Processos apensos T-116/01 e T-118/01

P & O European Ferries (Vizcaya), SA e Diputación Foral de Vizcaya

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Auxílios de Estado — Recurso de anulação — Decisão que encerra um procedimento de exame iniciado ao abrigo do artigo 88.°, n.° 2, do Tratado CE — Conceito de auxílio de Estado — Compra de serviços pelo Estado ao preço de mercado — Auxílios de carácter social concedidos sem discriminação ligada à origem dos produtos — Omissão de dirigir ao Estado-Membro uma intimação para comunicar as informações necessárias — Obrigação de restituição dos auxílios — Confiança legítima dos beneficiários — Fundamentação»

Acórdão do Tribunal de Primeira Instância (Primeira Secção Alargada) de 5 de Agosto de 2003   II-2963

Sumário do acórdão

  1. Auxílios concedidos pelos Estados — Auxílio não notificado — Aceitação pela Comissão da comunicação de um novo acordo entre o beneficiário e o concedente — Não incidência quanto ao carácter ilegal do auxílio

    (Artigo 88°, n.° 3, CE)

  2. Processo — Autoridade de caso julgado de um acórdão — Alcance — Inadmissibilidade de um segundo recurso — Condições — Identidade das partes, do objecto e da causa de pedir dos dois recursos

  3. Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Compras efectuadas a uma empresa — Apreciação segundo o critério do investidor privado — Exclusão unicamente em caso de transacção comercial normal

    (Artigo 87.° CE)

  4. Actos das instituições — Fundamentação — Obrigação — Alcance

    (Artigo 253° CE)

  5. Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio não notificado com o mercado comum — Dever de fundamentação — Alcance

    (Artigo 88.°, n.° 3, CE)

  6. Tratado CE — Regimes de propriedade — Princípio da neutralidade — Limites — Sujeição às normas fundamentais do Tratado — Não incidência sobre o alcance do conceito de auxílio de Estado

    (Artigos 87.°, n.° 1, CE e 295.° CE)

  7. Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios que podem ser considerados compatíveis com o mercado comum — Auxílios de carácter social — Condições

    [Artigo 87.°, n.° 2, alínea a), CE]

  8. Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Auxílio concedido em violação das regras processuais do artigo 88.° CE — Eventual confiança legítima dos beneficiários — Protecção — Condições e limites

    (Artigos 87.° CE e 88° CE)

  9. Direito comunitário — Princípios — Necessidade de uma fiscalização jurisdicional — Recuperação de um auxílio ilegal não obstante os imperativos da segurança jurídica

    (Artigos 88.° CE, 220.° CE, 230.°, primeiro parágrafo, CE e 233° CE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°; Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigos 6.° e 13.°)

  10. Auxílios concedidos pelos Estados — Exame pela Comissão — Abertura de um procedimento formal de exame — Prazo máximo de dois meses — Não aplicabilidade em caso de auxílio não notificado

    (Artigo 88.°, n. os 2 e 3, CE; Regulamento n.° 659/1999 do Conselho, artigo 4.°, n.° 6)

  11. Auxílios concedidos pelos Estados — Projectos de auxílios — Execução antes da decisão final da Comissão — Decisão da Comissão que ordena a restituição do auxílio — Dever de fundamentação — Alcance

    (Artigo 88.°, n.° 3, CE)

  1.  A circunstância de a Comissão ter aceite, sem levantar qualquer objecção relativamente à sua validade jurídica, a comunicação do novo acordo relativo a um auxílio não notificado, ocorrido entre a empresa beneficiária e a entidade territorial concedente, não pode, de modo algum, alterar o carácter ilegal do auxílio em causa. Com efeito, a Comissão de modo algum pode autorizar uma derrogação ao procedimento de notificação previsto no artigo 88.°, n.° 3, CE e, através do seu comportamento, alterar o carácter ilegal de um auxílio.

    (cf. n.° 70)

  2.  A autoridade de caso julgado de que goza um acórdão poderá impedir a admissibilidade de um recurso se o que esteve na origem do acórdão em causa opôs as mesmas partes, incidiu sobre o mesmo objecto e se baseou no mesmo fundamento, especificando-se que essas condições têm necessariamente carácter cumulativo.

    Constituindo o acto cuja anulação é pedida um elemento essencial que permite caracterizar o objecto de um recurso, a força de caso julgado não pode ser invocada quando os recursos em causa não incidem sobre o mesmo acto.

    (cf. n. os 77, 78)

  3.  Uma medida estatal a favor de uma empresa não pode, pelo simples facto de as partes se comprometerem a prestações recíprocas, ser a priori excluída do conceito de auxílio de Estado referido no artigo 87.° CE.

    Além disso, o simples facto de um Estado-Membro adquirir bens e serviços nas condições de mercado não basta para que essa operação constitua uma transacção comercial efectuada em condições que um investidor privado teria aceite, ou, dito de outro modo, uma transacção comercial normal, se se verificar que o Estado não tinha uma necessidade real desses bens e serviços. A necessidade que um Estado-Membro tem de demonstrar que tal aquisição constitui uma transacção comercial normal impõe-se sobretudo no caso em que a escolha do co-contraente não foi antecedida de um concurso público aberto que tenha sido objecto de publicidade suficiente, sendo a existência de um tal concurso normalmente considerada suficiente para excluir que este pretenda conceder uma vantagem à empresa com a qual contrata.

