CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 14 de Dezembro de 2004(1)



Processo C-281/02



Andrew Owusu
contra
N.   B. Jackson, agindo sob o nome comercial «Villa Holidays Bal - Inn Villas» ,

Mammee Bay Resorts Ltd ,

Mammee Bay Club Ltd ,

The Enchanted Garden Resorts & Spa Ltd ,

Consulting Services Ltd ,

Town & Country Resorts Ltd



[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido)]

«Convenção de Bruxelas – Âmbito de aplicação territorial ou pessoal – Acidente ocorrido num Estado não contratante – Danos corporais – Acção intentada num Estado contratante contra uma pessoa domiciliada nesse Estado e outros réus domiciliados no Estado não contratante onde ocorreu o acidente – Teoria do forum non conveniens nas relações entre um Estado contratante e um Estado não contratante – Incompatibilidade com a Convenção de Bruxelas»





Índice

I –
Enquadramento jurídico
A –
A Convenção de Bruxelas
B –
A teoria do forum non conveniens no direito inglês
C –
Evolução da teoria do forum non conveniens desde a entrada em vigor da Convenção de Bruxelas no Reino Unido
II –
Matéria de facto e tramitação processual no processo principal
III –
O sentido e o alcance das questões prejudiciais
IV –
Análise
A –
Quanto ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas
1.
O relatório de P. Jenard e o amplo debate que suscitou
2.
A letra do artigo 2.° da Convenção
3.
A economia geral da Convenção
4.
Os objectivos da Convenção
5.
Os pretensos obstáculos à aplicação do artigo 2.° da Convenção a uma relação jurídica que apenas tem ligações com um Estado contratante e um Estado terceiro
a)
Os pretensos obstáculos decorrentes do direito internacional
b)
Os pretensos obstáculos decorrentes do direito comunitário
B –
Quanto à compatibilidade da teoria do forum non conveniens com a Convenção de Bruxelas
1.
A vontade dos autores da Convenção
2.
A letra do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção
3.
A economia geral da Convenção
4.
Os objectivos e o efeito útil da Convenção
V –
Conclusão

1.        A Convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial  (2) opõe‑se a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante, ao qual foi submetida uma acção intentada contra uma pessoa domiciliada no território desse Estado, e que seria, portanto, competente para conhecer dessa acção com fundamento no artigo 2.° da referida convenção, renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, em aplicação do seu direito interno, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do litígio?

2.       É esta, essencialmente, a questão colocada pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido) no processo em apreço. Esta questão não é inédita, pois já foi apresentada ao Tribunal de Justiça, há uma dezena de anos, uma questão semelhante por um tribunal supremo, a House of Lords. Porém, o Tribunal de Justiça não teve oportunidade de se pronunciar quanto a este ponto, uma vez que essa questão prejudicial acabou por ser retirada pelo órgão jurisdicional de reenvio depois de as partes terem resolvido o seu litígio através de conciliação  (3) .

3.        Tal como esse anterior processo, o caso ora em apreço dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de apreciar a compatibilidade da teoria dita do «forum non conveniens» com a Convenção de Bruxelas. Segundo esta teoria, bem conhecida dos países de «common law», um órgão jurisdicional de um Estado tem o direito de renunciar ao exercício da competência que lhe é atribuída pela lei quando considera que o foro de outro Estado é mais adequado para decidir do litígio.

4.        Neste processo, como no anterior, a questão da compatibilidade da teoria do forum non conveniens com a Convenção de Bruxelas só se coloca nas relações entre um órgão jurisdicional de um Estado contratante e um órgão jurisdicional de um Estado não contratante, com exclusão das relações entre órgãos jurisdicionais de Estados contratantes diferentes. Esta questão leva, portanto, a investigar o âmbito de aplicação territorial ou pessoal da Convenção de Bruxelas. A este respeito, ainda que a problemática em causa seja muito diferente, pode estabelecer‑se um paralelo com o processo de parecer, ora em curso, quanto à futura Convenção de Lugano revista sobre a competência judiciária e a execução de decisões em matéria civil e comercial  (4) .

5.        Por outro lado, é interessante recordar que o Tribunal de Justiça apreciou recentemente outro mecanismo bem conhecido dos países de «common law», comummente denominado «anti‑suit injunctions». Este mecanismo permite a um órgão jurisdicional nacional proferir uma injunção no sentido de proibir uma parte num processo aí pendente de intentar ou prosseguir uma acção judicial num órgão jurisdicional de outro Estado, quando se verifica que essa parte age de má‑fé, com o objectivo de entravar o processo já pendente. A House of Lords questionou o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade desse mecanismo com a Convenção de Bruxelas, quando o mesmo intervém nas relações entre órgãos jurisdicionais de Estados contratantes diferentes. No seu acórdão Turner  (5) , o Tribunal de Justiça respondeu negativamente.

6.        Este acórdão merece ser assinalado, embora o objecto e as condições de aplicação do mecanismo das «anti‑suit injunctions» e do do forum non conveniens sejam sensivelmente diferentes e, ao contrário do caso em apreço, o processo Turner não tenha levantado qualquer questão quanto ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal da Convenção de Bruxelas. Com efeito, como o advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer sublinhou nas conclusões que apresentou no processo Turner, estes dois mecanismos implicam «uma certa valoração do carácter adequado da propositura de uma acção num órgão jurisdicional concreto»  (6) .

I – Enquadramento jurídico

A – A Convenção de Bruxelas

7.        Adoptada com fundamento no artigo 220.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (que passou a artigo 220.° do Tratado CE que, por sua vez, passou, após alteração, a artigo 293.° CE)  (7) , a Convenção de Bruxelas tem o objectivo, segundo o seu preâmbulo, de «reforçar na Comunidade a protecção jurídica das pessoas estabelecidas no seu território».

8.        O seu único considerando indica «que, para esse fim, é necessário determinar a competência dos seus órgãos jurisdicionais na ordem internacional, facilitar o reconhecimento e instaurar um processo rápido que garanta a execução das decisões, bem como dos actos autênticos e das transacções judiciais».

9.        A Convenção de Bruxelas constitui, assim, o que comummente se chama uma convenção «dupla», na medida em que comporta não só regras de reconhecimento e de execução como também regras de competência directa aplicáveis no Estado contratante de origem, ou seja, a partir da fase do procedimento de adopção da decisão judicial susceptível de reconhecimento e de execução noutro Estado contratante.

10.      No que respeita às regras de competência directa, aplicam‑se quando o litígio apresente uma certa integração ou um certo nexo com o território de um determinado Estado contratante. Esta situação de integração ou de nexo resulta, na maioria dos casos, do domicílio do requerido e, em certos casos, do objecto do litígio ou da vontade das partes .

11.      No que respeita ao domicílio do requerido, constitui o fundamento de uma regra geral de competência. Com efeito, o artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas dispõe que, «[s]em prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado». Assim, quando o requerido tiver domicílio num Estado contratante, os tribunais desse Estado são, em princípio, competentes.

12.      O artigo 3.° da Convenção especifica o alcance desta regra geral. Por um lado, o seu primeiro parágrafo prevê que «[a]s pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado contratante por força das regras enunciadas nas secções 2 a 6 do presente título». Por outro lado, em conformidade com esta lógica, o segundo parágrafo do referido artigo proíbe ao requerente invocar contra essas pessoas regras de competência ditas «exorbitantes» (que estariam em vigor nos Estados contratantes), ou seja, regras que têm como efeito retirar essas pessoas da competência de princípio dos tribunais do Estado contratante do seu domicílio, tal como prevista pelo artigo 2.° da Convenção.

13.      Quanto às secções 2 a 6 do título II da Convenção (a que se refere o artigo 3.°, primeiro parágrafo), enumeram, antes de mais, uma série de regras de competência de carácter opcional, que permitem ao requerente optar por intentar a sua acção perante um tribunal de outro Estado contratante, que não o do domicílio do requerido  (8) .

14.      Seguidamente, prevêem certas regras de competência que ou impõem o recurso aos órgãos jurisdicionais de um Estado contratante, com exclusão dos de qualquer outro Estado contratante (incluindo o do domicílio do requerido)  (9) , ou permitem a um tribunal de um Estado contratante decidir embora, em princípio, seja incompetente para o fazer, à luz das normas estabelecidas pela Convenção  (10) .

15.      Estas últimas regras de competência (constantes dos artigos 16.°, 17.° e 18.° da Convenção) baseiam‑se na existência de outro elemento de conexão do litígio, que não o domicílio do requerido. Este elemento de conexão resulta quer do objecto do litígio (artigo 16.° da Convenção), quer da vontade das partes (artigos 17.° e 18.° da referida Convenção).

16.      Quando o litígio não se integra no território de um determinado Estado contratante em razão do domicílio do requerido, do próprio objecto do litígio ou da vontade das partes, as regras de competência exorbitantes em vigor nos Estados contratantes mantêm, em princípio, os seus efeitos. Efectivamente, o artigo 4.°, primeiro parágrafo, da Convenção prevê que «se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado Contratante, a competência será regulada em cada Estado Contratante pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 16.°»  (11) .

17.      No prolongamento de todas estas disposições em matéria de atribuição de competência, a Convenção de Bruxelas prevê certos mecanismos processuais para reger a aplicação das regras de competência. Estes mecanismos, em matéria de litispendência e de conexão, destinam‑se a prevenir decisões contraditórias entre órgãos jurisdicionais de Estados contratantes diferentes.

18.      Assim, o artigo 21.° da Convenção, que trata da litispendência, prevê que, «quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados contratantes, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar [é obrigado a suspender] [...] a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar» e depois, se for esse o caso, a declarar‑se incompetente em favor deste.

19.      Quanto à conexão, o artigo 22.° da Convenção prevê que, quando acções conexas forem submetidas a tribunais de diferentes Estados contratantes e estiverem pendentes em primeira instância, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar pode suspender a instância ou declarar‑se incompetente, a pedido de uma das partes, desde que a sua lei permita a apensação de acções conexas e o tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar seja competente para conhecer das duas acções. Segundo o artigo 22.°, terceiro parágrafo, da Convenção, este mecanismo é reservado a «acções ligadas entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídas e julgadas simultaneamente para evitar soluções que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente».

20.      Na lógica de todas estas disposições em matéria de atribuição de competência ou de aplicação das competências, a Convenção de Bruxelas instituiu, no seu título III, um mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução das decisões judiciais. Este mecanismo aplica‑se às decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais de um Estado contratante no âmbito do seu reconhecimento e da sua execução noutro Estado contratante.

21.      Na sequência da comunitarização pelo Tratado de Amesterdão do domínio da cooperação judiciária em matéria civil, o Conselho adoptou o Regulamento n.° 44/2001, com fundamento nos artigos 61.°, alínea c), e 67.°, n.° 1, CE. Este regulamento, que se destina a substituir a Convenção de Bruxelas, retoma o essencial das suas disposições, procedendo simultaneamente a certas adaptações.

22.      O referido regulamento aplica‑se em todos os Estados‑Membros, com excepção da Dinamarca  (12) , para as acções intentadas a partir da data da sua entrada em vigor, ou seja, a partir de 1 de Março de 2002. No processo principal, a acção foi intentada antes de 1 de Março de 2002, pelo que só a Convenção de Bruxelas é susceptível de se lhe aplicar, com exclusão do Regulamento n.° 44/2001.

B – A teoria do forum non conveniens no direito inglês

23.      A teoria do forum non conveniens teve a sua primeira expressão no direito escocês, ou seja, num sistema jurídico de inspiração essencialmente civilista. Só surgiu aí sob a sua forma mais completa no final do século XIX, tendo‑se depois implantado, sob várias formas, noutros países, principalmente nos países de «common law», em especial na Inglaterra, na Irlanda e nos Estados Unidos da América.

24.      Em direito inglês, a teoria do forum non conveniens conheceu um desenvolvimento constante e significativo.

25.      Presentemente, a sua aplicação responde às condições que foram estabelecidas em 1986 pela House of Lords no acórdão Spiliada Maritime Corporation v. Cansulex Ltd  (13) .

26.      Este órgão jurisdicional estabeleceu o princípio segundo o qual «a suspensão da instância só será concedida com base no forum non conveniens se o tribunal estiver convencido de que existe outro tribunal, igualmente competente, que é o foro apropriado do litígio, ou seja, perante o qual o litígio pode ser julgado de forma adequada à luz dos interesses de todas as partes e dos objectivos da justiça»  (14) . Assim, contrariamente ao que a expressão forum non conveniens poderia dar a entender, não se trata, para o tribunal a que a acção foi submetida, de uma questão de mera «conveniência» prática ou pessoal, associada, nomeadamente, à sobrecarga de trabalho do tribunal, mais sim de uma questão que respeita ao carácter objectivamente apropriado do foro quanto à controvérsia em causa  (15) .

27.      Em conformidade com o acórdão Spiliada, já referido, o procedimento a seguir pelo órgão jurisdicional inglês divide‑se do seguinte modo.

28.      Em primeiro lugar, cabe a este último determinar se um foro estrangeiro é «clara e distintamente mais apropriado»  (16) . Este exercício leva a identificar o «foro natural do litígio», ou seja, «aquele com o qual a controvérsia tem nexos mais estreitos»  (17) . Os factores de conexão a tomar em conta abrangem não só factores de ordem prática ou pecuniária (como a disponibilidade das testemunhas)  (18) , como também factores como a lei aplicável à operação em questão e o lugar de residência das partes ou a sede das suas actividades  (19) .

29.      Em segundo lugar, depois de o órgão jurisdicional a que a acção foi submetida ter identificado um foro estrangeiro «clara e distintamente mais apropriado», cabe‑lhe verificar se o requerente tem a garantia de «obter justiça» nesse foro  (20) , mais precisamente uma «justiça efectiva»  (21) . Esta condição é concebida restritivamente. Assim, de um modo geral, uma suspensão da instância não pode ser recusada pelo simples motivo de o requerente se ver privado de um benefício previsto pelo direito inglês, como um nível de indemnização elevado, um sistema de obtenção de provas eficaz, um prazo de prescrição da acção mais extenso do que no país do foro estrangeiro em questão  (22) . Com efeito, segundo a House of Lords, «permitir ao requerente beneficiar da vantagem de um processo em Inglaterra em detrimento do requerido seria contrário à abordagem objectiva» que é a do forum non conveniens   (23) . Todavia, em certas circunstâncias muito especiais, tomaram‑se em conta limitações legais ou práticas quanto à possibilidade de obter os serviços de um advogado no foro estrangeiro bem como à impossibilidade de obter apoio judiciário para prosseguir a acção nesse foro quando esse apoio está disponível em Inglaterra e que é manifesto que na falta do mesmo o requerente renunciará à sua acção  (24) .

30.      Em direito inglês, o tribunal ao qual a acção foi submetida não procede oficiosamente a tal apreciação, mas apenas a pedido de uma das partes  (25) . Cabe ao requerido que invoca a excepção do forum non conveniens , para se opor ao prosseguimento do processo perante o tribunal competente em questão, demonstrar a existência de um foro estrangeiro igualmente competente e clara e distintamente mais apropriado  (26) . Estando preenchida esta primeira condição, cabe ao requerente que pretenda escapar ao efeito da excepção processual em causa provar que não poderá obter justiça no foro estrangeiro em questão, ou seja, que não está preenchida a segunda condição exigida para que a referida excepção opere.

31.      Estas condições de aplicação da teoria do forum non conveniens são examinadas «discricionariamente» pelo tribunal ao qual a acção foi submetida, no sentido de que este dispõe de amplos poderes de apreciação nesta matéria.

32.      No estado actual do direito inglês, a aplicação desta teoria manifesta‑se através de uma suspensão da instância, ou seja, de uma suspensão provisória, ou mesmo sine die , do processo, sem que o tribunal se declare incompetente. Daqui resulta que o processo pode ser retomado perante o tribunal inglês na hipótese de se verificar, por exemplo, que o foro estrangeiro não é, afinal, competente para conhecer do litígio ou que o requerente não tem acesso a uma justiça efectiva nesse foro. Cabe ao requerente que pretenda retomar o processo apresentar provas dos elementos necessários para esse efeito.

33.      Tradicionalmente, a decisão de suspensão da instância em questão não pode ser acompanhada de uma transferência ou de um reenvio do processo para o foro estrangeiro. Com efeito, tal tenderia a impor ao foro estrangeiro que se declarasse competente e que exercesse a sua eventual competência. Ora, é comummente aceite que os órgãos jurisdicionais de um Estado só podem decidir da sua própria competência, e não da dos órgãos jurisdicionais de outro Estado. Por conseguinte, cabe ao requerente, que queira manter as suas pretensões, proceder a todas as diligências necessárias para intentar uma nova acção perante o foro estrangeiro.

34.      Uma decisão de um órgão jurisdicional de primeira instância, que aprecia de modo discricionário a excepção do forum non conveniens , só é, em princípio, susceptível de ser alterada quanto a este aspecto por um órgão jurisdicional de recurso se este entender, no âmbito de uma verificação da fundamentação adoptada pelo órgão jurisdicional de primeira instância, que este abusou manifestamente do seu amplo poder de apreciação  (27) .

C – Evolução da teoria do forum non conveniens desde a entrada em vigor da Convenção de Bruxelas no Reino Unido

35.      A Convenção de Bruxelas, na redacção que lhe foi dada pela convenção de adesão de 1978, entrou em vigor no Reino Unido em e de Janeiro de 1987.

36.      Nesta perspectiva, foi adoptado o Civil Jurisdiction and Judgments Act 1982 (lei de 1982 sobre a competência e as decisões judiciais em matéria civil). O seu artigo 49.° prevê que «nenhuma disposição da presente lei obsta a que, no contexto de um processo que perante si pende, um órgão jurisdicional britânico ordene a suspensão da instância e sobresteja na sua decisão […] com fundamento na doutrina do forum non conveniens […] quando estas medidas não sejam incompatíveis com a Convenção de 1968».

37.      Esta referência à eventual incompatibilidade da teoria do forum non conveniens com a Convenção de Bruxelas deu origem a apreciações muito divergentes por parte dos órgãos jurisdicionais ingleses, em especial quando se trata de aplicar esta doutrina nas relações entre um Estado contratante e um Estado terceiro.

38.      Assim, ao contrário da Hight Court of Justice (England & Wales), Chancery Division  (28) , a Court of Appeal admitiu, no acórdão Harrods (Buenos Aires) Ltd  (29) , a possibilidade de os tribunais ingleses renunciarem, em aplicação da teoria do forum non conveniens , ao exercício da competência que retiram do artigo 2.° da Convenção (baseada no domicílio do requerido no Reino Unido) quando exista um foro mais apropriado num Estado não contratante e não está envolvida a competência dos tribunais de outro Estado contratante, que não o Reino Unido. Os argumentos acolhidos pela Court of Appeal para fundamentar a sua decisão podem resumir‑se do seguinte modo.

39.      Antes de mais, resulta do artigo 220.° do Tratado CEE, com base no qual foi adoptada a Convenção de Bruxelas, que as regras de competência aí contidas se destinam a ser aplicadas apenas nas relações entre os Estados contratantes  (30) .

