Introdução
1. O Landesgericht Eisenstadt, na qualidade de juiz de instrução
(2)
, quer saber se o Regulamento (CE) n.° 3295/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece medidas destinadas a
proibir a introdução em livre prática, a exportação, a reexportação e a colocação sob um regime suspensivo das mercadorias
de contrafacção e das mercadorias‑pirata (a seguir «regulamento antipirataria»)
(3)
, é contrário a uma regulamentação nacional que não prevê sanções para a inclusão, num regime de trânsito externo, de mercadorias com essas características.
2. Este processo reúne duas peculiaridades: por um lado, a interpretação do juiz de reenvio da disposição nacional controvertida
não é pacífica; por outro, o que importa censurar à norma, segundo a tese do Landesgericht, é uma omissão. Logo, a resposta
do Tribunal de Justiça assemelhar‑se‑ia a uma declaração de incumprimento.
Factos e processo principal
3. Como se conclui do despacho de reenvio, os factos que fundamentam a presente questão prejudicial ocorreram entre Novembro
de 2000 e Julho de 2001; resumem‑se como segue.
4. A sociedade Montres Rolex SA, titular de diversas marcas de relógios, requereu, em Novembro de 2000, a abertura de um inquérito
judicial contra desconhecidos. Pediu a apreensão judicial de um lote de relógios que utilizam, indevidamente, a marca de que
é titular, bem como a sua destruição, no fim do processo. Segundo a empresa, a origem da mercadoria seria Itália e o seu destino
final, a Polónia.
5. Em Julho de 2001 as sociedades Tommy Hilfinger Licensing Inc. e La Chemise Lacoste SA
(4)
solicitaram inquéritos judiciais relativamente a peças de vestuário em que foram apostas as respectivas marcas, sem autorização
dos titulares, e também a sua destruição. Nas mesmas datas, as sociedades Guccio Gucci SpA e The Gap Inc., relativamente a
vários artigos de pele e peças de vestuário tendo como destino a Eslováquia, requereram também a adopção de inquéritos judiciais
contra os alegados autores de uma violação do seu direito de marca, a saber, o gerente ou o titular responsável por uma sociedade
com sede em Pequim (China) e o responsável de uma empresa com sede em Bratislava (Eslováquia). Segundo as denunciantes no
processo principal, em ambas as situações se trata de mercadorias provenientes da China e destinadas a ser introduzidas na
Eslováquia. Como nos casos anteriores, pediram a apreensão judicial dos artigos e a sua posterior destruição.
6. Todas estas alegadas imitações foram retidas pela estância aduaneira de Kittsee.
A regulamentação comunitária pertinente
7. As diversas apreensões, por parte das autoridades aduaneiras, foram levadas a cabo nos termos do regulamento anti‑pirataria.
8. Este regulamento tem por objecto impedir a colocação no mercado de mercadorias de contrafacção e de mercadorias‑pirata, adoptando
para o efeito medidas que permitam combater eficazmente essa actividade ilegal (segundo considerando do preâmbulo). Para o
conseguir, determina, por um lado, as condições de intervenção das autoridades aduaneiras quando mercadorias suspeitas de
serem de contrafacção ou mercadorias‑pirata são declaradas para introdução em livre prática, para exportação ou para reexportação
ou quando são detectadas por ocasião de um controlo efectuado sobre mercadorias colocadas sob um regime suspensivo [artigo 1.°, n.° 1, alínea a)] e, por outro, as medidas a adoptar pelas autoridades competentes em relação a essas mesmas
mercadorias quando se prove tratar‑se efectivamente de mercadorias de contrafacção ou de mercadorias‑pirata [artigo 1.°, n.° 1,
alínea b)].
9. São proibidas a introdução em livre prática, a exportação, a reexportação e a colocação sob um regime suspensivo de mercadorias
reconhecidas como mercadorias de contrafacção ou mercadorias‑pirata, uma vez aplicado o procedimento de apreensão (artigo
2.°).
