62001J0103

Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 22 de Maio de 2003. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Federal da Alemanha. - Incumprimento de Estado - Directiva 89/686/CEE - Âmbito de aplicação - Excepções - Equipamentos de protecção individual concebidos e fabricados especificamente para as Forças Armadas ou de manutenção da ordem pública. - Processo C-103/01.

Colectânea da Jurisprudência 2003 página I-05369


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Aproximação das legislações - Equipamentos de protecção individual - Directiva 89/686 - Regulamentação nacional que sujeita os equipamentos para bombeiros, não obstante a sua conformidade com a directiva, a exigências suplementares - Inadmissibilidade

(Directiva 89/686 do Conselho, artigos 1.° e 4.° , e anexo I, ponto 1)

2. Direito comunitário - Conceitos - Interpretação - Remissão para o direito nacional - Inadmissibilidade

3. Aproximação das legislações - Equipamentos de protecção individual - Directiva 89/686 - Medidas de harmonização dos equipamentos destinados à protecção dos bombeiros no exercício das suas funções habituais - Violação do princípio da proporcionalidade - Violação do princípio da subsidiariedade - Inexistência

(Directiva 89/686 do Conselho)

Sumário


1. Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.° e 4.° da Directiva 89/686, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos equipamentos de protecção individual, um Estado-Membro que sujeita os equipamentos de protecção individual para bombeiros a exigências suplementares, quando estes são conformes às exigências da referida directiva e têm aposta a marcação CE.

Com efeito, resulta do artigo 1.° , n.° 4, da referida directiva que os equipamentos de protecção individual destinados a serem utilizados pelas corporações de bombeiros só escapam ao seu âmbito de aplicação se se puder considerar que os mesmos foram concebidos e fabricados especificamente para as forças de manutenção da ordem na acepção do ponto 1 do anexo I da directiva. Ora, consistindo as missões das corporações de bombeiros normalmente em operações de salvamento de pessoas e de bens em caso de incêndios, acidentes de circulação, explosões, inundações e outras catástrofes, estas funções são distintas das que incumbem às forças cuja missão principal é a manutenção da ordem pública. Em contrapartida, se as corporações de bombeiros forem chamadas, em determinadas circunstâncias, a contribuir para a manutenção da ordem pública e forem dotadas, para o efeito, de equipamentos de protecção individual concebidos e fabricados especificamente para o cumprimento dessa função, estes últimos estariam cobertos pela excepção prevista no ponto 1 do anexo I da directiva.

Embora a referida directiva não se oponha a que um Estado-Membro imponha que as corporações de bombeiros sejam equipadas com instrumentos de salvamento correspondentes todos às mesmas normas de fabrico e de segurança tendo em vista garantir a sua compatibilidade, para atingir o objectivo consistente em garantir a livre circulação dos equipamentos de protecção individual entre os Estados-Membros, esta directiva deve impedir que estes últimos proíbam, restrinjam ou entravem a colocação no mercado desses equipamentos conformes às suas disposições e com a marcação CE.

( cf. n.os 30, 31, 36, 39, 43, 50, disp. )

2. A ordem jurídica comunitária não pretende, em princípio, definir as suas qualificações inspirando-se numa ordem jurídica nacional ou em várias de entre elas, sem precisão expressa.

( cf. n.° 33 )

3. A Directiva 89/686, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos equipamentos de protecção individual, não desrespeita nem o princípio da subsidiariedade nem o princípio da proporcionalidade ao harmonizar as disposições nacionais relativas aos referidos equipamentos destinados à protecção dos bombeiros no exercício das suas funções habituais.

Com efeito, quanto ao princípio da subsidiariedade, como as disposições nacionais em questão diferem sensivelmente de um Estado-Membro para outro, são susceptíveis de constituir um entrave ao comércio, que terá imediatamente repercussões sobre o estabelecimento e o funcionamento do mercado comum, como constata o quinto considerando da directiva. A harmonização dessas disposições divergentes só pode, devido às suas dimensões e aos seus efeitos, ser empreendida pelo legislador comunitário.