40.      Além disso, na hipótese de o artigo 2.° da Convenção ter um carácter imperativo nas relações entre um Estado contratante e um Estado não contratante, um órgão jurisdicional inglês – que seria competente com fundamento neste artigo – não poderia suspender a instância, por razões associadas à existência de um pacto atributivo de jurisdição ou de uma situação de litispendência ou de conexão, se o foro alternativo não se situasse num Estado contratante. Com efeito, os artigos 17.°, 21.° e 22.° da Convenção de Bruxelas, que prevêem mecanismos de repartição das competências inspirados nessas razões, só visam aplicar‑se nas relações entre órgãos jurisdicionais de Estados contratantes diferentes. Ora, segundo a Court of Appeal, esses resultados são contrários à intenção dos autores da Convenção de Bruxelas. Conclui‑se que o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas não pode ter carácter imperativo quando o único conflito de competência em causa respeita aos órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e aos de um Estado terceiro  (31) .

41.      Por fim, a aplicação da teoria do forum non conveniens nas relações entre um órgão jurisdicional inglês e um órgão jurisdicional de um Estado não contratante não é contrária ao objectivo da livre circulação das sentenças na Europa, prosseguido pela Convenção, precisamente porque se o órgão jurisdicional inglês renunciar ao exercício da sua competência, não proferirá qualquer sentença sobre o mérito susceptível de ser reconhecida e executada noutros Estados contratantes  (32) .

42.      A Court of Appeal retirou daí a conclusão de que a Convenção de Bruxelas não se opõe a que um órgão jurisdicional inglês suspenda a instância, em aplicação da teoria do forum non conveniens , «nos casos em que o único foro alternativo esteja situado num Estado não contratante»  (33) .

43.      Tendo‑lhe sido apresentado um recurso desta decisão, a House of Lords decidiu interrogar o Tribunal de Justiça quanto a este aspecto  (34) . Tal como já referi, esta série de questões prejudiciais acabou por ser retirada na sequência de uma conciliação entre as partes no litígio.

44.      Uns anos mais tarde, no acórdão Lubbe, já referido  (35) , a House of Lords teve o cuidado de salientar que «a resposta a esta questão não é clara», mais preferiu não se dirigir novamente ao Tribunal de Justiça uma vez que, de qualquer modo, independentemente da resposta que lhe fosse dada, a teoria do forum non conveniens não devia ser aplicada ao caso em apreço por o foro «alternativo» não ser acessível aos requerentes  (36) .

45.      Houve quem visse nesta observação incidental da House of Lords a expressão de uma dúvida séria quanto à bondade da jurisprudência adoptada pela Court of Appeal no processo Harrods  (37) .

II – Matéria de facto e tramitação processual no processo principal

46.      Em 10 de Outubro de 1997, Andrew Owusu, cidadão britânico com domicílio em Inglaterra, sofreu um grave acidente quando se encontrava de férias na Jamaica. Ao mergulhar no mar num local onde a água estava ao nível da sua cintura, embateu num banco de areia submerso e sofreu uma fractura da quinta vértebra cervical, que o deixou tetraplégico.

47.      Na sequência deste acidente, A. Owusu intentou, em Inglaterra, uma acção de indemnização contra N. B. Jackson, também domiciliado neste Estado‑Membro  (38) . Este último tinha dado de arrendamento ao interessado a moradia que este ocupou na Jamaica e junto à qual se feriu. Como fundamento desta acção, A. Owusu sustenta que o referido contrato, que estipulava que teria acesso a uma praia privada, previa, implicitamente, que a mesma seria razoavelmente segura ou isenta de perigos ocultos.

48.      Em contestação, o primeiro réu suscitou a excepção do forum non conveniens e requereu, consequentemente, a suspensão da instância. Além do facto de o litígio apresentar nexos mais estreitos com a Jamaica do que com a Inglaterra, este réu alegou, por um lado, que a sua apólice de seguro relativa ao fornecimento de um alojamento na Jamaica não cobria as indemnizações ordenadas por um órgão jurisdicional que não fosse jamaicano e, por outro lado, que as questões relativas ao princípio da responsabilidade e a liquidação do prejuízo seriam decididas, em grande medida, do mesmo modo na Jamaica e em Inglaterra.

49.      A. Owusu quis também apurar a responsabilidade de várias sociedades jamaicanas perante os órgãos jurisdicionais ingleses. Esta acção respeita, nomeadamente, ao «Mammee Bay Club Ltd» (proprietário‑explorador da praia de Mammee Bay cujo acesso tinha sido autorizado a A. Owusu)  (39) , «The Enchanted Garden Resorts & Spa Ltd» (que explora um centro de férias perto da praia em questão, à qual os clientes também tinham acesso)  (40) , e «Town & Country Resorts Ltd» (que explora um grande hotel junto à praia em questão e é titular de uma licença de acesso à mesma sujeita à condição de assumir a sua gestão, manutenção e vigilância)  (41) .

50.      Todas estas sociedades jamaicanas são colocadas em causa com fundamento em responsabilidade civil extracontratual. São acusadas de não terem tomado as medidas necessárias para avisar os banhistas dos perigos associados à presença de bancos de areia submersos, quando tais medidas se impunham especialmente, pois dois anos antes tinha ocorrido um acidente de igual gravidade em circunstâncias semelhantes, sofrido por uma turista britânica, e que tinha, aliás, resultado na propositura de uma acção de indemnização perante os órgãos jurisdicionais da Jamaica (uma vez que todos os réus tinham domicílio neste Estado).

51.      Em conformidade com as normas de processo civil aplicáveis em Inglaterra, A. Owusu pediu autorização para demandar as sociedades jamaicanas em questão nos órgãos jurisdicionais ingleses. Foi‑lhe concedida uma autorização neste sentido por um juiz inglês (o Deputy District Judge Beevers). Porém, ao que parece, o acto que determina o início da instância só foi notificado a três destas sociedades (a saber, a terceira, a quarta e a sexta rés).

52.      Estas últimas contestaram a competência do órgão jurisdicional inglês ao qual a acção tinha sido submetida. Algumas requereram também que este órgão jurisdicional se declarasse incompetente e autorizasse o prosseguimento do processo no estrangeiro. Na sua opinião, só os órgãos jurisdicionais jamaicanos seriam competentes à luz dos diversos critérios de conexão do litígio à Jamaica.

53.      Por despacho de 16 de Outubro de 2001, o juiz Bentley QC (exercendo funções de Deputy Hight Court Judge em Sheffield) rejeitou todos os fundamentos de defesa invocados pelos réus.

54.      No que respeita à excepção do forum non conveniens invocada pelo primeiro réu, considerou que o acórdão do Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2000, Group Josi  (42) , se opõe a uma decisão de suspensão da instância pela simples razão de o órgão jurisdicional ao qual a acção foi apresentada não ser apropriado para decidir do litígio. Entendeu, com efeito, que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que, em princípio, as regras de competência contidas na Convenção de Bruxelas se aplicam a um litígio quando o requerido tem sede ou domicílio num Estado contratante.  (43) . Segundo o juiz de primeira instância, esta interpretação da Convenção de Bruxelas pelo Tribunal de Justiça desmente a que tinha sido adoptada uns anos antes pela Court of Appeal no processo Harrods  (44) . Não estando habilitado a apresentar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça para esclarecer este aspecto  (45) , declarou que, à luz do acórdão Group Josi, já referido, não podia suspender a instância quanto ao primeiro réu (N. B. Jackson), uma vez que este tem domicílio num Estado contratante.

55.      No que respeita aos fundamentos de defesa invocados pelos outros réus (a terceira, a quarta e a sexta rés), o juiz de primeira instância rejeitou‑os também, embora, por um lado, as regras de competência constantes da Convenção de Bruxelas não se aplicassem a estas rés no litígio em questão e, por outro, a Jamaica constituísse manifestamente um foro mais apropriado do que a Inglaterra para conhecer do referido litígio.

56.      Na sua opinião, não podendo suspender a instância quanto ao primeiro réu, o mesmo se deve aplicar aos restantes réus. Com efeito, na hipótese contrária, haveria um risco de tribunais diferentes de dois Estados (o Reino Unido e a Jamaica) serem levados a julgar os mesmos factos com base em provas idênticas ou semelhantes e chegarem a conclusões diferentes. Nestas condições, o juiz de primeira instância considerou que era a Inglaterra, e não a Jamaica, que constituía o foro apropriado para decidir todo o litígio.

57.      Este despacho do juiz de primeira instância foi objecto de recurso para a Court of Appeal por parte do primeiro, terceiro, quarto e sexto réus.

58.      Estes últimos sustentam que a Convenção de Bruxelas não tem aplicação na situação em litígio, pelo que a referida convenção não é susceptível de se opor, no caso em apreço, à aplicação da teoria do forum non conveniens . Para sustentar esta tese, os réus invocam vários argumentos que retomam, no essencial, os adoptados pela Court of Appeal no acórdão Harrods, já referido.

59.      Assim, sustentam que o sistema de repartição de competências judiciais instituído pela Convenção de Bruxelas só se impõe nas relações entre os Estados contratantes, e não nas relações entre um Estado contratante e um Estado terceiro que não impliquem qualquer questão de repartição de competências com outro Estado contratante.

60.      Sublinham também que, na hipótese de o artigo 2.° da Convenção ser imperativo – mesmo nas relações entre um Estado contratante e um Estado não contratante – o juiz inglês teria que se declarar competente para conhecer de uma acção intentada contra uma pessoa domiciliada em Inglaterra, embora já estivesse pendente um processo idêntico ou semelhante nos órgãos jurisdicionais de um Estado não contratante ou tivesse sido celebrado um pacto atributivo de jurisdição a favor deste últimos. Chegar‑se‑ia, assim, a um resultado que seria contrário ao espírito da Convenção.

61.      Por seu lado, A. Owusu sustenta que a Convenção de Bruxelas não respeita apenas a conflitos de competência entre os tribunais de vários Estados contratantes. Limitar a aplicação da Convenção a tais conflitos afectaria o principal objectivo prosseguido pelo artigo 2.° da Convenção, a saber, a garantia da segurança jurídica resultante da previsibilidade do foro competente.

62.      Além disso, baseando‑se no acórdão Group Josi, já referido, A. Owusu alega que a regra geral de competência prevista no artigo 2.° da Convenção é de carácter imperativo e só pode ser derrogada nas situações expressamente previstas pela Convenção, o que não é o caso do presente litígio.

63.      Porém, na sua opinião, podem admitir‑se certas derrogações ao artigo 2.° em situações específicas (que não correspondem à do litígio no processo principal), embora essas derrogações não estejam expressamente previstas na Convenção. Poderia ser esse o caso quando um litígio submetido a um órgão jurisdicional de um Estado contratante estivesse já pendente num órgão jurisdicional de um Estado não contratante, ou quando o litígio em questão respeitasse a direito reais sobre um imóvel situado num Estado terceiro, ou quando as partes tivessem acordado submeter os seus diferendos a órgãos jurisdicionais desse Estado.

III – O sentido e o alcance das questões prejudiciais

64.      Tendo em conta as teses apresentadas pelas partes, a Court of Appeal decidiu suspender a instância e apresentar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)
No caso de o requerente invocar o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 1968, é compatível com esta última a decisão de um tribunal de um Estado contratante que, com base num poder de apreciação de que o mesmo dispõe ao abrigo da lei interna, se declara incompetente para conhecer de uma acção proposta contra uma pessoa com domicílio nesse Estado, a favor dos tribunais de um Estado terceiro:

a)
quando não está em causa o foro de nenhum outro Estado contratante na mesma convenção;

b)
quando a causa não apresenta elementos de conexão com nenhum outro Estado contratante?

2)
Se a resposta à questão 1 a) ou b) for afirmativa, o facto referido é compatível com todos os casos ou apenas nalguns, e nesse caso, em quais?»

65.      Segundo a Court of Appeal, nenhuma resposta precisa a estas questões resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, incluindo do acórdão Group Josi, já referido. Assim sendo, indica ter tido, por diversas vezes, a oportunidade de apreciar tais questões e de confirmar a sua jurisprudência Harrods, quer no que respeita à Convenção de Bruxelas quer quanto à Convenção de Lugano  (46) .

66.      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio chama a atenção do Tribunal de Justiça para o facto de, na hipótese de este último adoptar a interpretação do artigo 2.° sustentada pelo autor, e de ele próprio (o órgão jurisdicional de reenvio) considerar que o litígio que opõe o autor ao primeiro réu é real (e não meramente fantasista), a questão que então se colocaria quanto ao chamamento dos outros réus ao processo inglês poderia levantar dificuldades particulares.

67.      Com efeito, em caso de chamamento, a sentença proferida em Inglaterra que decidisse do mérito da causa e cuja execução se procurasse obter na Jamaica poderia ser confrontada com a existência de determinadas regras em vigor neste país em matéria de reconhecimento e de execução de sentenças estrangeiras. Além disso, na hipótese inversa, de não se proceder ao chamamento, poderia dar‑se o caso de o órgão jurisdicional inglês e de o órgão jurisdicional jamaicano proferirem decisões inconciliáveis, apesar de terem de decidir o mesmo litígio com base em elementos de prova idênticos ou semelhantes  (47) .

68.      Estes elementos relativos à situação da terceira, da quarta e da sexta rés só são evocados pelo órgão jurisdicional de reenvio como elementos de contexto para chamar a atenção do Tribunal de Justiça para as consequências da interpretação que este fará do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, apenas quanto à situação do primeiro réu, no que respeita à resolução de todo o litígio. É pacífico, com efeito, que a parte do litígio que respeita à terceira, à quarta e à sexta ré não é susceptível de ser abrangida pelo artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, uma vez que estes têm domicílio num Estado não contratante.

69.      Para precisar ainda melhor o alcance das questões prejudiciais, há que salientar, tal como o fez a Comissão  (48) , que o litígio no processo principal não se inscreve no âmbito de uma situação de litispendência ou de conexão com um processo pendente que tivesse sido submetido a um órgão jurisdicional de um Estado terceiro antes de ser submetido a um órgão jurisdicional de um Estado contratante, nem no âmbito de um pacto atributivo de competência a favor dos órgãos jurisdicionais de um Estado terceiro. Portanto, não é necessário examinar se, como os réus no processo principal sugerem (invocando o acórdão Harrods da Court of Appeal), a aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas pode estar excluída nestas hipóteses.

70.      Além disso, como A. Owusu salientou  (49) , embora o litígio no processo principal apresente efectivamente um elemento de conexão com um Estado terceiro, é pacífico que este elemento é de natureza diferente daqueles em que se baseia a competência exclusiva de um órgão jurisdicional de um Estado contratante, em conformidade com o artigo 16.° da Convenção de Bruxelas. Nestas condições, também não é necessário verificar se, nesta hipótese, a aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas pode estar excluída, nomeadamente devido a um eventual «efeito reflexo» das regras de competência exclusiva do artigo 16.°, quando os elementos de conexão previstos neste artigo se situam no território de um Estado não contratante.

71.      Tal como A. Owusu, a Comissão e o Governo do Reino Unido (que se expressaram oralmente sobre estas diferentes hipóteses), parece‑me conveniente limitar o alcance da reposta do Tribunal de Justiça ao estritamente necessário à solução do litígio no processo principal.

72.      Neste sentido, proponho, por um lado, proceder a uma reformulação da primeira questão prejudicial, destacando as diferentes etapas da problemática a examinar, e, por outro, declarar que a segunda questão prejudicial é inadmissível.

73.      No que respeita à primeira questão prejudicial, parece‑me conveniente dividi‑la em duas questões distintas, sendo uma prévia à outra, pelo que há que lhe dar resposta antes de apreciar a questão seguinte. Com efeito, antes de apreciar se a Convenção de Bruxelas se opõe a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante renuncie ao exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.° da Convenção de Bruxelas por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante estar melhor colocado para decidir do mérito da causa, há que saber se, tal como o autor alega, o artigo 2.° da referida Convenção visa efectivamente aplicar‑se na situação do caso em apreço, podendo este artigo justificar a competência do órgão jurisdicional ao qual a acção é submetida.

74.      Por conseguinte, parece‑me que a primeira questão prejudicial deve ser entendida no sentido de se decompor em duas vertentes, nos termos seguintes.

75.      Antes de mais, através desta questão o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, se o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas visa aplicar‑se quando tanto o requerente como o requerido tenham domicílio no mesmo Estado contratante e o litígio que os opõe, nos órgãos jurisdicionais desse Estado contratante, apresenta determinados elementos de conexão com um Estado terceiro, e não com outro Estado contratante, pelo que a única questão de repartição de competência susceptível de se colocar neste litígio surge apenas nas relações entre os órgãos jurisdicionais de um Estado contratante e os de um Estado terceiro, e não nas relações entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes.

76.      Por outras palavras, trata‑se de determinar se a situação do litígio no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas.

77.      Seguidamente, em caso de resposta positiva a esta questão prévia, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, se a Convenção de Bruxelas se opõe a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência é estabelecida com fundamento no artigo 2.° da referida Convenção – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante estar melhor colocado para decidir do litígio quanto ao mérito, quando este último não foi designado por nenhum pacto atributivo de jurisdição, não lhe foi anteriormente submetido nenhum pedido susceptível de gerar uma situação de litispendência ou de conexão e os elementos de conexão do referido litígio com este Estado não contratante são de natureza diferente da dos previstos no artigo 16.° da Convenção de Bruxelas.

78.      Por outras palavras, trata‑se de determinar se a Convenção de Bruxelas de opõe à aplicação da teoria do forum non conveniens numa situação como a do litígio no processo principal.

79.      Só em caso de resposta positiva a esta questão é que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, nos termos da sua segunda questão prejudicial, se a Convenção de Bruxelas a isso se opõe em todas as circunstâncias ou apenas em determinadas circunstâncias e, neste último caso, em quais. Na mina opinião, esta segunda questão prejudicial deve ser julgada inadmissível.

80.      Com efeito, a leitura do despacho de reenvio leva a crer que esta segunda questão prejudicial visa, antes de mais, saber se a resposta do Tribunal de Justiça à questão anterior seria diferente no caso de o litígio no processo principal se caracterizar por uma situação de litispendência ou de conexão com um processo pendente num órgão jurisdicional de um Estado terceiro, ou pela existência de um pacto atributivo de competência a favor desse órgão jurisdicional, ou por um elemento de conexão com esse Estado do tipo dos previstos no artigo 16.° da Convenção de Bruxelas  (50) . Ora, como referi, trata‑se de situações de facto que não correspondem às do litígio no processo principal.

81.      Entendida neste sentido, esta segunda questão prejudicial é hipotética, pelo que deve ser julgada inadmissível. Com efeito, no âmbito do processo de reenvio prejudicial, cabe ao Tribunal de Justiça, ao verificar a sua própria competência, apreciar as condições em que o órgão jurisdicional nacional se lhe dirige. A este propósito, o Tribunal de Justiça tem sublinhado constantemente que «o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros e não emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas»  (51) . Daqui resulta que, segundo jurisprudência constante, tais questões prejudiciais são inadmissíveis. Concluo que a segunda questão prejudicial deve ser julgada inadmissível.