    (cf. n. os 114, 117, 118)

  4.  A fundamentação exigida pelo artigo 253.° CE deve deixar transparecer, de forma clara e inequívoca, a argumentação da instituição, autora do acto, por forma a permitir aos interessados conhecerem as razões da medida adoptada e ao órgão jurisdicional competente exercer o seu controlo. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente, do conteúdo do acto, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários ou outras pessoas a quem o acto diga directa e individualmente respeito podem ter em receber explicações. Não se exige que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um acto satisfaz as exigências do artigo 253.° CE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor literal, mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa.

    (cf. n. os 139, 170 )

  5.  Em caso de auxílios de Estado ilegalmente concedidos, a Comissão não está obrigada a provar o efeito real de tais auxílios sobre a concorrência e sobre as trocas comerciais entre os Estados-Membros, para os declarar incompatíveis. Com efeito, tal obrigação conduziria a favorecer os Estados-Membros que concedem auxílios com violação do dever de notificação constante do n.° 3 do artigo 88.° CE, em prejuízo daqueles que notificam os auxílios na fase de projecto.

    (cf. n.° 142)

  6.  Embora o regime da propriedade continue a ser da competência de cada Estado-Membro nos termos do artigo 295.° CE, esta disposição não tem por efeito eximir os regimes de propriedade existentes nos Estados-Membros às regras fundamentais do Tratado. Não pode, portanto, considerar-se que o artigo 295.° CE limita o alcance do conceito de auxílio de Estado, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

    (cf. n. os 151, 152)

  7.  Para verificar se os auxílios de natureza social atribuídos a consumidores individuais são concedidos sem discriminação relacionada com a origem dos produtos, de modo que podem, por aplicação do artigo 87.°, n.° 2, alínea a), CE, ser considerados compatíveis com o mercado comum, há que verificar se os referidos consumidores beneficiam desses auxílios, independentemente do operador económico que fornece o produto ou o serviço susceptível de satisfazer o objectivo social invocado pelo Estado-Membro em causa.

    (cf. n. os 162, 163)

  8.  Embora não seja de excluir a possibilidade de um beneficiário de um auxílio ilegal invocar circunstâncias excepcionais, que puderam legitimamente fundamentar a sua confiança no carácter regular desse auxílio, para se opor ao reembolso do mesmo, um Estado-Membro, cujas autoridades concederam um auxílio em violação das normas de processo previstas no artigo 88.° CE, não pode, em contrapartida, invocar a confiança legítima dos beneficiários para se subtrair à obrigação de tomar as medidas necessárias com vista ao cumprimento de uma decisão da Comissão que lhe ordena a recuperação desse auxílio. Com efeito, tal possibilidade significaria, com efeito, privar os artigos 87.° CE e 88.° CE de qualquer efeito útil, na medida em que as autoridades nacionais poderiam basear-se no seu próprio comportamento ilegal para anular a eficácia das decisões tomadas pela Comissão ao abrigo dessas disposições. Assim, não incumbe ao Estado-Membro em causa, mas sim à empresa beneficiária, invocar a existência de circunstâncias excepcionais que puderam criar a sua confiança legítima a fim de se opor à restituição de tal auxílio.

    A circunstância de a Comissão ter inicialmente adoptado uma decisão positiva aprovando a decisão impugnada não podia criar, na empresa beneficiária, uma confiança legítima, uma vez que esta decisão foi contestada dentro dos prazos de recurso contencioso e, em seguida, anulada pelo tribunal comunitário.

    (cf. n. os 201, 202, 205)

  9.  Embora se deva velar pelo respeito dos imperativos da segurança jurídica que protegem interesses privados, importa também ponderá-los com os imperativos da protecção dos interesses públicos, que visam, no domínio dos auxílios de Estado, evitar que o funcionamento do mercado seja falseado por auxílios prejudiciais à concorrência, o que exige que os auxílios ilegais sejam restituídos e que os concorrentes do beneficiário do auxílio possam contestar os actos da Comissão que lhes causam prejuízo, sob pena de privar de efeito útil o controlo a que o órgão jurisdicional comunitário procede no que respeita à legalidade dos actos adoptados pelas instituições comunitárias nos termos dos artigos 220.° CE, 230.°, primeiro parágrafo, CE e 233.° CE. Ora, a exigência de um controlo jurisdicional constitui um princípio geral do direito comunitário, que decorre das tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros e que teve a sua consagração nos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O direito à acção foi, além disso, reafirmado no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

    (cf. n. os 207-209)

  10.  O princípio segundo o qual o prazo de que a Comissão dispõe para iniciar o procedimento formal de exame previsto no artigo 88.°, n.° 2, CE não deve exceder dois meses, inscrito no artigo 4.°, n.° 6, do Regulamento n.° 659/1999, apenas pode ser invocado no quadro de um auxílio notificado em conformidade com o procedimento previsto no artigo 88.°, n.° 3, CE e não se aplica, portanto, no quadro de um procedimento aberto pela Comissão relativamente a um auxílio não notificado.

    (cf. n.° 217)

  11.  Em matéria de auxílios de Estado, sempre que, contrariamente às disposições do artigo 88.°, n.° 3, CE, o auxílio projectado já tiver sido pago, a Comissão, que tem o poder de dirigir injunções às autoridades nacionais para exigir a sua restituição, não é obrigada a fornecer as razões específicas para justificar o seu exercício.

    (cf. n.° 224)