Processos apensos C‑183/02 P e C‑187/02 P

Daewoo Electronics Manufacturing España SA (Demesa) e Territorio Histórico de Álava - Diputacíon Foral de Álava

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Auxílios de Estado – Medidas fiscais – Confiança legítima – Fundamentos novos»

Sumário do acórdão

1.        Auxílios concedidos pelos Estados – Recuperação de um auxílio ilegal – Auxílio concedido em violação das regras de procedimento do artigo 93.° do Tratado (actual artigo 88.° CE) – Eventual confiança legítima dos beneficiários – Protecção – Condições e limites

[Tratado CE, artigo 93.°, n.° 3 (actual artigo 88.°, n.° 3, CE)]

2.        Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Fundamento apresentado pela primeira vez no âmbito do recurso – Inadmissibilidade

(Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.°)

1.        Tendo em conta o carácter imperativo do controlo dos auxílios de Estado efectuado pela Comissão nos termos do artigo 93.° do Tratado (actual artigo 88.° CE), as empresas beneficiárias de um auxílio só podem, em princípio, ter uma confiança legítima na regularidade dele quando tenha sido concedido no respeito pelo processo previsto no referido artigo, e um operador económico diligente deve normalmente estar em condições de se assegurar de que esse processo foi respeitado. Em especial, quando um auxílio é concedido sem notificação prévia à Comissão, sendo assim ilegal por força do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado, o beneficiário do auxílio não pode ter, nesse momento, uma confiança legítima na regularidade da sua concessão.

(cf. n.os 44, 45)

2.        Permitir a uma parte invocar no Tribunal de Justiça, pela primeira vez, fundamentos que não invocou no Tribunal de Primeira Instância equivaleria a permitir‑lhe apresentar ao Tribunal de Justiça, cuja competência para julgar recursos em segunda instância é limitada, um litígio com um objecto mais lato do que o submetido ao Tribunal de Primeira Instância. No âmbito de um recurso em segunda instância, a competência do Tribunal de Justiça encontra‑se limitada à apreciação da solução legal dada aos fundamentos debatidos em primeira instância.

(cf. n.° 59)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
11 de Novembro de 2004(1)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Auxílios de Estado – Medidas fiscais – Confiança legítima – Fundamentos novos»

Nos processos apensos C‑183/02 P e C‑187/02 P,que têm por objecto dois recursos nos termos do artigo 49.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça, entrados, respectivamente, em 15 e 16 de Maio de 2002,

Daewoo Electronics Manufacturing España SA (Demesa), com sede em Vitoria (Espanha), representada por A. Creus Carreras e B. Uriarte Valiente, abogados,

recorrente no processo C‑183/02 P,

Territorio Histórico de Álava – Diputación Foral de Álava, representado por A. Creus Carreras, B. Uriarte Valiente e Bravo‑Ferrer Delgado, abogados,

recorrente no processo C‑187/02 P,

apoiado porComunidad Autónoma del País Vasco, representada por E. Garayar Gutiérrez, abogado,

interveniente no presente recurso,

sendo as outras partes no processo:

Comissão das Comunidades Europeias, representada por F. Santaolalla Gadea e J. L. Buendía Sierra, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida em primeira instância,

Asociación Nacional de Fabricantes de Electrodomésticos de Línea Blanca (ANFEL), com sede em Madrid (Espanha),eConseil européen de la construction d'appareils domestiques (CECED), com sede em Bruxelas (Bélgica),

intervenientes em primeira instância,



O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),,



composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, C. Gulmann (relator) e N. Colneric, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,
secretário: M. Múgica Arzamendi, administradora principal,

visto os autos e após a audiência de 11 de Março de 2004,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de Maio de 2004,

profere o presente



Acórdão



1
Pelos presentes recursos, a Daewoo Electronics Manufacturing España SA (a seguir «Demesa») e o Territorio Histórico de Álava – Diputación Foral de Álava (a seguir «Territorio Histórico de Álava») pedem a anulação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 6 de Março de 2002, Diputación Foral de Álava e o./Comissão (T‑127/99, T‑129/99 e T‑148/99, Colect., p. II‑1275, a seguir «acórdão recorrido»), pelo qual esse Tribunal anulou parcialmente a Decisão 1999/718/CE da Comissão, de 24 de Fevereiro de 1999, relativa ao auxílio estatal concedido pela Espanha a favor da Daewoo Electronics Manufacturing España SA (Demesa) (JO L 292, p. 1, a seguir «decisão impugnada»), e, quanto ao mais, negou provimento aos recursos de anulação interpostos contra essa decisão.


