Processo C‑168/02

Rudolf Kronhofer

contra

Marianne Maier e o.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Áustria)]

«Convenção de Bruxelas – Artigo 5.°, ponto 3 – Competência em matéria extracontratual – Lugar onde ocorreu o facto danoso – Prejuízo patrimonial sofrido na sequência da colocação de capitais noutro Estado contratante»

Sumário do acórdão

Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões – Competências especiais – Competência «em matéria extracontratual» – Lugar onde ocorreu o facto danoso – Conceito – Lugar do domicílio do requerente que sofreu um prejuízo patrimonial na sequência da colocação de capitais noutro Estado contratante – Exclusão

(Convenção de 27 de Setembro de 1968, artigo 5.°, ponto 3)

O artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante.

Efectivamente, o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» não pode ser interpretado de modo extensivo ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou um dano efectivamente ocorrido noutro lugar. Por um lado, esta interpretação faria depender a determinação do tribunal competente de circunstâncias incertas, sendo consequentemente contrária ao reforço da protecção jurídica das pessoas domiciliadas na Comunidade, que, permitindo ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado, constitui um dos objectivos da convenção. Por outro lado, seria na maior parte dos casos susceptível de fazer reconhecer a competência dos tribunais do domicílio do requerente, competência à qual a convenção não é favorável para além dos casos que expressamente prevê.

(cf. n.os 19-21, disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
10 de Junho de 2004(1)

«Convenção de Bruxelas – Artigo 5.°, ponto 3 – Competência em matéria extracontratual – Lugar onde ocorreu o facto danoso – Prejuízo patrimonial sofrido na sequência da colocação de capitais noutro Estado contratante»

No processo C-168/02,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pelo Oberster Gerichtshof (Áustria), destinado a obter, no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre

Rudolf Kronhofer

e

Marianne Maier,Christian Möller,Wirich Hofius,Zeki Karan,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO 304, p. 1, e – texto alterado – p. 77; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1) e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),,



composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, J.-P. Puissochet, J. N. Cunha Rodrigues (relator), R. Schintgen e N. Colneric juízes,

advogado-geral: P. Léger,
secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação de R. Kronhofer, por M. Brandauer, Rechtsanwalt,

em representação de M. Maier, por M. Scherbantie, Rechtsanwältin,

em representação de Z. Karan, por C. Ender, Rechtsanwalt,

em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

em representação do Governo alemão, por R. Wagner, na qualidade de agente,

em representação do Governo do Reino Unido, por K. Manji, na qualidade de agente, assistido por T. Ward, barrister,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, par A.-M. Rouchaud e W. Bogensberger, na qualidade de agentes,

ouvidas as alegações de R. Kronhofer, representado por M. Brandauer e R. Bickel, Rechtsanwälte, de Z. Karan, representado por C. Ender, e da Comissão, representada por A.-M. Rouchaud e W. Bogensberger, na audiência de 20 de Novembro de 2003,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 15 de Janeiro de 2004,

profere o presente



Acórdão



1
Por decisão de 9 de Abril de 2002, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de Maio de 2002, o Oberster Gerichtshof submeteu, nos termos do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 5.°, ponto 3, dessa convenção (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO 304, p. 1, e – texto alterado – p. 77; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1) e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «convenção»).

2
Esta questão foi suscitada no quadro de um processo que opõe R. Kronhofer, domiciliado na Áustria, a M. Maier, C. Möller, W. Hofius e Z. Karan (a seguir «requeridos no processo principal»), domiciliados na Alemanha, através do qual R. Kronhofer pretende obter uma indemnização pelos danos patrimoniais que alega ter sofrido em razão do comportamento delituoso dos requeridos no processo principal, enquanto gerentes ou consultores financeiros da sociedade Protectas Vermögensverwaltungs GmbH (a seguir «Protectas»), cuja sede se situa também na Alemanha.


Quadro jurídico

3
O artigo 2.°, primeiro parágrafo, da convenção dispõe:

«Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

4
Nos termos do artigo 5.°, ponto 3, da convenção:

«O requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante:

[...]

3)
Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso.»


O litígio do processo principal e a questão prejudicial

5
R. Kronhofer intentou no Landesgericht Feldkirch (Áustria) uma acção contra os requeridos no processo principal, destinada a obter uma indemnização pelos danos patrimoniais que alega ter sofrido em razão do comportamento delituoso destes.

6
Segundo ele, os requeridos no processo principal incitaram‑no, por telefone, a celebrar um contrato relativo a opções de compra de acções, sem o terem advertido dos riscos de uma tal operação. Por esta razão, R. Kronhofer transferiu, em Novembro e Dezembro de 1997, o montante global de 82 500 USD para uma conta de investimentos da Protectas, na Alemanha, montante que, de seguida, foi utilizado para tomar, na Bolsa de Londres, opções de compra altamente especulativas. A operação em causa traduziu‑se pela perda de uma parte da quantia transferida, pelo que R. Kronhofer apenas foi reembolsado de parte do capital que tinha investido.

7
Sustentou que a competência do Landesgericht Feldkirch resultava do artigo 5.°, ponto 3, da convenção, enquanto tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso, no caso o domicílio de R. Kronhofer.

8
Tendo esta acção sido julgada inadmissível, R. Kronhofer recorreu de tal decisão para o Oberlandesgericht Innsbruck (Áustria), que se declarou incompetente por motivo de o tribunal do lugar do domicílio não ser o «tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso», uma vez que nem o lugar do facto gerador nem o lugar da verificação do prejuízo se situam na Áustria.

