62001J0362

Acórdão do Tribunal de 10 de Dezembro de 2002. - Comissão das Comunidades Europeias contra Irlanda. - Incumprimento de Estado - Não transposição da Directiva 98/5/CE - Parecer fundamentado - Não tomada em consideração das observações formuladas pelo Estado-Membro em resposta à notificação para cumprimento - Efeito sobre a admissibilidade. - Processo C-362/01.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-11433


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Acção por incumprimento - Fase pré-contenciosa - Objecto - Delimitação do objecto do litígio

(Artigo 226.° CE)

2. Acção por incumprimento - Fase pré-contenciosa - Parecer fundamentado que não tem em conta os elementos comunicados em resposta à carta de notificação de incumprimento - Efeito sobre a admissibilidade - Limites

(Artigo 226.° CE)

Sumário


1. O objectivo do procedimento pré-contencioso previsto no artigo 226.° CE é dar ao Estado-Membro a possibilidade de dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário ou apresentar utilmente os seus argumentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão. A sua regularidade constitui uma garantia pretendida pelo Tratado não apenas para a protecção dos direitos do Estado-Membro em causa, mas igualmente para assegurar que o eventual procedimento contencioso tenha por objecto um litígio claramente definido.

( cf. n.os 16, 17 )

2. No âmbito de uma acção por incumprimento por não transposição de uma directiva, uma vez que nenhuma disposição pune o não respeito do prazo fixado pela Comissão para responder à sua notificação de incumprimento com a inadmissibilidade das observações do Estado-Membro, compete à Comissão, no seu parecer fundamentado, fazer as apreciações relativas às observações que foram recebidas depois do termo desse prazo, antes de precisar as acusações que pretende imputar.

Todavia, quando um Estado-Membro se limita, na sua resposta, a anunciar a adopção futura de medidas de transposição, a circunstância de a Comissão não ter em conta essas observações não produz qualquer efeito na delimitação do objecto do litígio e, assim, não o coloca na impossibilidade de pôr termo à infracção e não prejudica o seu direito de defesa.

Nestas condições, não se pode considerar que o parecer fundamentado enferma de um vício essencial susceptível de ocasionar a inadmissibilidade da acção.

( cf. n.os 19-21 )

Partes


No processo C-362/01,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por K. Banks, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Irlanda, representada por D. J. O'Hagan, na qualidade de agente, assistido por D. McGuinness, SC, e D. R. Phelan, BL, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

que tem por objecto obter a declaração de que a Irlanda, ao não adoptar todas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas para dar cumprimento à Directiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 1998, tendente a facilitar o exercício permanente da profissão de advogado num Estado-Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional (JO L 77, p. 36), ou ao não ter informado a Comissão dessas medidas, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessa directiva,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J.-P. Puissochet (relator), M. Wathelet e C. W. A. Timmermans, presidentes de secção, D. A. O. Edward, A. La Pergola, P. Jann, F. Macken, N. Colneric, S. von Bahr e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: R. Grass,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Setembro de 2002,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 24 de Setembro de 2001, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 226.° CE, uma acção destinada a obter a declaração de que a Irlanda, ao não adoptar todas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas para dar cumprimento à Directiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 1998, tendente a facilitar o exercício permanente da profissão de advogado num Estado-Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional (JO L 77, p. 36), ou ao não a ter informado dessas medidas, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessa directiva.

2 O artigo 16.° , n.° 1, primeiro parágrafo, da Directiva 98/5 dispõe:

«Os Estados-Membros adoptarão as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente directiva até 14 de Março de 2000. Do facto informarão imediatamente a Comissão.»

O procedimento pré-contencioso

3 Não tendo recebido da Irlanda a comunicação das medidas adoptadas para transpor a Directiva 98/5 para a sua ordem jurídica interna, a Comissão, por ofício de 8 de Agosto de 2000, em conformidade com o artigo 226.° CE, notificou o Governo irlandês para este lhe apresentar as suas observações no prazo de dois meses.

