejudicial apresentado pela Immigration Appellate Authority)

«Direito de residência – Criança que tem a nacionalidade de um Estado‑Membro, mas reside noutro Estado‑Membro – Progenitores nacionais de um Estado terceiro – Direito da mãe de residir noutro Estado‑Membro»

Sumário do acórdão

Cidadania da União Europeia – Direito de livre circulação e de livre residência no território dos Estados‑Membros – Directiva 90/364 – Nacional de um Estado‑Membro, menor, coberto por um seguro de doença e a cargo de um progenitor nacional de um país terceiro que dispõe de recursos suficientes e que tem efectivamente a guarda do menor – Direito de residência, tanto para o menor como para o seu progenitor, noutro Estado‑Membro – Condições de obtenção pelo menor da sua nacionalidade – Irrelevância

(Artigo 18.° CE; Directiva 90/364 do Conselho)

O artigo 18.° CE e a Directiva 90/364, relativa ao direito de residência, conferem ao nacional de um Estado‑Membro, menor, de tenra idade, abrangido por um seguro de doença adequado e a cargo de um dos progenitores, por sua vez nacional de um Estado terceiro, cujos recursos são suficientes para que o primeiro não se torne uma sobrecarga para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, o direito a residir por tempo indeterminado no território deste último Estado. Neste caso, essas mesmas disposições permitem ao progenitor que efectivamente tem esse nacional à sua guarda residir com este último no Estado‑Membro de acolhimento.

A este respeito, a condição relativa ao carácter suficiente dos recursos, formulada na Directiva 90/364, apenas pode ser interpretada no sentido de que o nacional menor deve, ele próprio, dispor dos recursos necessários sem que possa invocar os recursos de um membro da família. Com efeito, tal interpretação adicionaria àquela condição uma exigência relativa à proveniência dos recursos que constituiria uma ingerência desproporcionada no exercício do direito fundamental de livre circulação e residência garantido pelo artigo 18.° CE, na medida em que não é necessária à concretização do objectivo prosseguido, ou seja, a protecção das finanças públicas dos Estados‑Membros.

Por outro lado, o benefício das disposições comunitárias em causa não pode ser recusado aos interessados pelo facto de o progenitor a quem cabe a guarda ter criado, através da residência num Estado‑Membro, as condições que permitiriam à sua filha nascitura adquirir a nacionalidade de outro Estado‑Membro para efeitos de obter, em consequência, para a criança e para si próprio, o direito de residência de longa duração. Com efeito, a definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade é, nos termos do direito internacional, da competência de cada Estado‑Membro, que deve exercê‑la no respeito do direito comunitário, e não cabe a um Estado‑Membro restringir os efeitos da atribuição da nacionalidade de outro Estado‑Membro, exigindo um requisito suplementar para o reconhecimento dessa nacionalidade com vista ao exercício das liberdades fundamentais previstas pelo Tratado.

(cf. n.os 33, 36, 37, 39, 47, disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno )
19 de Outubro de 2004(1)

«Direito de residência – Criança que tem a nacionalidade de um Estado-Membro, mas reside noutro Estado-Membro – Progenitores nacionais de um Estado terceiro – Direito da mãe de residir noutro Estado-Membro»

No processo C-200/02,que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial apresentado nos termos do artigo 234.º CE, submetido pela Immigration Appellate Authority (Reino Unido), por decisão de 22 de Maio de 2004, entrado no Tribunal de Justiça em 30 de Maio de 2004, no processo