IV – Análise

82.      Numa primeira fase, examinarei a questão relativa ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas (ou seja, a primeira vertente da primeira questão prejudicial). Numa segunda fase, tendo em conta a resposta a esta questão prévia, examinarei a questão relativa à compatibilidade da teoria do forum non conveniens com a referida Convenção (ou seja, a segunda vertente da primeira questão prejudicial).

A – Quanto ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas

83.      Recorde‑se que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga, essencialmente, sobre se o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas visa aplicar‑se quando o requerente e o requerido tenham domicílio no mesmo Estado contratante e o litígio que os opõe, nos órgãos jurisdicionais desse Estado contratante, apresenta certos elementos de conexão com um Estado terceiro, e não com outro Estado contratante, pelo que a única questão de repartição de competência susceptível de se colocar neste litígio surge apenas nas relações entre os órgãos jurisdicionais de um Estado contratante e os de um Estado terceiro, e não nas relações entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes.

84.      De modo esquemático, esta questão equivale a procurar saber se a aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas está subordinada à existência de uma relação jurídica que envolva diferentes Estados contratantes.

85.      Não tendo o âmbito de aplicação espacial deste artigo sido definido com precisão pela Convenção, esta questão suscitou numerosos debates, na maioria de origem doutrinária, em especial desde que a Court of Appeal se pronunciou quanto a este aspecto, há uma dezena de anos, no famoso processo Harrods.

86.      Algumas das partes no processo principal consideraram que se poderia claramente retirar uma resposta a esta questão do relatório de P. Jenard sobre a Convenção de Bruxelas  (52) (como foi inicialmente adoptada em 27 se Setembro de 1968).

87.      Passo a abordar, antes de mais, o relatório de P. Jenard bem como o debate que suscitou, em especial por parte da doutrina. Seguidamente, examinarei, sucessivamente, a letra do artigo 2.°, a economia geral da Convenção bem como os objectivos que prossegue. Por fim, analisarei diversos argumentos aduzidos por algumas das partes para se oporem à aplicação do artigo 2.° da Convenção ao processo principal.

1. O relatório de P. Jenard e o amplo debate que suscitou

88.      Tal como referi, o preâmbulo da Convenção prevê, no seu único considerando, que a referida convenção visa «determinar a competência dos [...] órgãos jurisdicionais [dos Estados contratantes] na ordem internacional  […]».

89.      No seu relatório, P. Jenard retira destas disposições as seguintes conclusões  (53) :

«[A Convenção de Bruxelas] só altera as normas de competência em vigor em cada um dos Estados contratantes se surgir um elemento de estraneidade. Não define no entanto essa noção, dado que o carácter internacional da relação jurídica pode depender de circunstâncias específicas do litígio apresentado ao tribunal. No caso de acções instauradas nos tribunais de um Estado contratante que se refiram apenas a pessoas domiciliadas nesse Estado, a Convenção não desempenha em princípio qualquer papel; o artigo 2.° limita‑se a remeter para as normas de competência em vigor nesse Estado. Um litígio deste tipo pode contudo revestir‑se de um carácter internacional. Seria esse o caso se, por exemplo, o requerido fosse estrangeiro; nessa hipótese, poderia intervir o princípio da assimilação previsto no segundo parágrafo do artigo 2.° ou ainda se o litígio se referisse a uma matéria em relação à qual houvesse competência exclusiva noutro Estado (artigo 16.°) ou em caso de litispendência ou conexão com um diferendo apresentado nos tribunais de um outro Estado (artigos 21.° a 23.°)».

90.      Os réus no processo principal e o Governo do Reino Unido invocam este relatório para sustentar que as únicas questões de competência internacional abrangidas pelas regras estabelecidas pela Convenção de Bruxelas são as que surgem entre os Estados contratantes nas suas relações mútuas. Daqui decorre que a Convenção, em particular o seu artigo 2.°, não visa aplicar‑se a um litígio que não tenha elementos de conexão com mais de um Estado contratante, ou seja, a uma relação jurídica puramente interna a um Estado contratante ou extracomunitária ou não puramente intracomunitária, por outras palavras, que não se circunscreva a vários Estados contratantes mas implique um Estado contratante e um Estado terceiro.

91.      Segundo o primeiro réu no processo principal e o Governo do Reino Unido, esta tese tem apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, no acórdão de 6 de Outubro de 1976, Tessili  (54) , bem como no acórdão de 15 de Maio de 1990, Hagen  (55) , o Tribunal de Justiça indicou, de modo geral, que as regras de competência estabelecidas pela Convenção se aplicam nas relações intracomunitárias .

92.      Na minha opinião, é excessivo ver nesta jurisprudência a expressão de um princípio geral que permite determinar o âmbito de aplicação territorial ou pessoal de todas as regras de competência que constam da Convenção, em todas as hipóteses.

93.      Com efeito, nenhum destes dois processos colocava questões deste tipo, pelo que não era necessário que o Tribunal de Justiça se pronunciasse sobre esse aspecto. De resto, estes processos respeitavam apenas ao artigo 5.°, n.° 1, da Convenção, bem como ao artigo 6.°, n.° 2, e não ao artigo 2.°, como é o caso do processo principal. Ora, como se verá adiante  (56) , o artigo 5.°, n.° 1, da referida convenção, bem como o seu artigo 6.°, n.° 2, não colocam nenhum problema particular de interpretação quanto ao respectivo âmbito de aplicação no espaço, pois respeitam, manifestamente, a situações que implicam necessariamente vários Estados contratantes.

94.      Daqui decorre, na minha opinião, que o Tribunal de Justiça nunca se pronunciou a favor da tese desenvolvida no relatório de P. Jenard e defendida pelos réus no processo principal, bem como pelo Governo do Reino Unido, no seguimento de uma parte da doutrina inglesa  (57) .

95.      Além disso, é interessante observar que esta tese está longe de receber a unanimidade da doutrina. Pode até dizer‑se que se desenha uma forte tendência a favor de uma tese diametralmente oposta. Trata‑se da que foi avançada por G. Droz, que participou, como P. Jenard, na elaboração da Convenção de Bruxelas  (58) .

96.      Segundo esta tese, partilhada por numerosos autores  (59) , a expressão contida no preâmbulo (ou seja, determinar a competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes na ordem internacional ) não deve ser entendida no sentido de que a aplicação do artigo 2.° da Convenção está subordinada à verificação de uma condição particular relativa à internacionalidade da relação jurídica em causa.

97.      Com efeito, segundo G. Droz, só havia interesse em limitar a aplicação da Convenção às relações jurídicas internacionais se certas regras de competência que dela constam pudessem imiscuir‑se na ordem jurídica interna. Ora, o artigo 2.° em questão limita‑se a remeter para as regras de competência internas em vigor no Estado contratante do domicílio do requerido, ou seja, as regras de repartição de competência territorial no interior desse Estado. Não haveria, portanto, qualquer risco de a regra do artigo 2.° influir directamente na ordem jurídica interna.

98.      Este autor retirou daí a conclusão de que, para a aplicação do artigo 2.° da Convenção, é indiferente que o requerente tenha ou não domicílio no Estado contratante do domicílio do requerido e que se distinga entre relações internacionais e relações internas  (60) .

99.      Em conformidade com esta lógica, acrescentou que, ao contrário da regra de competência geral que consta do artigo 2.°, as regras de competência especial enumeradas no artigo 5.° indicam, para certos litígios, um tribunal determinado, por exemplo, em matéria de responsabilidade extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso. Precisou que o mesmo se passa com as regras de competência em matéria de seguros (título II, secção 3, da Convenção) bem como com as relativas aos contratos celebrados pelos consumidores (título II, secção 4, da referida Convenção).

100.    G. Droz sublinhou que, precisamente, nestas diferentes hipóteses, o contexto é necessariamente internacional, uma vez que se trata unicamente de casos em que um requerido com domicílio no território de um Estado contratante é demandado no órgão jurisdicional de outro Estado contratante. Por outras palavras, no que respeita a estas disposições, a expressão «na ordem internacional», que consta do preâmbulo da Convenção, tem um alcance meramente declarativo e não constitutivo, no sentido de que se limita a reconhecer a existência de um dado adquirido, pelo que não é de modo algum necessário exigi‑lo para confirmar a sua existência.

101.    Finalmente, na sua opinião, o único caso em que a expressão em questão poderia ter interesse, ou seja, ter um alcance constitutivo, seria o de as partes no litígio terem domicílio no mesmo Estado contratante e terem designado um órgão jurisdicional desse Estado para conhecer dos seus diferendos, precisando‑se que o fundo da questão controvertida não teria qualquer carácter internacional.

102.    Com efeito, embora o artigo 17.° da Convenção só admita a competência exclusiva do ou dos tribunal(ais) designado(s) pelas partes num pacto atributivo de jurisdição em certas condições, não exige expressamente que a relação jurídica em causa possua um elemento de estraneidade. Se atendermos simplesmente à sua letra, não se pode excluir, portanto, que o artigo 17.° se aplique a relações jurídicas puramente internas. É só nesta hipótese que se pode recorrer à referência à internacionalidade das regras de competência que consta do preâmbulo da Convenção de Bruxelas, para excluir a aplicação do artigo 17.°  (61) .

103.    Em resumo, pode concluir‑se desta tese que o artigo 2.° da Convenção não está subordinado à existência de qualquer relação jurídica internacional, independentemente da sua forma, ou seja, de essa relação jurídica implicar um Estado contratante e um Estado terceiro ou dois Estados contratantes.

104.    Houve quem avançasse uma tese intermédia segundo a qual, admitindo que o carácter internacional da relação jurídica em questão constitui uma condição de aplicabilidade do artigo 2.° da Convenção, não há razões para considerar que a internacionalidade que decorre de uma relação jurídica que envolve um Estado contratante e um Estado terceiro não é suficiente para que esta que condição esteja preenchida  (62) . Esta tese foi defendida pelo Governo alemão  (63) .

105.    Esta exposição das diferentes teses em presença demonstra que os desenvolvimentos do relatório de P. Jenard sobre o âmbito de aplicação territorial ou pessoal da Convenção estão longe de obter ampla adesão.

106.    Na minha opinião, a tese que prevalece do relatório em questão não resiste a um exame em profundidade da Convenção. Com efeito, nem a letra do artigo 2.° nem a economia geral da Convenção se opõem a que este artigo se aplique a uma relação jurídica que implique apenas um Estado contratante e um Estado terceiro. Além disso, e pelo contrário, os objectivos prosseguidos pela Convenção opõem‑se a que a aplicação do referido artigo 2.° esteja subordinada à existência de uma relação jurídica que envolva vários Estados contratantes, pelo que a aplicação deste seria excluída no quadro de um litígio associado a um Estado contratante e a um país terceiro.

2. A letra do artigo 2.° da Convenção

107.    Recorde‑se que o artigo 2.° da Convenção dispõe que: «Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.

As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado em que estão domiciliadas ficam sujeitas nesse Estado às regras de competência aplicáveis aos nacionais.»

108.    Há que constatar que nada no texto deste artigo indica que a aplicação da regra de competência aí enunciada está sujeita a uma condição de existência de uma relação jurídica que implique vários Estados contratantes. A única condição prevista para a sua aplicação é a respeitante ao domicílio do requerido. Se nos ativermos ao texto do artigo 2.°, basta, portanto, que o requerido tenha domicílio no território de um Estado contratante para que este artigo se aplique.

109.    Indica‑se, assim, expressamente que a nacionalidade do requerido é indiferente. Pouco importa que este tenha a nacionalidade do Estado contratante onde tem domicílio, a de outro Estado contratante ou a de um Estado terceiro.

110.    Embora o artigo 2.° não o preveja expressamente, o mesmo se passa, necessariamente, com o requerente: pouco importa o seu domicílio ou a sua nacionalidade.

111.    Foi o que o Tribunal de Justiça destacou no acórdão Group Josi, já referido, a propósito de um litígio que opunha uma companhia de seguros de direito canadiano com sede em Vancouver (requerente) a uma sociedade de resseguros de direito belga com sede em Bruxelas (requerida), na sequência da participação desta última numa operação de resseguro, que lhe tinha sido proposta por uma sociedade de direito francês com sede em França, segundo as instruções da sociedade canadiana em questão. Tendo a sociedade belga suscitado a incompetência do órgão jurisdicional francês a que o litígio foi submetido, invocando, nomeadamente, o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, a Cour d’Appel de Versailles (França) perguntou ao Tribunal de Justiça se as regras de competência previstas pela referida Convenção são aplicáveis quando o requerido tem domicílio ou sede no território de um Estado contratante e o requerente tem domicílio num país terceiro. Este órgão jurisdicional apresentou tal questão ao Tribunal de Justiça porque se interrogou sobre se as regras da Convenção podem ser opostas a um requerente domiciliado num Estado não contratante, uma vez que, na sua opinião, isto levaria a uma extensão do direito comunitário a países terceiros  (64) .

112.    Em resposta a esta questão prejudicial, o Tribunal de Justiça declarou que, «regra geral, a localização do domicílio do requerente não é pertinente para efeitos de aplicação das regras de competência estipuladas pela convenção, pois esta aplicação depende, em princípio, apenas do critério do domicílio do requerido situado num Estado contratante»  (65) . Precisou que «[s]ó assim não sucede nos casos excepcionais em que a convenção faz expressamente depender esta aplicação das regras de competência da localização do domicílio do requerente num Estado contratante»  (66) . O Tribunal de Justiça concluiu que «a convenção não se opõe, em princípio, a que as regras de competência que enuncia se apliquem a um litígio entre um requerido domiciliado num Estado contratante e um requerente domiciliado num país terceiro»  (67) .

113.    Na minha opinião, esta jurisprudência pode ser transporta para a hipótese de o requerente ter domicílio no mesmo Estado contratante que o requerido.

114.    Parece‑me, com efeito, que, se os autores da Convenção tivessem realmente tido a intenção de excluir a aplicação do artigo 2.° da Convenção nesta hipótese, teriam tido o cuidado de o indicar expressamente no próprio corpo da Convenção. Ora, não é isso que se passa. Esta conclusão não é infirmada pelos desenvolvimentos do relatório de P. Jenard, pois estes só vinculam o seu autor, com exclusão dos Estados contratantes. Parece‑me, portanto, que o artigo 2.° da Convenção visa aplicar‑se mesmo quando o requerente tem domicílio no mesmo Estado contratante que o requerido.

115.    Esta conclusão mantém‑se mesmo na hipótese em que, como no caso em apreço, o fundo da questão não está ligado a nenhum outro Estado contratante, mas apenas a um país terceiro.

116.    Resulta, com efeito, do texto do artigo 2.° que a regra de competência que enuncia se aplica «sem prejuízo do disposto na presente convenção». Ora, como se verá ao examinar a economia geral da Convenção, embora certas regras de competência – que não as do artigo 2.° – só visem aplicar‑se na hipótese particular de a questão controvertida ou a situação das partes estiver ligada a vários Estados contratantes, isso não quer dizer que o mesmo se passa com o artigo 2.° Afirmar o contrário seria ignorar a especificidade dessas outras regras de competência.

117.    Além disso, alargar deste modo a exigência de uma condição relativa à existência de uma relação jurídica que envolva vários Estados contratantes equivaleria a acrescentar ao texto do artigo 2.° da Convenção uma condição suplementar que aí não se encontra prevista. Este aditamento seria muito provavelmente contrário à vontade dos autores da Convenção. Com efeito, como o Governo alemão correctamente sublinhou, se estes tivessem querido limitar a aplicação do artigo 2.° à hipótese em que estejam envolvidos vários Estados contratantes, teriam tido o cuidado de o indicar expressamente, como o fizeram para as outras regras de competência em questão.

118.    Retiro daqui a conclusão de que o texto do artigo 2.° da Convenção não obsta a que este artigo se aplique a uma relação jurídica ligada apenas a um Estado contratante e a um Estado terceiro. A economia geral da Convenção confirma esta interpretação.

3. A economia geral da Convenção

119.    Na minha opinião, a economia geral da Convenção também não obsta a que o seu artigo 2.° se aplique a uma relação jurídica que apenas está ligada a um Estado contratante e a um país terceiro.

120.    Com efeito, como adiante se verá em pormenor, o espaço judicial estabelecido pela Convenção de Bruxelas é um espaço de geometria variável susceptível – consoante as circunstâncias e as disposições em questão da referida Convenção – de ser reduzido a relações jurídicas que envolvam vários Estados contratantes ou de se estender a uma escala mundial no âmbito de litígios ligados a um Estado contratante e a um, ou vários, Estado(s) terceiros(s).

121.    Daqui se deduz que, se é certo que determinadas disposições da Convenção só visam, em princípio, aplicar‑se a relações jurídicas que envolvam vários Estados contratantes, a economia geral da referida Convenção não obsta a que assim não seja no que respeita às disposições do artigo 2.° Na minha opinião, daqui decorre que este artigo é susceptível de se aplicar, consoante as circunstâncias, a relações jurídicas que envolvam vários Estados contratantes ou a litígios ligados a um Estado contratante e a um, ou vários, Estado(s) terceiros(s).

122.   É o que passo agora a desenvolver ao examinar sucessivamente as diversas disposições da Convenção.

123.    Antes de mais, há que recordar que o artigo 4.°, primeiro parágrafo, da Convenção prevê que, «[s]e o requerido não tiver domicílio no território de um Estado Contratante, a competência será regulada em cada Estado Contratante pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 16.°» da Convenção. Por outras palavras, quando o requerido tem domicílio num Estado terceiro, em princípio, a competência do órgão jurisdicional ao qual a acção é apresentada é estabelecida pelas regras de competência em vigor no Estado contratante em cujo território esse órgão jurisdicional estiver situado, e não pelas regras de competência directa definidas na Convenção.

124.    A aplicação das regras de competência directa estabelecidas pela Convenção só é excluída, portanto (sem prejuízo das que constam do artigo 16.°), no caso de o requerido ter domicílio num Estado terceiro. Daqui decorre que nada leva a crer que a aplicação da regra de competência do artigo 2.° da Convenção seja excluída nas hipóteses em que o requerente e o requerido, ou um dos requeridos (como no litígio no processo principal), estejam domiciliados no mesmo Estado contratante e em que a relação jurídica em questão esteja, além disso, ligada a um Estado terceiro, e não a outro Estado contratante (em razão do mérito do litígio e/ou, eventualmente, do domicílio dos outros requeridos).

125.    Retiro daqui a conclusão de que o artigo 4.°, primeiro parágrafo, da Convenção tende a confirmar a tese segundo a qual a regra de competência estabelecida no artigo 2.° da referida Convenção é susceptível de se aplicar a uma situação como a do litígio no processo principal.

126.   É certo que, como já referi, determinadas regras de competência – que não a do artigo 2.° – só visam aplicar‑se se o fundo da causa ou a situação das partes estiver ligado a vários Estados contratantes. É o caso das regras de competência especial que constam dos artigos 5.° e 6.° da Convenção, bem como das regras de competência particular , enumeradas no título II, secções 3 e 4, da referida Convenção, em matéria de seguros e de contratos celebrados pelos consumidores.

