CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 15 de Janeiro de 2004(1)



Processo C-168/02



Rudolf Kronhofer
contra
Marianne Maier,
Christian Möller,
Wirich Hofius
e
Zeki Karan


[pedido de decisão prejudicialapresentado pelo Oberster Gerichtshof (Áustria)]

«Convenção de Bruxelas – Artigo 5.°, ponto 3 – Competências especiais em matéria extracontratual – Determinação do lugar onde ocorreu o facto danoso»






1.        No presente processo, o Oberster Gerichtshof (Áustria) (Supremo Tribunal) solicita ao Tribunal de Justiça que precise o âmbito do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial  (2) .

2.        Mais precisamente, trata‑se de determinar se o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», constante desse artigo, é susceptível de referir o lugar de domicílio da vítima, onde se situe «o centro do seu património», de modo a esta ter o direito de intentar uma acção de indemnização do seu prejuízo no tribunal correspondente. Esta questão coloca‑se no quadro específico de uma acção de indemnização do prejuízo financeiro sofrido por um particular na sequência de operações de bolsa realizadas com elementos do seu património que ele tinha previamente colocado num Estado contratante diferente do do seu domicílio.

I – Quadro jurídico

3.        O artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas estabelece o princípio de que «as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas […] perante os tribunais desse Estado».

4.        Para além desta competência geral, a Convenção de Bruxelas prevê uma série de competências especiais de carácter opcional, que permitem ao demandante optar por intentar a sua acção noutros tribunais que não os do Estado do domicílio do demandado.

5.        Entre estas normas de competência especiais figura a que é enunciada no artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, que determina que, em matéria extracontratual, o requerido pode ser demandado perante o tribunal «do lugar onde ocorreu o facto danoso».

6.        Resulta da jurisprudência que, no caso de o lugar onde se produziu o facto susceptível de implicar responsabilidade extracontratual não coincidir com o lugar onde esse facto provocou o dano, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», constante do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, deve ser entendida no sentido de se referir simultaneamente ao lugar onde o dano se verificou e ao lugar onde decorreu o evento causal, de modo que o demandado pode ser demandado, consoante opção do demandante, no tribunal de qualquer desses lugares  (3) .

II – Matéria de facto e tramitação processual do processo principal

7.        Rudolf Kronhofer, residente na Áustria, intentou num tribunal austríaco uma acção de indemnização contra várias pessoas domiciliadas na Alemanha, na sua qualidade de gerentes ou consultores financeiros da sociedade de gestão de patrimónios Protectas Vermögensverwaltungs GmbH (a seguir «Protectas»), também ela estabelecida na Alemanha.

8.        Por esta acção, o demandante pretende obter a indemnização do prejuízo financeiro que alega ter sofrido em razão do comportamento dos demandados, os quais, segundo ele, o incitaram, por telefone, a celebrar um contrato incidente sobre opções de compra de acções, sem o terem advertido dos riscos de uma tal operação.

9.        Na sequência desta solicitação, R. Kronhofer transferiu para a Alemanha a quantia de 82 500 USD, que colocou numa conta de investimentos na Protectas. Esta quantia foi investida, na praça financeira de Londres (Reino Unido), em opções de compra altamente especulativas, ditas «call options». Esta operação bolsista traduziu‑se na perda de uma parte da quantia investida.

10.      A título de indemnização do seu prejuízo, R. Kronhofer solicita, nos tribunais austríacos, o pagamento da quantia de 31 521,26 USD. Em apoio do seu pedido, sustenta que os tribunais austríacos são competentes por aplicação do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas, em razão de o prejuízo que invoca ter ocorrido na Áustria, onde tem o seu domicílio.

11.      O tribunal de primeira instância (Landesgericht Feldkirch) (Áustria) declarou‑se incompetente por motivo de esse pedido de indemnização se basear num contrato, e não num acto ilícito, de modo que o artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas não é, segundo ele, aplicável e não pode, portanto, levar a definir a competência dos tribunais austríacos. Esta decisão foi objecto de um recurso interposto por R. Kronhofer.