Kunqian Catherine Zhu,Man Lavette Chen

Secretary of State for the Home Department,

contra

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Tribunal Pleno ),,



composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, R. Silva de Lapuerta e K. Lenaerts, presidentes de secção, C. Gulmann, R. Schintgen, N. Colneric, S. von Bahr e J. N. Cunha Rodrigues (relator), juízes,

advogado-geral: A. Tizzano,
secretário:  L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 11 de Novembro de 2003,vistas as observações apresentadas:

em representação de Man Lavette Chen, por R. de Mello e A. Berry, barristers, assistidos por M. Barry, sollicitor,

em representação do Governo irlandês, por D. J. O'Hagan, na qualidade de agente, assistido por P. Callagher, SC, e P. McGarry, BL,

em representação do Governo do Reino Unido, por J. E. Collins, R. Plender, QC, e R. Caudwell, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por C. O'Reilly, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 18 de Maio de 2004,

profere o presente



Acórdão



1
O pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação da Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados‑Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132), da Directiva 90/364/CEE do Conselho, de 28 de Junho de 1990, relativa ao direito de residência (JO L 180, p. 26), e do artigo 18.° CE.

2
Este pedido foi submetido no âmbito do recurso interposto por Kunqian Catherine Zhu (a seguir «Catherine»), de nacionalidade irlandesa, e por sua mãe, Man Lavette Chen (a seguir «M. L. Chen»), nacional da China, contra o indeferimento, pelo Secretary of State for the Home Department, dos pedidos, por parte de Catherine e de M. L. Chen, de concessão de autorização de residência de longa duração no Reino Unido.


Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3
O artigo 1.° da Directiva 73/148 dispõe:

«1.     Os Estados‑Membros suprimirão, nas condições previstas na presente directiva, as restrições à deslocação e à permanência:

a)
Dos nacionais de um Estado‑Membro estabelecidos ou que desejem estabelecer‑se em outro Estado‑Membro para nele exercerem uma actividade não assalariada, ou nele desejem efectuar uma prestação de serviços;

b)
Dos nacionais dos Estados‑Membros que desejem deslocar‑se a outro Estado‑Membro na qualidade de destinatários de uma prestação de serviços;

c)
Do cônjuge e filhos com menos de 21 anos destes nacionais independentemente da sua nacionalidade;

d)
Dos ascendentes e descendentes destes nacionais e dos respectivos cônjuges que estejam a seu cargo, independentemente da sua nacionalidade.

2.       Os Estados‑Membros favorecerão a admissão de qualquer outro familiar dos nacionais referidos no n.° 1, alíneas a) e b), ou do respectivo cônjuge, que se encontre a seu cargo ou que viva sob o mesmo tecto no país de origem.»

4
O artigo 4.°, n.° 2, da mesma directiva estabelece:

«Relativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, o direito de permanência corresponde à duração da prestação.

Se esta duração for superior a três meses, o Estado‑Membro em que se efectuar a prestação emite a autorização de residência comprovativa desse direito.

Se essa duração for inferior ou igual a três meses, o bilhete de identidade ou o passaporte ao abrigo do qual o interessado entrou no território bastam para a sua estada. O Estado‑Membro pode, contudo, exigir que o interessado comunique a sua presença no território.»

5
Nos termos do artigo 1.° da Directiva 90/364:

«1.     Os Estados‑Membros concederão o direito de residência aos nacionais dos Estados‑Membros que não beneficiem desse direito por força de outras disposições de direito comunitário e aos membros das respectivas famílias tal como são definidos no n.° 2, na condição de disporem, para si próprios e para as suas famílias, de um seguro de doença que cubra todos os riscos no Estado‑Membro de acolhimento e de recursos suficientes para evitar que se tornem, durante a sua permanência, uma sobrecarga para a assistência social do Estado‑Membro de acolhimento.

Os recursos referidos no primeiro parágrafo são considerados suficientes quando sejam superiores ao nível de rendimentos aquém do qual o Estado‑Membro de acolhimento pode conceder assistência social aos seus nacionais, tendo em conta a situação pessoal do requerente e, eventualmente, das pessoas consideradas beneficiários por força do n.° 2 do presente artigo.

Quando o segundo parágrafo não possa ser aplicado, os recursos do requerente serão considerados suficientes quando forem superiores ao nível da pensão mínima de segurança social paga pelo Estado‑Membro de acolhimento.