10. Segundo o artigo 3.°, o titular de uma marca de fabrico ou de comércio, o titular de direitos de autor e de direitos conexos
ou o titular de um direito relativo a um desenho ou modelo (a seguir «titular do direito») podem apresentar ao serviço da
autoridade aduaneira um pedido escrito no sentido de obter a intervenção das autoridades aduaneiras quando houver mercadorias
que suspeitem serem de contrafacção ou mercadorias‑pirata. Este pedido deve conter uma descrição suficientemente precisa das
mercadorias e uma justificação do seu direito. Em seguida, o serviço aduaneiro competente aprecia esse pedido e informa o
requerente da sua decisão sem demora e por escrito.
11. Nos termos do artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do regulamento antipirataria, quando uma estância aduaneira, à qual tenha
sido comunicada a decisão de deferimento de um pedido do titular de um direito verifique, eventualmente após consulta do requerente,
que determinadas mercadorias correspondem à descrição das mercadorias de contrafacção ou das mercadorias‑pirata contida na
referida decisão, suspenderá a autorização de desalfandegamento ou procederá à detenção dessas mercadorias.
12. De acordo com o artigo 8.°, n.os 1 e 2, o titular de um direito usurpado, sem prejuízo das outras possibilidades de recurso à sua disposição, deve poder requerer
a destruição ou a retirada dos circuitos comerciais das mercadorias pirateadas ou tomar quaisquer outras medidas destinadas
a privar as pessoas em causa dos benefícios económicos da operação.
13. O artigo 11.° prevê o seguinte:«Cada Estado‑Membro decidirá das sanções a aplicar em caso de infracção ao disposto no artigo
2.° Essas sanções devem ser suficientes para incitar ao respeito das disposições em causa.»
14. Segundo o artigo 84.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código
Aduaneiro Comunitário (a seguir «código aduaneiro»)
(5)
, a expressão «regime suspensivo», quando utilizada para mercadorias não comunitárias, designa, entre outros, o regime de
trânsito externo.
15. Nos termos do n.° 1 do artigo 91.° do código aduaneiro, «[o] regime do trânsito externo permite a circulação de um ponto a
outro do território aduaneiro da Comunidade:
a)
De mercadorias não comunitárias, sem que fiquem sujeitas a direitos de importação e a outras imposições bem como a medidas
de política comercial;
b)
De mercadorias comunitárias que sejam objecto de uma medida comunitária que exija a sua exportação para países terceiros e
em relação às quais sejam cumpridas as correspondentes formalidades aduaneiras de exportação».
O direito austríaco aplicável
16. O § 60, n.os 1 e 2, da Markenschutzgesetz (lei de protecção das marcas – a seguir «MSchG»)
(6)
, pune quem violar um direito de marca na actividade comercial e, de forma qualificada, quem o faça no exercício de uma profissão
(n.° 1), bem como quem utilize sem autorização o nome, o nome comercial ou a denominação particular de uma empresa, ou um
sinal distintivo semelhante a estas indicações, para identificar produtos ou serviços, nos termos do § 10a, de um modo susceptível
de provocar confusão nessa actividade comercial (n.° 2).
17. Segundo o referido § 10a, entende‑se por utilização de um sinal para identificar produtos ou serviços, especialmente, o seguinte: 1) apor um sinal nos produtos, na respectiva embalagem ou em objectos relativamente aos quais o serviço é prestado,
2) oferecer para venda produtos providos do sinal, colocá‑los no mercado ou detê‑los para esse fim, ou oferecer ou fornecer
serviços sob o sinal, 3) importar ou exportar produtos providos do sinal, e 4) utilizar o sinal nos documentos comerciais,
em informações ou na publicidade.