127.    Há que recordar, todavia, que, em conformidade com jurisprudência constante  (68) , estas regras de competência, especial ou particular, derrogam a regra de princípio estabelecida no artigo 2.°, no sentido em que dão ao requerente a possibilidade de, em casos enumerados taxativamente, optar por intentar a sua acção e, portanto, demandar o requerido, nos órgãos jurisdicionais de outro Estado contratante que não aquele onde este último está domiciliado.

128.    Estas regras de competência derrogatórias respondem ou a exigências de boa administração da justiça e de organização útil do processo, tendo em conta a existência de um elemento de conexão directo ou particularmente estreito entre o litígio e órgãos jurisdicionais de outro Estado contratante que não o do domicílio do requerido  (69) , ou a uma preocupação de protecção de certos requerentes, cuja situação particular justifica a admissão, a título excepcional, da competência dos órgãos jurisdicionais do Estado contratante do seu domicílio, que, por hipótese, se situa noutro Estado contratante que não o do requerido  (70) .

129.   É apenas neste quadro específico que a Convenção de Bruxelas subordina a aplicação de regras de competência à existência de uma relação jurídica ligada a vários Estados contratantes, em razão do fundo da causa ou do domicílio respectivo das partes num litígio.

130.    Com efeito, se é evidente que a aplicação de regras de competência concorrentes com a que resulta do domicílio do requerido pressupõe a existência de um elemento de conexão a outro Estado contratante que não o do domicílio do requerido, não é esse o caso da regra de competência do artigo 2.°, uma vez que, precisamente, se baseia exclusivamente nesse domicílio.

131.    Retiro daqui a conclusão de que o que é válido para a aplicação das regras de competência especiais ou particulares da Convenção não o é para a aplicação da regra geral do artigo 2.°

132.   É interessante observar, de resto, que a aplicação das regras de competência particulares (enumeradas no título II, secções 3 e 4, da Convenção) não pressupõe necessariamente que o requerido esteja real ou verdadeiramente domiciliado num Estado contratante (na acepção do direito interno desse Estado, na falta de definição da noção de domicílio pela Convenção). É possível, portanto, que estas regras de competência se apliquem quando a relação jurídica em causa implica sobretudo um Estado contratante e um Estado terceiro, em vez de dois Estados contratantes.

133.    Com efeito, o artigo 8.° (em matéria de seguros) bem como o artigo 13.° da Convenção (em matéria de contratos celebrados pelos consumidores) prevêem, respectivamente, que, quando o segurador ou o co‑contratante do consumidor não tenha domicílio no território de um Estado contratante, mas possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado contratante, será considerado, quanto aos litígios relativos à sua exploração, como tendo domicílio no território desse Estado.

134.    Resulta destas disposições que um segurador ou o co‑contratante de um consumidor que tenha domicílio num Estado terceiro é, para efeitos da aplicação das regras de competência protectoras que existem nesta matéria, considerado domiciliado num Estado contratante. Esta ficção jurídica permite escapar à aplicação do artigo 4.° da Convenção, ou seja, ao jogo das regras de competência em vigor no Estado contratante em cujo território se encontra o órgão jurisdicional ao qual a acção é apresentada quando o requerido tem domicílio num Estado terceiro  (71) .

135.    Seria excessivo, portanto, entender que a aplicação das regras de competência particulares do título II, secções 3 e 4, da Convenção se inscreve necessariamente no âmbito de uma relação jurídica que envolve verdadeiramente ou de modo significativo dois Estados contratantes.

136.    Quanto às regras de competência exclusiva do artigo 16.° da Convenção, indica‑se expressamente que as mesmas se aplicam «qualquer que seja o domicílio». Com efeito, estas regras de competência, derrogatórias da regra geral do artigo 2.° da Convenção, baseiam‑se na existência de nexos particularmente estreitos entre o fundo da causa e o território de um Estado contratante  (72) . É o caso, por exemplo, de um litígio em matéria de direitos reais sobre imóveis ou de arrendamento. Neste caso, o fundo da causa está profundamente ligado ao Estado contratante em cujo território se situa o imóvel em questão, pelo que os órgãos jurisdicionais desse Estado contratante são os únicos competentes para conhecer de tal litígio.

137.    O Tribunal de Justiça precisou que estas regras de competência exclusiva se aplicam «independentemente do domicílio tanto do requerente como do requerido»  (73) . Esta precisão visava demonstrar que, em princípio, não é necessário que o requerente tenha domicílio num Estado contratante para que as regras de competência previstas pela Convenção se devam aplicar, pelo que, em geral, estas se aplicam mesmo quando o requerente tenha domicílio num Estado terceiro.

138.    No seguimento desta jurisprudência, pode afirmar‑se que as regras de competência do artigo 16.° da Convenção visam também aplicar‑se quando o requerido tem domicílio num Estado terceiro ou mesmo quando todas as partes estiverem estabelecidas num tal Estado  (74) .

139.    Assim, independentemente das consequências que decorreriam de um eventual «efeito reflexo» do artigo 16.° da referida Convenção, na hipótese de um dos elementos de conexão previstos neste artigo se situar no território de um Estado não contratante  (75) , pode afirmar‑se que as regras de competência que constam desse artigo são susceptíveis de se aplicar a relações jurídicas com nexos apenas com um Estado contratante (devido a um dos elementos de conexão previstos no referido artigo) e com um Estado terceiro (devido ao domicílio do requerente e/ou do requerido). A este respeito, o âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 16.° pode aproximar‑se do relativo ao artigo 2.°

140.    O mesmo se passa com as regras da Convenção em matéria de extensão expressa de competência. Com efeito, prevê‑se expressamente que estas regras são susceptíveis de se aplicar quando uma das partes num pacto atributivo de jurisdição, ou algumas delas, (artigo 17.°, primeiro parágrafo), ou mesmo todas (artigo 17.°, segundo parágrafo), tenham domicílio num Estado terceiro. As regras em questão podem, portanto, intervir exclusivamente nas relações entre um ou mais Estados terceiros (em cujo território as partes tenham domicílio) e um Estado contratante (em cujo território se situe o foro escolhido).

141.    Assim, as regras da Convenção, tanto em matéria de competência exclusiva como em matéria de extensão expressa de competência, visam aplicar‑se a relações jurídicas que impliquem unicamente um Estado contratante e um ou mais Estados terceiros. Isto demonstra bem que todas as regras de competência estabelecidas pela Convenção não se limitam, na sua aplicação, a relações jurídicas que impliquem vários Estados contratantes.

142.    Quanto às outras regras da Convenção de Bruxelas, em matéria de litispendência e de conexão, bem como de reconhecimento e de execução, é certo que visam aplicar‑se no âmbito das relações entre diferentes Estados contratantes. É o que resulta claramente do texto do artigo 21.° em matéria de litispendência, do artigo 22.° em matéria de conexão, bem como dos artigos 25.°, 26.° e 31.° em matéria de reconhecimento e execução.

143.    Com efeito, segundo jurisprudência constante, o artigo 21.°, bem como o artigo 22.° da Convenção, visam, no interesse de uma boa administração da justiça na Comunidade, evitar que em tribunais de diversos Estados contratantes estejam pendentes processos paralelos, bem como a disparidade de decisões que daí pode resultar, no sentido de excluir, na medida do possível, os casos em que uma decisão proferida num Estado contratante é susceptível de não ser reconhecida noutro Estado contratante  (76) .

144.    No que respeita ao mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução de decisões judiciais, foi instituído pela Convenção de Bruxelas num contexto específico marcado pela confiança mútua dos Estados‑Membros da Comunidade quanto aos seus sistemas jurídicos e às suas instituições judiciais  (77) . Ora, este contexto não existe necessariamente nas relações entre os Estados‑Membros e os Estados terceiros. É por essa razão que este mecanismo convencional se aplica apenas às decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro no âmbito do seu reconhecimento e da sua execução noutro Estado‑Membro.

145.    Assim, o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão de 20 de Janeiro de 1994, Owens Bank  (78) , que as regras da Convenção em matéria de reconhecimento e de execução não se aplicam aos processos que se destinam a declarar exequíveis as sentenças proferidas num Estado terceiro. O Tribunal de Justiça deduziu daí que as regras relativas à litispendência e à conexão não visam resolver os problemas que se colocam no âmbito de processos que surjam paralelamente em diferentes Estados contratantes relativamente ao reconhecimento e à execução de sentenças proferidas num Estado terceiro (79) .

146.    Há que reconhecer, portanto, que as regras da Convenção de Bruxelas em matéria de litispendência e de conexão, bem como de reconhecimento e de execução, só visam, em princípio, aplicar‑se no âmbito de relações entre diferentes Estados contratantes.

147.    Todavia, nada obsta a que assim não seja quanto à regra de competência estabelecida no artigo 2.° da Convenção.

148.    Além disso, há que precisar que as regras em questão nem sempre se limitam apenas ao âmbito das relações entre vários Estados contratantes, uma vez que também são susceptíveis de se aplicar no âmbito de litígios ligados a um Estado contratante e a um Estado terceiro.

149.    Com efeito, quando se trata das regras em matéria de litispendência ou de conexão, não é necessário que alguma das partes no litígio tenha domicílio no território de um Estado contratante para que o artigo 21.° ou o artigo 22.° se aplique. Foi o que o Tribunal de Justiça destacou no acórdão Overseas Union Insurance e o., já referido, a propósito do artigo 21.°, ao declarar que «esta disposição deve ser aplicada tanto no caso em que a competência do tribunal é determinada pela própria convenção como no caso em que decorre da legislação de um Estado contratante, em conformidade com o artigo 4.° da convenção», ou seja, quando o requerido tem domicílio num Estado terceiro (80) . O mesmo é válido para o artigo 22.°, na falta de disposições que imponham qualquer exigência quanto a este aspecto.

150.    De igual modo, como o Governo alemão e a Comissão sublinharam, as regras da Convenção em matéria de reconhecimento e execução das decisões visam aplicar‑se independentemente do fundamento de competência em que se basearam os órgãos jurisdicionais que proferiram as decisões em questão. Esta competência pode resultar da Convenção ou da legislação do Estado contratante em cujo território se situam os órgãos jurisdicionais em causa.

151.    Daqui decorre que, para a aplicação destas regras da Convenção, pouco importa que o litígio em causa esteja ligado a um único Estado contratante  (81) , a vários Estados contratantes ou a um Estado contratante e a um Estado terceiro.

152.    Por outras palavras, se da sua letra resulta claramente que as regras da Convenção em matéria de litispendência e de conexão ou de reconhecimento e execução se aplicam no âmbito de relações entre diferentes Estados contratantes, uma vez que respeitam a processos pendentes em órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes ou a decisões proferidas por órgãos jurisdicionais de um Estado contratante com vista ao seu reconhecimento e execução noutro Estado contratante, não deixa de ser verdade que os litígios tratados pelos processos ou pelas decisões em questão podem ter um carácter puramente interno ou um carácter internacional que envolva um Estado contratante e um Estado terceiro, e nem sempre dois Estados contratantes.

153.    Aliás, é precisamente porque os litígios em questão podem estar ligados a Estados terceiros que os autores da Convenção consideraram necessário prever certas regras específicas em matéria de reconhecimento.

154.    Assim, o artigo 27.°, n.° 5, da Convenção prevê que uma decisão proferida num Estado contratante não será reconhecida noutro Estado contratante (o Estado requerido) se essa decisão for inconciliável com outra anteriormente proferida num Estado terceiro, entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão do Estrado terceiro reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado requerido (quer ao abrigo do direito internacional comum do Estado requerido, quer ao abrigo de acordos internacionais por este celebrados).

155.    Além disso, resulta da conjugação dos artigos 28.°, primeiro parágrafo, e 59.°, primeiro parágrafo, da Convenção que um Estado contratante tem o direito de não reconhecer uma decisão proferida pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado contratante, em aplicação de uma regra de competência exorbitante em vigor nesse Estado (em conformidade com o artigo 4.° da Convenção), contra um requerido que tenha domicílio ou residência habitual no território de um Estado terceiro, quando o Estado requerido tenha celebrado com esse Estado terceiro um acordo pelo qual se tenha comprometido com este último a não reconhecer tal decisão nessa hipótese.

156.    Este mecanismo de bloqueio foi previsto pela Convenção para responder às preocupações de certos Estados terceiros face à perspectiva da aplicação das regras da Convenção de Bruxelas tendentes a assegurar a livre circulação das sentenças dentro da Comunidade relativamente a requeridos estabelecidos nos Estados terceiros em questão  (82) .

157.    Todos estes desenvolvimentos demonstram que o espaço judicial instituído pela Convenção de Bruxelas não termina nas fronteiras exteriores da comunidade dos Estados contratantes. Assim, pode dizer‑se, como o professor Gaudemet‑Tallon, «que seria erróneo e simplista pensar que os sistemas europeus e os dos Estados terceiros caminham lado a lado, sem nunca se encontrar, ignorando‑se mutuamente […]; pelo contrário, as oportunidades de encontros, de interferências recíprocas são muitas e suscitam frequentemente questões difíceis»  (83) .

158.    Retiro daqui a conclusão de que a economia geral da Convenção não obsta a que o seu artigo 2.° se aplique a litígios ligados unicamente a um Estado contratante e a um Estado terceiro. Esta conclusão quanto ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° impõe‑se sobretudo quando se atende aos objectivos da Convenção.

4. Os objectivos da Convenção

159.    Nos termos do seu preâmbulo, a Convenção de Bruxelas visa «reforçar na Comunidade a protecção jurídica das pessoas estabelecidas no seu território». Sempre segundo o preâmbulo, é para esse fim que a Convenção prevê, por um lado, regras de competência jurisdicional comuns aos Estados contratantes e, por outro, regras destinadas a facilitar o reconhecimento das decisões judiciais e a instaurar um processo rápido que garanta a sua execução.

160.    O Tribunal de Justiça precisou o sentido deste objectivo da Convenção, em especial no que respeita às regras comuns de competência nela estabelecidas. Considerou que o reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade implica que estas regras permitem «[…] simultaneamente, ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado»  (84) . O Tribunal de Justiça caracterizou também as referidas regras como sendo regras «que garantam uma certeza quanto à repartição de competências entre os diferentes órgãos jurisdicionais nacionais a que pode ser submetido um litígio determinado»  (85) .

161.    Com efeito, só as regras de competência que respondam a essas exigências são susceptíveis de garantir o respeito do princípio da segurança jurídica que constitui também, segundo jurisprudência constante  (86) , um dos objectivos da Convenção de Bruxelas.

162.    Na minha opinião, estes dois objectivos da Convenção, tanto o relativo ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade como o relativo ao respeito do princípio da segurança jurídica, obstam a que a aplicação do artigo 2.° da Convenção esteja subordinada à existência de um litígio ligado a diferentes Estados contratantes.

163.    Com efeito, impor tal condição levaria inevitavelmente a tornar mais complexa a aplicação da regra de competência estabelecida no artigo 2.°, quando esta regra constitui o que se pode chamar a «pedra angular» do sistema estabelecido pela Convenção.

164.    A determinação do carácter intracomunitário do litígio é um exercício que pode revelar‑se particularmente difícil. Nessa ocasião, não deixariam de se colocar numerosas questões: Que critérios devem ser adoptados? Em que casos se pode considerar que um litígio está efectivamente ou suficientemente ligado a vários Estados contratantes? Devem hierarquizar‑se os diferentes critérios a tomar em consideração? Há determinados critérios mais pertinentes ou atractivos que outros? Em que momento se deve apreciar a situação em causa: na data em que surge, na data da apresentação da petição ou na data em que o juiz ao qual foi apresentada a acção deve decidir? Na hipótese de o próprio fundo da causa estar ligado a vários Estados contratantes, basta que o requerente (domiciliado num Estado contratante que não o do território em que o requerido tenha domicílio e onde se situe a totalidade ou parte do fundo da causa) mude de domicílio, durante o período em questão, estabelecendo‑se nesse mesmo Estado contratante para que a aplicação do artigo 2.° da Convenção fique excluída? Inversamente, é necessário, para que este artigo se aplique finalmente, que o requerente que tinha domicílio nesse mesmo Estado contratante se estabeleça durante o período em questão noutro Estado contratante?

165.    Tantas questões delicadas que correm o risco de provavelmente se colocar, quer às partes no litígio quer ao juiz ao qual este fosse submetido, na hipótese de a aplicação do artigo 2.° da Convenção estar subordinada à existência de uma relação jurídica envolvendo vários Estados contratantes.

166.    Nessa hipótese, dificilmente se entende como se poderia continuar a considerar a regra geral de competência estabelecida no artigo 2.° como permitindo simultaneamente ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado. Contrariamente às exigências estabelecidas pelo Tribunal de Justiça, estar‑se‑ia longe de qualquer certeza quanto à repartição das competências entre os diferentes órgãos jurisdicionais nacionais a que pode ser submetido um litígio determinado. Tal perspectiva equivaleria a ignorar o objectivo da Convenção relativo ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, bem como o relativo ao respeito do princípio da segurança jurídica.

167.    Esta conclusão impõe‑se tanto mais quanto a questão do carácter intracomunitário do litígio em causa apresenta o forte risco de se tornar numa «fonte de contencioso», ou seja, de suscitar numerosos conflitos entre as partes e de levar, consequentemente, a uma utilização das vias de recurso apenas quanto a esta questão prévia, independentemente do próprio mérito do litígio. Manifestamente, tal perspectiva de multiplicação de processos está longe de ser satisfatória em termos de segurança jurídica. Além disso, não se pode excluir que esta questão seja explorada por certos requeridos no âmbito de manobras puramente dilatórias que se oporiam ao reforço da protecção jurídica dos requerentes.

168.    Além destas considerações, importa, de modo mais geral, ter presente que o direito internacional privado é uma disciplina cujo manejo está longe de ser fácil. A Convenção de Bruxelas responde, precisamente, a uma preocupação de simplificação das regras em vigor nos diferentes Estados contratantes em matéria de competência jurisdicional, tal como em matéria de reconhecimento e execução. Esta simplificação contribui para a promoção da segurança jurídica, no interesse dos particulares. Tende também a facilitar a tarefa do órgão jurisdicional nacional no tratamento dos processos. É preferível, portanto, não introduzir neste sistema convencional elementos susceptíveis de complicar seriamente o seu funcionamento.

169.    Por outro lado, independentemente da complexidade da questão relativa ao carácter intracomunitário de um litígio, parece‑me que subordinar a aplicação do artigo 2.° da Convenção ao estabelecimento de tal carácter levaria inevitavelmente a reduzir os casos em que este artigo se deve aplicar.

170.    Ora, como Tribunal de Justiça precisou, esta regra geral explica‑se pelo facto de permitir ao requerido defender‑se, em princípio, mais facilmente  (87) . Contribui, assim, para o reforço da sua protecção jurídica. É precisamente devido às garantias que são concedidas ao requerido no processo de origem, quanto ao respeito do direito de defesa, que a Convenção se revela muito liberal em matéria de reconhecimento e execução das decisões judiciais  (88) . A regra geral de competência que consta do artigo 2.° constitui, portanto, uma regra fundamental sobre a qual a Convenção assenta largamente.