4 O Governo irlandês respondeu a essa notificação por ofício de 16 de Janeiro de 2001, recebido pela Comissão em 17 de Janeiro do mesmo ano, isto é, mais de três meses depois do termo do prazo de dois meses que lhe fora fixado. Observava essencialmente que os projectos de disposições legislativas e regulamentares necessários à transposição da Directiva 98/5 estavam em vias de apreciação e que essas disposições entrariam em vigor, em princípio, no início de 2001.

5 Em 24 de Janeiro de 2001, a Comissão enviou à Irlanda um parecer fundamentado no qual a instava a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao disposto na Directiva 98/5 no prazo de dois meses. A Comissão afirmava, nomeadamente no ponto 3 do referido parecer, que «não recebeu até esta data qualquer resposta oficial» por parte do Governo irlandês. A Comissão considerava, assim, que não tinha sido adoptada ou comunicada pela Irlanda nenhuma medida de transposição e que essa constatação justificava o envio de um parecer fundamentado.

6 O Governo irlandês respondeu ao parecer fundamentado por ofício de 29 de Janeiro de 2001, recordando que tinha comunicado as suas observações à Comissão e juntou em anexo uma cópia do ofício de 16 de Janeiro de 2001. Essa segunda resposta não continha nenhum elemento novo que a Comissão não tivesse conhecimento.

7 Depois, a Comissão não recebeu qualquer outra informação.

Quanto à admissibilidade

8 Na petição, a Comissão sustenta a título principal que a Irlanda não cumpriu as suas obrigações ao não adoptar as medidas necessárias para transpor a Directiva 98/5 no prazo previsto para esse efeito. Observa que a Irlanda não contesta a acusação que lhe foi imputada.

9 Na contestação, no entanto, o Governo irlandês alega que a acção contra ele proposta é inadmissível porque a Comissão não respeitou as condições de emissão do parecer fundamentado. Considera que a Comissão invocou de forma errada, no seu parecer fundamentado, que a notificação de incumprimento não obtivera qualquer resposta. Recorda que chamou a atenção da Comissão quanto a esta irregularidade e considera que, em vez de propor uma acção no Tribunal de Justiça, a Comissão deveria, em primeiro lugar, tomar em consideração as suas observações e explicar num novo parecer fundamentado as razões pelas quais considerava que a resposta das autoridades irlandesas era insuficiente. Em apoio desta análise, o Governo irlandês invoca, nomeadamente, o despacho do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 1995, Comissão/Espanha (C-266/94, Colect., p. I-1975, n.os 24 a 26), relativo a uma acção por incumprimento proposta em circunstâncias idênticas, na qual o Tribunal de Justiça decidiu que o decurso do procedimento pré-contencioso era irregular e que essa circunstância tornava a acção da Comissão manifestamente inadmissível.

10 Este governo acrescenta que a Comissão reconhece na petição o carácter irregular do procedimento pré-contencioso.

11 Na réplica, a Comissão invoca, em primeiro lugar, que as observações do Governo irlandês não lhe foram apresentadas atempadamente, uma vez que só lhe foram enviadas efectivamente depois de terminado o prazo de dois meses fixado na notificação. A Comissão considera que tinha fundamento para não ter em conta a resposta do Governo irlandês, «muito simplesmente porque essa resposta chegou precisamente pouco tempo antes do envio do parecer».

12 Em segundo lugar, a Comissão considera que as observações enviadas pelo Governo irlandês, mesmo que tivessem sido enviadas atempadamente, não eram susceptíveis de alterar a sua convicção quanto ao incumprimento. Por conseguinte, a Comissão sustenta que o envio de um parecer fundamentado era sempre justificado e que a sua não tomada em consideração das referidas observações, que não contesta, não é susceptível de justificar a inadmissibilidade da acção proposta contra a Irlanda.