9
Tendo sido interposto recurso de revista para o Oberster Gerichtshof, este considera que o Tribunal de Justiça ainda não decidiu a questão de saber se a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» deve ser interpretada de modo tão amplo que, no caso de um prejuízo puramente patrimonial que tenha afectado uma parte do património do lesado colocada noutro Estado contratante, englobe também o lugar do seu domicílio e, portanto, o do centro do seu património.

10
Considerando que a solução do litígio necessita da interpretação da convenção, o Oberster Gerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A expressão ‘lugar onde ocorreu o facto danoso’, constante do artigo 5.°, ponto 3, da convenção [...], deve interpretar‑se no sentido de que, em caso de danos puramente patrimoniais, ocorridos na sequência do investimento de parte do património do lesado, pode também compreender o lugar em que o lesado tem o seu domicílio, quando o investimento foi feito num outro Estado‑Membro da Comunidade?»


Quanto à questão prejudicial

11
Pela sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.°, ponto 3, da convenção deve ser interpretado no sentido de a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» poder abarcar o lugar do domicílio do requerente, onde se localiza «o centro do seu património», unicamente por ser aí que alegadamente sofreu um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante.

12
A título liminar, há que recordar que o sistema de atribuição das competências comuns previstas no título II da convenção se baseia na regra de princípio, enunciada no artigo 2.°, primeiro parágrafo, segundo a qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.

13
É só por derrogação a este princípio fundamental da competência dos tribunais do domicílio do requerido que a secção 2 do título II da convenção prevê alguns casos de atribuição de competências especiais, entre as quais a que consta do artigo 5.°, ponto 3, da convenção.

14
Estas regras definidoras de competências especiais são de interpretação estrita, não permitindo uma interpretação que vá além das hipóteses explicitamente consideradas pela convenção (v. acórdãos de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis, 189/87, Colect., p. 5565, n.° 19, e de 15 de Janeiro de 2004, Blijdenstein, C‑433/01, ainda não publicado na Colectânea, n.° 25).

15
Segundo jurisprudência assente, a regra enunciada no artigo 5.°, ponto 3, da convenção é fundada na existência de uma conexão particularmente estreita entre o litígio e tribunais diferentes dos do domicílio do requerido, que justifica uma atribuição de competência a esses tribunais por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (v., entre outros, acórdãos de 30 de Novembro de 1976, Bier, dito «Mines de potasse d'Alsace», 21/76, Colect., p. 677, n.° 11, e de 1 de Outubro de 2002, Henkel, C‑167/00, Colect., p. I‑8111, n.° 46).

16
O Tribunal de Justiça declarou ainda que, caso o lugar onde se situa o facto susceptível de implicar uma responsabilidade extracontratual não coincida com o lugar onde esse facto provocou o dano, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», que figura no artigo 5.°, ponto 3, da convenção, deve ser entendida no sentido de que se refere simultaneamente ao lugar onde o dano se verificou e ao lugar onde ocorreu o evento causal na origem deste dano, de modo que o requerido pode ser demandado, consoante a opção do requerente, perante o tribunal de um ou outro desses dois lugares (v., nomeadamente, acórdãos Mines de potasse d'Alsace, já referido, n.os  24 e 25, e de 5 de Fevereiro de 2004, DFDS Torline, C‑18/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 40).

17
Resulta da decisão de reenvio que o Oberster Gerichtshof considera que, no processo principal, tanto o lugar onde ocorreu o facto danoso como o lugar do evento causal se situam na Alemanha. A particularidade do caso vertente reside no facto de o prejuízo financeiro que o autor alegadamente sofreu noutro Estado contratante ter produzido um efeito simultâneo no conjunto do seu património.

18
Ora, como o advogado‑geral fez notar com razão no n.° 46 das suas conclusões, num tal caso nada justifica que se confira competência aos tribunais de um Estado contratante diferente daquele em cujo território se localizou tanto o facto gerador como a materialização do dano, ou seja, o conjunto dos elementos constitutivos da responsabilidade. Uma tal atribuição de competência não corresponderia a qualquer necessidade objectiva do ponto de vista da prova ou da organização do processo.

19
Como o Tribunal de Justiça já entendeu, o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» não pode ser interpretado de modo extensivo ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou um dano efectivamente ocorrido noutro lugar (v. acórdão de 19 de Setembro de 1995, Marinari, C‑364/93, Colect., p. I‑2719, n.° 14).

20
Numa situação como a do processo principal, esta interpretação faria depender a determinação do tribunal competente de circunstâncias incertas, tais como o lugar onde se encontra «o centro do património» do lesado, sendo consequentemente contrária ao reforço da protecção jurídica das pessoas domiciliadas na Comunidade, que, permitindo ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado, constitui um dos objectivos da convenção (v. acórdãos de 19 de Fevereiro de 2002, Besix, C‑256/00, Colect., p. I‑1699, n.os  25 e 26, e DFDS Torline, já referido, n.° 36). Além disso, seria na maior parte dos casos susceptível de fazer reconhecer a competência dos tribunais do domicílio do requerente, competência à qual, como o Tribunal de Justiça declarou no n.° 14 do presente acórdão, a convenção não é favorável para além dos casos que expressamente prevê.

21
Face às considerações que precedem, há que responder à questão submetida que o artigo 5.°, ponto 3, da convenção deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante.


Quanto às despesas

22
As despesas efectuadas pelos Governos austríaco, alemão e do Reino Unido, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

pronunciando‑se sobre a questão submetida pelo Oberster Gerichtshof, por decisão de 9 de Abril de 2002, declara:

O artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado contratante.

Timmermans

Puissochet

Cunha Rodrigues

Schintgen

Colneric

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 10 de Junho de 2004.

O secretário

O presidente da Segunda Secção

R. Grass

C. W. A. Timmermans


1
Língua do processo: alemão.