12.      O tribunal de segunda instância (Oberlandesgericht Innsbruck) (Áustria) declarou‑se também incompetente, mas por razões diferentes das invocadas pelo tribunal de primeira instância. Admitiu que o pedido do interessado se baseava exclusivamente em actos delituosos, de modo que o artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas era aplicável. Considerou, no entanto, que a aplicação dessas disposições não podia fundamentar a sua competência, uma vez que nem o lugar do facto gerador nem o da realização do dano se situavam na Áustria.

13.      No que se refere ao lugar do facto gerador, corresponde ele, segundo o tribunal de segunda instância, ao lugar de onde os demandados telefonaram ao demandante para o incitar a celebrar o contrato que deu lugar à operação de bolsa controvertida, isto é, à Alemanha. No que se refere ao lugar da realização do dano, segundo esse tribunal, situa‑se também ele na Alemanha, no lugar em que foi aberta a conta de investimentos do interessado, para a qual este transferiu as quantias que foram seguidamente investidas e na qual se manifestaram as perdas financeiras controvertidas. A este respeito, o tribunal de segunda instância sublinha que esta análise não pode ser desmentida pela circunstância de as perdas financeiras sofridas por R. Kronhofer se terem finalmente repercutido no conjunto do seu património, «considerado como um todo».

14.      O interessado interpôs recurso de revista desta decisão para o Oberster Gerichtshof. Este tribunal começou por indicar que, se se admitir, como pretende R. Kronhofer, que nunca houve relações contratuais entre as partes no litígio, o pedido por este formulado é sem dúvida baseado em actos delituosos, e não num contrato  (4) .

15.      Estabelecido este postulado, o Oberster Gerichtshof examinou a sua própria competência à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», constante do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas.

16.      No que se refere ao lugar do facto gerador, este tribunal considerou que o prejuízo invocado não provinha, como pretende R. Kronhofer, da operação pela qual este decidiu, na Áustria, transferir determinados fundos para uma conta de investimentos na Alemanha, mas do facto de, contrariamente ao que lhe foi indicado por telefone, os fundos em questão terem sido investidos pela sociedade de investimentos alemã em opções especulativas que ocasionaram perdas financeiras ao interessado.

17.      No que se refere ao lugar de realização do dano, o Oberster Gerichtshof tende a considerar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria, baseada na distinção entre o prejuízo inicial e o prejuízo secundário, não é transponível para o caso vertente  (5) . A particularidade da situação controvertida invocada por R. Kronhofer reside no facto de a perda de uma parte do seu património, colocada num Estado contratante diferente do do seu domicílio, ter simultaneamente atingido, e em igual medida, a totalidade do seu património, de modo que se está em presença de prejuízos idênticos e simultâneos, e não de prejuízos secundários ou consecutivos.

18.      Face a estas circunstâncias, o órgão jurisdicional de reenvio coloca a questão de saber se se deverá ter em conta, como ponto de referência para determinar o lugar da realização do dano, o lugar onde, segundo o demandante, se localiza «o centro do seu património» e, em consequência, o lugar onde se situa o seu domicílio ou a sua residência habitual.

III – Questão prejudicial

19.      O Oberster Gerichtshof decidiu, portanto, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A expressão ‘lugar onde ocorreu o facto danoso’, constante do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 27.9.1968, deve interpretar‑se no sentido de que, em caso de danos puramente patrimoniais, ocorridos na sequência do investimento de parte do património do lesado, pode também compreender o lugar em que o lesado tem o seu domicílio, quando o investimento foi feito num outro Estado‑Membro da Comunidade?»

IV – Análise

20.      Por esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas deve ser interpretado no sentido de a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» poder referir‑se ao lugar do domicílio do demandante, onde se localiza «o centro do seu património», por motivo de o referido demandante aí ter sofrido um prejuízo financeiro que afecta todo o seu património em razão da perda de determinados elementos desse património ocorrida e sofrida por ele noutro Estado contratante.

21.      Segundo nós, deve dar‑se uma resposta negativa a esta questão. Uma acção que assenta exclusivamente em «matéria extracontratual», na acepção do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas  (6) , não pode, por esse mesmo motivo, ser intentada nos tribunais do Estado do domicílio do demandante.