Questão prejudicial
18. Em 17 de Janeiro de 2002, o Landesgericht Eisenstadt decidiu apensar os três processos, a fim de formular, nos termos do artigo
234.° CE, a seguinte questão a título prejudicial
(7)
:
«Uma disposição nacional, em concreto o § 60, n.os 1 e 2, da MSchG, conjugado com o § 10 a da mesma, que pode ser interpretada no sentido de que o mero trânsito de mercadorias
fabricadas/distribuídas com violação das disposições legais em matéria de marca não é possível, é contrária ao artigo 2.°
do Regulamento (CE) n.° 3295/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece medidas destinadas a proibir a introdução
em livre prática, a exportação, a reexportação e a colocação sob um regime suspensivo das mercadorias de contrafacção e das
mercadorias‑pirata, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.° 241/1999 do Conselho, de 25 de Janeiro de 1999
[...]?»
Tramitação processual no Tribunal de Justiça
19. Apresentaram observações escritas no Tribunal de Justiça os representantes das sociedades Montres Rolex SA, Guccio Gucci SpA
e The Gap Inc., os Governos austríaco e finlandês e a Comissão. Não se realizou audiência.
Análise da questão prejudicial submetidaQuanto à competência do Tribunal de Justiça
20. As sociedades denunciantes, requerentes da apreensão judicial no processo principal, opõem‑se à colocação da questão prejudicial,
lembrando que os órgãos jurisdicionais nacionais só podem pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie se perante eles se
encontrar pendente um litígio e se forem chamados a pronunciar‑se no âmbito de um processo que deva conduzir a uma decisão
de carácter jurisdicional
(8)
. As diligências prévias submetidas ao juiz de reenvio carecem destas características, uma vez que têm como única função esclarecer
os factos na perspectiva ou da desistência da acção penal, ou na da acusação e do estabelecimento da prova no processo principal.
21. Este argumento deve ser julgado improcedente, de acordo com a jurisprudência existente.
22. O Tribunal de Justiça já admitiu expressamente, no acórdão de 11 de Junho de 1987, Pretore di Salò
(9)
, um reenvio submetido no âmbito de um procedimento penal prévio susceptível de conduzir a um despacho de arquivamento dos
autos, à citação para comparecer em juízo ou à absolvição, mas que, em todo o caso, não podia dar lugar a uma situação processual
irrevogável, não constituindo sequer, aos olhos do direito interno, um acto jurisdicional sujeito às garantias fundamentais
(10)
. No acórdão de 21 de Abril de 1988, Pardini
(11)
, o Tribunal de Justiça respondeu a algumas perguntas feitas num procedimento de medidas provisórias susceptíveis de serem
confirmadas, alteradas ou revogadas.
São numerosos os casos em que o Tribunal de Justiça se pronunciou em processos intentados contra desconhecidos 12 –V. acórdãos de 5 de Maio de 1977, Pretore di Cento (110/76, Recueil, p. 851; Colect. p. 317); de 22 de Setembro de 1988,
Pretura unificata di Torino (228/87, Colect., p. 5099); de 16 de Janeiro de 1992, X (C‑373/90, Colect., p. I‑131); e de 12
de Dezembro de 1996, X (C‑74/95 e C‑129/95, Colect., p. I‑6609).. Só recusou pronunciar‑se sobre algumas questões, uma vez que provinham de um representante do Ministério Público que era
parte no processo, limitando‑se a solicitar ao órgão jurisdicional a realização de um exame 13 –V. acórdão de 12 de Dezembro de 1996, X, referido na nota anterior.. Não é o caso no presente processo.
Pelo contrário, como resulta do alegado pelas denunciantes no processo principal e no despacho de reenvio, o Landesgericht
deve decidir sobre a conveniência de dar início a uma acção que pode conduzir a eventuais sanções penais ou à apreensão da
mercadoria retida e à sua destruição. São, logo, actuações estritamente jurisdicionais.