Quanto ao princípio da proporcionalidade, a inclusão dos equipamentos de protecção individual destinados à protecção dos bombeiros no âmbito de aplicação da directiva é um meio adequado para garantir a livre circulação desses equipamentos entre os Estados-Membros e não vai além do necessário para atingir este objectivo. Não constitui uma ingerência na competência destes Estados para definir as missões e os poderes das corporações de bombeiros e para garantir a protecção individual destes. Também não interfere na organização das Forças Armadas ou de manutenção da ordem.

( cf. n.os 46-48 )

Partes


No processo C-103/01,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por J. Schieferer, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Federal da Alemanha, representada por W.-D. Plessing, B. Muttelsee-Schön e H.-W. Rengeling, na qualidade de agentes,

demandada,

apoiada pela

República Francesa, representada por G. de Bergues e D. Colas, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

que tem por objecto obter a declaração de que, ao sujeitar, através da legislação de certos Länder, os equipamentos de protecção individual para bombeiros a exigências suplementares, quando estes são conformes ao disposto na Directiva 89/686/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos equipamentos de protecção individual (JO L 399, p. 18), e têm aposta a marcação CE, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.° e 4.° desta directiva,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: M. Wathelet, presidente de secção, D. A. O. Edward, A. La Pergola, P. Jann (relator) e A. Rosas, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: H.-A. Rühl, administrador principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 24 de Outubro de 2002,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 10 de Dezembro de 2002,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 2 de Março de 2001, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, ao abrigo do artigo 226.° CE, uma acção destinada a fazer declarar que, ao sujeitar, através da legislação de certos Länder, os equipamentos de protecção individual para bombeiros a exigências suplementares, quando estes são conformes ao disposto na Directiva 89/686/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos equipamentos de protecção individual (JO L 399, p. 18, a seguir «directiva EPI»), e têm aposta a marcação CE, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.° e 4.° desta directiva.

O enquadramento jurídico

2 A directiva EPI, na redacção que lhe foi dada pela Directiva 93/68/CEE do Conselho, de 22 de Julho de 1993 (JO L 220, p. 1), prevê, designadamente, no seu artigo 1.° :

«1. A presente directiva aplica-se aos equipamentos de protecção individual, a seguir denominados EPI.

A presente directiva fixa as condições da colocação no mercado e da livre circulação intracomunitária, bem como as exigências essenciais de segurança a satisfazer pelos EPI com vista a preservar a saúde e a garantir a segurança dos utilizadores.

2. Para efeitos da presente directiva, entende-se por EPI: qualquer dispositivo ou meio que se destine a ser envergado ou manejado por uma pessoa com vista à sua protecção contra um ou mais riscos susceptíveis de ameaçar a sua saúde bem como a sua segurança.

São igualmente considerados como EPI:

a) O conjunto constituído por vários dispositivos ou meios associados de modo solidário pelo fabricante com vista a proteger uma pessoa contra um ou vários riscos susceptíveis de surgir simultaneamente;

b) Um dispositivo ou meio protector solidário, de modo dissociável ou não, de um equipamento individual não protector envergado ou manejado por uma pessoa com vista a exercer uma actividade;

c) Componentes intermutáveis de um EPI, indispensáveis ao seu bom funcionamento e utilizados exclusivamente nesse EPI.

[...]

4. Estão excluídos do âmbito de aplicação da presente directiva:

- os EPI abrangidos por outra directiva que vise os mesmos objectivos de colocação no mercado, de livre circulação e de segurança que a presente directiva,

- independentemente do motivo de exclusão referido no primeiro travessão, os géneros e tipos de EPI constantes da lista de exclusão do anexo I.»

3 O artigo 4.° , n.° 1, da directiva EPI dispõe:

«Os Estados-Membros não podem proibir, restringir ou pôr entraves à colocação no mercado de EPI ou componentes de EPI que sejam conformes com as disposições da presente directiva e munidos da marcação CE de conformidade, indicativa de que obedecem ao conjunto das disposições da presente directiva, incluindo os procedimentos de certificação previstos no capítulo II.»

4 O anexo I da directiva EPI contém a lista exaustiva dos géneros de EPI não abrangidos no âmbito de aplicação desta directiva. Nos termos do ponto 1 deste anexo, ficam excluídos os EPI concebidos e fabricados especificamente para as Forças Armadas ou de manutenção da ordem (capacetes, escudos, etc.).