2.       Gozam do direito de se instalar com o titular do direito de residência noutro Estado‑Membro, independentemente da sua nacionalidade:

a)
O seu cônjuge e os seus descendentes a cargo;

b)
Os ascendentes do titular do direito de residência e do seu cônjuge que se encontrem a cargo daquele.»

Regulamentação do Reino Unido

6
Nos termos da regra 5 das Immigration (European Economic Area) Regulations 2000 (Regulamento de 2000 relativo aos imigrantes oriundos do Espaço Económico Europeu, a seguir «EEA Regulations»):

«1.     Para efeitos do presente regulamento, a expressão ‘pessoa com legitimidade para residir no Reino Unido’ significa qualquer nacional do EEE que se estabeleceu no Reino Unido na qualidade de: a) trabalhador por conta de outrem; b) trabalhador independente; c) prestador de serviços; d) beneficiário de uma prestação de serviços; e) pessoa auto‑suficiente; f) reformado; g) estudante, ou h) trabalhador independente que cessou a sua actividade; ou qualquer pessoa a quem se aplica o n.° 4.

[…].»


Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7
Resulta da decisão de reenvio que M.L. Chen e o seu marido, de nacionalidade chinesa, trabalham para uma empresa chinesa com sede na China. O marido de M. L. Chen é um dos administradores dessa empresa e detém uma participação maioritária na mesma. No âmbito da sua actividade profissional, este último efectua viagens de negócios frequentes a diversos Estados‑Membros, nomeadamente ao Reino Unido.

8
O primeiro filho do casal nasceu na China em 1998. Como pretendia dar à luz um segundo filho, M. L. Chen entrou no território do Reino Unido em Maio de 2000, quando estava grávida de cerca de seis meses. Deslocou‑se a Belfast em Julho do mesmo ano e Catherine nasceu nessa cidade em 16 de Julho desse mesmo ano. Mãe e filha vivem actualmente em Cardiff, no País de Gales (Reino Unido).

9
Nos termos do artigo 6.°, n.° 1, do Irish Nationality and Citizenship Act 1956 (Lei de 1956 relativa à nacionalidade e à cidadania irlandesas), revisto durante o ano de 2001, aplicável com efeitos retroactivos a 2 de Dezembro de 1999, a Irlanda permite a qualquer pessoa nascida na ilha da Irlanda adquirir a nacionalidade irlandesa. Segundo o n.° 3 do mesmo artigo, uma pessoa nascida na ilha da Irlanda é cidadão irlandês pelo nascimento se não tiver direito à cidadania de outro país.

10
Em cumprimento destas normas, foi emitido um passaporte irlandês a Catherine em Setembro de 2000. Segundo a exposição constante da decisão de reenvio, Catherine não tem, em contrapartida, o direito de obter a nacionalidade britânica, na medida em que, pelo British Nationality Act 1981 (Lei de 1981 sobre a nacionalidade britânica), o Reino Unido se afastou do jus soli (direito do solo), pelo que o nascimento no território desse Estado‑Membro já não confere automaticamente a nacionalidade britânica.

11
É pacífico que a estada na ilha da Irlanda se destinava a permitir à nascitura a aquisição da nacionalidade irlandesa e, consequentemente, permitir à mãe obter o direito de, eventualmente, residir com a sua filha no território do Reino Unido.

12
O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que a Irlanda faz parte da Common Travel Area (espaço de circulação comum), na acepção dos Immigration Acts (regulamentação relativa à imigração), de modo que, na medida em que, regra geral, os cidadãos da Irlanda não precisam de obter autorização para entrar e residir no território do Reino Unido, Catherine, ao contrário de M. L. Chen, pode circular livremente nos territórios do Reino Unido e da Irlanda. Para além do direito limitado à livre circulação entre os dois Estados‑Membros de que Catherine beneficia, nenhuma das duas recorrentes no processo principal tem o direito de residir no Reino Unido, devido à legislação nacional.