171.    Segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça deduziu daí que as regras de competência que derroguem esta regra geral não podem dar origem a uma interpretação que ultrapasse as hipóteses expressamente previstas na Convenção  (89) . Ora, chegar‑se‑ia a um resultado comparável, mutatis mutandis , na hipótese de a aplicação do artigo 2.° da Convenção ser excluída quando a relação jurídica em questão não estivesse ligada a vários Estados contratantes.

172.    Com efeito, nessa hipótese, embora domiciliado num Estado contratante, um requerido ficaria exposto ao funcionamento das regras de competência exorbitantes em vigor noutro Estado contratante, pelo que poderia ser demandado perante os órgãos jurisdicionais desse Estado, devido simplesmente, por exemplo, à sua presença passageira no território deste último (é o caso do direito inglês), à existência nesse território de determinados bens que lhe pertencessem (é o caso do direito alemão), ou ao facto de o requerente ter a nacionalidade desse Estado (é o caso do direito francês). Um requerido domiciliado num Estado contratante seria, portanto, sujeito ao mesmo regime que é reservado exclusivamente, em conformidade com o artigo 4.° da Convenção, a um requerido domiciliado num Estado não contratante.

173.    Derrogar‑se‑ia, assim, a regra geral do artigo 2.° numa hipótese que não só não está expressamente prevista na Convenção como, além disso, tinha sido implícita mas necessariamente excluída pela referida Convenção, tendo em conta um dos objectivos que prossegue.

174.    Daqui resulta que limitar a aplicação do artigo 2.° a litígios intracomunitários equivaleria a reduzir indevidamente o alcance deste artigo, contrariamente ao objectivo da Convenção, relativo ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, em especial a do requerido.

175.    Em resumo, considero que não só a letra do artigo 2.° como a economia geral da Convenção não obstam a que este artigo se aplique a um litígio ligado apenas a um Estado contratante e a um país terceiro, como, além disso, os objectivos da Convenção impõem a aplicabilidade do referido artigo.

176.    Tendo algumas das partes sustentado que vários obstáculos se opunham ao reconhecimento desta tese, há agora que os examinar.

5. Os pretensos obstáculos à aplicação do artigo 2.° da Convenção a uma relação jurídica que apenas tem ligações com um Estado contratante e um Estado terceiro

177.    Os obstáculos invocados pelos réus no processo principal e pelo Governo do Reino Unido, para se oporem ao reconhecimento da tese em questão, decorrem essencialmente do direito comunitário. Foram também invocadas neste sentido considerações associadas ao direito internacional. Examiná‑las‑ei sucintamente antes de passar a examinar as relativas ao direito comunitário.

a) Os pretensos obstáculos decorrentes do direito internacional

178.    Segundo os réus no processo principal  (90) , a Convenção de Bruxelas não deve ser aplicada de modo universal. Constitui um mero acordo entre os Estados contratantes aplicável unicamente nas suas relações mútuas. Para além do caso particular da Convenção de Bruxelas, este argumento invoca uma problemática mais geral relativa ao direito dos tratados e dos acordos internacionais. O Governo do Reino Unido sugeriu também o interesse de tal abordagem  (91) .

179.    A este respeito, observe‑se que é comummente aceite que um Estado só pode estar vinculado por um acordo internacional se tiver expressado o seu consentimento nesse sentido. Por outras palavras, em conformidade com o princípio do efeito relativo dos tratados, um acordo internacional não cria nem obrigações nem direitos na esfera de um Estado que nele não tenha consentido  (92) .

180.    Ora, é pacífico que a Convenção de Bruxelas não impõe qualquer obrigação aos Estados que não concordaram em ficar vinculados por ela. Com efeito, as obrigações previstas pela referida Convenção, quer em matéria de atribuição de competência quer em matéria de reconhecimento e execução de decisões, têm por destinatários apenas os Estados contratantes e os órgãos jurisdicionais por eles abrangidos.

181.    A este respeito, nem o objecto da Convenção de Bruxelas, em geral, nem a interpretação do artigo 2.° que defendo são contrários ao princípio do efeito relativo dos tratados.

182.   É certo que, como já se viu, esta Convenção é susceptível de estender os seus efeitos a Estados terceiros, em particular em matéria de atribuição de competência. As regras estabelecidas pela Convenção nessa matéria, como a que consta do artigo 2.°, são, assim, susceptíveis de se aplicarem a litígios com certos elementos de conexão a Estados terceiros.

183.    Todavia, esta situação não é completamente inédita. Acontece, com efeito, que os Estados partes numa convenção internacional se permitem exercer certas competências relativamente a nacionais de Estados terceiros em situações em que estes tinham, até então, competência exclusiva. É o caso, por exemplo, de várias convenções sobre a protecção do ambiente marinho  (93) .

184.    Em matéria de direito internacional privado, é também o caso, por exemplo, da Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais  (94) . Com efeito, o seu artigo 1.°, n.° 1, dispõe que as regras uniformes da referida convenção são aplicáveis às obrigações contratuais nas situações que impliquem um conflito de leis. Basta, assim, que a situação em causa dê lugar a um conflito entre vários sistemas jurídicos para que as regras uniformes da referida convenção se tornem aplicáveis. Pouco importa que esta situação esteja ligada a vários Estados contratantes ou a um Estado contratante e a um Estado terceiro  (95) .

185.    Aliás, a vocação universal das regras uniformes da Convenção de Roma é particularmente vincada uma vez que, em conformidade com o seu artigo 2.°, as regras de conflitos que enuncia podem levar à aplicação da lei de um Estado não contratante  (96) . A este respeito, os efeitos desta convenção relativamente aos Estados terceiros vão muito além dos que resultam da Convenção de Bruxelas uma vez que, como já se viu, as regras de conflitos que esta estabelece visam apenas designar como competentes os órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes, com exclusão dos de Estados terceiros.

186.    Retiro daqui a conclusão de que, em direito internacional, nada obsta a que as regras de competência estabelecidas pela Convenção de Bruxelas, como a que consta do artigo 2.°, sejam susceptíveis de se aplicar a litígios com determinados elementos ligados a Estados terceiros. Na minha opinião, o mesmo se passa com o direito comunitário.

b) Os pretensos obstáculos decorrentes do direito comunitário

187.    O primeiro réu, bem como o Governo do Reino Unido, alegam que as liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado CE não visam aplicar‑se a situações puramente internas a um Estado‑Membro, ou seja, a situações que não apresentem um carácter transfronteiriço entre vários Estados‑Membros. Daqui decorre, por analogia, que a regra de competência estabelecida no artigo 2.° da Convenção de Bruxelas e retomada de modo idêntico pelo Regulamento n.° 44/2001 é insusceptível de se aplicar ao litígio no processo principal, uma vez que este não está ligado a vários Estados contratantes. Com efeito, essa regra de competência é meramente acessória ao objectivo da livre circulação de sentenças entre os Estados contratantes, prosseguido pela Convenção e depois pelo Regulamento no que respeita aos Estados‑Membros, pelo que a aplicação do artigo 2.° da Convenção está, correlativamente, subordinada à existência de um litígio transfronteiriço ligado a vários Estados contratantes.

188.    Estes argumentos não me convencem.

189.   É certo que, no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, Mund & Fester  (97) , o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 220.°, quarto travessão, do Tratado, com base no qual a Convenção de Bruxelas foi adoptada, «[tem] por objectivo facilitar o funcionamento do mercado comum através da adopção de regras de competência para os litígios a que respeita e a supressão, na medida do possível, de dificuldades relativas ao reconhecimento e à execução de sentenças no território dos Estados contratantes». O Tribunal de Justiça concluiu daí que as disposições da Convenção estão ligadas ao Tratado  (98) .

190.    Só se pode concordar com esta conclusão na medida em que, como o advogado‑geral Tesauro tinha sublinhado nas suas conclusões no processo Mund & Fester, já referido, «a livre circulação de sentenças reveste‑se de importância fundamental, tendo por finalidade evitar as dificuldades que possam entravar o funcionamento do mercado comum, derivadas da impossibilidade de determinar e realizar com facilidade, mesmo por via judiciária, os direitos individuais resultantes da multiplicidade das relações jurídicas que surgem em tal mercado»  (99) .

191.    Porém, não se pode daí deduzir, como o Governo do Reino Unido sustenta  (100) , que as regras uniformes de competência estabelecidas pela Convenção visam apenas reger conflitos positivos de competência (reais ou potenciais) entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes, com a única finalidade de evitar que os órgãos jurisdicionais de um Estado contratante tenham que reconhecer e declarar exequíveis decisões proferidas por órgãos jurisdicionais de outro Estado contratante caso os órgãos jurisdicionais do Estado requerido se considerem também competentes, nos termos das leis desse Estado, para decidir dos litígios que tenham dado origem às decisões em questão.

192.    Com efeito, reduzir as regras de competência uniformes da Convenção a esta simples finalidade corresponderia, como já se viu, a ignorar a economia geral da Convenção bem como os objectivos que prossegue, que respeitam tanto ao reforço da posição jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade como ao respeito do princípio da segurança jurídica.

193.    Na minha opinião, esta análise não é susceptível de ser posta em causa pelo facto de a Convenção de Bruxelas ter sido substituída pelo Regulamento n.° 44/2001, ou seja, por um acto de direito comunitário, adoptado em aplicação e para aplicação de certas disposições do Tratado CE. Vários elementos apontam neste sentido.

194.    Antes de mais, como o décimo nono considerando deste Regulamento salienta, é necessário assegurar uma continuidade entre a Convenção e o referido regulamento, nomeadamente no que respeita à interpretação pelo Tribunal de Justiça das disposições da Convenção em questão. Ora, na hipótese de as regras uniformes de competência previstas pelo Regulamento serem interpretadas pelo Tribunal de Justiça no sentido de visarem unicamente reger conflitos de competência entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes, essa interpretação afastar‑se‑ia da abundante jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à Convenção, em especial quanto aos seus objectivos (que respeitam ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade e ao respeito do princípio da segurança jurídica). Tratar‑se‑ia, portanto, de uma reviravolta da jurisprudência que não responderia, manifestamente, à preocupação do legislador comunitário de assegurar a continuidade na interpretação dos dois instrumentos. Sem querer antecipar o juízo quanto à eventual jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° do Regulamento, refiro simplesmente que tenho dificuldades em imaginar que o Tribunal de Justiça avance pela via de uma tal reviravolta da jurisprudência.

195.    Além disso, embora seja certo que artigo 65.° CE, para o qual remete o artigo 61.°, alínea c), CE (que constitui o fundamento jurídico material do Regulamento), visa expressamente, no domínio em questão, medidas que tenham uma incidência transfronteiriça , cuja adopção deve responder, na medida do necessário, ao bom funcionamento do mercado interno, não creio que seja necessário deduzir daí que as situações abrangidas pelas regras de competência previstas pelo referido Regulamento, que retomam, no essencial, as da Convenção, devam necessariamente estar ligadas a vários Estados‑Membros.

196.    Com efeito, como se sublinha nos segundo e oitavo considerandos do Regulamento, as regras de competência que aí figuram visam – face à diversidade das regras nacionais existentes na matéria e às dificuldades que daí resultam para o bom funcionamento do mercado interno – «unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial», de modo a definir «regras comuns» aos Estados‑Membros. Este exercício de unificação das regras de competência inscreve‑se numa lógica comparável à prevista pelo artigo 94.° CE para a adopção das directivas, uma vez que este fundamento jurídico material tem como objecto «a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros que tenham incidência directa no estabelecimento ou no funcionamento do mercado comum».

197.    Ora, o Tribunal de Justiça declarou recentemente, no acórdão de 20 de Maio de 2003, Österreichischer Rundfunk e o.   (101) , que «o recurso ao fundamento jurídico do artigo 100.°‑A do Tratado [ou seja, o fundamento jurídico processual que consta agora do artigo 95.° CE] não pressupõe a existência de uma ligação efectiva com a livre circulação entre [os] Estados‑Membros em cada uma das situações visadas pelo acto baseado em tal fundamento». O Tribunal de Justiça recordou que «o que é importante, para justificar o recurso à base jurídica do artigo 100.°‑A do Tratado, é que o acto adoptado com esse fundamento tenha efectivamente por objecto melhorar as condições do estabelecimento e do funcionamento do mercado interno»  (102) .

198.    O Tribunal de Justiça concluiu que «a aplicabilidade da Directiva 95/46 [ (103) ] não pode depender da questão de saber se as situações concretas em causa nos processos principais têm uma ligação suficiente com o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado e, em especial nos referidos processos, com a livre circulação dos trabalhadores»  (104) .

199.    Esta conclusão assenta na consideração de que «uma interpretação contrária poderia tornar os limites do domínio de aplicação da referida directiva particularmente incertos e aleatórios, o que seria contrário ao objectivo essencial desta, que é aproximar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros a fim de eliminar os obstáculos ao funcionamento do mercado interno que decorrem precisamente das disparidades entre as legislações nacionais»  (105) .

200.    Estes desenvolvimentos foram confirmados pelo acórdão de 6 de Novembro de 2003, Lindqvist  (106) , a propósito da mesma directiva 95/46.

201.    Pode considerar‑se que o que vale para esta directiva em matéria de protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, também é válido para o Regulamento n.° 44/2001, em matéria de competência judicial e de livre circulação de sentenças, embora estes dois actos comunitários de direito derivado sejam de natureza diferente.

202.    Com efeito, subordinar a aplicabilidade da regra de competência do artigo 2.° do referido Regulamento à existência, em cada litígio, de uma ligação efectiva e suficiente com vários Estados‑Membros apresenta o risco (como expus a propósito dos objectivos da Convenção) de tornar os limites do domínio de aplicação do referido artigo particularmente incertos e aleatórios. Esta eventual interpretação do âmbito de aplicação territorial ou pessoal do artigo 2.° seria contrária ao objectivo do Regulamento, que é unificar as regras de conflito de jurisdição e simplificar o reconhecimento e a execução das decisões judicias, no sentido de eliminar os obstáculos ao funcionamento do mercado interno que resultam, precisamente, das disparidades das legislações nacionais nesta matéria.

203.    A este respeito, pode até considerar‑se que o que vale para a directiva 95/46 vale, por maioria de razão, para o Regulamento n.° 44/2001, uma vez que a opção por um regulamento, em vez de uma directiva, para substituir a Convenção, responde amplamente à preocupação de garantir uma unificação das regras em causa e não de proceder a uma mera aproximação das regulamentações nacionais, através da transposição de uma directiva para o direito interno, com as vicissitudes que daí podem resultar em termos de aplicação uniforme do direito comunitário.

204.    Além destas considerações relativas à incidência do recurso ao fundamento jurídico do artigo 95.° CE sobre o âmbito de aplicação geográfica de uma directiva, acrescente‑se que a aplicação de um Regulamento, como de uma directiva  (107) , não pressupõe necessariamente que as situações por ele abrangidas estejam ligadas exclusivamente ao território dos Estados‑Membros, e não, também, ao de Estados terceiros.

205.   É o que se passa, manifestamente, com os regulamentos que contêm disposições que regem expressamente as trocas entre a Comunidade e os países terceiros. É o caso, por exemplo, do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (JO L 302, p. 1), bem como do Regulamento (CEE) n.° 259/93 do Conselho, de 1 de Fevereiro de 1993, relativo à fiscalização e ao controlo das transferências de resíduos no interior, à entrada e à saída da Comunidade (JO L 30, p. 1).

206.   É também esse o caso, por exemplo, do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 F1, p. 98).

207.    Este Regulamento, que visa assegurar, no domínio da segurança social, a livre circulação dos trabalhadores, não define expressamente o seu âmbito de aplicação territorial, embora seja comummente descrito como tendo um carácter «materialmente territorial», no sentido de que a sua aplicação é determinada por um «elemento ligado a um lugar»  (108) .

208.    Ora, pode dizer‑se que, embora o domínio espacial do referido regulamento, ou seja, o espaço em que se deve situar essa ligação característica , corresponda necessariamente ao das disposições do Tratado relativas à livre circulação das pessoas, pelo que a aplicação destas exige uma localização no «território da Comunidade», não se exige, de modo algum, para que as referidas disposições (em especial a que garante a igualdade de tratamento) mantenham os seus efeitos, que a actividade profissional em questão seja exercida nesse território  (109) .

209.    Assim, o facto de as prestações da segurança social em causa terem origem, mesmo exclusivamente, em períodos de seguro cumpridos fora do território abrangido pelo Tratado não pode, como tal, levar à exclusão da aplicação do Regulamento n.° 1408/71, uma vez que existe um vínculo estreito entre o direito às prestações sociais e o Estado‑Membro devedor das mesmas  (110) .

210.    Na minha opinião, esta jurisprudência respeitante ao Regulamento n.° 1408/71 pode ser transposta para o Regulamento n.° 44/2001. Há que recordar, com efeito, que este último foi adoptado com fundamento em disposições do título IV do Tratado, respeitante às políticas relativas à livre circulação de pessoas. Além disso, como se passa com o Regulamento n.° 1408/71, a aplicação do Regulamento n.° 44/2001 pressupõe a existência de uma certa ligação ao território dos Estados‑Membros sujeitos a esse regulamento. Assim, no que respeita ao artigo 2.° do Regulamento em questão (idêntico ao artigo 2.° da Convenção), a sua aplicação exige que o requerido tenha domicílio no território de um Estado‑Membro. Na lógica da jurisprudência atrás evocada, há que considerar que, para a aplicação do artigo 2.° do Regulamento em questão (ou da Convenção), não é, de modo algum, necessário que o litígio em causa esteja exclusivamente ligado ao território abrangido pelo referido Regulamento (ou pela Convenção), e não, também, ao de Estados terceiros.

211.    No mesmo sentido, há que sublinhar que o oitavo considerando do Regulamento n.° 44/2001 prevê que «[o]s litígios abrangidos pelo presente regulamento devem ter conexão com o território dos Estados‑Membros que este vincula.»  (111) . Assim, «[d]evem, portanto, aplicar‑se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado num desses Estados‑Membros».

212.    Na minha opinião, este considerando confirma claramente que, para a aplicação do artigo 2.° do Regulamento (idêntico ao da Convenção), basta que o requerido esteja domiciliado num Estado‑Membro vinculado por esse Regulamento, pelo que o litígio em questão apresenta um elemento de conexão com um dos Estados‑Membros da Comunidade. Pouco importa, pois, que o litígio em questão não apresente outro elemento de conexão com outro Estado‑Membro, ou apresente tal elemento de conexão com um Estado terceiro.

213.    Concluo que o Regulamento n.° 44/2001 não é susceptível de colocar em causa a tese de que o âmbito de aplicação do artigo 2.° da Convenção não está de modo algum limitado a litígios ligados a vários Estados contratantes.

214.    Resulta de todas estas considerações que os argumentos invocados por algumas das partes neste processo prejudicial para se oporem a esta tese, quer assentem no direito internacional quer no direito comunitário, devem ser considerados improcedentes.