Matéria de facto e fase pré-contenciosa

5 Foi comunicado à Comissão que as disposições legais de certos Länder alemães sujeitavam os equipamentos para bombeiros a exigências que não constavam da directiva EPI. No Land da Baixa Saxónia, por exemplo, alguns cintos de segurança deviam satisfazer as especificações de uma norma técnica nacional. Na Renânia do Norte-Vestefália, a legislação impunha a certificação dos capacetes por um organismo estabelecido neste Land.

6 Considerando que essas disposições legais não eram compatíveis com os artigos 1.° e 4.° da directiva EPI, a Comissão endereçou ao Governo alemão uma interpelação em 19 de Março de 1998.

7 Na sua resposta, datada de 25 de Maio de 1998, o Governo alemão sustentou que a organização das corporações de bombeiros cabia na competência legislativa dos Länder. Estes indicariam, na sua legislação, se essas corporações constituíam organismos encarregados de garantir a segurança ou a ordem públicas. Se assim fosse, os EPI exclusivamente concebidos ou fabricados para este género de organismos estariam excluídos do âmbito de aplicação da directiva EPI. Este governo alegou que não se podia, pois, afirmar em termos gerais que os bombeiros alemães não faziam parte das Forças Armadas ou de manutenção da ordem. As corporações de bombeiros do Land da Baixa Saxónia, designadamente, seriam organismos que teriam a seu cargo garantir a segurança e a ordem públicas, e o cinto de segurança em questão seria especificamente destinado ao equipamento destes.

8 Insatisfeita com esta explicação, a Comissão enviou à República Federal da Alemanha um parecer fundamentado por carta de 21 de Outubro de 1998, convidando-a a tomar as medidas necessárias para o cumprir no prazo de dois meses a contar da sua notificação.

9 Numa comunicação de 18 de Dezembro de 1998, o Governo alemão informou a Comissão que tinha enviado uma carta aos Ministérios do Interior dos Länder, solicitando-lhes que alterassem as suas legislações sobre fornecimentos de EPI a fim de as adaptar ao direito comunitário. Numa outra comunicação datada de 8 de Dezembro de 2000, este mesmo governo explicou que continuava a aguardar uma reacção por parte dos Länder.

10 Foi nestas circunstâncias que a Comissão intentou a presente acção.

A acção

Observações apresentadas no Tribunal de Justiça

11 A Comissão alega que a aplicabilidade da directiva EPI depende unicamente da definição do conceito de «Forças Armadas ou de manutenção da ordem» em direito comunitário e que nele não caberiam as corporações de bombeiros. Deste ponto de vista, a mera organização administrativa dos bombeiros seria destituída de pertinência. A missão específica destes distinguir-se-ia das funções conferidas às Forças Armadas ou de manutenção da ordem. Este último conceito remeteria para a própria essência do exercício da autoridade pública.

12 Os termos «Forças Armadas ou de manutenção da ordem» designariam os exércitos e as forças da ordem armadas. Os exemplos mencionados na lista de exclusão que consta do anexo I da directiva EPI, ou seja, os capacetes e os escudos, permitiriam, segundo a Comissão, precisar que se trata de forças de intervenção que têm de se defender contra ataques de outras pessoas. Os EPI fabricados especificamente para estas formações deveriam ser conformes às exigências particulares de segurança em caso de afrontamentos violentos e não constituiriam, portanto, mercadorias ordinárias existentes no mercado. Não seria este o caso dos equipamentos que não seriam fabricados especificamente para as corporações públicas de bombeiros, mas para todos os bombeiros, incluindo os de empresas ou fábricas.

13 As corporações de bombeiros públicas e privadas desempenham funções semelhantes na luta contra os incêndios, as explosões, os acidentes e as catástrofes naturais, e a sua competência em matéria de manutenção da ordem não constituiria a essência das suas funções. Além disso, esta competência não teria qualquer relação com os equipamentos de protecção concebidos para o combate ao fogo e para as outras funções próprias dos bombeiros.