Quadro jurídico

2
O quadro fiscal em vigor no País Basco espanhol (a seguir «País Basco») depende do regime de concertação económica instituído pela Lei espanhola n.° 12/1981, de 13 de Maio de 1981, posteriormente alterada pela Lei n.° 38/1997, de 4 de Agosto de 1997.

3
Nos termos desta legislação, a Diputación Foral de Álava pode, em determinadas condições, organizar o regime fiscal aplicável no seu território.

4
A este título, adoptou, nomeadamente, uma medida fiscal sob a forma de um crédito fiscal de 45% do montante do investimento (a seguir «crédito fiscal de 45%» ou «medida fiscal controvertida»).

5
A sexta disposição adicional da Norma Foral n.° 22/1994, de 20 de Dezembro de 1994, relativa à execução do orçamento do Territorio Histórico de Álava para o ano de 1995 (Boletín Oficial del Territorio Histórico de Álava, n.° 5, de 13 de Janeiro de 1995), tem a seguinte redacção:

«Os investimentos em imobilizações corpóreas novas, efectuados entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 1995, que excedam 2 500 milhões de ESP segundo o Acordo da Diputación Foral de Álava, beneficiarão de um crédito fiscal de 45% do montante do investimento fixado pela Diputación Foral de Álava, aplicável ao montante final do imposto a pagar.

A dedução não aplicada por insuficiência de imposto pode ser aplicada nos nove anos seguintes ao ano em que foi celebrado o Acordo da Diputación Foral de Álava.

Este Acordo da Diputación Foral de Álava fixará os prazos e restrições aplicáveis em cada caso.

Os benefícios reconhecidos ao abrigo da presente disposição são incompatíveis com qualquer outro benefício fiscal existente em razão destes mesmos investimentos.

A Diputación Foral de Álava determinará igualmente a duração do processo de investimento, que poderá incluir investimentos realizados durante a fase de preparação do projecto que está na base dos investimentos.»

6
A validade desta disposição foi prorrogada quanto aos anos de 1996 e de 1997, tendo o crédito fiscal de 45% sido mantido, sob uma forma alterada, quanto aos anos de 1998 e 1999, por Normas Forales posteriores.


Factos na origem do litígio

7
Em 13 de Março de 1996, as autoridades bascas e a Daewoo Electronics Co. Ltd (a seguir «Daewoo Electronics») assinaram um acordo de cooperação pelo qual esta se comprometeu a criar uma fábrica de produção de frigoríficos no País Basco. Por sua vez, as autoridades bascas comprometeram‑se a apoiar este projecto mediante a concessão de subvenções.

8
A empresa criada pela Daewoo Electronics ficou obrigada a redigir um plano de actuação empresarial cuja aprovação pelas autoridades bascas constituía uma condição prévia à execução do acordo. Este plano, relativo ao período compreendido entre 1996 e 2001, foi apresentado às autoridades bascas em Setembro de 1996. Previa um investimento de 11 835 600 000 ESP e a criação de 745 postos de trabalho.

9
Em 7 de Outubro de 1996, foi constituída a Demesa, sociedade de direito espanhol filial a 100% da Daewoo Electronics.

10
Nos termos do Acordo n.° 737/1997, de 21 de Outubro de 1997, da Diputación Foral de Álava, a Demesa obteve o crédito fiscal de 45% previsto na sexta disposição adicional da Norma Foral n.° 22/1994.