13
A decisão de reenvio precisa ainda que Catherine depende tanto afectiva como financeiramente de sua mãe, que é a principal responsável por aquela, que Catherine é beneficiária, no Reino Unido, de serviços médicos privados e de serviços de puericultura remunerados, que perdeu o direito à aquisição da nacionalidade chinesa devido ao seu nascimento na Irlanda do Norte e à consequente aquisição da nacionalidade irlandesa e que, por isso, só tem direito a entrar no território chinês ao abrigo de um visto de duração máxima de 30 dias por cada estada, que o sustento das duas recorrentes no processo principal é assegurado através da actividade profissional de M. L. Chen, que estas não estão dependentes de recursos públicos do Reino Unido nem há nenhuma possibilidade razoável de o virem a ser e, finalmente, que as interessadas têm um seguro de doença.

14
A recusa do Secretary of State for the Home Department de conceder uma autorização de residência de longa duração às duas recorrentes no processo principal deve‑se ao facto de Catherine, de oito meses de idade, não exercer qualquer direito decorrente do Tratado CE tal como os previstos na regra 5, n.° 1, das EEA Regulations e de M. L. Chen não ser uma pessoa com legitimidade para residir no Reino Unido nos termos dessa regulamentação.

15
A decisão de recusa foi objecto de recurso interposto na Immigration Appelate Authority, que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)
Relativamente à matéria de facto do presente processo, o artigo 1.° da Directiva 73/148/CEE do Conselho ou, em alternativa, o artigo 1.° da Directiva 90/364/CEE do Conselho:

a)
conferem à primeira recorrente, menor e cidadã da União Europeia, o direito de entrar e de residir no Estado‑Membro de acolhimento?

b)
em caso afirmativo, conferem consequentemente à segunda recorrente, nacional de um Estado terceiro, mãe da primeira recorrente e que tem esta a seu cargo, o direito de residir com a primeira recorrente (i) na qualidade de familiar dependente ou (ii) pelo facto de ter vivido com a primeira recorrente no seu país de origem ou (iii) por qualquer outro fundamento especial?

2)
Se e na medida em que a primeira recorrente não é ‘nacional de um Estado‑Membro’ para efeitos do exercício de direitos comunitários conferidos nos termos da Directiva 73/148/CEE do Conselho ou do artigo 1.° da Directiva 90/364/CEE do Conselho, quais são os critérios pertinentes para determinar se uma criança, que é cidadã da União Europeia, é nacional de um Estado‑Membro para efeitos do exercício de direitos comunitários?

3)
Nas circunstâncias do presente caso, o facto de a primeira recorrente beneficiar dos serviços de puericultura constitui uma prestação de serviços para efeitos da Directiva 73/148/CEE do Conselho?

4)
Nas circunstâncias do presente caso, a primeira recorrente é impedida de residir no Estado de acolhimento, de acordo com o artigo 1.° da Directiva 90/364/CEE do Conselho, porque os seus recursos são exclusivamente provenientes da mãe, natural de um Estado terceiro, que a acompanha?

5)
Quanto aos factos especiais deste caso, o artigo 18.°, n.° 1, CE confere à primeira recorrente o direito de entrar e de residir no Estado‑Membro de acolhimento, mesmo que não reúna as condiᄃões para ter residência no Estado de acolhimento, ao abrigo de outras disposições do direito comunitário?

6)
Se assim for, a segunda recorrente tem, consequentemente, o direito de permanecer com a primeira recorrente, durante esse período, no Estado de acolhimento?

7)
Neste contexto, qual é o efeito do princípio do respeito pelos direitos fundamentais no direito comunitário, invocado pelas recorrentes, tendo em conta, em particular, que estas invocam o artigo 8.° da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, segundo o qual qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar e do seu domicílio, em conjugação com o artigo 14.° da mesma convenção, dado que a primeira recorrente não pode viver na China com a segunda recorrente e com o seu pai e irmão?»