14 O Governo alemão esforça-se por demonstrar, liminarmente, que o cinto de segurança que está na origem da presente acção por incumprimento foi concebido e fabricado especificamente para protecção dos bombeiros contra os riscos incorridos no decurso da sua formação, dos exercícios e das intervenções. Segundo este governo, a circular técnica respeitante ao cinto de segurança em causa regula as dimensões, as exigências e as medidas de controlo deste e impõe a obrigação de o munir de uma marca. A utilização de um cinto idêntico durante o exercício e a intervenção por todos os bombeiros seria de uma importância decisiva para o salvamento próprio, de terceiros e, em especial, dos colegas em dificuldade. Permitiria ao bombeiro proteger-se através da corda de segurança contra o risco de quedas de escadas e de outros sítios não seguros. O Governo alemão precisa que o cinto em causa inclui um machado e a respectiva bolsa de protecção, em conformidade com a norma DIN 14924. Além disso, seriam necessárias indicações pormenorizadas sobre o cinto, porque pode acontecer, por exemplo, que algumas medidas de salvamento só possam ser executadas com o auxílio de cordas e de instrumentos de salvamento definidos de modo preciso. Seria por esta razão que a utilização e o funcionamento dos equipamentos de bombeiros seriam regidos por regras aplicáveis de modo uniforme a nível federal. Uma intervenção bem sucedida implicando a cooperação de várias unidades só pode ser garantida se estas unidades dispuserem de instrumentos de salvamento correspondendo todos às mesmas normas de fabrico e de segurança.

15 A respeito da interpretação do conceito de «forças de manutenção da ordem», o Governo alemão sustenta que os poderes e funções das corporações de bombeiros nos Länder se enquadram no núcleo duro do exercício do poder público. Com efeito, as corporações de bombeiros públicas deveriam, segundo as leis dos Länder, tomar as medidas necessárias para proteger a colectividade e os indivíduos contra os perigos que representam para a sua vida, a sua saúde ou os seus bens, os incêndios, explosões, acidentes e outras situações de urgência, como, por exemplo, as catástrofes naturais. As intervenções das corporações públicas de bombeiros poderiam, além disso, implicar restrições aos direitos fundamentais. Para cumprirem a sua missão, as corporações de bombeiros seriam dotadas de poderes de execução e poderiam, eventualmente, fazer uso da força contra bens ou pessoas.

16 Para efeitos de interpretação sistemática das disposições da directiva EPI, o Governo alemão remete para as Directivas 89/391/CEE do Conselho, de 12 de Junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho (JO L 183, p. 1), e 89/656/CEE do Conselho, de 30 de Novembro de 1989, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de protecção individual no trabalho (terceira directiva especial na acepção do n.° 1 do artigo 16.° da Directiva 89/391/CEE) (JO L 393, p. 18). Estas duas directivas conteriam exigências mínimas. O facto de poder ser lícita a imposição de condições suplementares ou diferentes em matéria de equipamentos não pode, segundo o Governo alemão, deixar de ter consequências para a directiva EPI. Uma interpretação coerente destas três directivas deveria ter em conta, em matéria de livre circulação de mercadorias, disposições sobre a protecção dos trabalhadores que utilizam equipamentos de protecção individual.

17 O Governo alemão estabelece ainda uma comparação com as regras do Tratado CE em matéria de livre circulação de trabalhadores. Nos termos do artigo 48.° , n.° 4, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.° , n.° 4, CE), todos os postos de trabalho que envolvam uma participação directa ou indirecta no exercício da autoridade pública e em funções que tenham por objecto a salvaguarda dos interesses gerais do Estado ou de outras entidades públicas ficam fora do âmbito de aplicação das normas sobre livre circulação de trabalhadores. Segundo a mesma lógica, seriam as tarefas e as funções atribuídas às corporações de bombeiros que deviam ser determinantes, segundo este governo, para a interpretação das derrogações previstas na directiva EPI.

18 O Governo alemão alega ainda que, para efeitos de interpretação da norma derrogatória da directiva EPI, goza de uma margem de apreciação para determinar, por um lado, as missões de autoridade pública das forças da ordem e, por outro, o nível de protecção dos EPI fabricados para estas.