11
Em 11 de Junho de 1996, a Asociación Nacional de Fabricantes de Electrodomésticos de Línea Blanca (ANFEL) dirigiu à Comissão das Comunidades Europeias uma denúncia contra o Reino de Espanha. Acusava este Estado‑Membro de ter concedido um auxílio à Demesa sob a forma, nomeadamente, de medidas fiscais. O Conseil européen de la construction d’appareils domestiques (CECED) dirigiu à Comissão uma denúncia no mesmo sentido.

12
Após uma troca de correspondência, a Comissão, por carta de 16 de Dezembro de 1997, informou as autoridades espanholas da sua decisão de dar início ao procedimento previsto no artigo 93.°, n.° 2, do Tratado CE (que passou a artigo 88.°, n.° 2, CE) no que respeita, em especial, ao crédito fiscal de 45% concedido à Demesa.

13
No termo do procedimento, a Comissão adoptou a decisão impugnada.

14
No artigo 1.°, alínea d), desta decisão, o crédito fiscal de 45% concedido à Demesa foi qualificado de auxílio estatal incompatível com o mercado comum.

15
No artigo 2.° da mesma decisão, a Comissão ordenou ao Reino de Espanha que suprimisse o benefício decorrente do auxílio em causa, ilegalmente concedido ao seu beneficiário.


Os recursos interpostos para o Tribunal de Primeira Instância e o acórdão recorrido

16
Por petições que deram entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância, respectivamente, em 25 de Maio, 26 de Maio e 18 de Junho de 1999, o Territorio Histórico de Álava (processo T‑127/99), a Comunidad Autónoma del País Vasco e a Gasteizko Industria Lurra SA (processo T‑129/99) bem como a Demesa (processo T‑148/99) interpuseram recursos contra a Comissão.

17
Cada um destes recorrentes pediu a anulação, total ou parcial, da decisão impugnada.

18
Por despachos do presidente da Terceira Secção do Tribunal de Primeira Instância de 25 de Fevereiro de 2000, a Asociación Nacional de Fabricantes de Electrodomésticos de Línea Blanca e o Conseil européen de la construction d’appareils domestiques foram admitidos a intervir em apoio dos pedidos da Comissão.

19
Por despacho de 5 de Junho de 2001, os três processos foram apensos para efeitos da audiência e do acórdão.

20
Pelo acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância, nomeadamente:

negou provimento aos recursos do Territorio Histórico de Álava e da Demesa na parte em que se destinavam à anulação da decisão impugnada no que respeita ao crédito fiscal de 45%;

declarou inadmissíveis os recursos da Comunidad Autónoma del País Vasco e da Gasteizko Industria Lurra SA na parte em que se destinavam a obter a mesma anulação;

condenou cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas.


Os presentes recursos

21
Por despacho de 23 de Outubro de 2002, o Tribunal de Justiça admitiu a Comunidad Autónoma del País Vasco a intervir em apoio dos pedidos do Territorio Histórico de Álava.

22
Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2003, foi indeferido o pedido de intervenção em apoio dos pedidos da Demesa apresentado pelo Gobierno Foral de Navarra (Governo de Navarra).

23
A Demesa conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular o acórdão recorrido;

pronunciando‑se o próprio Tribunal de Justiça sobre o litígio, anular os artigos 1.°, alínea d), e 2.° da decisão impugnada;

subsidiariamente, remeter o processo ao Tribunal de Primeira Instância;

condenar a Comissão nas despesas do processo de primeira instância e nas do presente processo.

24
O Territorio Histórico de Álava conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular o acórdão recorrido;

pronunciar‑se sobre o litígio, anulando a decisão impugnada na parte relativa ao crédito fiscal de 45%;

subsidiariamente, remeter o processo ao Tribunal de Primeira Instância;

condenar a Comissão nas despesas do processo de primeira instância e nas do presente processo.

25
A Comunidad Autónoma del País Vasco conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular parcialmente o acórdão recorrido na medida em que considera que o crédito fiscal de 45% constitui um auxílio de Estado;

condenar a Comissão nas despesas do processo.