22.      Iremos basear a nossa análise em três séries de argumentos, relativas, em primeiro lugar, à economia geral da Convenção de Bruxelas, em segundo lugar, às exigências de boa administração da justiça e de organização útil do processo e, em terceiro lugar, à necessidade de definir atribuições de competências certas e previsíveis.

23.      Em primeiro lugar, no que se refere à economia geral da Convenção de Bruxelas, importa recordar que o sistema de atribuição de competências que esta institui assenta no princípio geral da competência dos tribunais do Estado contratante do domicílio do demandado (artigo 2.°, primeiro parágrafo, da referida Convenção).

24.      Além disso, como o Tribunal de Justiça sublinhou no acórdão Dumez France e Tracoba, já referido, «a Convenção manifestou‑se contrária à competência dos tribunais do domicílio do demandante ao excluir, no segundo parágrafo do artigo 3.°, a aplicação de disposições nacionais que prevêem tais critérios de competência relativamente aos demandados domiciliados no território de um Estado contratante»  (7) .

25.      Foi só a título excepcional, atendendo a determinadas circunstâncias particulares, que a Convenção de Bruxelas expressamente admitiu, no artigo 14.°, bem como nos artigos 5.°, ponto 2, e 8.°, ponto 2, a competência dos tribunais do Estado contratante do domicílio do demandante, isto é, a competência do forum actoris. Estes regimes particulares foram instituídos com o fim de proteger o consumidor ou o tomador do seguro, enquanto parte no contrato reputada economicamente mais fraca e juridicamente menos experimentada do que o seu co‑contraente profissional, bem como o credor de alimentos, que se presume estar em situação de necessidade  (8) .

26.      Para além dos casos expressamente previstos na Convenção de Bruxelas, os tribunais do Estado contratante do domicílio do demandante não têm, em princípio, vocação para ser competentes, em especial com fundamento no artigo 5.°, ponto 3, da referida Convenção  (9) .

27.      Com efeito, é só por derrogação à regra geral de competência dos tribunais do Estado do domicílio do demandado que o título II, secção 2, da Convenção de Bruxelas prevê um certo número de atribuições de competências especiais, cuja escolha depende de uma opção do demandante. Dessas normas definidoras de competências especiais consta a do artigo 5.°, ponto 3, da referida Convenção.

28.      Há, pois, que interpretar esta disposição de modo estrito  (10) , «sob pena de esvaziar do seu conteúdo o princípio geral, consagrado no artigo 2.°, primeiro parágrafo, da Convenção, da competência dos órgãos jurisdicionais do Estado contratante no território do qual o requerido tem o seu domicílio e de ser reconhecida, fora dos casos expressamente previstos, a competência dos órgãos jurisdicionais do domicílio do autor, situação relativamente à qual a convenção se manifestou contra […]»  (11) . Como seguidamente melhor esclareceremos, uma tal interpretação das disposições do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas deve inspirar‑se nas exigências de boa administração da justiça e de organização útil do processo.

29.      Em segundo lugar, no que se refere às exigências de boa administração da justiça e de organização útil do processo, importa recordar que as competências especiais previstas no título II, secção 2, da Convenção de Bruxelas, das quais consta a referida no artigo 5.°, ponto 3, se baseiam «na existência de uma conexão particularmente estreita entre o litígio e tribunais que não os do domicílio do demandado, a qual justifica a atribuição de competência a esse tribunal por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo»  (12) .

30.      Como já indicámos, o Tribunal de Justiça admitiu, no acórdão Mines de potasse d’Alsace, já referido, que, no caso de o lugar do evento causal e aquele onde o dano se verificou não serem idênticos, o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», na acepção do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, pode referir‑se a qualquer desses lugares  (13) .

31.      Esta jurisprudência baseou‑se precisamente em considerações atinentes à boa administração da justiça e à organização útil do processo.

32.      Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que a responsabilidade extracontratual só pode ser determinada se puder ser estabelecido um nexo de causalidade entre o dano e o facto que o originou  (14) . Daqui deduziu que, tendo em conta a estreita relação que sempre existe entre os elementos constitutivos da responsabilidade, não é adequado optar por um ou por outro dos dois elementos de conexão significativos que são o lugar do evento causal e o da materialização do dano, cada um deles podendo, de acordo com as circunstâncias, fornecer uma indicação particularmente útil do ponto de vista da prova e da organização do processo  (15) .