19 Por outro lado, a interpretação do artigo 1.° , n.° 4, da directiva EPI, conjugado com o ponto 1 do anexo I desta mesma directiva, deve respeitar os princípios de exercício das competências que são os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, previstos no artigo 3.° -B, segundo e terceiro parágrafos, do Tratado CE (actual artigo 5.° , segundo e terceiro parágrafos, CE).

20 A Comissão contesta a interpretação sistemática preconizada pelo Governo alemão, alegando que as prescrições da directiva EPI devem antes de mais ser apreciadas sob o ângulo do mercado interno, visto que se trata de uma directiva que visa a aproximação das legislações dos Estados-Membros. Para facilitar a livre circulação de mercadorias, a directiva EPI definiria as exigências essenciais que os EPI devem satisfazer.

21 Em contrapartida, as Directivas 89/391 e 89/656, invocadas pelo Governo alemão, teriam como finalidade a melhoria das condições de segurança e de protecção da saúde no trabalho dos trabalhadores e conteriam prescrições mínimas de segurança e de protecção da saúde para utilização pelos trabalhadores de EPI. Os equipamentos de protecção dos bombeiros estariam excluídos do âmbito de aplicação destas directivas, como se poderia ver pelo artigo 2.° , n.° 2, destas.

22 O Governo francês alega que a interpretação da noção de «EPI concebidos e fabricados especificamente para as Forças Armadas ou de manutenção da ordem (capacetes, escudos, etc.)» equivale não à questão de saber se os utilizadores dos equipamentos em causa podem ou não ser qualificados como Forças Armadas ou de manutenção da ordem, mas sim à de saber se o material em causa se destina especificamente a fins militares ou policiais. Para responder ao argumento invocado pelo Governo alemão, há assim que demonstrar que os equipamentos em causa não são equipamentos que só podem ser utilizados para fins militares ou policiais.

23 Ao invés, o raciocínio adoptado pela Comissão seria susceptível de a levar a interferir na organização das Forças Armadas, que é uma prerrogativa exclusiva dos Estados-Membros. Esta abordagem seria contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça e ao Tratado da União Europeia, no âmbito do qual os elementos de política estrangeira e de segurança comum se enquadram no segundo pilar.

Apreciação do Tribunal de Justiça

24 Sublinhe-se liminarmente que resulta do sexto considerando da directiva EPI que esta, ao harmonizar as disposições nacionais relativas aos EPI, visa garantir a livre circulação desses produtos, sem baixar o nível de protecção existente, quando este se justifica nos Estados-Membros.

25 No sétimo considerando da directiva EPI precisa-se que as disposições relativas à concepção e ao fabrico dos EPI constantes da directiva são essenciais, designadamente tendo em vista um meio de trabalho mais seguro.

26 Para ter em conta os objectivos de saúde, de segurança no trabalho e de protecção dos consumidores, o artigo 3.° da directiva EPI prevê que os EPI aos quais a directiva se aplica devem satisfazer as exigências essenciais de saúde e de segurança enunciadas no seu anexo II.

27 O ponto 3.1.2.2 do referido anexo II consagra exigências específicas à prevenção das quedas de altura, o ponto 3.6 trata da protecção contra o calor e/ou o fogo e o ponto 3.10.1 da protecção respiratória.

28 De onde se conclui que a directiva EPI tem em conta, designadamente, os riscos específicos a que se expõem os bombeiros, estabelecendo exigências essenciais de segurança que devem ser satisfeitas pelos EPI destinados à sua protecção.

29 Por conseguinte, considerações ligadas aos riscos a que estão expostos os bombeiros durante a sua formação, os exercícios e as intervenções não podem justificar, por si só, uma derrogação do disposto na directiva EPI.

30 Além disso, a directiva EPI não se opõe a que um Estado-Membro imponha que as corporações de bombeiros sejam equipadas com instrumentos de salvamento correspondentes todos às mesmas normas de fabrico e de segurança tendo em vista garantir a sua compatibilidade.