26
Tendo renunciado, na audiência, à questão prévia de inadmissibilidade contra o recurso interposto pelo Territorio Histórico de Álava, a Comissão conclui em definitivo, em cada um dos dois processos C‑183/02 P e C‑187/02 P, pedindo que o Tribunal se digne:

negar provimento ao recurso;

condenar a recorrente nas despesas.


Fundamentos de anulação do acórdão recorrido

27
Na sua petição, a Demesa aduzia cinco fundamentos de anulação do acórdão recorrido, assentes:

na qualificação errada da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado incompatível com o mercado comum;

na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

no erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao decidir que a medida controvertida não era um auxílio já existente;

na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

no erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao decidir que o princípio da protecção da confiança legítima não era aplicável.

28
Por requerimento entregue em 20 de Fevereiro de 2004, informou o Tribunal de Justiça de que mantinha apenas o fundamento assente no princípio da protecção da confiança legítima, renunciando aos demais fundamentos.

29
Na sua petição, o Territorio Histórico de Álava aduzia seis fundamentos de anulação do acórdão recorrido, assentes:

na qualificação errada da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado incompatível com o mercado comum;

na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

no erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao decidir que a medida controvertida não era um auxílio já existente;

na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

no erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao não ter reconhecido a existência de desvio de poder da Comissão;

na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto.

30
Por requerimento entregue em 20 de Fevereiro de 2004, informou o Tribunal de Justiça de que:

mantinha parcialmente os primeiro e segundo fundamentos assentes, respectivamente, na qualificação errada da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado incompatível com o mercado comum e na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

mantinha os seus quinto e sexto fundamentos assentes, respectivamente, na existência de desvio de poder e na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto;

renunciava aos demais fundamentos.


Quanto aos presentes recursos

31
Tendo as partes e o advogado‑geral sido ouvidos sobre este ponto, há que, por motivo de conexão, apensar os presentes processos para efeitos do acórdão, em conformidade com o artigo 43.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

Quanto ao fundamento extraído pela Demesa do princípio da protecção da confiança legítima

Argumentação das partes

32
No Tribunal de Primeira Instância, a Demesa invocou o princípio da protecção da confiança legítima. Fez referência à Decisão 93/337/CEE da Comissão, de 10 de Maio de 1993, relativa a um regime de incentivos fiscais ao investimento no País Basco (JO L 134, p. 25). Argumentou que esta decisão tinha qualificado de auxílios incompatíveis com o mercado comum, enquanto contrários ao artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE), créditos fiscais relativos a investimentos realizados. A Demesa sustentou que tinham sido adoptadas as disposições necessárias para adaptar a legislação regional à Decisão 93/337 e que a Comissão tinha dado o seu acordo quanto à solução adoptada. Deste modo, tanto as autoridades espanholas como a própria Comissão haviam considerado que o problema estava encerrado. Por esta razão, a Comissão nunca deu início ao processo relativo aos auxílios de Estado nem suscitou objecções quanto às normas fiscais similares seguidamente adoptadas. Criou, portanto, para a Demesa, bem como para qualquer operador sujeito à regulamentação regional em causa, a expectativa legítima de que as medidas fiscais adoptadas pela Diputación Foral de Álava estavam autorizadas pela Comissão, não comportando qualquer violação do artigo 52.° do Tratado.

33
A Demesa acusa o Tribunal de Primeira Instância de, nos n.os 234 e seguintes do acórdão recorrido, não ter tido em conta o seu fundamento pelo motivo de a medida fiscal controvertida não ter sido objecto de notificação prévia, contrariamente ao exigido pelo artigo 93.°, n.° 3, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 3, CE).

34
Segundo a Demesa, no contexto da política seguida pela Comissão no momento do pedido de aplicação do crédito fiscal de 45%, era excessivo exigir a um operador que verificasse que a medida fiscal que lhe era aplicável reunia as condições do artigo 92.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87.° CE) e devia, em consequência, ser notificada à Comissão.