33.      Foi unicamente por estas razões que o Tribunal de Justiça declarou que o significado da expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», contida no artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, deve ser determinado de modo a reconhecer ao demandante uma opção, para efeitos da propositura da acção, quer no lugar onde o dano se materializou quer no lugar onde decorreu a actividade causal  (16) .

34.      O Tribunal de Justiça baseou‑se apenas na necessidade de garantir a competência dos tribunais que, objectivamente, estão mais bem colocados para averiguar se, nas circunstâncias da causa, estão reunidos os elementos constitutivos da responsabilidade. Noutros termos, o Tribunal não se preocupou com reservar à vítima um privilégio de jurisdição, no prolongamento dos artigos 5.°, ponto 2, 8.°, ponto 2, e 14.° da Convenção de Bruxelas.

35.      Não pode, portanto, ver‑se no acórdão Mines de potasse d'Alsace, já referido, a consagração, em matéria de responsabilidade extracontratual, da competência do forum actoris, mesmo que seja possível que, em determinados casos particulares, um ou outro dos critérios de competência precisados nesse acórdão, consistentes no lugar do facto gerador ou no lugar da materialização do dano, coincida na prática com o lugar do domicílio da vítima.

36.      O acórdão Marinari, já referido, confirma claramente esta análise. Com efeito, de acordo com esta lógica de boa administração da justiça e de organização útil do processo, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», na acepção do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, «não pode […] ser interpretado de modo extensivo, ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se podem fazer sentir as consequências danosas de um facto que já causou um dano efectivamente ocorrido noutro lugar»  (17) .

37.      Em consequência, o Tribunal de Justiça declarou que «este conceito não pode ser interpretado como abrangendo o lugar onde a vítima […] pretende ter sofrido um dano patrimonial consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela noutro Estado contratante»  (18) .

38.      A fim de melhor se compreender o alcance do acórdão Marinari, já referido, recordamos que, nesse processo, um particular, domiciliado em Itália, intentara num tribunal italiano uma acção que punha em causa o Lloyd’s Bank, estabelecido em Londres, por o comportamento dos seus empregados ter acarretado a apreensão das livranças que ele depositara nesse estabelecimento, atendendo à sua proveniência aparentemente duvidosa, bem como a sua prisão no território britânico. Por esta acção, o demandante solicitara, por um lado, o pagamento do contravalor das livranças que não lhe foram restituídas e, por outro, a reparação do prejuízo que sofreu em razão da sua detenção, bem como da ruptura de vários contratos e da ofensa à sua reputação.

39.      Como o advogado‑geral M. Darmon sublinhou nas suas conclusões no processo Marinari, já referido, tratava‑se de uma situação em que o facto gerador (comportamento censurado aos empregados do banco) e as consequências danosas directas (apreensão das livranças e prisão do interessado) se localizaram num único território (Reino Unido) e em que os danos iniciais acarretaram uma diminuição do património da vítima (perdas financeiras resultantes da ruptura de vários contratos) noutro Estado contratante (Itália)  (19) .

40.      Não se estava perante uma situação idêntica à examinada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Mines de potasse d’Alsace, já referido, em que o lugar do facto gerador se situava no território de um Estado que não era o da materialização do dano em geral e em que era, portanto, necessário criar uma opção de competência, a fim de não afastar nenhum desses dois elementos de conexão, ambos significativos quanto à apreciação dos elementos constitutivos da responsabilidade.

41.      Noutros termos, no processo Marinari, já referido, o único elemento invocado no sentido do reconhecimento da competência dos tribunais italianos, em vez da dos tribunais britânicos, residia no facto de o interessado ter sofrido em Itália um prejuízo financeiro consequente a um dano inicial ocorrido e sofrido no Reino Unido. Este elemento de conexão não foi julgado suficientemente significativo para justificar a competência dos tribunais italianos.

42.      Esta jurisprudência inscreve‑se na lógica do acórdão Dumez France e Tracoba, já referido.

43.      Com efeito, no processo Dumez France e Tracoba, já referido, o prejuízo alegado era apenas a consequência indirecta do prejuízo inicialmente sofrido por outras pessoas colectivas que foram directamente vítimas do prejuízo materializado num local diferente daquele em que a vítima indirecta ou por ricochete seguidamente sofreu o seu próprio prejuízo.