215.    Por conseguinte, deve responder‑se à primeira questão prejudicial, na sua primeira vertente, que o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas deve ser interpretado no sentido de que visa aplicar‑se mesmo quando o requerente e o requerido têm domicílio no mesmo Estado contratante e o litígio que os opõe, nos órgãos jurisdicionais desse Estado contratante, apresenta certos elementos de conexão com um Estado terceiro, e não com outro Estado contratante, pelo que a única questão de repartição de competência susceptível de se colocar neste litígio surge apenas nas relações entre os órgãos jurisdicionais de um Estado contratante e os de um Estado terceiro, e não nas relações entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes.

216.    Uma vez que o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas visa aplicar‑se nesta hipótese, há que examinar a questão de saber se, numa situação como a do litígio no processo principal, a referida convenção obsta a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência é estabelecida com fundamento no referido artigo 2.° – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do litígio quanto ao mérito. Por outras palavras, trata‑se de determinar se, numa situação como a do litígio no processo principal, a teoria do forum non conveniens é compatível com a Convenção.

B – Quanto à compatibilidade da teoria do forum non conveniens com a Convenção de Bruxelas

217.    Para circunscrever o objecto deste exame a uma situação como a do litígio no processo principal, há que recordar que, através da sua primeira questão prejudicial, na sua segunda vertente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, se a Convenção de Bruxelas obsta a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência é estabelecida com fundamento no artigo 2.° da referida Convenção – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do litígio quanto ao mérito, quando este não tenha sido designado por nenhum pacto atributivo de jurisdição, não lhe tenha sido anteriormente submetido nenhum pedido susceptível de gerar uma situação de litispendência ou de conexão e os elementos de conexão do litígio com esse Estado não contratante sejam de natureza diferente daqueles a que se refere o artigo 16.° da Convenção de Bruxelas.

218.    Para responder a esta questão, evocarei, antes de mais, a vontade dos autores da Convenção, passando depois a examinar sucessivamente o texto do seu artigo 2.°, primeiro parágrafo, a economia geral da referida convenção, bem como os objectivos por ela prosseguidos.

1. A vontade dos autores da Convenção

219.    Aquando da elaboração da Convenção de Bruxelas, o Reino Unido e a Irlanda, não eram ainda Estados‑Membros da Comunidade. Não participaram, portanto, nas negociações entabuladas entre os Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 293.° CE, e que resultaram na adopção da referida Convenção em 27 de Setembro de 1968. Estes dois Estados só entraram para a Comunidade em 1 de Janeiro de 1973, ou seja, apenas um mês antes da entrada em vigor da Convenção, em 1 de Fevereiro de 1973.

220.    Ora, foi essencialmente nestes dois Estados‑Membros que a teoria do forum non conveniens se desenvolveu  (112) . Com efeito, é muito estranha aos Estados‑Membros abrangidos pelo sistema jurídico de «civil law», ou seja, aos que negociaram a Convenção de Bruxelas. Daqui decorre que esta última não comporta nenhuma disposição que respeite a tal teoria.

221.    Foi só aquando da elaboração da Convenção de adesão do Reino Unido, da Irlanda e do Reino da Dinamarca à Convenção de Bruxelas, adoptada em 9 de Outubro de 1978, que a questão da compatibilidade da teoria do forum non conveniens foi evocada  (113) .

222.    O relatório elaborado por P. Schlosser, a propósito da referida Convenção de adesão, reflecte a extensão dos debates que esta questão suscitou  (114) .

223.    Com efeito, o ponto 78 deste relatório indica que, «[n]o entender das delegações dos Estados‑Membros continentais da Comunidade, tais possibilidades [nomeadamente a de suspender a instância em aplicação da teoria do forum non conveniens ] não existem para os tribunais de um Estado‑Membro da Comunidade se, ao abrigo da Convenção, esses tribunais forem competentes e forem chamados a pronunciar‑se».

224.    Precisa‑se que, neste sentido, «[f]oi [...] salientado que os Estados Contratantes não só são autorizados a exercer a sua jurisdição nas condições previstas no título II, como são obrigados a fazê‑lo». A este propósito, foi alegado que «[o] requerente deverá certificar‑se de que o tribunal chamado a pronunciar‑se é competente» pois «não deverá perder tempo e dinheiro para correr o risco de ser finalmente informado de que o tribunal a que recorreu se considera menos competente do que outro».

225.    Além disso, o relatório em questão afirma, sempre no seu ponto 78, que «[n]o caso de os tribunais de vários Estados serem competentes, foi deliberadamente dada ao requerente a possibilidade de escolha, escolha essa que não deverá ser enfraquecida pela aplicação da ‘doctrine of the forum conveniens’». Sublinha a este respeito, que «[p]oderá acontecer que, entre os tribunais competentes, o requerente tenha escolhido um tribunal aparentemente ‘inadequado’ a fim de obter uma sentença no Estado em que pretende que essa sentença seja executada».

226.    O mesmo ponto do referido relatório acrescenta que «não é de excluir o risco de sobrevirem conflitos negativos de competência: o juiz do continente poderá perfeitamente considerar‑se também incompetente, quanto mais não seja para desaprovar a decisão do tribunal do Reino Unido».

227.    Por fim, indica que, «[d]e resto, as razões fundamentais que justificam [até esta data] a ‘doctrine of the forum conveniens’ [bem como a doutrina correlativa do forum non conveniens ] perderão uma grande parte da sua força assim que a Convenção se tomar aplicável no Reino Unido e na Irlanda». A este propósito, o relatório precisa, sempre no seu ponto 78, que a legislação nacional destinada a aplicar a Convenção nesses dois Estados levará, por um lado, a uma concepção mais restrita da noção de domicílio do que a existente a essa data e, por outro lado, ao abandono da regra nacional de competência exorbitante baseada na mera notificação ou comunicação do acto que determine o início da instância ao requerido que se encontre temporariamente no território dos Estados em questão, em conformidade com o artigo 3.°, segundo parágrafo, da Convenção.

228.    Foi tendo em conta estes argumentos que, segundo o ponto 78 em questão, «a Irlanda e o Reino Unido renunciaram a uma adaptação do texto da Convenção em relação a este ponto».

229.    Deduzo de todos estes desenvolvimentos que os Estados‑Membros que negociaram e concluíram a Convenção de Bruxelas ou a Convenção de adesão de 1978, ou não tiveram de modo algum a intenção de admitir o funcionamento do mecanismo do forum non conveniens no sistema convencional que foi instituído, ou opuseram‑se‑lhe maioritária e firmemente.

230.    Admitir o contrário equivaleria, portanto, a ignorar a vontade dos Estados partes na Convenção, na redacção que lhe foi dada pela Convenção de adesão de 1978, precisando‑se que tal vontade não foi depois desmentida, aquando da adopção das convenções de adesão posteriores ou do Regulamento n.° 44/2001. O exame do texto do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção, da economia geral da referida Convenção, bem como do seu efeito útil, tendo em conta os objectivos que prossegue, milita também contra a admissão da teoria do forum non conveniens .

2. A letra do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção

231.    Recorde‑se que o artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção prevê que «[s]em prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado».

232.    Há também que recordar que, segundo jurisprudência constante, as disposições comunitárias devem ser interpretadas e aplicadas de modo uniforme à luz das versões redigidas em todas as línguas da Comunidade  (115) . Na minha opinião, o mesmo vale, necessariamente, para a interpretação e a aplicação da Convenção de Bruxelas, tendo em conta a preocupação, regularmente expressa pelo Tribunal de Justiça, de assegurar o respeito do princípio da segurança jurídica bem como a igualdade e a uniformidade dos direitos e obrigações que resultam dessa Convenção, tanto no que respeita aos Estados contratantes como a favor dos interessados  (116) .

233.   É pacífico que o exame das diferentes versões linguísticas do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção demonstra que a regra de competência nele enunciada é de carácter imperativo, e não facultativo, e só pode ser derrogada nos casos expressamente previstos pela referida Convenção. Ora, é também pacífico que uma situação como a do litígio no processo principal não é abrangida por nenhum desses casos taxativamente enumerados pela Convenção, que examinarei com mais precisão a propósito da sua economia geral.

234.    Daqui concluo que o texto do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção obsta a que, numa situação como a do litígio no processo principal, um órgão jurisdicional de um Estado contratante, ao qual tenha sido submetido um litígio com fundamento no referido artigo, renuncie discricionariamente a decidir quanto ao mérito, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para o fazer. Esta conclusão impõe‑se também à luz da economia geral da Convenção.

3. A economia geral da Convenção

235.    Quando a competência de um órgão jurisdicional de um Estado contratante, como o Reino Unido, é estabelecida, em conformidade com o artigo 4.° da Convenção, com fundamento nas regras de competência exorbitantes em vigor nesse Estado (na hipótese de o requerido estar domiciliado num país terceiro), admito que a priori a Convenção não obste a que o órgão jurisdicional em questão renuncie ao exercício da sua competência, em aplicação da teoria do forum non conveniens (em vigor no Estado contratante em questão) , por um órgão jurisdicional de um país terceiro ser mais apropriado ou estar melhor colocado para decidir do fundo da questão.

236.    Porém, esta possibilidade só se pode considerar na hipótese (que não é a de A. Owusu) de o requerido ter domicílio num Estado não contratante, uma vez que o artigo 4.° da Convenção visa apenas esta hipótese.

237.    Em contrapartida, quando o requerido tem domicílio num Estado contratante e a competência de um órgão jurisdicional de um Estado contratante é, assim, estabelecida com fundamento no artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção, a economia geral da referida Convenção obsta a que, numa situação como a do litígio no processo principal, o órgão jurisdicional em questão renuncie discricionariamente ao exercício da sua competência por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para conhecer do fundo da causa.

238.    Com efeito, embora certas disposições da Convenção tendam a atenuar a força obrigatória da regra de competência estabelecida no artigo 2.°, é apenas em circunstâncias muito particulares, que não são das do litígio no processo principal, pelo que a economia geral da referida Convenção obsta a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante renuncie ao exercício dessa competência obrigatória nas circunstâncias do caso em apreço, ou seja, em circunstâncias que não as previstas expressa e exaustivamente pela Convenção.

239.    Além disso, há que sublinhar que algumas destas disposições da Convenção se inspiram em considerações muito diferentes das que estão associadas à teoria do forum non conveniens . Este dado reforça a tese de que a economia geral da referida Convenção se opõe à aplicação da teoria em questão no âmbito do exercício de uma competência estabelecida com fundamento no artigo 2.°

240.   É o que passo agora a desenvolver.

241.    Refira‑se, antes de mais, que, se as regras de competência especiais ou particulares da Convenção (previstas nos artigos 5.° e 6.°, bem como no título II, secções 3 e 4) permitem derrogar a regra de competência obrigatória do artigo 2.°, tendo em conta, nomeadamente, a existência de um elemento de conexão directo ou particularmente estreito entre o litígio e órgãos jurisdicionais de outro Estado, que não o do domicílio do requerido em causa, esta opção de competência só é válida no âmbito das relações entre vários Estados contratantes, e não no respeitante às relações entre um Estado contratante e um Estado terceiro, como é o caso do litígio no processo principal.

242.    Além disso, e sobretudo, há que sublinhar que esta opção de competência só é concedida ao requerente, no âmbito da formação da sua acção. Por conseguinte, tendo uma acção sido intentada num órgão jurisdicional de um Estado contratante com fundamento na regra de competência do artigo 2.°, esse órgão jurisdicional não pode, com fundamento nas regras de competência especiais ou particulares previstas pela Convenção, recusar‑se a decidir, ainda que o litígio em questão apresente um elemento de conexão significativo com órgãos jurisdicionais de outro Estado (contratante ou não) que não o do domicílio do requerido.

243.    Por outro lado, se, nos termos do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção, bem como dos seus artigos 19.°, 21.° e 22.°, um órgão jurisdicional de um Estado contratante tiver de se declarar incompetente ou dispuser da faculdade de se recusar a decidir, quando a acção lhe tenha sido apresentada com fundamento na regra geral e obrigatória de competência do artigo 2.°, é pacífico que o litígio no processo principal não é abrangido por nenhuma dessas hipóteses, pelo que se mantém toda a força obrigatória da regra de competência do artigo 2.° É o que se verá mais precisamente ao examinar cada uma das disposições em questão.

244.    Antes de mais, no que respeita ao artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção, em matéria de extensão expressa de competência, o mesmo prevê que, quando pelo menos uma das partes tenha domicílio no território de um Estado contratante, o tribunal ou os tribunais desse Estado que tenham sido designados pelas partes (em conformidade com as condições previstas pelo referido artigo) terão competência exclusiva. Assim, qualquer outro tribunal ao qual uma parte se tenha dirigido, em especial com fundamento no artigo 2.° da Convenção, é, em princípio, incompetente, excepto se, em conformidade com o artigo 18.° da Convenção, o requerido aceitar comparecer perante este último tribunal sem suscitar a sua incompetência com fundamento na cláusula de escolha de foro. Sob reserva da hipótese prevista no referido artigo 18.°, o tribunal ao qual uma parte se dirija em violação de um pacto atributivo de jurisdição deve, portanto, declarar‑se incompetente para decidir.

245.    O mesmo se passa quando uma acção seja apresentada num órgão jurisdicional de um Estado contratante, em especial do Estado contratante do domicílio do requerido, em violação das regras de competência exclusivas previstas pelo artigo 16.° da Convenção, tendo em conta a existência de elementos de conexão particularmente estreitos entre o fundo da questão e o território de um Estado contratante. Aliás, a força obrigatória destas regras de competência é particularmente significativa, uma vez que o artigo 19.° da Convenção prevê que o juiz perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado contratante por força do artigo 16.°, deve oficiosamente declarar‑se incompetente.

246.    Só estas regras de competência de carácter exclusivo são susceptíveis de obstar à aplicação da regra de competência geral e obrigatória prevista no artigo 2.° da Convenção. Ora, recorde‑se que estas regras de competência de carácter exclusivo não se aplicam a uma situação como a do litígio no processo principal.

247.    O mesmo vale para os mecanismos previstos nos artigos 21.° e 22.° da Convenção, no que respeita à aplicação das regras de competência.

248.    Recorde‑se, com efeito, que o artigo 21.° da Convenção, em matéria de litispendência, prevê que, quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar e, depois, eventualmente, declara‑se incompetente em favor deste.

249.    Ora, como já referi, a situação do litígio no processo principal não se enquadra nesta hipótese, pois não foi submetido nenhum processo paralelo a um órgão jurisdicional de um Estado contratante que não o do domicílio do primeiro réu.

250.    Além disso, tal como o Tribunal de Justiça recordou recentemente no n.° 47 do acórdão Gasser, já referido, esta regra processual «baseia[‑se] clara e unicamente na ordem cronológica em que a acção é proposta nos órgãos jurisdicionais». Não deixa, portanto, lugar para um qualquer poder de apreciação quanto à questão de saber se um dos órgãos jurisdicionais a que foi submetida a acção estará melhor colocado do que outro para decidir do litígio quanto ao mérito. Daqui decorrem que, ao contrário do que por vezes se afirma, o mecanismo previsto pela Convenção em matéria de litispendência responde a uma lógica profundamente diferente da associada à teoria do forum non conveniens porquanto, como já se viu, este último implica uma apreciação discricionária, por parte do juiz ao qual a acção foi submetida, da questão de saber se um foro estrangeiro seria claramente mais apropriado para decidir do litígio quanto ao mérito.

251.    Quanto ao artigo 22.° da Convenção, recorde‑se que prevê que, quando acções conexas forem submetidas a tribunais de diferentes Estados contratantes e estiverem pendentes em primeira instância, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar pode ou suspender a instância ou declarar‑se incompetente a pedido de uma das partes, desde que a sua lei permita a apensação de acções conexas e o tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar seja competente para conhecer das duas acções.

252.    Ao contrário do que se prevê no artigo 21.° em matéria de litispendência, o artigo 22.° não se baseia apenas na ordem cronológica pela qual as acções tenham sido submetidas aos órgãos jurisdicionais em questão. Deixa alguma margem ao poder de apreciação do juiz ao qual a acção foi apresentada em segundo lugar, uma vez que lhe é oferecida uma opção, entre suspender a instância ou declarar‑se incompetente. Pode considerar‑se que esta escolha pode depender, nomeadamente, da questão de saber se o juiz ao qual a acção foi apresentada em primeiro lugar estará melhor colocado para decidir do litígio que o juiz ao qual a acção foi apresentada em segundo lugar. A este respeito, este mecanismo poderia aproximar‑se (mas apenas nesta medida) do relativo à teoria do forum non conveniens .

253.    Há que sublinhar, todavia, que a faculdade conferida ao juiz de suspender a instância ou de se declarar incompetente, em conformidade com o artigo 22.° da Convenção, se aplica unicamente na hipótese particular de terem sido iniciados processos paralelos em órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes, para evitar as contradições entre decisões que poderiam daí resultar e excluir, por conseguinte, na medida do possível, os casos em que uma decisão proferida num Estado contratante é susceptível de não ser reconhecida noutro Estado contratante.

254.    Ora, admitindo que a acção de indemnização intentada pela turista inglesa que terá sofrido um acidente análogo ao de A. Owusu esteja ainda pendente e possa ser considerada conexa com a acção no processo principal, essa acção paralela foi intentada na Jamaica, ou seja, nos órgãos jurisdicionais de um Estado terceiro, pelo que o artigo 22.° não visa, em princípio, aplicar‑se‑lhe.

255.    Além disso, independentemente destas considerações relativas ao caso em apreço, a lógica deste mecanismo de coordenação do exercício da função jurisdicional entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes mostra‑se muito diferente da da teoria do forum non conveniens , uma vez que a aplicação desta última não está, em princípio, subordinada à existência de uma acção paralela noutro Estado contratante. Com efeito, como o acórdão Spiliada precisou  (117) , é importante que o juiz ao qual a acção é submetida determine o «foro natural» do litígio, ou seja, «aquele com o qual o litígio tem laços mais estreitos», segundo critérios de ordem prática ou pecuniária, como a disponibilidade das testemunhas, ou critérios como a lei aplicável à operação em questão. O carácter apropriado ou não do juiz ao qual a acção foi submetida não depende, portanto, necessária e exclusivamente da existência de uma acção paralela num órgão jurisdicional de outro Estado contratante.

256.    Resulta destas considerações que, quando a competência de um órgão jurisdicional de um Estado contratante é estabelecida com fundamento no artigo 2.° da Convenção (desde que não viole as regras de competência de carácter exclusivo previstas nos artigos 16.° e 17.°), este órgão jurisdicional não tem o direito de renunciar ao exercício da sua competência, salvo nas hipóteses particulares previstas nos artigos 21.° e 22.° da referida Convenção, que não correspondem ao litígio no processo principal.

257.    Este exame da economia geral da Convenção confirma, portanto, a tese segundo a qual a Convenção obsta a que, numa situação como a do litígio no processo principal, um órgão jurisdicional de um Estado contratante, cuja competência seja estabelecida com fundamento no artigo 2.° da Convenção, renuncie discricionariamente ao exercício da sua competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do mérito do litígio.

