Processo C-112/02


Kohlpharma GmbH
contra
Bundesrepublik Deutschland



(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein-Westfalen)

«Livre circulação de mercadorias – Medicamentos – Importação – Pedido de autorização de introdução no mercado segundo um processo simplificado – Origem comum»

Conclusões do advogado-geral A.Tizzano apresentadas em 11 de Setembro de 2003
    
Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 1 de Abril de 2004
    

Sumário do acórdão

Livre circulação de mercadorias – Restrições quantitativas – Medidas de efeito equivalente – Medicamentos – Pedido de autorização de introdução no mercado com referência a um medicamento já autorizado – Possibilidade de transpor a avaliação quanto à segurança e eficácia realizada para este medicamento sem riscos para a saúde pública – Indeferimento do pedido na falta de origem comum dos medicamentos – Inadmissibilidade – Justificação – Inexistência

(Artigos 28.° CE e 30.° CE)

No caso de

– ter sido pedida uma autorização de introdução no mercado para um medicamento com referência a um medicamento já autorizado,

– o medicamento objecto do pedido ser importado de um Estado‑Membro no qual obteve uma autorização de introdução no mercado,

– a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua eficácia e segurança poder ser utilizada, sem qualquer risco para a saúde pública, para o medicamento objecto do pedido de autorização de introdução no mercado,

os artigos 28.° CE e 30.° CE opõem‑se a que o pedido seja recusado pela simples razão de os dois medicamentos não terem uma origem comum, ou seja, de os produtores dessas especialidades não fazerem parte do mesmo grupo de empresas e de não os fabricarem com base em acordos com um mesmo licenciante.

Com efeito, em tais circunstâncias, a restrição à livre circulação de mercadorias entre Estados‑Membros, resultante da recusa de autorização de introdução no mercado para o segundo medicamento, não pode ser justificada por razões atinentes à protecção da saúde pública se aquela recusa se deve ao simples facto de os dois medicamentos não terem origem comum. A origem comum pode, na verdade, constituir um elemento importante susceptível de demonstrar que a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua eficácia e segurança pode ser utilizada, sem quaisquer riscos para a protecção da saúde pública, no âmbito do pedido de autorização de introdução no mercado para o segundo medicamento. Não obstante, a falta de origem comum dos dois medicamentos não constitui, por si só, motivo de recusa da autorização de introdução no mercado para o segundo medicamento.

(cf. n.os 15‑18, 21 e disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)
1 de Abril de 2004(1)

«Livre circulação de mercadorias – Medicamentos – Importação – Pedido de autorização de introdução no mercado segundo um processo simplificado – Origem comum»

No processo C-112/02,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pelo Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein-Westfalen (Alemanha), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Kohlpharma GmbH

e

Bundesrepublik Deutschland,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do direito comunitário, nomeadamente dos artigos 28.° CE e 30.° CE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),,



composto por: C. Gulmann (relator), exercendo funções de presidente da Sexta Secção, J. N. Cunha Rodrigues, J.-P. Puissochet, R. Schintgen e F. Macken, juízes,

advogado-geral: A. Tizzano,
secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação da Kohlpharma GmbH, por W. Rehmann, Rechtsanwalt,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Støvlbæk e S. Fries, na qualidade de agentes,

ouvidas as alegações da Kohlpharma GmbH, representada por W. Rehmann, do Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte, representado por M. Wagner e A. von Hagen, na qualidade de agentes, e da Comissão, representada por H. Støvlbæk e S. Fries, na audiência de 13 de Março de 2003,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 11 de Setembro de 2003,

profere o presente



Acórdão



1
Por despacho de 14 Março de 2002, que deu entrada no Tribunal em 27 de Março seguinte, o Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein‑Westfalen submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do direito comunitário, nomeadamente dos artigos 28.° CE e 30.° CE.

2
Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio que opõe a Kohlpharma Gmbh (a seguir «Kohlpharma») à Bundesrepublik Deutschland relativamente a uma autorização de introdução no mercado (a seguir «AIM») de um medicamento importado de Itália.


O litígio no processo principal

3
A sociedade Chiesi Farmaceutici SpA (a seguir «Chiesi») produz e comercializa em Itália o medicamento Jumex ao abrigo de uma AIM que lhe foi concedida nesse país. Esse medicamento é fabricado a partir do princípio activo hidrocloreto de selegilina. A sociedade Orion Pharma GmbH (a seguir «Orion») produz e comercializa o medicamento Movergan na Alemanha ao abrigo de uma AIM concedida nesse país. Este medicamento é produzido a partir do mesmo princípio activo que o medicamento Jumex.

4
O referido princípio activo utilizado pela Chiesi e pela Orion provém da empresa Chinoin Pharmaceutical and Chemical Works Co. Ltd (a seguir «Chinoin»), com sede na Hungria. Enquanto a Chiesi está vinculada à Chinoin por um contrato de licença, a Orion é fornecida, directamente ou pela Finlândia, mediante um acordo de fornecimento celebrado entre a Chinoin e a Orion Corp. Finland.