Quanto às questões prejudiciais

16
Com estas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se a Directiva 73/148, a Directiva 90/364 ou o artigo 18.° CE, eventualmente, conjugados com os artigos 8.° e 14.° da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), conferem, em circunstâncias como as do processo principal, a um nacional de um Estado‑Membro, menor, de tenra idade e a cargo de um dos progenitores, por sua vez nacional de um Estado terceiro, o direito de residir num outro Estado‑Membro, no qual esse menor é beneficiário de serviços de puericultura. Caso a resposta seja afirmativa, o órgão jurisdicional de reenvio quer saber se as mesmas disposições conferem, em consequência, o direito de residência ao progenitor em questão.

17
Por conseguinte, há que apreciar as disposições de direito comunitário relativas ao direito de residência no que respeita, sucessivamente, à situação de um menor como Catherine e depois à do progenitor nacional de um Estado terceiro, que tem a criança a seu cargo.

Quanto ao direito de residência de uma pessoa na situação de Catherine

Considerações preliminares

18
Desde já se rejeita a tese defendida pelos Governos irlandês e do Reino Unido, segundo a qual uma pessoa que se encontre na situação de Catherine não pode invocar o benefício das disposições de direito comunitário relativas à livre circulação e residência de pessoas pelo simples facto de a interessada nunca se ter deslocado de um Estado‑Membro para outro Estado‑Membro.

19
Com efeito, a situação do nacional de um Estado‑Membro que nasceu no Estado‑Membro de acolhimento e que não fez uso do direito à livre circulação entre Estados‑Membros não pode, só por isso, ser equiparada a uma situação puramente interna que priva o referido nacional de beneficiar no Estado‑Membro de acolhimento das disposições de direito comunitário relativas à livre circulação e residência das pessoas (v., nesse sentido, nomeadamente, acórdão de 2 de Outubro de 2003, Garcia Avello, C‑148/02, Colect., p. I‑11613, n.os 13 e 27).

20
Por outro lado, ao contrário do que sustenta o Governo irlandês, uma criança de tenra idade pode invocar os direitos de livre circulação e residência garantidos pelo direito comunitário. A aptidão, por parte de nacional de um Estado‑Membro, para ser titular dos direitos garantidos pelas disposições do Tratado e do direito derivado relativas à livre circulação de pessoas não pode estar subordinada à condição de o interessado ter atingido a idade exigida para ter a capacidade jurídica para exercer, por si próprio, os referidos direitos [v., neste sentido, no contexto do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), acórdãos de 15 de Março de 1989, Echternach e Moritz, 389/87 e 390/87, Colect., p. 723, n.° 21, e de 17 de Setembro de 2002, Baumbast e R, C‑413/99, Colect., p. I‑7091, n.os 52 a 63, e, quanto ao artigo 17.° CE, acórdão Garcia Avello, já referido, n.° 21]. Além disso, como o advogado‑geral observou nos n.os 47 a 52 das suas conclusões, não resulta da letra nem das finalidades prosseguidas pelos artigos 18.° CE e 49.° CE e pelas Directivas 73/148 e 90/364 que o próprio gozo dos direitos objecto dessas disposições esteja subordinado à condição de se ter uma idade mínima.

A Directiva 73/148

21
O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma pessoa que se encontre na situação de Catherine pode invocar as disposições da Directiva 73/148 para residir, de modo duradouro, no Reino Unido, enquanto beneficiária de serviços de puericultura prestados contra remuneração.

22
De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as disposições relativas à livre prestação de serviços não visam a situação do nacional de um Estado‑Membro que estabelece a sua residência principal no território de um outro Estado‑Membro com o objectivo de beneficiar de prestações de serviços durante um período indeterminado (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 15 de Outubro de 1988, Steymann, 196/87, Colect., p. 659). Ora, isto é precisamente o que sucede no processo principal, relativamente aos serviços de puericultura a que aludiu o órgão jurisdicional de reenvio.

23
Quanto aos serviços médicos prestados temporariamente a Catherine, refira‑se que, de acordo com o artigo 4.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Directiva 73/148, o direito de residência de que goza, por força da livre prestação de serviços, o beneficiário dos serviços prestados, corresponde à duração da prestação em questão. Por conseguinte, a referida directiva não pode servir de fundamento a um direito de residência por tempo indeterminado tal como o que é objecto do litígio no processo principal.