258.    Na minha opinião, esta tese não pode ser colocada em questão pela circunstância de, como ocorre no caso em apreço, o litígio submetido ao órgão jurisdicional de um Estado contratante, com fundamento no artigo 2.° da Convenção, respeitar não só a um requerido domiciliado no Estado contratante desse órgão jurisdicional, como também a vários requeridos domiciliados num Estado terceiro.

259.    Com efeito, se a aplicação do artigo 4.° da Convenção, na hipótese de vários requeridos terem domicílio num Estado terceiro, é susceptível de levar o órgão jurisdicional ao qual a acção foi apresentada a levantar a questão do carácter apropriado dessa apresentação, à luz dos critérios associados à teoria do forum non conveniens , não deixa de ser certo que este artigo 4.° não impõe, de modo algum, a esse órgão jurisdicional a obrigação de renunciar ao exercício da competência que retira do artigo 2.° no que respeita ao requerido domiciliado no território do Estado contratante desse órgão jurisdicional. Cabe, simplesmente, ao juiz qual foi submetida a acção, tendo em conta a situação das partes e os diferentes interesses presentes, apreciar se deve decidir sobre todo o litígio ou apenas sobre a parte que respeita ao requerido domiciliado no Estado contratante em questão.

4. Os objectivos e o efeito útil da Convenção

260.    Admitindo que a teoria do forum non conveniens constitui uma regra da natureza processual que, a esse título, se insere no âmbito exclusivo da legislação nacional, a aplicação de tal regra não pode lesar o efeito útil da Convenção. Foi o que o Tribunal de Justiça recordou no acórdão Turner, já referido, a propósito do mecanismo das «anti‑suit injunctions»  (118) .

261.    Na minha opinião, a aplicação desta eventual regra processual tende a lesar os objectivos da Convenção e, correlativamente, o seu efeito útil, pelo que estes dois elementos obstam à aplicação da teoria do forum non conveniens .

262.    Vários argumentos apontam neste sentido.

263.    Antes de mais, ao permitir ao juiz ao qual a acção foi submetida renunciar – de modo puramente discricionário – ao exercício da competência que retira de uma regra estabelecida pela Convenção, como a do artigo 2.°, a teoria do forum non conveniens lesa seriamente a previsibilidade das regras de competência estabelecidas pela Convenção, em especial a do artigo 2.° Ora, como já se referiu, só esta previsibilidade das regras de competência pode garantir o respeito do princípio da segurança jurídica e assegurar o reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, em conformidade com os objectivos prosseguidos pela Convenção. Afectar deste modo a previsibilidade das regras de competência estabelecidas pela Convenção, em especial a do artigo 2.° (que é uma regra de competência geral), equivale, portanto, a lesar o efeito útil da Convenção.

264.    A este propósito, há que ter presente que a Convenção se inspira largamente no sistema jurídico de «civil law», o qual dá uma importância particular à previsibilidade e intangibilidade das regras de competência. Esta dimensão está menos presente no sistema de «common law», uma vez que a aplicação das regras em vigor é antes entendida de modo flexível e casuístico. A este respeito, a teoria do forum non conveniens inscreve‑se facilmente no sistema de «common law», uma vez que deixa ao órgão jurisdicional ao qual a acção foi submetida apreciar discricionariamente se deve ou não exercer a competência que lhe incumbe. Esta teoria afigura‑se, portanto, dificilmente compatível com o espírito da Convenção.

265.    Além destas considerações gerais, há que examinar mais especificamente as consequências processuais que decorrem da aplicação da teoria do forum non conveniens . Na minha opinião, essas consequências são dificilmente conciliáveis com os objectivos prosseguidos pela Convenção, que, recorde‑se, se referem tanto ao princípio da segurança jurídica como ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade.

266.    Com efeito, como já se viu, no estado actual do direito inglês a aplicação desta teoria traduz‑se num adiamento da decisão, ou seja, numa suspensão da instância, eventualmente com efeitos sine die . Esta situação é, em si, pouco satisfatória em termos de segurança jurídica.

267.    Além disso, na minha opinião, em vez de reforçar a protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, a teoria do forum non conveniens tende antes a enfraquecê‑la. Isto é especialmente verdade quanto ao requerente.

268.    Recorde‑se, com efeito, que é ao requerente que queira escapar ao funcionamento da excepção processual em causa que cabe demonstrar que não poderá obter justiça no foro estrangeiro em questão. Também aqui esta situação é pouco satisfatória, na medida em que há o risco de esta excepção processual ser invocada por certos requeridos com o único objectivo de atrasar a tramitação dos processos em que sejam demandados.

269.    Além disso, quando o juiz ao qual a acção foi submetida decida finalmente aceitar a excepção do forum non conveniens , é, mais uma vez, ao requerente que queria retomar o processo que cabe apresentar provas dos elementos necessários para tanto. Compete‑lhe, assim, demonstrar que o foro estrangeiro não é afinal, competente para decidir do litígio ou que ele próprio não é susceptível de ter acesso a uma justiça efectiva nesse foro, ou que a ela não teve acesso. Este ónus de prova que recai sobre o requerente pode revelar‑se particularmente pesado. A este respeito, a teoria do forum non conveniens é susceptível, portanto, de lesar sensivelmente a defesa dos seus interesses, pelo que tende a enfraquecer, e não a reforçar, a protecção jurídica do requerente, contrariamente ao objectivo da Convenção.

270.    Por fim, na hipótese de o requerente não conseguir fazer prova dos elementos em questão, para se opor a uma suspensão da instância (que pode ser ordenada sine die ) ou para retomar a instância já suspensa, a única possibilidade que lhe resta se quiser manter as suas pretensões é respeitar todas as diligências necessárias para intentar uma nova acção no foro estrangeiro. Escusado será dizer que estas diligências têm custos e são susceptíveis de dilatar sensivelmente os prazos processuais com que o requerente se defronta para que a sua causa seja finalmente ouvida. Aliás, a este respeito, o mecanismo relativo à teoria do forum non conveniens pode ser considerado incompatível com os requisitos enunciados no artigo 6.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

271.    Daqui concluo que esta teoria lesa o efeito útil da Convenção, na medida em que afecta os objectivos da segurança jurídica e do reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, que são prosseguidos pela Convenção através do estabelecimento de regras de competência obrigatórias, como a que consta do artigo 2.°

272.    Na minha opinião, esta conclusão impõe‑se também no que respeita às regras previstas pela Convenção para facilitar o reconhecimento e execução de decisões judicias entre os Estados contratantes. Com efeito, ao renunciar ao exercício da competência que retira das regras da Convenção, em especial a do artigo 2.°, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do litígio que lhe foi submetido, o juiz de um Estado contratante priva o requerente da possibilidade de beneficiar do mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução previsto pela Convenção. Esta situação é contrária aos objectivos da Convenção relativos ao respeito da segurança jurídica e ao reforço da protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade A este respeito, o mecanismo relativo à teoria do forum non conveniens lesa, também quanto a este aspecto, o efeito útil da Convenção.

273.    Por outro lado, há que salientar que esta teoria é susceptível de afectar a aplicação uniforme das regras estabelecidas pela Convenção e de violar, assim, uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça.

274.    Com efeito, como já se viu, o Tribunal de Justiça tem regularmente manifestado a preocupação de assegurar a igualdade e a uniformidade dos direitos e obrigações que decorrem da referida Convenção, quer quanto aos Estados contratantes quer a favor dos interessados.

275.    Ora, há que recordar que a teoria do forum non conveniens só se desenvolveu de forma significativa no Reino Unido e na Irlanda, e não nos outros Estados contratantes.

276.    Admitir a aplicação desta teoria apenas nestes dois Estados contratantes que a conhecem teria, portanto, como efeito introduzir uma discriminação entre os particulares estabelecidos no território da Comunidade, consoante o Estado contratante em cujo território o requerido tivesse o seu domicílio conhecesse ou não a teoria em questão. Esta discriminação seria manifestamente contrária ao princípio jurisprudencial da igualdade e da uniformidade dos direitos que decorrem da Convenção.

277.    Resulta de todas estas considerações que tanto a letra do artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção, como a sua economia geral, bem como os seus objectivos e o seu efeito útil, obstam a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência é estabelecida com fundamento no artigo 2.° da referida Convenção – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do mérito do litígio, quando este último não tenha sido designado por nenhum pacto atributivo de jurisdição, não lhe tenha sido anteriormente submetido nenhum pedido susceptível de gerar uma situação de litispendência ou de conexão e os elementos de conexão do litígio com esse Estado não contratante sejam de natureza diferente da dos visados no artigo 16.° da Convenção de Bruxelas.

278.    Acrescente‑se que o Regulamento n.° 44/2001 confirma claramente esta tese. Com efeito, o seu décimo primeiro considerando prevê que «[a]s regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão» (sublinhado meu).

279.    Estas considerações excluem implícita, mas necessariamente, a possibilidade de o juiz ao qual a acção é submetida, em conformidade com o artigo 2.° da Convenção, renunciar ao exercício da sua competência por, nos termos da teoria do forum non conveniens , um órgão jurisdicional de outro Estado estar melhor colocado para decidir do litígio  (119) . Na minha opinião, esta conclusão não se impõe apenas quando o órgão jurisdicional concorrente esteja situado num Estado‑Membro que não o do domicílio do requerido. Impõe‑se também quando o foro concorrente estiver situado num Estado terceiro.

280.    Consequentemente, há que responder à primeira questão prejudicial, na sua segunda vertente, no sentido de que a Convenção de Bruxelas obsta a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência seja estabelecida com fundamento no artigo 2.° da referida Convenção – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do mérito do litígio, quando este último não tenha sido designado por nenhum pacto atributivo de jurisdição, não lhe tenha sido anteriormente submetido nenhum pedido susceptível de gerar uma situação de litispendência ou de conexão e os elementos de conexão do litígio com esse Estado não contratante sejam de natureza diferente da dos visados no artigo 16.° da Convenção de Bruxelas.

V – Conclusão

281.   À luz de todas estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões prejudiciais apresentadas pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido):

«1)
O artigo 2.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, na redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que visa aplicar‑se mesmo quando o requerente e o requerido têm domicílio no mesmo Estado contratante e o litígio que os opõe, nos órgãos jurisdicionais desse Estado contratante, apresenta certos elementos de conexão com um Estado terceiro, e não com outro Estado contratante, pelo que a única questão de repartição de competência susceptível de se colocar neste litígio surge apenas nas relações entre os órgãos jurisdicionais de um Estado contratante e os de um Estado terceiro, e não nas relações entre os órgãos jurisdicionais de diferentes Estados contratantes.

2)
A Convenção de Bruxelas obsta a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante – cuja competência seja estabelecida com fundamento no artigo 2.° da referida Convenção – renuncie discricionariamente ao exercício dessa competência, por um órgão jurisdicional de um Estado não contratante ser mais apropriado para decidir do mérito do litígio, quando este último não tenha sido designado por nenhum pacto atributivo de jurisdição, não lhe tenha sido anteriormente submetido nenhum pedido susceptível de gerar uma situação de litispendência ou de conexão e os elementos de conexão do litígio com esse Estado não contratante sejam de natureza diferente da dos visados no artigo 16.° da Convenção de Bruxelas.»


1
Língua original: francês.


2
JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186. Na redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1 e – texto alterado – p. 77; EE 01 F2 p. 131), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1) e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas» ou «Convenção»). Uma versão consolidada da referida convenção, na redacção que lhe foi dada por estas quatro convenções de adesão, foi publicada no JO 1998, C 27, p. 1.


3
Trata‑se do processo Ladenimor (C‑314/92) (despacho de cancelamento de 21 de Fevereiro de 1994). Este processo é frequentemente citado sob o nome de «Harrods», pelo que o citarei deste modo.


4
Parecer 1/03. A Convenção de Lugano de 16 de Setembro de 1988 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, constitui uma convenção dita «paralela» à Convenção de Bruxelas, uma vez que o seu conteúdo é quase idêntico ao da Convenção de Bruxelas. A convenção de Lugano vincula todos os Estados‑Membros da Comunidade (contratantes na Convenção de Bruxelas) bem como a República da Islândia, o Reino da Noruega, a Confederação Helvética e a República da Polónia. Trata‑se de rever esta convenção para alinhar o seu conteúdo pelo do Regulamento (CE) n.° 44/2001 Regulamento, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO L 12, p. 1), que, como se verá adiante, substituiu recentemente a Convenção de Bruxelas. O pedido de parecer apresentado ao Tribunal de Justiça visa saber se a conclusão do projecto de convenção revista é da competência exclusiva da Comunidade ou de uma competência partilhada entre a Comunidade e os Estados‑Membros. Esta questão leva, nomeadamente, a apreciar em que medida o âmbito de aplicação territorial ou pessoal do projecto de convenção se sobrepõe ao do referido regulamento. Essa questão não está dissociada da relativa ao âmbito de aplicação territorial ou pessoal da Convenção de Bruxelas, uma vez que o Regulamento que substituiu esta convenção retoma o essencial das suas disposições.


5
Acórdão de 27 de Abril de 2004 (C‑159/02, ainda não publicado na Colectânea).


6
V. n.° 35.


7
Este artigo prevê que «[o]s Estados‑Membros entabularão entre si, sempre que necessário, negociações destinadas a garantir, em benefício dos seus nacionais […] a simplificação das formalidades a que se encontram subordinados o reconhecimento e a execução recíprocos […] das decisões judiciais […]».


8
Estas regras de competência opcional aplicam‑se, nomeadamente, em matéria contratual (artigo 5.°, n.° 1: competência concorrente do tribunal do lugar de execução da obrigação que serve de fundamento ao pedido), em matéria extracontratual (artigo 5.°, n.° 3: competência concorrente do tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso), em matéria de contratos celebrados pelos consumidores (artigo 14.°, primeiro parágrafo: competência concorrente dos tribunais do Estado contratante em cujo território estiver domiciliado o consumidor), bem como em caso de pluralidade de requeridos (artigo 6.°, n.° 1: competência concorrente do tribunal do domicílio de um dos requeridos).


9
Estas regras de competência aplicam‑se, em especial, em matéria de direitos reais imobiliários e de arrendamento de imóveis [artigo 16.°, n.° 1, alínea a): competência exclusiva dos tribunais do Estado contratante onde o imóvel se encontre situado], bem como em situações de extensão expressa de competência (artigo 17.°: competência exclusiva do tribunal ou dos tribunais designados pelas partes no âmbito de um pacto atributivo de jurisdição, sob reserva, nomeadamente, do respeito das regras de competência exclusiva constantes do artigo 16.°).


10
O artigo 18.° da Convenção de Bruxelas atribui competência ao órgão jurisdicional do Estado contratante perante o qual o requerido compareça, embora não tenha domicílio nesse Estado, salvo no caso de a comparência ter como único objectivo contestar a competência do órgão jurisdicional em causa ou de existir outro órgão jurisdicional com competência exclusiva por força do artigo 16.° da referida Convenção. Fala‑se, então, de extensão tácita de competᆰncia.


11
Embora o Regulamento n.° 44/2001 não seja aplicável ao litígio no processo principal, note‑se que acrescentou, no seu artigo 4.°, uma reserva suplementar ao funcionamento das regras de competência exorbitantes que dependem da vontade das partes.


12
Esta situação particular decorre do protocolo sobre a situação do Reino da Dinamarca, anexo aos tratados UE e CE. Dele resulta que o Regulamento n.° 44/2001 não é aplicável na Dinamarca, mas que a Convenção de Bruxelas continua a aplicar‑se entre este Estado‑Membro e os outros Estados‑Membros que estão vinculados pelo Regulamento. Foi mantida uma situação comparável no Reino Unido e na Irlanda através de um protocolo que lhes dizia respeito, também anexo aos Tratados UE e CE. Todavia, em conformidade com o artigo 3.°, ponto 1, desse protocolo, o Reino Unido e a Irlanda notificaram a sua pretensão de participarem na adopção e na aplicação do Regulamento n.° 44/2001, pelo que este lhes é aplicável.


13
A seguir «acórdão Spiliada» (1987, AC 460). Os princípios estabelecidos por este acórdão correspondem, ao que parece, aos seguidos na Jamaica. V., neste sentido, as observações de N. B. Jackson, primeiro requerido no processo principal (n.° 25).


14
V. p. 476 do acórdão Spiliada, já referido.


15
. Ibidem p. 474. A este respeito, o mecanismo do forum non conveniens , aplicável a uma acção intentada contra um requerido presente em Inglaterra (que implica, em direito inglês, uma regra de competência dita «ordinária»), pode aproximar‑se do mecanismo do forum conveniens . Segundo este último, quando uma acção é intentada contra um requerido ausente de Inglaterra, (que implica, em direito inglês, uma regra de competência dita «extraordinária»), o tribunal inglês pode recusar a autorização de notificação no estrangeiro do acto que determina o início da instância, quando o tribunal estrangeiro constitua o forum conveniens , pelo que a acção em questão não poderá ser prosseguida em Inglaterra. A este respeito, v. pp. 480 a 482.


16
V. p. 477 [alínea c)] do acórdão Spiliada, já referido.


17
. Ibidem p. 477 e 478 [alínea d)].


18
Recorde‑se que, nos países de «common law», se dá uma importância especial à audição das testemunhas na audiência, incluindo, nomeadamente, os peritos.


19
V. p. 478 [alínea d)] do acórdão Spiliada, já referido.


20
. Ibidem p. 482.


21
Esta expressão foi utilizada pela House of Lords num acórdão posterior ao acórdão Spiliada, o acórdão Lubbe v. Cape plc (2000, 1 WLR, 1545, HL) (a seguir «acórdão Lubbe»).


22
. Idem .


23
V. p. 482 do acórdão Spiliada, já referido.


24
V., neste sentido, a jurisprudência da House of Lords citada por Nuyts, A., L’exception de forum non conveniens (étude de droit international privé comparé) , tese ULB, 2001‑2002, vol. II, n.° 218. V., mais precisamente, os acórdãos Cornelly v. RTZ Corporation plc (1998, AC 854, p. 873 e 874), e Lubbe, já referido.


25
V. Nuyts, A., já referido, n.° 202.


26
Em direito inglês, desde a reforma das regras de processo civil de 1998, a excepção do forum non conveniens deve ser suscitada in limine litis , ou seja, antes de qualquer contestação quanto ao mérito, e não numa qualquer fase do processo. A este respeito v. Nuyts, A., já referido, n.° 204.


27
V. Nuyts, A., já referido, n.° 208.


28
V., neste sentido, os acórdãos Berisford plc v. New Hampshire Insurance Co. (1990, 2 QB 631), e Arkwright Mutual Insurance Co. v. Bryanston Insurance Co. Ltd (1990, 2 QB 649). Nestes acórdãos, a Hight Court declarou que a aplicação do mecanismo do forum non conveniens era contrária ao carácter imperativo do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas e violava a aplicação uniforme das regras de competência nos Estados contratantes.