31 Resulta aliás do artigo 1.° , n.° 4, da directiva EPI que os EPI destinados a serem utilizados pelas corporações de bombeiros só escapam ao âmbito de aplicação desta directiva se se puder considerar que foram concebidos e fabricados especificamente para as forças de manutenção da ordem na acepção do ponto 1 do anexo I desta directiva.

32 Constituindo esta disposição uma excepção ao princípio da livre circulação de mercadorias, tal como previsto no artigo 30.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 28.° CE) e foi aplicado aos EPI pelo artigo 4.° , n.° 1, da directiva EPI, há que a interpretar em sentido estrito [v., no que toca às excepções previstas no artigo 36.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 30.° CE), o acórdão de 25 de Janeiro de 1977, Bauhuis, 46/76, Colect., p. 1, n.° 12, e, em geral, o acórdão de 7 de Outubro de 1985, Migliorini e Fischl, 199/84, Recueil, p. 3317, n.° 14].

33 A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a ordem jurídica comunitária não pretende, em princípio, definir as suas qualificações inspirando-se numa ordem jurídica nacional ou em várias de entre elas, sem precisão expressa (acórdãos de 14 de Janeiro de 1982, Corman, 64/81, Recueil, p. 13, n.° 8, e de 2 de Abril de 1998, EMU Tabac e o., C-296/95, Colect., p. I-1605, n.° 30).

34 Ora, da letra do anexo I, ponto 1, da directiva EPI não consta qualquer referência expressa às ordens jurídicas nacionais.

35 Acresce que a referida disposição define a excepção ao âmbito de aplicação da directiva EPI por referência à função precisa consistente na manutenção da ordem pública. Os EPI que escapam ao âmbito de aplicação da referida directiva devem, pois, ter sido concebidos e fabricados especificamente para o cumprimento desta tarefa.

36 Convém assinalar que as missões das corporações de bombeiros consistem normalmente em operações de salvamento de pessoas e de bens em caso de incêndios, acidentes de circulação, explosões, inundações e outras catástrofes. Estas funções são distintas das que incumbem às forças cuja missão principal é a manutenção da ordem pública.

37 Por conseguinte, não se pode considerar que os EPI destinados à protecção dos bombeiros contra os riscos a que se expõem no exercício das suas funções habituais assim descritas são concebidos e fabricados especificamente para serem utilizados para a manutenção da ordem pública.

38 As necessidades de protecção das corporações públicas de bombeiros no exercício das suas funções habituais não diferem das das corporações de bombeiros com um estatuto de direito privado, ainda que estas sejam destituídas de poderes de autoridade pública.

39 Em contrapartida, se as corporações de bombeiros forem chamadas, em determinadas circunstâncias, a contribuir para a manutenção da ordem pública e forem dotadas, para o efeito, de EPI concebidos e fabricados especificamente para o cumprimento dessa função, estes últimos estariam cobertos pela excepção prevista no ponto 1 do anexo I da directiva EPI.

40 Esta conclusão não se aplica, porém, aos EPI em causa no presente processo, visto que a República Federal da Alemanha não alegou que os cintos de segurança e os capacetes em causa serviam para protecção dos bombeiros fora do exercício das suas funções habituais.

41 De onde se conclui que os EPI concebidos e fabricados para utilização pelos bombeiros no exercício das funções descritas no n.° 36 do presente acórdão não cabem na lista de exclusão constante do ponto 1 do anexo I da directiva EPI.

42 Esta conclusão não é infirmada pelos argumentos que a demandada procura retirar das Directivas 89/391 e 89/656. Com efeito, estas directivas, adoptadas com base no artigo 118.° -A do Tratado CE (os artigos 117.° a 120.° do Tratado CE foram substituídos pelos artigos 136.° CE a 143.° CE), visam melhorar a segurança e a saúde dos trabalhadores. É conforme a este objectivo que estas directivas contenham regras mínimas e admitam disposições mais favoráveis à protecção dos trabalhadores.

43 Em contrapartida, a directiva EPI foi adoptada com fundamento no artigo 100.° -A do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 95.° CE). Para atingir o objectivo consistente em garantir a livre circulação dos EPI entre os Estados-Membros, a referida directiva deve impedir que estes últimos proíbam, restrinjam ou entravem a colocação no mercado desses equipamentos conformes às suas disposições e com a marcação CE.