O artigo 18.° CE e a Directiva 90/364

24
Uma vez que Catherine não pode invocar a Directiva 73/148 para residir de modo duradouro no Reino Unido, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se um direito de residência de longa duração em benefício de Catherine pode ter fundamento no artigo 18.° CE e na Directiva 90/364, que garante, em determinadas condições, esse direito aos nacionais dos Estados‑Membros que dele não beneficiam ao abrigo de outras disposições de direito comunitário e aos membros das respectivas famílias.

25
Nos termos do artigo 17.°, n.° 1, CE, é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. O estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros (v., nomeadamente, acórdão Baumbast e R, já referido, n.° 82).

26
No que respeita ao direito de residir no território dos Estados‑Membros previsto no artigo 18.°, n.° 1, CE, há que referir que este é directamente reconhecido a qualquer cidadão da União por uma disposição clara e precisa do Tratado. Simplesmente com base na sua qualidade de nacional de um Estado‑Membro e, portanto, de cidadã da União, Catherine tem o direito de invocar o artigo 18.°, n.° 1, CE. Este direito de os cidadãos da União residirem no território de outro Estado‑Membro é reconhecido sem prejuízo das limitações e condições previstas pelo Tratado e pelas disposições adoptadas em sua aplicação (v., nomeadamente, acórdão Baumbast e R, já referido, n.os 84 e 85).

27
No que respeita às referidas limitações e condições, o artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 90/364 prevê que os Estados‑Membros podem exigir aos nacionais de um Estado‑Membro que pretendem beneficiar do direito de residir no seu território que disponham, para si próprios e para as suas famílias, de um seguro de doença que cubra todos os riscos no Estado‑Membro de acolhimento e de recursos suficientes para evitar que se tornem, durante a sua permanência, uma sobrecarga para a assistência social do Estado‑Membro de acolhimento.

28
Resulta da decisão de reenvio que Catherine dispõe, em simultâneo, de um seguro de doença e de recursos, fornecidos pela sua mãe, suficientes para evitar que se torne uma sobrecarga para a assistência social do Estado‑Membro de acolhimento.

29
A objecção dos Governos irlandês e do Reino Unido de que a condição relativa à existência de recursos suficientes significa que o próprio interessado deve, ao contrário do que sucede com Catherine, dispor desses recursos sem que possa invocar, para esse efeito, os recursos de um membro da família que o acompanha, como M. L. Chen, é improcedente.

30
Segundo a própria redacção do artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 90/364, basta que os nacionais dos Estados‑Membros «dispo[nham]» dos recursos necessários, sem que essa disposição contenha a menor exigência quanto à proveniência dos mesmos.

31
Esta interpretação impõe‑se, na medida em que as disposições que consagram um princípio fundamental como o da livre circulação de pessoas devem ser interpretadas amplamente.

32
Além do mais, as limitações e condições referidas no artigo 18.° CE e previstas na Directiva 90/364 inspiram‑se na ideia de que o exercício do direito de residência dos cidadãos da União pode ser subordinado aos interesses legítimos dos Estados‑Membros. Assim, embora resulte do quarto considerando da referida directiva que os beneficiários do direito de residência não devem constituir uma sobrecarga «não razoável» para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, o Tribunal referiu, todavia, que a aplicação das referidas limitações e condições deve ser feita respeitando os limites impostos pelo direito comunitário e em conformidade com o princípio da proporcionalidade (v., nomeadamente, acórdão Baumbast e R, já referido, n.os 90 e 91).

33
Uma interpretação da condição relativa ao carácter suficiente dos recursos, na acepção da Directiva 90/364, como a que é sugerida pelos Governos irlandês e do Reino Unido, adicionaria àquela condição, tal como se encontra formulada nesta directiva, uma exigência relativa à proveniência dos recursos que constituiria uma ingerência desproporcionada no exercício do direito fundamental de livre circulação e residência garantido pelo artigo 18.° CE, na medida em que não é necessária à concretização do objectivo prosseguido, ou seja, a protecção das finanças públicas dos Estados‑Membros.