35
A Demesa tinha, pois, razão quando invocou o princípio da protecção da confiança legítima.

36
A recorrente sustenta que a declaração de incompatibilidade contida na Decisão 93/337 se baseou na constatação da violação do artigo 52.° do Tratado, e não também, como considerou o Tribunal de Primeira Instância no n.° 237 do acórdão recorrido, na verificação da violação da regulamentação comunitária em matéria de auxílios de Estado.

37
De qualquer modo, as medidas postas em causa na Decisão 93/337 foram qualificadas de auxílios de Estado com fundamento em três critérios de selectividade (selectividade regional, sectorial e material) que, segundo a Demesa, não podiam ter sido utilizados no que respeita à medida fiscal controvertida. A referida decisão não podia, portanto, ser invocada para sustentar que a Demesa deveria ter considerado que o crédito fiscal de 45% constituía um auxílio de Estado e devia, consequentemente, ser notificado à Comissão.

38
A Comissão alega que, quando o crédito fiscal foi concedido à Demesa, determinados elementos revelavam claramente que estavam em causa auxílios de Estado.

39
Em especial, a Decisão 93/337 considerou que medidas comparáveis constituíam auxílios incompatíveis com o mercado comum. Esta declaração de incompatibilidade não esteve unicamente ligada a uma violação da liberdade de estabelecimento mas, como o Tribunal de Primeira Instância referiu no n.° 237 do acórdão recorrido, também à violação das diferentes disciplinas dos auxílios.

40
Além disso, é evidente que a Decisão 93/337 só podia basear‑se na constatação prévia de que as medidas em causa tinham a natureza de auxílios de Estado.

41
Apesar disso, a Demesa não verificou se os auxílios que recebia tinham sido autorizados pela Comissão.

42
De qualquer modo, na ausência de notificação prévia da medida fiscal controvertida, a recorrente não podia argumentar com base numa inacção da Comissão.

43
Deste modo, foi com razão que o Tribunal de Primeira Instância afastou a existência de uma confiança legítima.

Apreciação do Tribunal de Justiça

44
Há que recordar, por um lado, que, tendo em conta o carácter imperativo do controlo dos auxílios de Estado efectuado pela Comissão nos termos do artigo 93.° do Tratado, as empresas beneficiárias de um auxílio só podem, em princípio, ter uma confiança legítima na regularidade dele quando tenha sido concedido no respeito pelo processo previsto no referido artigo e, por outro, que um operador económico diligente deve normalmente estar em condições de se assegurar de que esse processo foi respeitado (acórdãos de 20 de Setembro de 1990, Comissão/Alemanha, C‑5/89, Colect., p. I‑3437, n.° 14; de 14 de Janeiro de 1997, Espanha/Comissão, C‑169/95, Colect., p. I‑135, n.° 51, e de 20 de Março de 1997, Alcan Deutschland, C‑24/95, Colect., p. I‑1591, n.° 25).

45
Em especial, quando um auxílio é concedido sem notificação prévia à Comissão, sendo assim ilegal por força do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado, o beneficiário do auxílio não pode ter, nesse momento, uma confiança legítima na regularidade da sua concessão (v. acórdão Alcan Deutschland, já referido, n.os 30 e 31).

46
No caso vertente, o Tribunal de Primeira Instância declarou, no n.° 235 do acórdão recorrido, que não se contestava que o crédito fiscal de 45% fora instituído sem notificação prévia, em violação do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado.

47
No n.° 236 do acórdão recorrido, referindo‑se nomeadamente ao acórdão Comissão/Alemanha, já referido, deduziu correctamente desta constatação que o argumento assente no princípio da protecção da confiança legítima não podia ser acolhido.