23. Quanto ao resto, é jurisprudência consolidada que, podendo ser vantajoso que os factos do processo tenham sido apurados e
que os problemas de puro direito nacional estejam resolvidos quando se submete a questão ao Tribunal de Justiça, a escolha
do momento processual mais oportuno para o fazer incumbe exclusivamente ao juiz nacional
(14)
.
24. Em suma, entendo que o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre a questão suscitada pelo Landesgericht Eisenstadt.
Quanto ao mérito
25. A Comissão assinalou, correctamente, que não se conclui de forma clara dos factos o regime aduaneiro concreto a que estão
sujeitas as mercadorias em cada um dos casos. Com efeito, ao referir‑se às diligências iniciadas a pedido da Montres Rolex
SA, o juiz de reenvio descreve trocas comerciais entre a Itália e a Eslováquia, situação não coberta pelo regulamento anti‑pirataria
se se tratasse de mercadorias já introduzidas em livre prática em território comunitário.
26. Contudo, dado o teor da questão formulada e a natureza das explicações contidas no despacho de reenvio e nas observações das
denunciantes no processo principal, há que deduzir que as mercadorias estavam sujeitas ao regime de trânsito externo.
27. Quanto ao mérito do processo, o juiz de reenvio quer saber se o regulamento anti‑pirataria se opõe a uma disposição nacional
que «pode ser interpretada» no sentido de que não é punível o mero trânsito de mercadorias de contrafacção.
28. Não é fácil responder a esta pergunta, formulada nestes termos.
29. Ao Tribunal de Justiça compete, a título prejudicial, a interpretação do direito comunitário. Ora, apesar do que podem dar
a entender algumas das observações apresentadas neste processo, o juiz de reenvio não parece ter dúvidas quanto ao conteúdo
do regulamento anti‑pirataria.
30. Como declarei relativamente ao processo que deu lugar ao acórdão de 6 de Abril de 2000, Polo/Lauren
(15)
, é indiscutível que o regulamento, partindo de uma interpretação textual, cobre hipóteses como as dos autos. No título, no
terceiro considerando e no artigo 1.°, n.° 1, alínea a), proclama a sua vontade de regular a intervenção das autoridades aduaneiras
quando mercadorias suspeitas de serem de contrafacção ou mercadorias‑pirata sejam declaradas para introdução em livre prática,
para exportação ou para reexportação, ou quando sejam detectadas por ocasião de um controlo efectuado sobre mercadorias colocadas sob um regime suspensivo. «Regime suspensivo» é um termo que designa genericamente os regimes de «entreposto aduaneiro», «aperfeiçoamento activo,
sob a forma de sistema suspensivo», «transformação sob controlo aduaneiro», «importação temporária» e «trânsito externo», segundo o artigo 84.°, n.° 1, do código aduaneiro.
Esse mesmo código define o regime de «trânsito externo» em função do seu conteúdo. Assim, é trânsito externo aquele que permite
a circulação, de um ponto a outro do território aduaneiro da Comunidade, de mercadorias não comunitárias, sem que fiquem sujeitas
a direitos de importação e a outras imposições, bem como a medidas de política comercial [artigo 91.°, n.° 1, alínea a)].
O regulamento anti‑pirataria tem, portanto, vocação expressa para se aplicar a mercadorias que transitam pelo território comunitário
provenientes de um Estado terceiro e destinadas a outro Estado terceiro.
31. Por outro lado, o regulamento antipirataria entende por «mercadorias de contrafacção»todas aquelas com as quais, de diferentes formas, se violam «os direitos do titular da marca em questão nos termos da legislação
comunitária ou da legislação do Estado‑Membro onde o pedido de intervenção das autoridades aduaneiras for apresentado» [artigo
1.°, n.° 2, alínea a)].
32. Da leitura literal do regulamento antipirataria resulta, pois, sem lugar a dúvida razoável, que as suas disposições são aplicáveis
a uma situação em que as mercadorias de alegada contrafacção estejam em trânsito comunitário externo de um Estado terceiro
para outro Estado terceiro.