34
O Governo do Reino Unido sustenta, por último, que as recorrentes no processo principal não podem prevalecer‑se das disposições comunitárias em causa, na medida em que a deslocação de M. L. Chen à Irlanda do Norte, para que a sua filha adquirisse a nacionalidade de um outro Estado‑Membro, constitui uma tentativa para invocar, abusivamente, normas de direito comunitário. Os objectivos prosseguidos por essas disposições comunitárias não são alcançados no caso em que um nacional de um Estado terceiro, pretendendo residir num Estado‑Membro, sem no entanto se deslocar ou pretender deslocar‑se de um Estado‑Membro para outro, se organiza para dar à luz uma criança numa parte do território do Estado‑Membro de acolhimento, na qual outro Estado‑Membro aplica as suas regras de aquisição da nacionalidade assentes no direito do solo. É jurisprudência assente que os Estados‑Membros têm legitimidade para tomar medidas destinadas a impedir que os particulares obtenham abusivamente vantagens das disposições de direito comunitário ou que tentem, à custa das facilidades criadas pelo Tratado, subtrair‑se abusivamente à aplicação da sua legislação nacional. Esta regra, que está de acordo com o princípio do abuso de direito, foi reafirmada pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 9 de Março de 1999, Centros (C‑212/97, Colect., p. I‑1459).

35
Esta argumentação é igualmente improcedente.

36
É certo que M. L. Chen reconhece que a sua residência no Reino Unido tinha por objectivo criar as condições que permitiriam à sua filha nascitura adquirir a nacionalidade de outro Estado‑Membro para efeitos de obter, em consequência, para a criança e para si própria, o direito de residência de longa duração no Reino Unido.

37
Todavia, a definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade é, nos termos do direito internacional, da competência de cada Estado‑Membro, que deve exercê‑la no respeito do direito comunitário (v., nomeadamente, acórdãos de 7 de Julho de 1992, Micheletti e o., C‑369/90, Colect., p. I‑4239, n.° 10, e de 20 de Fevereiro de 2001, Kaur, C‑192/99, Colect., p I‑1237, n.° 19).

38
Nenhuma das partes que apresentou observações no Tribunal pôs em causa a legalidade da aquisição da nacionalidade irlandesa por Catherine nem o seu carácter efectivo.

39
Além disso, não cabe a um Estado‑Membro restringir os efeitos da atribuição da nacionalidade de outro Estado‑Membro, exigindo um requisito suplementar para o reconhecimento dessa nacionalidade com vista ao exercício das liberdades fundamentais previstas pelo Tratado (v., nomeadamente, acórdãos, já referidos, Micheletti e o., n.° 10, e Garcia Avello, n.° 28).

40
Ora era precisamente isso que sucederia se o Reino Unido pudesse recusar aos nacionais de outros Estados‑Membros como Catherine o benefício de uma liberdade fundamental garantida pelo direito comunitário, pelo simples motivo de a aquisição da nacionalidade de um Estado‑Membro se destinar, na realidade, a permitir a obtenção, por um nacional de um Estado terceiro, do direito de residência ao abrigo do direito comunitário.

41
Nestes termos, deve responder‑se que o artigo 18.° CE e a Directiva 90/364 conferem, em circunstâncias como as do processo principal, ao nacional de um Estado‑Membro, menor, de tenra idade, abrangido por um seguro de doença adequado e a cargo de um dos progenitores, por sua vez nacional de um Estado terceiro, cujos recursos são suficientes para que o primeiro não se torne uma sobrecarga para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, o direito a residir por tempo indeterminado no território deste último Estado.