48
No número seguinte do mesmo acórdão, declarou correctamente que esta argumentação da recorrente se baseava numa leitura errónea da Decisão 93/337. Com efeito, nesta decisão, como o Tribunal de Primeira Instância sublinhou, a Comissão qualificou os auxílios em causa de incompatíveis com o mercado comum não apenas por serem contrários ao artigo 52.° do Tratado, mas também, no ponto V da referida decisão, consagrado ao exame da possibilidade de admissão de uma das derrogações previstas no artigo 92.° do Tratado, por não respeitarem as diferentes disciplinas dos auxílios.

49
Há que acrescentar que, mais precisamente, na Decisão 93/337, a Comissão:

afirmou que os auxílios em causa compreendiam um crédito fiscal de 20% dos investimentos (ponto I);

considerou que não estavam preenchidas, para efeitos da aplicação da derrogação prevista no artigo 92.°, n.° 3, alínea c), do Tratado, as condições referidas no enquadramento comunitário dos auxílios estatais às pequenas e médias empresas (PME), de 19 de Agosto de 1992 (JO C 213, p. 2), enquadramento que, após ter definido, no ponto 2.2, os componentes da categoria das pequenas e médias empresas, precisava, no ponto 4.1, quinto parágrafo, que a Comissão decidira só permitir os auxílios ao investimento até ao nível máximo de 15% do investimento para as pequenas empresas e de 7,5% do investimento para as outras empresas da mesma categoria (ponto V);

ordenou às autoridades espanholas que velassem por que os auxílios fossem concedidos, nomeadamente, nas condições previstas pelo enquadramento comunitário dos auxílios às pequenas e médias empresas (artigo 1.°, n.° 4).

50
Verifica‑se assim que a Demesa não podia deduzir da Decisão 93/337 que um crédito fiscal de 45%, concedido a uma empresa de uma dimensão tal que lhe permitia proceder ao investimento mínimo de 2 500 milhões de ESP exigido pela sexta disposição adicional da Norma Foral n.° 22/1994, não poderia ser qualificado de auxílio na acepção do artigo 92.° do Tratado.

51
Tendo em conta o conteúdo da Decisão 93/337, a recorrente não podia portanto reivindicar a possibilidade, que não pode ser excluída (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 16), de o beneficiário de um auxílio ilegal invocar circunstâncias excepcionais susceptíveis de fundar legitimamente a sua confiança na natureza regular desse auxílio.

52
Quanto à alegada inacção da Comissão, esta invoca com razão que qualquer inacção aparente é desprovida de significado quando um regime de auxílio não lhe foi notificado.

53
Daqui resulta que o fundamento extraído pela Demesa do princípio da protecção da confiança legítima deve ser considerado improcedente.

Quanto aos fundamentos extraídos pelo Territorio Histórico de Álava, por um lado, da qualificação errada da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado incompatível com o mercado comum e, por outro, da falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto

Argumentação das partes

54
No Tribunal de Primeira Instância, o Territorio Histórico de Álava sustentou que a Comissão violou o artigo 92.° do Tratado ao considerar auxílio de Estado incompatível com o mercado comum o crédito fiscal de 45%, com o fundamento de que a Norma Foral n.° 22/1994 constituía uma medida específica que favorecia «determinadas empresas ou determinadas produções». Alegou que, em qualquer caso, o eventual carácter selectivo desta medida se justificava pela natureza e economia do sistema fiscal.

55
O Territorio Histórico de Álava acusa o Tribunal de Primeira Instância de, nos n.os 148 a 170 do acórdão recorrido, ter recusado esta argumentação, tendo assim cometido um erro de direito na aplicação do artigo 92.° do Tratado.