33. A adopção do Regulamento n.° 241/1999
(16)
, longe de a desautorizar, confirma esta interpretação literal. Para o que aqui interessa, este último regulamento continua
a lógica dos Regulamentos (CEE) n.° 3842/86
(17)
e n.° 3295/94, alargando as possibilidades de intervenção das autoridades nacionais a cada vez mais regimes aduaneiros.
34. Também não é questionável a validade do regulamento anti‑pirataria. A Comunidade, nos termos do artigo 133.° CE (artigo 113.°
do Tratado no momento da adopção do regulamento), está habilitada para estabelecer uma regulamentação comum de controlo da
contrafacção num regime aduaneiro suspensivo, como o trânsito externo. Por força desta disposição, a Comunidade tem competência
para fixar princípios uniformes relativamente à circulação, de um ponto a outro do território aduaneiro da Comunidade, de
mercadorias não comunitárias ou de mercadorias para exportação, que tenham cumprido as formalidades de exportação, e para
determinar, no decurso de tal circulação, a retenção, pelas autoridades aduaneiras, de mercadorias suspeitas de contrafacção
ou de pirataria.
35. O Tribunal de Justiça confirmou esta posição no acórdão Polo/Lauren
(18)
.
36. Esta interpretação do âmbito de aplicação do regulamento não depende, claro, da natureza do processo (civil, penal, administrativo)
em que seja invocada.
37. De resto, o artigo 11.°, primeiro período, do regulamento anti‑pirataria conjugado com o artigo 2.° do mesmo texto, dispõe
que cada Estado‑Membro deve estabelecer sanções para punir a violação da proibição de introdução em livre prática, exportação,
reexportação ou colocação sob um regime suspensivo das mercadorias de contrafacção ou mercadorias‑pirata.
38. Do exposto deduz‑se que, se um Estado‑Membro não contasse com uma regulamentação capaz de sancionar alguns dos comportamentos
previstos no referido artigo 11.°, mais que perante um problema de conformidade com o direito comunitário, estaria perante
uma situação de possível incumprimento de Estado, cuja sede própria é o procedimento dos artigos 226.° CE e 227.° CE.
Esta recomendação é válida, sobretudo, nos casos em que o incumprimento resulta, como acontece nos autos, da ausência de regulamentação
suficiente. Deve relativizar‑se em situações em que o direito comunitário se opõe a disposições nacionais existentes. Então,
a interpretação do Tribunal de Justiça pode equivaler, em termos práticos, à confirmação de um incumprimento 19 –Pense‑se, sem ir mais longe, no acórdão de 8 de Abril de 1976, Defrenne II (43/75, Colect., p. 193), em que um regime
nacional foi considerado contrário à proibição comunitária de discriminação sexual e cujos efeitos se assemelharam aos de
uma declaração de violação dos Tratados..
39. O juiz de reenvio explica que a prática de diligências judiciais prévias está condicionada ao facto de o comportamento imputado
constituir um facto punível. Além disso, o artigo 7.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(20)
, que tem na Áustria estatuto constitucional, proíbe a punição de factos que, no momento em que foram cometidos, não estavam
tipificados como delito. Também o Código Penal austríaco (Strafgesetzbuch) acolhe esse princípio fundamental no seu § 1, n.° 1.
40. O § 60, n.os 1 e 2, pune a contrafacção e a utilização sem autorização, susceptível de causar confusão na actividade comercial, do nome,
do nome comercial ou da denominação particular de uma empresa, ou de um sinal distintivo semelhante a estas indicações, para
identificar produtos ou serviços, nos termos do § 10a. Esta última disposição, ao definir a utilização de um sinal como marca,
faz referência à importação e à exportação de mercadorias, mas não ao regime de trânsito externo
(21)
.