44.      Face a uma tal situação, o Tribunal de Justiça declarou que «[…] a noção de ‘lugar onde ocorreu o facto danoso’ a que se refere o ponto 3 do artigo 5.° da convenção […] apenas pode ser entendida como referida ao lugar onde o evento causal, gerador de responsabilidade extracontratual, produziu directamente os seus efeitos danosos relativamente ao lesado directo»  (20) . Noutros termos, estas disposições da Convenção de Bruxelas não podem ser interpretadas no sentido de que «autoriza[m] o demandante que invoque um prejuízo que diz ser a consequência do dano sofrido por outras pessoas directamente lesadas pelo facto danoso a accionar o autor deste nos tribunais do lugar onde ele próprio verificou a existência do dano no seu património»  (21) .

45.      Tal como Z. Karan, o Governo austríaco e a Comissão das Comunidades Europeias, consideramos que o que é válido, segundo os acórdãos, já referidos, Dumez France e Tracoba e Marinari, para um prejuízo patrimonial consecutivo ou indirecto, isto é, acessório de um dano inicial ocorrido e sofrido por uma vítima directa noutro Estado contratante, vale necessariamente e por maioria de razão para um prejuízo patrimonial que se repercute, simultaneamente e na mesma medida, num Estado contratante diferente daquele em que o prejuízo ocorreu e foi sofrido pela referida vítima.

46.      Com efeito, num tal caso nada justifica que se confira competência aos tribunais de um Estado contratante diferente daquele em cujo território se localizou tanto o facto gerador como a materialização de todo o dano, ou seja, o conjunto dos elementos constitutivos da responsabilidade. Esta nova atribuição de competência não corresponderia a qualquer necessidade objectiva do ponto de vista da prova ou da organização do processo. Admitir uma tal atribuição de competência equivaleria a ampliar a opção do demandante para além das circunstâncias particulares que a justificam.

47.      Em terceiro lugar, no que se refere à necessidade de definir atribuições de competências certas e previsíveis, recordamos que ela constitui, segundo o Tribunal de Justiça, um objectivo essencial da Convenção de Bruxelas  (22) .

48.      Ora, relacionar uma atribuição de competência com o lugar do domicílio do demandante, por aí alegadamente se situar «o centro do seu património», iria manifestamente contra esse objectivo essencial.

49.      Com efeito, como a Comissão correctamente sublinhou, é fortemente de temer que a determinação dos tribunais competentes em função do lugar do domicílio do demandante ou do lugar em que se situe «o centro do seu património» dê lugar a sérias dificuldades, tanto mais que, mesmo supondo‑os comprovados, tais lugares não coincidem necessariamente em termos de direito e em termos de facto.

50.      Daqui resulta que estes critérios de competência também não respondem à exigência de previsibilidade recordada pelo Tribunal de Justiça, por maioria de razão na hipótese de o lugar do domicílio ou o lugar do «centro do património» serem susceptíveis, em tais circunstâncias, de variar segundo a vontade do demandante  (23) . Com efeito, não é de excluir que um tal sistema se traduza em encorajar o forum shopping, dando à vítima a possibilidade de, pela escolha ou pela mudança do seu domicílio ou do «centro do seu património», determinar o tribunal competente.

51.      Em consequência, deve responder‑se à questão prejudicial que o artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas deve ser interpretado no sentido de que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do demandante, onde esteja localizado «o centro do seu património» e onde ele tenha alegadamente sofrido um prejuízo financeiro que afecte todo o seu património em razão da perda de determinados elementos desse património ocorrida e sofrida por ele noutro Estado contratante.

V – Conclusão

52.      Tendo em conta todas estas considerações, propomos ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão colocada pelo Oberster Gerichtshof:

53.     «O artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que a expressão ‘lugar onde ocorreu o facto danoso’ não se refere ao lugar do domicílio do demandante, onde esteja localizado ‘o centro do seu património’ e onde ele tenha alegadamente sofrido um prejuízo financeiro que afecte o conjunto do seu património em razão da perda de determinados elementos desse património ocorrida e sofrida por ele noutro Estado contratante.»