56
No requerimento que entregou em 20 de Fevereiro de 2004, afirma que mantém o seu fundamento de anulação, mas reportado a uma fase anterior à da qualificação da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado. Alega que, no decurso do processo em primeira instância, sustentou que o crédito fiscal de 45% estava excluído do domínio de aplicação do artigo 92.° do Tratado na medida em que, enquanto medida fiscal, se justificava a fim de atingir um objectivo de política económica. O Tribunal de Primeira Instância considerou que isto não excluía a qualificação como auxílio de Estado incompatível com o Tratado. Esta conclusão está errada, uma vez que foi formulada num mau momento do processo interpretativo. Na realidade, deveria ter sido considerado, a montante de uma eventual questão de qualificação como auxílio de Estado, que uma medida fiscal adoptada anteriormente às conclusões do Conselho «Ecofin» de 1 de Dezembro de 1997 em matéria de política fiscal (JO 1998, C 2, p. 1) e à comunicação da Comissão de 10 de Dezembro de 1998 sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas (JO C 384, p. 3) estava excluída do controlo dos auxílios de Estado. Com efeito, uma vez que se inscrevia no quadro da política industrial aplicada pelo Estado‑Membro em causa, tal medida estava excluída ab initio do domínio de aplicação do artigo 92.° do Tratado.

57
No mesmo requerimento, o Territorio Histórico de Álava acrescenta que mantém também o seu fundamento assente na falta de fundamentação do acórdão recorrido no que respeita à questão de direito suscitada.

58
A Comissão considera que, tal como foi mantido, o fundamento assente na qualificação errada da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado incompatível com o mercado comum continua a exigir, não obstante a modificação da sua apresentação, o exame pelo Tribunal de Justiça da questão da natureza de auxílio dessa medida. Com efeito, a análise do artigo 92.° do Tratado não abrange qualquer fase anterior à do debate sobre a qualificação como auxílio de Estado, uma vez que a natureza fiscal de uma medida não é pertinente para determinar se se trata ou não de um auxílio. Além disso, as conclusões do Conselho «Ecofin» de 1 de Dezembro de 1997 em matéria de política fiscal e o código de conduta a elas anexo não podem alterar a repartição de competências estabelecida no Tratado. Nestas condições, ao contestar a competência da Comissão, o Territorio Histórico de Álava persiste em pôr em causa a qualificação da medida fiscal controvertida como auxílio de Estado.

Apreciação do Tribunal de Justiça

59
Há que recordar que permitir a uma parte invocar no Tribunal de Justiça, pela primeira vez, fundamentos que não invocou no Tribunal de Primeira Instância equivaleria a permitir‑lhe apresentar ao Tribunal de Justiça, cuja competência para julgar recursos em segunda instância é limitada, um litígio com um objecto mais lato do que o submetido ao Tribunal de Primeira Instância. No âmbito de um recurso em segunda instância, a competência do Tribunal de Justiça encontra‑se limitada à apreciação da solução legal dada aos fundamentos debatidos em primeira instância (v., nomeadamente, acórdãos de 1 de Junho de 1994, Comissão/Brazzelli Lualdi e o., C‑136/92 P, Colect., p. I‑1981, n.° 59; de 28 de Maio de 1998, Deere/Comissão, C‑7/95 P, Colect., p. I‑3111, n.° 62, e de 10 de Abril de 2003, Hendrickx/Cedefop, C‑217/01 P, Colect., p. I‑3701, n.° 37).

60
No caso vertente, o Territorio Histórico de Álava não sustentou em primeira instância que:

a medida fiscal controvertida estava subtraída, enquanto tal, ao âmbito de aplicação do direito dos auxílios estatais;

o artigo 92.° do Tratado só se aplicava às disposições de direito fiscal desde as conclusões do Conselho «Ecofin» de 1 de Dezembro de 1997 em matéria de política fiscal e desde a comunicação da Comissão de 10 de Dezembro de 1998 sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas.

61
Na realidade, referiu‑se aos objectivos de política económica da medida fiscal controvertida no quadro do debate sobre a justificação desta pela natureza e pela economia do sistema fiscal, isto é, na fase do debate relativa à qualificação da referida medida como auxílio estatal incompatível com o mercado comum na acepção do artigo 92.° do Tratado.

62
O Tribunal de Primeira Instância examinou a argumentação correspondente nos n.os 167 e 168 do acórdão recorrido.

63
O argumento submetido ao Tribunal de Justiça no quadro do presente recurso, segundo o qual, em substância, a medida fiscal controvertida estava excluída ab initio, numa fase anterior do raciocínio jurídico, do domínio de aplicação do artigo 92.° do Tratado e, em consequência, do próprio controlo da Comissão, constitui portanto um fundamento apresentado pela primeira vez no quadro do presente recurso.