44 A República Federal da Alemanha também não pode prevalecer-se do artigo 48.° , n.° 4, do Tratado. Com efeito, se esta disposição exclui do âmbito de aplicação da livre circulação dos trabalhadores os empregos na administração pública que envolvem uma participação, directa ou indirecta, no exercício da autoridade pública e nas funções que têm por objecto a salvaguarda dos interesses gerais do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas (v. acórdãos de 17 de Dezembro de 1980, Comissão/Bélgica, 149/79, Recueil, p. 3881, n.° 10, e de 2 de Julho de 1996, Comissão/Grécia, C-290/94, Colect., p. I-3285, n.° 2), não fornece qualquer elemento a respeito da dimensão de uma excepção constante de uma directiva que tem por objecto facilitar a livre circulação de mercadorias e que só exclui os EPI especificamente concebidos e fabricados para as Forças Armadas ou de manutenção da ordem. Esta excepção não cobre evidentemente todos os EPI utilizados por pessoas investidas de poderes de autoridade pública ou encarregadas de salvaguardar os interesses gerais do Estado.

45 Quanto à margem de apreciação que a demandada pretende que lhe seja reconhecida, há que declarar que essa margem não pode alargar-se para além dos limites traçados pela disposição que consagra a excepção em causa. Se é certo que os Estados-Membros podem definir as funções e poderes atribuídos às forças de manutenção da ordem e decidir o nível de protecção destas, daí não decorre que têm também direito a utilizar as suas próprias definições de EPI para efeitos de aplicação da excepção em causa.

46 Ao harmonizar as disposições nacionais sobre EPI destinados à protecção dos bombeiros no exercício das suas funções habituais, a directiva EPI não desrespeita, aliás, nem o princípio da subsidiariedade nem o princípio da proporcionalidade.

47 Com efeito, quanto ao princípio da subsidiariedade, como as disposições nacionais em questão diferem sensivelmente de um Estado-Membro para outro, são susceptíveis de constituir um entrave ao comércio que terá imediatamente repercussões sobre o estabelecimento e o funcionamento do mercado comum, como constata o quinto considerando da directiva EPI. A harmonização dessas disposições divergentes só pode, devido às suas dimensões e aos seus efeitos, ser empreendida pelo legislador comunitário [v., neste sentido, acórdão de 10 de Dezembro de 2002, British American Tobacco (Investments) e Imperial Tobacco, C-491/01, ainda não publicado na Colectânea, n.os 180 a 182].

48 Quanto ao princípio da proporcionalidade, a inclusão dos EPI destinados à protecção dos bombeiros no âmbito de aplicação da directiva EPI é um meio adequado para garantir a livre circulação desses equipamentos entre os Estados-Membros e não vai além do necessário para atingir este objectivo. Não constitui uma ingerência na competência destes Estados para definir as missões e os poderes das corporações de bombeiros e para garantir a protecção individual destes. Também não interfere, como pretende o Governo francês, na organização das Forças Armadas ou de manutenção da ordem.

49 Não sendo aplicável ao caso em apreço a excepção prevista no ponto 1 do anexo I da directiva EPI, os Länder não podiam, por força do artigo 4.° , n.° 1, desta, impor condições suplementares aos EPI conformes ao disposto na directiva e com a marcação CE.

50 Resulta de quanto precede que, ao sujeitar, através da legislação de certos Länder, os EPI para bombeiros a exigências suplementares, quando estes são conformes ao disposto na directiva EPI, e têm aposta a marcação CE, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.° e 4.° desta directiva.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

51 Por força do disposto no n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Federal da Alemanha e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas. Nos termos do primeiro parágrafo do n.° 4 do artigo 69.° , a República Francesa deve suportar as suas próprias despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

decide:

1) Ao sujeitar, através da legislação de certos Länder, os equipamentos de protecção individual para bombeiros a exigências suplementares, quando estes são conformes ao disposto na Directiva 89/686/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos equipamentos de protecção individual, e têm aposta a marcação CE, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.° e 4.° desta directiva.

2) A República Federal da Alemanha é condenada nas despesas.

3) A República Francesa suportará as suas próprias despesas.