1
Língua original: francês.


2
JO 1972, L 299, p. 32. Com a redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e, texto alterado, p. 77; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1) e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas»). Uma versão consolidada da referida Convenção, com as alterações que foram feitas por estas quatro convenções de adesão, foi publicada no JO 1998, C 27, p. 1.


3
Acórdão de 30 de Novembro de 1976, Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace» (21/76, Colect., p. 677, n.os 24 e 25).


4
Este elemento foi confirmado na audiência decorrida no Tribunal de Justiça. Parece, com efeito, que só R. Kronhofer e a Protectas estavam vinculados por relações contratuais. O interessado precisou não ter demandado a Protectas em juízo com o fim de pôr em causa a sua responsabilidade contratual (relacionada com uma eventual obrigação de informação ou de conselho) porque essa sociedade entraria então em situação de falência.


5
O órgão jurisdicional de reenvio faz referência aos acórdãos de 11 de Janeiro de 1990, Dumez France e Tracoba (C‑220/88, Colect., p. I‑49); de 7 de Março de 1995, Shevill e o. (C‑68/93, Colect., p. I‑415); e de 19 de Setembro de 1995, Marinari (C‑364/93, Colect., p. I‑2719).


6
A este respeito, a situação do processo principal é mais simples do que a examinada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis (189/87, Colect., p. 5565), no qual estava em causa um pedido de indemnização que relevava simultaneamente de «matéria contratual» e de «matéria extracontratual». Num tal caso, o Tribunal de Justiça julgou que um tribunal competente, nos termos do ponto 3 do artigo 5.° da Convenção de Bruxelas, para conhecer do elemento de uma acção baseado num facto ilícito não o é para conhecer dos outros elementos da mesma acção não baseados em facto ilícito.


7
N.° 16.


8
A propósito do regime previsto para o consumidor, v., nomeadamente, acórdão de 11 de Julho de 2002, Gabriel (C‑96/00, Colect., p. I‑6367, n.° 39).


9
V., nomeadamente, neste sentido, acórdãos, já referidos, Dumez France e Tracoba (n.° 19) e Marinari (n.° 13), e acórdão de 27 de Outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, Colect., p. I‑6511, n.° 29).


10
V., neste sentido, acórdão Kalfelis, já referido (n.° 19).


11
V., neste sentido, acórdãos, já referidos, Marinari (n.° 13) e Réunion européenne e o. (n.° 29).


12
V. acórdão Dumez France e Tracoba, já referido (n.° 17). V., ainda, acórdãos, já referidos, Mines de potasse d’Alsace (n.os 10 e 11), Schevill e o. (n.° 19), Marinari (n.° 10) e Réunion européenne e o. (n.° 27).


13
Nesse processo estava em causa uma poluição transfronteiriça resultante do lançamento, em França, de efluentes salinos nas águas do Reno, os quais causaram danos a um horticultor domiciliado nos Países Baixos.


14
.Ibidem (n.° 16).


15
.Ibidem (n.° 17, que deve ser lido à luz do n.° 15).


16
.Ibidem (n.° 19).


17
N.° 14 (retomado pelo acórdão Réunion européenne e o., já referido, n.° 30).


18
.Ibidem (n.° 15).


19
N.os 26 e 27.


20
Acórdão Dumez France e Tracoba, já referido (n.° 20).


21
.Ibidem (n.° 22).


22
V., neste sentido, acórdãos de 4 de Março de 1982, Effer (38/81, Recueil, p. 825, n.° 6); de 15 de Janeiro de 1985, Rösler (241/83, Recueil, p. 99, n.° 23); de 17 de Junho de 1992, Handte (C‑26/91, Colect., p. I‑3967, n.os 18 e 19); de 13 de Julho de 1993, Mulox IBC (C‑125/92, Colect., p. I‑4075, n.° 11); Marinari, já referido (n.° 19); de 3 de Julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, Colect., p. I‑3767, n.° 29); e Réunion européenne e o., já referido (n.os 34 e 36).


23
V., neste sentido, acórdãos, já referidos, Dumez France e Tracoba (n.° 19) e Réunion européenne e o. (n.° 34).