29
A seguir «Harrods» (1992, Ch. 72, CA). Este acórdão foi proferido no âmbito de um litígio que opunha uma sociedade de direito inglês, sediada em Inglaterra, mas que tinha exercido todas as suas actividades na Argentina, onde estavam situados os seus órgãos de decisão e de controlo (a sociedade Harrods Buenos Aires) bem como o seu accionista maioritário (a sociedade suíça Intercomfinanz), ao seu accionista minoritário (a sociedade suíça Ladenimor), relativamente a um diferendo quanto à gestão da referida sociedade inglesa.


30
. Ibidem , pp. 96 e 103.


31
. Ibidem , pp. 97 e 98.


32
. Ibidem , p. 97.


33
. Ibidem , p. 103 [alínea d)].


34
Quanto a este aspecto, as questões prejudiciais foram formuladas do seguinte modo:

«1) A Convenção de 1968 é aplicável para estabelecer a competência dos tribunais de um Estado contratante em circunstâncias em que não se verifique um conflito de competências com as dos tribunais de qualquer outro Estado contratante?

2) a) Quando a sua competência se funde no artigo 2.°, não é conforme à Convenção de 1968 exercer o tribunal de um Estado contratante o poder discricionário que lhe atribui o direito interno para se considerar incompetente para decidir de um processo intentado contra pessoa domiciliada nesse Estado e considerar competentes os tribunais de um Estado não contratante, quando não esteja em questão a competência de qualquer outro Estado contratante nos termos da Convenção de 1968?

b) Em caso de resposta afirmativa, isso é sempre incompatível ou é‑o apenas em certas circunstâncias e, neste último caso, em quais?

3) a) Caso a resposta à questão 2 seja afirmativa, é ainda assim compatível com a Convenção de 1968 exercer o tribunal de um Estado contratante o poder discricionário de que dispõe nos termos do direito interno para se declarar incompetente para decidir de um processo intentado contra um co‑réu não domiciliado no Estado contratante e declarar serem competentes os tribunais de um Estado não contratante?

b) A resposta à questão 3 será diferente se o efeito da decisão do tribunal de se declarar incompetente para decidir o processo intentado contra o co‑réu for o de o pedido contra o réu domiciliado dever ser julgado improcedente?»


35
V. nota 21.


36
V. n.° 28 das presentes conclusões.


37
V., nomeadamente, Nuyts, A., já referido (n.° 181), e Fentiman, R., «Outsting Jurisdiction in the European Judicial Area», Cambridge Yearbook of European Legal Studies , 2000, p. 109, e Stays and the European Conventions: End‑Game ?, CLJ 10, 2001, p. 11.


38
A seguir «primeiro réu».


39
A seguir «terceira ré».


40
A seguir «quarta ré».


41
A seguir «sexta ré».


42
C‑412/98, Colect., p. I‑5925.


43
A este respeito, o juiz Bentley QC remete, em particular, para os n. os  59 a 61 do acórdão Group Josi, já referido.


44
V. n. os  35 a 39 das presentes conclusões.


45
É o que resulta, efectivamente, do artigo 2.° do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial.


46
V. n.° 47 do despacho de reenvio.


47
V. n. os  33 a 35 do despacho de reenvio.


48
V. n. os  47 e 48, bem como n. os  82 a 88 das observações escritas da Comissão.


49
V. n.° 32 das suas observações escritas.


50
É o que parece resultar dos n. os  44 e 45 do despacho de reenvio, bem como dos n. os  48 (parágrafo 5), 55 e 56 que expõem os argumentos das partes no litígio no processo principal, que, recorde‑se, correspondem amplamente aos desenvolvidos no processo Harrods e sobre os quais a Court of Appeal já se pronunciou.


51
V., nomeadamente, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 59); de 13 de Março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 38); de 22 de Janeiro de 2002, Canal Satélite Digital (C‑390/99, Colect., p. I‑607, n.° 18); de 21 de Março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, Colect., p. I‑3193, n.° 16), e de 30 de Março de 2004, Alabaster (C‑147/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 54).


52
JO 1990, C 189, p. 122.


53
V. p. 129.


54
12/76, Colect., p. 585, n.° 9.


55
C‑365/88, Colect., p. I‑1845, n.° 17.


56
V. n. os  99 e 100 bem como 126 a 131 das presentes conclusões.


57
Quanto a esta parte da doutrina inglesa, v. Collins, L., 1990, 106 LQR, pp. 538 e 539, citado pela Court of Appeal no acórdão Harrods (p. 103), e Kaye, P., Civil jurisdiction and enforcement of foreign judgments , Professional Books Limited, 1987, pp. 216 a 225.


58
V. Droz, G., Compétence judiciaire et effets des jugements dans le marché commun (Étude de la convention de Bruxelles du 27 septembre 1968) , 1972, pp. 23 a 25.


59
V., nomeadamente, quanto à doutrina belga, Rigaux, F., e Fallon, M., Droit international privé , Maison Larcier, 2ª edição reformulada, 1993, tomo II, Droit positif belge , p. 173; Weser, M., Convention communautaire sur la compétence judiciaire et l’exécution des décisions , CIDC, e Pédone, A., 1975, pp. 215 a 217; quanto à doutrina alemã, Geimer, R., e Schütze, R., Internationale Urteilsanerkennung , C. H. Beck’Sche Verlagsbuchhandlung, 1983, Band I, 1. Halbband, pp. 220 a 222; Geimer, R., «The right of acces to the Courts under the Brussels convention», Civil Jurisdiction and Judgments in Europe, Proceedings of the Colloquium on the Interpretation of the Brussels Convention by the Court of Justice considered in the context of the European Judicial Area, Luxembourg, 11 and 12 march 1991 , Butterworths, 1992, pp. 39 e 40 (a propósito do acórdão Harrods da Court of Appeal); quanto à doutrina neerlandesa, Duintjer Tebbens, H., «The english Court of Appeal in re Harrods : An unwelcome Interpretation of the Brussels Convention», Law and Reality: Essays on National and International Procedural Lawin Honour of Cornelis Carel Albert Voskuil , Martinus Nijhoff Publishers, 1992, pp. 47 e segs.


60
Segundo G. Droz, o mesmo se deveria aplicar às regras de competência exclusiva que constam do artigo 16.° da Convenção.


61
Segundo a maioria da doutrina, assim deveria ser mesmo quando o foro escolhido se situa num Estado contratante que não o do domicílio das partes. Com efeito, os pactos atributivos de jurisdição são normalmente considerados desfavoravelmente em direito interno, pelo que a sua admissão, em conformidade com o artigo 17.° da Convenção, se deveria limitar a relações jurídicas com um carácter internacional intrínseco, independentemente da localização do foro escolhido. V., neste sentido, Gaudemet‑Tallon, H., Compétence et exécution des jugements en Europe , LGDJ, 3ª edição, 2002, p. 97, com várias referências doutrinárias.


62
V., nomeadamente, Kropholler, J., Europäisches Zivilprozeßrecht – Kommentar zu EuGvO und Lugano‑Übereinkommen , Verlag Recht und Wirtschaft GmbH, 2002, p. 106.


63
No caso em apreço, a Comissão limitou‑se a sustentar que a aplicação do artigo 2.° da Convenção não é excluída pelo facto de o autor ter domicílio no mesmo Estado contratante que o primeiro réu e de o litígio no processo principal se inscrever no âmbito de uma relação entre um Estado contratante e um Estado terceiro. Não tomou, precisamente, posição quanto à questão de saber se a aplicação do artigo 2.° exige ou não que o litígio seja internacional e, em caso afirmativo, se basta que o elemento de estraneidade exigido se situe num Estado terceiro. Dito isto, observe‑se que, no âmbito do processo de parecer 1/03 relativo à futura Convenção de Lugano revista, a Comissão afirmou (no n.° 170 das suas observações escritas) que qualquer litígio apresentado a um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e com um critério de conexão com outro Estado, quer se trate de um Estado‑Membro ou de um Estado não‑membro, fica sob a alçada do Regulamento n.° 44/2001. Acrescentou que o referido Regulamento não deixa nenhum litígio que não seja puramente interno (caso em que todos os elementos de conexão estão situados no mesmo Estado) fora do seu âmbito de aplicação.


64
V. n.° 30.


65
. Ibidem , n.° 57.


66
. Ibidem , n.° 58 (o itálico é meu).


67
. Ibidem , n.° 59.


68
V., nomeadamente, os acórdãos de 17 de Junho de 1992, Handte (C‑26/91, Colect., p. I‑3967, n.° 14); de 19 de Janeiro de 1993, Shearson Lehman Hutton (C‑89/91, Colect., p. I‑139, n. os  15 e 16); de 3 de Julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, Colect., p. I‑3767, n.° 13); de 27 de Outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, Colect., p. I‑6511, n.° 16); Group Josi, já referido, (n. os  36 a 40), e, mais recentemente, de 10 de Junho de 2004, Kronhofer (C‑168/02, ainda não publicado na Colectânea, n. os  12 e 13).


69
V., nomeadamente, a propósito do artigo 5.°, n.° 1, em matéria contratual, acórdão de 17 de Janeiro de 1980, Zelger (56/79, Recueil p. 89, n.° 3); a propósito do artigo 5.°, n.° 3, em matéria extracontratual, acórdão de 30 de Novembro de 1976, Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace» (21/76, Colect., p. 677, n.° 11); a propósito do artigo 6.°, n.° 1, em caso de pluralidade de requeridos, acórdão de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis (189/87,Colect., p. 5565, n.° 11), e, a propósito do artigo 6.°, n.° 2, em caso de chamamento de um garante à acção ou de intervenção, o acórdão Hagen, já referido (n.° 11).


70
É o caso do credor de alimentos, considerado carenciado (artigo 5.°, n.° 2), bem como do consumidor (artigos 13.° e 14.°) ou do tomador de seguro (artigos 8.°, 9.° e 10.°), partes num contrato e considerados economicamente mais fracos e juridicamente menos experientes do que o seu co‑contratante profissional. A propósito do objectivo prosseguido pelos artigos 13.° e 14.° da Convenção, v., nomeadamente, acórdão de 11 de Julho de 2002, Gabriel (C‑96/00, Colect., p. I‑6367, n.° 39).


71
Foi o que o Tribunal de Justiça sublinhou a propósito do artigo 13.°, segundo parágrafo, no acórdão de 15 de Setembro de 1994, Brenner e Noller (C‑318/93, Colect., p. I‑4275, n.° 18).


72
Neste sentido v., nomeadamente, acórdão Group Josi, já referido (n.° 46).


73
. Idem .


74
V., nomeadamente, Gaudemet‑Tallon, H., já referido na nota 61, p. 71.


75
Esta questão mantém‑se em aberto. Como já referi no n.° 70, será deixada de lado, uma vez que a situação do processo principal não exige a sua apreciação.


76
V., nomeadamente, acórdãos de 27 de Junho de 1991, Overseas Union Insurance e o. (C‑351/89, Colect., p. I‑3317, n.° 16), e de 9 de Dezembro de 2003, Gasser (C‑116/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 41).


77
V. acórdãos Gasser e Turner, já referidos (n.° 24).


78
C‑129/92 (Colect., p. I‑117, n.° 25).


79
. Ibidem , n.° 37.


80
V. n.° 14.


81
V., neste sentido, acórdão de 11 de Junho de 1985, Debaecker e Plouvier (49/84, Recueil p. 1779), a propósito da aplicação do artigo 27.°, n.° 2, da Convenção no âmbito do reconhecimento nos Países Baixos de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional belga, num litígio entre partes domiciliadas na Bélgica a propósito do arrendamento de um imóvel também situado na Bélgica.


82
A este propósito, v. Juenger, F., La Convention de Bruxelles du 27 septembre 1968 et la courtoisie internationale – Réflexions d’un Américain , RC, 1983, p. 37.


83
«Les frontières extérieures de l’espace judiciaire européen: quelques repères», E Pluribus Unum – Liber Amicorum Georges A. L. Droz , Martinus Nijhoff Publishers, 1996, p. 85, em especial pp. 103 e 104.


84
V., nomeadamente, acórdãos de 4 de Março de 1982, Effer (38/81, Recueil p. 825, n.° 6); de 13 de Julho de 1993, Mulox IBC (C‑125/92, Colect., p. I‑4075, n.° 11); Benincasa, já referido (n.° 26); de 17 de Setembro de 2002, Tacconi (C‑334/00, Colect., p. I‑7357, n.° 20); de 5 de Fevereiro de 2004, DFDS Torline (C‑18/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 36), e Kronhofer, já referido (n.° 20).


85
V., nomeadamente, acórdãos de 29 de Junho de 1994, Custom Made Commercial (C‑288/92, Colect., p. I‑2913, n.° 15), e de 19 de Fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, Colect., p. I‑1699, n.° 25).


86
V., nomeadamente, acórdãos Effer (n.° 6), Owens Bank (n.° 32), Custom Made Commercial (n.° 18), Besix (n.os 24 a 26), já referidos, bem como acórdãos de 28 de Setembro de 1999, GIE Groupe Concorde e o. (C‑440/97, Colect., p. I‑6307, n.° 23), e de 6 de Junho de 2002, Italian Leather (C‑80/00, Colect., p. I‑4995, n.° 51).


87
V., nomeadamente, acórdãos Handte (n.° 14) e Group Josi (n.° 35), já referidos.


88
V., nomeadamente, acórdão de 21 de Maio de 1980, Denilauler (125/79, Recueil, p. 1553, n.° 13).


89
V., nomeadamente, acórdãos Handte (n.° 14) e Group Josi (n.° 36), já referidos.


90
N.° 48 do despacho de reenvio.


91
N.° 21 das observações escritas.


92
V. Quoc Dinh, N., Daillier, P., e Pellet, A., Droit international public , 6ª edição integralmente reformulada, 1999, LGDJ, pp. 239 e segs.


93
V. Quoc Dinh, N., Daillier, P., e Pellet, A., já referido, p. 249. Faz‑se referência, nomeadamente, à Convenção de Bruxelas de 29 de Novembro de 1969 sobre a intervenção em alto mar em caso de acidente causando ou podendo vir a causar poluição por hidrocarbonetos. Os Estados partes nesta Convenção reservam‑se o direito de intervir no alto mar ao largo das suas costas mesmo quanto a navios arvorem pavilhão de Estados terceiros.


94
JO 1980, L 266, p. 1; EE 01 F3 p. 36.


95
A este respeito, v. o relatório elaborado por M. Giuliano e P. Lagarde sobre a Convenção de Roma (JO 1980, C 282, p. 1). V., em especial, o ponto 8 das considerações introdutórias, bem como o comentário aos artigos 1.°, n.° 1, e 2.° da referida convenção.


96
A este respeito, v. o comentário ao artigo 2.° da Convenção de Roma, que consta do relatório atrás referido, bem como Jacquet, J.‑M., «Aperçu de la convention de Rome», L’européanisation du droit international privé , Académie de droit européen de Trèves, 1996, p. 21.


97
C‑398/92, Colect., p. I‑467, n.° 11 (o itálico é meu).


98
V. n.° 12. V. também, neste sentido, acórdão Tessili, já referido (n.° 9).


99
V. n.° 8.


100
V. n.° 24 das suas observações escritas.


101
C‑465/00, C‑138/01 e C‑139/01 (Colect., p. I‑4989, n.° 41). V. também, neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 18 de Fevereiro de 1987, Mathot (98/86, Colect., p. 809, n.° 11); de 12 Dezembro de 1990, SARPP (C‑241/89, Colect., p. I‑4695, n.° 16), a propósito da Directiva 79/112/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1978, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios destinados ao consumidor final (JO L 33, p. 1; EE 13 F9, p. 162), e de 25 de Abril de 1996, Comissão/Bélgica (C‑87/94, Colect., p. I‑2043, n. os  30 a 33), a propósito da directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 297, p. 1). A este respeito, v. Fallon, M., «Les conflits de lois et de juridictions dans un espace économique intégré – L’expérience de la Communauté européenne», Recueil des cours , Académie de droit international, Martinus Nijhoff Publishers, 1996, pp. 49, 182 e 183.


102
V. acórdão Österreichischer Rundfunk e o., já referido (n.° 41).


103
Trata‑se da directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO L 281, p. 31).


104
V. acórdão Österreichischer Rundfunk e o., já referido (n.° 42).


105
. Idem .


106
C‑101/01, ainda não publicado na Colectânea, n. os  40 e 41.


107
Neste sentido v., nomeadamente, acórdão de 9 de Setembro de 2004, Comissão/Espanha (C‑70/03, ainda não publicado na Colectânea, n.° 30), a propósito da directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29).


108
A este propósito, v. Aussant, J., Fornasier, R., Louis, J.‑V., Seché, J.‑C., e Van Raepenbusch, S., Commentaire J. Mégret – Le droit de la CEE , vol. 3, Université de Bruxelles, 2.ª edição, pp. 113 e seguintes, bem como Fallon, M., já referido, pp. 43 e seguintes (em especial pp. 45 e 46).


109
. Idem . V., neste sentido, os acórdãos de 12 de Dezembro de 1974, Walrave e Koch (36/74, Colect., p. 595, n. os  26 a 28), e de 12 de Julho de 1984, Prodest (237/83, Recueil, p. 3153, n.° 6), a propósito, em geral, das disposições comunitárias relativas à livre circulação dos trabalhadores no interior da Comunidade e, em especial, do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77).


110
Neste sentido v., nomeadamente, acórdãos de 23 de Outubro de 1986, Van Roosmalen (300/84, Colect., p. 3097, n. os  30 e 31), e de 9 de Julho de 1987, Laborero e Sabato (82/86 e 103/86, Colect., p. 3401, n. os  25 a 28).


111
O itálico é meu.


112
Parece que esta teoria tem também sido aplicada nos Países Baixos, mas de modo muito mais restrito.


113
Assim, já em 1972, G. Droz tinha declarado firmemente que esta teoria não tinha cabimento na Convenção de Bruxelas, concluindo que «mais vale eliminar à partida esta fonte de chicana» (tradução livre), Droz, G., Droits de la demande dans les relations privées internationales , TCFDIP, 1993‑1995, p. 97.


114
JO 1990, C 189, p. 184, pontos 77 e 78.


115
V., nomeadamente, acórdãos de 5 de Dezembro de 1967, Van der Vecht (19/67, Recueil, p. 445, Colect. 1965‑1968, p. 683); de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e o. (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 18); de 17 de Julho de 1997, Ferriere Nord/Comissão (C‑219/95 P, Colect., p. I‑4411, n.° 15), e de 29 de Abril de 2004, Björnekulla Fruktindustrier (C‑371/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 16).


116
V., nomeadamente, acórdãos de 14 de Julho de 1977, Bavaria Fluggesellschaft e Germanair/Bedarfshuftfahrt (9/77 e 10/77, Colect., p. 1517, n.° 4); de 22 de Novembro de 1978, Somafer (33/78, Colect., p. 733, n.° 8), e de 15 de Novembro de 1983, Duijnstee (288/82, Recueil, p. 3663, n.° 13).


117
V. n.° 27 das presentes conclusões.


118
V. n.° 29, na continuidade do acórdão Hagen, já referido (n.° 20).


119
V., neste sentido, Gaudemet‑Tallon, H., já referido na nota 61, pp. 57 e seguintes.