41. Ora – segundo o Landesgericht –, tendo em conta o referido princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, não poderia afirmar‑se que o mero trânsito representa a utilização de uma marca na actividade comercial, uma vez que não
se pode considerar nem importação nem exportação.
42. O Governo austríaco, por sua vez, considera que o § 10a da MSchG contém uma enumeração unicamente exemplificativa. Assim se
deve entender o emprego da expressão «especialmente» ( insbesondere)
(22)
.De onde se conclui que esta disposição não se opõe a que o juiz nacional entenda, nos termos do artigo 2.° do regulamento
anti‑pirataria, que a contrafacção de mercadorias em trânsito é um caso de utilização do sinal distintivo.
43. Parece indiscutível que a prevalência do princípio da legalidade penal, com o seu corolário da proibição de interpretação
extensiva em desfavor do arguido
(23)
, é um princípio comum às tradições constitucionais dos Estados‑Membros e constitui, a esse título, um princípio geral do
direito comunitário.
44. Embora a interpretação do direito interno caiba exclusivamente ao juiz nacional, há que assinalar que, de acordo com jurisprudência
consolidada, as suas disposições devem interpretar‑se, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da norma comunitária,
para atingir o resultado por ela prosseguido
(24)
.
45. Contudo, o Tribunal de Justiça também já declarou que esta obrigação do juiz nacional de ter em conta o conteúdo da directiva
ao interpretar as normas pertinentes do seu direito nacional está limitada pelos princípios gerais de direito que fazem parte
do ordenamento comunitário, especialmente o princípio da segurança jurídica e da não retroactividade. Uma directiva não pode,
por si só e independentemente de uma lei interna, adoptada por um Estado‑Membro para a sua aplicação, criar ou agravar a responsabilidade
penal de quem a viole
(25)
.
46. A ausência de tipificação, por parte de um Estado, de condutas que mereceriam a desaprovação do direito comunitário poderia,
quando muito, implicar um eventual incumprimento por parte do referido Estado, passível de recurso pela Comissão ou por outro
Estado‑Membro através dos artigos 226.° CE e 227.° CE, mas não permite que os cidadãos de tal Estado sejam alvo de processos
penais por factos ilícitos segundo as normas comunitárias, mas não puníveis segundo as normas internas.
47. Por fim, resta somente salientar que, embora a jurisprudência a que me referi tenha sido desenvolvida relativamente a directivas,
é igualmente válida no que respeita a normas que, como o artigo 11.° do regulamento anti‑pirataria, impõem aos Estados‑Membros
uma obrigação de resultado.
48. Para além das orientações fornecidas, o Tribunal de Justiça não pode acrescentar outras precisões sem se imiscuir na interpretação
das normas nacionais, âmbito que lhe está vedado pela repartição de funções operada pelo artigo 234.° CE.
Conclusão
49. Há, portanto, que responder ao Landesgericht Eisenstadt que:
‘1.
O artigo 11.° do Regulamento (CE) n.° 3295/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece medidas destinadas a
proibir a introdução em livre prática, a exportação, a reexportação e a colocação sob um regime suspensivo das mercadorias
de contrafacção e das mercadorias‑pirata, é aplicável a uma situação em que as mercadorias em trânsito entre dois Estados
não pertencentes à Comunidade Europeia são retidas provisoriamente num Estado‑Membro pelas suas autoridades aduaneiras.
2.
O juiz nacional deve interpretar as disposições de direito interno, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade
da norma comunitária, para atingir o resultado por ela prosseguido.
3.
Esta obrigação de interpretação conforme não pode, por si só e independentemente de uma lei interna adoptada por um Estado‑Membro
para a sua aplicação, criar ou agravar a responsabilidade penal de quem a viole.’
O Landesgericht austríaco é o tribunal ordinário que conhece, em matéria civil e penal, em primeira instância, todos os litígios
que não são da competência do Bezirksgericht, bem como os recursos interpostos das decisões deste último.