5
A Kohlpharma requereu ao Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte (instituto federal para os medicamentos e especialidades farmacêuticas, a seguir «Bundesinstitut») uma AIM para o medicamento Jumex, para o poder importar para a Alemanha. A Kohlpharma fez referência ao medicamento Movergan, já autorizado na Alemanha, pedindo que a AIM para esse medicamento fosse alargado ao medicamento Jumex.

6
O Bundesinstitut indeferiu esse requerimento, invocando o acórdão de 12 de Novembro de 1996, Smith & Nephew et Primecrown (C‑201/94,Colect., p. I‑5819). Em seu entender, o referido acórdão demonstra que a extensão a um medicamento importado de uma AIM já concedida a outro medicamento no Estado de importação está subordinada à condição de que os dois medicamentos tenham uma origem comum, ou seja, que os produtores dessas especialidades façam parte do mesmo grupo de empresas, ou, pelo menos, as fabriquem com base em acordos com um mesmo licenciante.

7
A Kohlpharma interpôs recurso da decisão de indeferimento para o Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein-Westfalen, alegando que não se podia exigir que o medicamento a importar e o medicamento já autorizado no Estado‑Membro de importação tivessem uma origem comum. O Tribunal de Justiça, na sua jurisprudência relativa às importações paralelas, não erigiu a condição da identidade de origem em princípio vinculativo, tomou‑a simplesmente em consideração, visto que, nos processos que lhe foram submetidos a título prejudicial, as condições de identidade de produtos e de origem estavam efectivamente reunidas.

8
Nestas circunstâncias, o Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein‑Westfalen, por despacho de 14 Março de 2002, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Será justificado ao abrigo do artigo 30.° CE ou de outra legislação comunitária, o facto de as autoridades alemãs competentes, violando o artigo 28.° CE, impedirem a importação paralela de um medicamento através da recusa de autorização em processo simplificado, embora considerem, por um lado, que o medicamento a importar (‘Jumex’), produzido em Itália pela empresa Chiesi Farmaceutici SpA, é idêntico, quanto ao princípio activo ‘hidrocloreto de selegilina’, ao medicamento actualmente em circulação na Alemanha (‘Movergan’), com autorização emitida a favor da empresa alemã Orion Pharma GmbH, sendo o princípio activo do fabricante, sediado na Hungria, fornecido à empresa italiana por força dum contrato de licença e à empresa alemã mediante um simples acordo de fornecimento (supply agreement) com a Orion Corp. Finland – seja directamente, seja por intermédio da Finlândia –, e que as autoridades alemãs, por outro lado, não alegam de modo convincente, nem quanto ao princípio activo, nem quanto aos excipientes – que, no entendimento das autoridades, divergem qualitativa e quantitativamente no caso apresentado – que ambos os medicamentos não são iguais, não sendo, em especial, fabricados com base na mesma fórmula e mediante utilização do mesmo princípio activo, ou que não têm resultados terapêuticos idênticos?»


Quanto à questão prejudicial

9
Em primeiro lugar, importa recordar que:

estão em causa, no processo principal, dois medicamentos produzidos, respectivamente em Itália e na Alemanha, por fabricantes diferentes aos quais foram concedidas AIM, respectivamente, em Itália e na Alemanha, de acordo com as regras e procedimentos introduzidos por força da regulamentação comunitária, ou seja, actualmente, a Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), segundo a qual a AIM só é concedida se, após verificação das informações e documentos relativos à eficácia e inocuidade do medicamento em causa, se constatar que o medicamento não é nocivo em condições normais de emprego e que o efeito terapêutico foi demonstrado (v. artigos 8.° a 11.° da Directiva 2001/83);

o fabricante do medicamento Jumex não apresentou qualquer pedido de AIM para o seu produto na Alemanha;

os dois medicamentos são fabricados a partir do mesmo princípio activo fornecido pela mesma empresa.

10
A seguir, importa recordar que:

nestas circunstâncias, a Kohlpharma apresentou um pedido de AIM para o medicamento Jumex, que pretende comercializar na Alemanha, alegando que a AIM já concedida para o medicamento Movergan deve ser extensiva ao medicamento Jumex na medida em que os dois medicamentos são essencialmente idênticos;

as autoridades competentes indeferiram o pedido por entenderem que não é possível alargar a AIM do medicamento Movergan ao medicamento Jumex, uma vez que os dois medicamentos não têm origem comum.

11
Neste contexto, para poder dar uma resposta útil à questão prejudicial, o Tribunal pode partir da premissa de que os dois medicamentos não apresentam diferenças significativas no que respeita à avaliação da sua segurança e eficácia.