13 A Comissão considera, em terceiro lugar, que as condições pelas quais o Tribunal de Justiça concluiu pela inadmissibilidade da acção por incumprimento no despacho Comissão/Espanha, já referido, de qualquer modo, não estão preenchidas no caso em apreço. Segundo a Comissão, o Tribunal de Justiça não decidiu que uma acção contra um Estado-Membro deve ser considerada inadmissível quando as observações feitas por esse Estado-Membro não foram tomadas em consideração, mas julgou a acção que lhe foi submetida inadmissível unicamente devido à existência de medidas nacionais que transpõem parcialmente a directiva em causa e na medida em que a resposta do Reino de Espanha ocorreu no prazo fixado pela Comissão na sua notificação de incumprimento. Esses dois elementos não existem no quadro da presente acção.

14 A título preliminar, há que recordar que, contrariamente ao que parece sustentar a Comissão, o mérito do seu parecer fundamentado, pressupondo-o demonstrado, não tem de modo algum por efeito regularizar um vício de que enferma a fase pré-contenciosa da acção por incumprimento.

15 O procedimento previsto no artigo 226.° CE contém duas fases sucessivas, uma fase pré-contenciosa de natureza administrativa e uma fase contenciosa no Tribunal de Justiça.

16 O objectivo do procedimento pré-contencioso é dar ao Estado-Membro a possibilidade de dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário ou apresentar utilmente os seus argumentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão (acórdão de 2 de Fevereiro de 1988, Comissão/Bélgica, 293/85, Colect., p. 305, n.° 13; despacho Comissão/Espanha, já referido, n.° 16, e acórdão de 13 de Dezembro de 2001, Comissão/França, C-1/00, Colect., p. I-9989, n.° 53).

17 A regularidade do procedimento pré-contencioso constitui uma garantia pretendida pelo Tratado CE não apenas para a protecção dos direitos do Estado-Membro em causa, mas igualmente para assegurar que o eventual procedimento contencioso tenha por objecto um litígio claramente definido (acórdão Comissão/França, já referido, n.° 53).

18 Assim, o procedimento pré-contencioso tem os três seguintes objectivos: permitir ao Estado-Membro pôr termo à eventual infracção, colocá-lo em situação de exercer o seu direito de defesa e delimitar o objecto do litígio tendo em vista uma eventual acção no Tribunal de Justiça.

19 Está provado que a Comissão recebeu as observações do Governo irlandês sete dias antes de esta lhe enviar um parecer fundamentado. Nenhuma disposição do direito comunitário pune o não respeito do prazo fixado pela Comissão para responder à sua notificação de incumprimento com a inadmissibilidade das observações do Estado-Membro. Assim, em princípio, compete à Comissão, no seu parecer fundamentado, fazer as apreciações relativas a essas observações, antes de precisar as acusações que pretende imputar, em vez de invocar, sem razão, que não tinha recebido nenhuma resposta oficial da Irlanda.

20 Todavia, a Comissão não colocou o Estado-Membro na impossibilidade de pôr termo à infracção e não prejudicou o seu direito de defesa; o facto de não ter tomado em consideração as observações da Irlanda, além disso, não produziu qualquer efeito na delimitação do objecto do litígio. Com efeito, resulta do n.° 4 do presente acórdão que a Irlanda se limitou, na resposta à notificação de incumprimento da Comissão, a anunciar a futura adopção de medidas de transposição em vias de apreciação.

21 Nestas condições, por mais lamentável que possa parecer o modo como decorreu o procedimento pré-contencioso, não se pode considerar que o parecer fundamentado enferma de um vício essencial susceptível de ocasionar a inadmissibilidade da acção por incumprimento da Comissão.

22 Resulta das considerações precedentes que a acção da Comissão é admissível.

Quanto ao incumprimento

23 Não tendo sido efectuada no prazo fixado a transposição da Directiva 98/5, relativa ao exercício da profissão de advogado, como o reconhece, aliás, o Governo irlandês, a acção proposta pela Comissão deve ser julgada procedente.

24 Assim, há que declarar que, ao não adoptar, no prazo fixado, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva 98/5, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessa directiva.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

25 Por força do artigo 69.° , n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da Irlanda e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

1) Ao não adoptar, no prazo fixado, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 1998, tendente a facilitar o exercício permanente da profissão de advogado num Estado-Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessa directiva.

2) A Irlanda é condenada nas despesas.