64
Este fundamento novo deve ser declarado inadmissível, tal como aquele que assenta na falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto à questão de direito suscitada, uma vez que o segundo fundamento é indissociável do primeiro.

Quanto aos fundamentos extraídos pelo Territorio Histórico de Álava, por um lado, do erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao não reconhecer a existência de desvio de poder e, por outro, da falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse ponto

Argumentação das partes

65
O Territorio Histórico de Álava afirma que alegou no Tribunal de Primeira Instância que a Comissão utilizara o procedimento dos auxílios de Estado, domínio em que dispõe de uma competência exclusiva e de amplos poderes, para realizar uma harmonização fiscal. Ora, uma tal harmonização depende, na realidade, do procedimento previsto nos artigos 101.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 96.° CE) e 102.° do Tratado CE (que passou a artigo 97.° CE), que confere competência ao Conselho da União Europeia.

66
O Territorio Histórico de Álava acusa o Tribunal de Primeira Instância de se ter limitado a:

recordar, no n.° 84 do acórdão de 6 de Março de 2002, Diputación Foral de Álava e o./Comissão (T‑92/00 e T‑103/00, Colect, p. II‑1385), relativo a um auxílio concedido a uma outra empresa, a jurisprudência segundo a qual uma decisão só está ferida de desvio de poder se se verificar, com base em indícios objectivos, pertinentes e concordantes, ter sido tomada com a finalidade exclusiva, ou pelo menos determinante, de atingir objectivos diferentes dos invocados;

referir que a existência de uma harmonização de facto realizada pela decisão impugnada não estava demonstrada.

67
A Comissão sustenta que o fundamento aduzido é manifestamente inadmissível, uma vez que não foi invocado no Tribunal de Primeira Instância.

68
Sublinha que, no acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância não se pronunciou sobre a questão de um eventual desvio de poder. Esse Tribunal examinou esta questão noutro acórdão, ou seja, o acórdão Disputación Foral de Álava e o./Comissão, já referido, proferido no mesmo dia que o acórdão recorrido.

Apreciação do Tribunal de Justiça

69
Deve declarar‑se que o Territorio Histórico de Álava não submeteu ao Tribunal de Primeira Instância, no quadro do processo de primeira instância que está na origem do presente recurso, um fundamento assente em desvio de poder.

70
Pelos fundamentos referidos no n.° 59 do presente acórdão, o fundamento examinado deve ser considerado inadmissível, enquanto fundamento novo, do mesmo modo que o fundamento assente em falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto a este ponto, uma vez que o segundo fundamento é indissociável do primeiro.

71
Resulta de todos os elementos que precedem que deve ser negado provimento aos recursos.


Quanto às despesas

72
Segundo o artigo 122.°, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, quando nega provimento a um recurso de decisão de primeira instância, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas.

73
Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, aplicável ao processo de recurso de decisão de primeira instância por força do artigo 118.° do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo os recorrentes sido vencidos, há que condená‑los a suportar, para além das suas próprias despesas, as efectuadas pela Comissão.

74
Em aplicação do artigo 69.°, n.° 4, terceiro parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, também aplicável ao processo de recurso de decisão de primeira instância por força do artigo 118.° do mesmo regulamento, há que decidir que a Comunidad Autónoma del País Vasco, interveniente em apoio dos pedidos do Territorio Histórico de Álava no processo C‑187/02 P, suportará as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)
Os processos C‑183/02 P e C‑187/02 P são apensos para efeitos do acórdão.

2)
É negado provimento aos recursos.

3)
Os recorrentes suportarão, além das suas próprias despesas, as efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias.

4)
A Comunidad Autónoma del País Vasco suportará as suas próprias despesas.

Assinaturas.


1
Língua do processo: espanhol.