12
Assim, deve considerar‑se que com a questão prejudicial se pretende saber, no essencial, se, admitindo que a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua segurança e eficácia pode ser utilizada, sem qualquer risco para a saúde pública, para o segundo produto, os artigos 28.° CE e 30.° CE se opõem à recusa, por parte das autoridades competentes, da AIM para o segundo medicamento, com referência ao primeiro, pela simples razão de esses dois medicamentos não terem origem comum.

13
Importa notar que a recusa de concessão de uma AIM para um medicamento importado de outro Estado‑Membro, no qual foi concedida uma AIM para o mesmo, constitui uma restrição à livre circulação de mercadorias entre Estados‑Membros e que essa restrição é contrária ao artigo 28.° CE, salvo se se justificar por exigências imperativas, designadamente, por imperativos de protecção da saúde pública.

14
Cabe às autoridades nacionais competentes, antes de conceder as AIM, velar pelo cumprimento estrito do objectivo essencial da regulamentação comunitária, nomeadamente a protecção da saúde pública. Contudo, para preservar a livre circulação de mercadorias, o princípio da proporcionalidade exige que a regulamentação em causa seja aplicada na medida do estritamente necessário para alcançar os objectivos de protecção da saúde legitimamente prosseguidos (v., nesse sentido, nomeadamente, o acórdão de 10 de Setembro de 2002, Ferring, C‑172/00, Colect., p. I‑6891, n.° 34).

15
Quando se conclua que a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua segurança e eficácia pode ser utilizada, sem qualquer risco para a protecção da saúde pública, para o medicamento relativamente ao qual a AIM é pedida, a restrição à livre circulação de mercadorias entre Estados‑Membros, resultante da recusa de AIM para o segundo medicamento, não pode ser justificada por razões atinentes à protecção da saúde pública se aquela recusa se deve ao simples facto de os dois medicamentos não terem origem comum.

16
Numa situação como a do processo principal, o problema que se levanta às autoridades competentes em matéria de AIM de medicamentos é saber se, efectivamente, como alega o requerente da AIM, a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua segurança e eficácia pode ser utilizada, sem qualquer risco para a protecção da saúde pública, no âmbito do pedido de AIM para o segundo medicamento.

17
Nesse aspecto, a origem comum dos dois medicamentos pode constituir um elemento importante susceptível de demonstrar que tal é o caso.

18
Não obstante, a origem comum dos dois medicamentos não constitui, por si só, motivo de recusa da AIM para o segundo medicamento.

19
Com efeito, em circunstâncias como as do processo principal, que se caracterizam pelo facto de um princípio activo ser vendido a dois fabricantes diferentes em dois Estados‑Membros, o requerente da AIM para o segundo medicamento, se for caso disso, pode demonstrar, através das informações de que dispõe e daquelas a que pode aceder, que o medicamento a importar não apresenta diferenças significativas em relação ao medicamento já autorizado no que respeita à avaliação da sua segurança e da sua eficácia.

20
Se o requerente – sobretudo se se tratar de um importador – não puder aceder a todas as informações necessárias, mas fornecer elementos que, no mínimo, tornem plausível que os dois medicamentos não apresentam diferenças significativas no que respeita à avaliação da sua segurança e da sua eficácia, as autoridades competentes devem proceder por forma a que a sua decisão relativamente à possibilidade de alargar ao segundo medicamento a AIM concedida ao primeiro seja tomada com base em informações tão completas quanto possível, incluindo aquelas de que disponham ou que possam obter no âmbito da cooperação com as autoridades sanitárias de outros Estados‑Membros.

21
Por conseguinte, há que responder à questão colocada que no caso de

ter sido pedida uma AIM para um medicamento com referência a um medicamento já autorizado,

o medicamento objecto do pedido ser importado de um Estado‑Membro no qual obteve uma AIM,

a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua eficácia e segurança poder ser utilizada, sem qualquer risco para a saúde pública, para o medicamento objecto do pedido de AIM,

os artigos 28.° CE e 30.° CE opõem‑se a que o pedido seja recusado pela simples razão de os dois medicamentos não terem uma origem comum.


Quanto às despesas

22
As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentou observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

pronunciando‑se sobre a questão submetida pelo Oberverwaltungsgericht für das Land Nordrhein‑Westfalen, por despacho de 14 de Março 2002, declara:

No caso de

ter sido pedida uma autorização de introdução no mercado para um medicamento com referência a um medicamento já autorizado,

o medicamento objecto do pedido ser importado de um Estado‑Membro no qual obteve uma autorização de introdução no mercado,

a avaliação do medicamento já autorizado quanto à sua eficácia e segurança poder ser utilizada, sem qualquer risco para a saúde pública, para o medicamento objecto do pedido de autorização de introdução no mercado,

os artigos 28.° CE e 30.° CE opõem‑se a que o pedido seja recusado pela simples razão de os dois medicamentos não terem uma origem comum.

Gulmann

Cunha Rodrigues

Puissochet

Schintgen

Macken

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 1 de Abril de 2004.

O secretário

O presidente

R. Grass

V. Skouris


1
Língua do processo: alemão.