Quanto ao direito de residência de uma pessoa na situação de M. L. Chen

42
O artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 90/364, que garante aos ascendentes do titular do direito de residência «que se encontrem a cargo [deste]», independentemente da sua nacionalidade, o direito de se instalarem com o referido titular, não pode conferir o direito de residência ao nacional de um Estado terceiro que se encontre na situação de M. L. Chen, nem devido às ligações afectivas entre a mãe e a sua filha nem pelo motivo de o direito de entrada e de residência no Reino Unido por parte da mãe depender do direito de residência dessa criança.

43
Com efeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualidade de membro da família «a cargo» do titular resulta de uma situação de facto caracterizada pela circunstância de o sustento material do membro da família ser assegurado pelo titular do direito de residência (v., neste sentido, a propósito do artigo 10.° do Regulamento n.° 1612/68, acórdão de 18 de Junho de 1987, Lebon, 316/85, Colect., p. 2811, n.os 20 a 22).

44
Num caso como o do processo principal, é precisamente a situação inversa que se apresenta, na medida em que o titular do direito de residência está a cargo de um nacional de um Estado terceiro que efectivamente o tem à sua guarda e o deseja acompanhar. Nestes termos, M. L. Chen não pode invocar a qualidade de ascendente «a cargo» de Catherine, na acepção da Directiva 90/364, com vista a beneficiar do direito de residência no Reino Unido.

45
Em contrapartida, a recusa de permitir ao progenitor, nacional de um Estado‑Membro ou de um Estado terceiro, que tem efectivamente à sua guarda uma criança à qual o artigo 18.° CE e a Directiva 90/364 reconhecem o direito de residência, residir com essa criança no Estado‑Membro de acolhimento, privaria de qualquer efeito útil o direito de residência deste último. Com efeito, é manifesto que o gozo do direito de residência por um criança de tenra idade implica necessariamente que essa criança tem o direito de ser acompanhada pela pessoa que efectivamente a tem à sua guarda e, portanto, que essa pessoa esteja em condições de residir com ela no Estado‑Membro de acolhimento durante essa residência (v., mutatis mutandis, quanto ao artigo 12.° do Regulamento n.° 1612/68, acórdão Baumbast e R, já referido, n.os  71 a 75).

46
Por este único motivo, deve responder‑se que, quando o artigo 18.° CE a Directiva 90/364 conferem um direito de residência de duração indeterminada no Estado‑Membro de acolhimento a um nacional de outro Estado‑Membro, menor, de tenra idade, como sucede no caso em apreço, essas mesmas disposições permitem ao progenitor que efectivamente tem esse nacional à sua guarda residir com este último no Estado‑Membro de acolhimento.

47
Por conseguinte, há que responder ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 18.° CE e a Directiva 90/364 conferem, em circunstâncias como as do processo principal, ao nacional de um Estado‑Membro, menor, de tenra idade, abrangido por um seguro de doença adequado e a cargo de um dos progenitores, por sua vez nacional de um Estado terceiro, cujos recursos são suficientes para que o primeiro não se torne uma sobrecarga para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, o direito a residir por tempo indeterminado no território deste último Estado. Neste caso, essas mesmas disposições permitem ao progenitor que efectivamente tem esse nacional à sua guarda residir com este último no Estado‑Membro de acolhimento.


Quanto às despesas

48
Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelos demais intervenientes que apresentaram observações ao Tribunal não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Tribunal Pleno) declara:

O artigo 18.° CE e a Directiva 90/364/CEE do Conselho, de 28 de Junho de 1990, relativa ao direito de residência, conferem, em circunstâncias como as do processo principal, ao nacional de um Estado‑Membro, menor, de tenra idade, abrangido por um seguro de doença adequado e a cargo de um dos progenitores, por sua vez nacional de um Estado terceiro, cujos recursos são suficientes para que o primeiro não se torne uma sobrecarga para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, o direito a residir por tempo indeterminado no território deste último Estado. Neste caso, essas mesmas disposições permitem ao progenitor que efectivamente tem esse nacional à sua guarda residir com este último no Estado‑Membro de acolhimento.

Assinaturas.


1
Língua do processo: inglês.