Despachos de 18 de Junho de 1980, Borker (138/80, Recueil, p. 1975, n.° 4), e de 5 de Março de 1986, Greis Unterweger (318/85,
Colect., p. 955, n.° 4), e acórdão de 19 de Outubro de 1995, Job Centre (C‑111/94, Colect., p. I‑3361, n.° 9).
V. acórdãos de 5 de Maio de 1977, Pretore di Cento (110/76, Recueil, p. 851; Colect. p. 317); de 22 de Setembro de 1988, Pretura
unificata di Torino (228/87, Colect., p. 5099); de 16 de Janeiro de 1992, X (C‑373/90, Colect., p. I‑131); e de 12 de Dezembro
de 1996, X (C‑74/95 e C‑129/95, Colect., p. I‑6609).
Acórdãos de 10 de Março de 1981, Irish Creamery Suppliers Association (36/80 e 71/89, Recueil, p. 735), n.os 5 a 8); de 10 de Julho de 1984, Campus Oil (72/83, Recueil, p. 2727, n.° 10); de 19 de Novembro de 1998, Høj Pedersen e o.
(C‑66/96, Colect., p. I‑7327, n.os 45 e 46); e de 30 de Março de 2000, JämO (C‑236/98, Colect., p. I‑2189, n.os 30 e 31).
Regulamento n.° 3842/86 do Conselho, de 1 de Dezembro de 1986, que estabelece medidas destinadas a proibir a colocação em
livre prática de mercadorias em contrafacção (JO L 357, p. 1).
Pense‑se, sem ir mais longe, no acórdão de 8 de Abril de 1976, Defrenne II (43/75, Colect., p. 193), em que um regime nacional
foi considerado contrário à proibição comunitária de discriminação sexual e cujos efeitos se assemelharam aos de uma declaração
de violação dos Tratados.
«Ninguém pode ser condenado por uma acção ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infracção, segundo
o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em
que foi cometida.»
Segundo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o artigo 7.° da Convenção não se limita a proibir a aplicação retroactiva
da lei penal em desfavor do arguido, consagrando, com carácter geral, o princípio de que só a lei pode definir os delitos
e estabelecer as penas, bem como o princípio de que a lei penal não pode ser interpretada extensivamente em desfavor do arguido,
por exemplo, através de analogia [acórdão de 25 de Maio de 1993, Kokkinakis/Grécia (Série A n.° 260‑A)].
V. acórdãos de 4 de Fevereiro de 1988, Murphy e outros (157/86, Colect., p. 673, n.° 11); de 13 de Novembro de 1990, Marleasing
(C‑106/89, Colect., p. I‑4135, n.° 8); de 16 de Dezembro de 1993, Wagner Miret (C‑334/92, Colect., p. I‑6911, n.° 20); de
14 de Julho de 1994, Faccini Dori (C‑91/92, Colect., p. I‑3325, n.° 26); de 5 de Outubro de 1994, Van Munster (C‑165/91, Colect.,
p. I‑4661, n.° 34); de 27 de Junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, Colect., p. I‑4941,
n.° 30); e de 26 de Setembro de 2000, Engelbrecht (C‑262/97, Colect., p. I‑7321, n.° 39).
Acórdão Pretore di Salò, já referido, n.° 20; acórdãos de 8 de Outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen (80/86, Colect., p. 3969,
n.° 13); de 26 de Setembro de 1996, Arcaro (C‑168/95, Colect., p. I‑4705, n.° 37); e de 12 de Dezembro de 1996, X (já referido,
n.° 24); bem como as conclusões de F. G. Jacobs de 13 de Dezembro de 1989, Vessoso e Zanetti (C‑206/88 e C‑207/88, Colect.,
p. I‑1461, n.os 24 e 25), e as minhas próprias conclusões de 18 de Junho de 1996, X (C‑74/95 e C‑129/95, Colect., p. I‑6612, n.os 43 a 64).