62001C0249

Conclusões do advogado-geral Mischo apresentadas em 25de Fevereiro de2003. - Werner Hackermüller contra Bundesimmobiliengesellschaft mbH (BIG) e Wiener Entwicklungsgesellschaft mbH für den Donauraum AG (WED). - Pedido de decisão prejudicial: Bundesvergabeamt - Áustria. - Contratos públicos - Directiva 89/665/CEE - Processos de recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos - Artigo 1.º, n.º3 - Pessoas a quem os processos de recurso devem ser acessíveis. - Processo C-249/01.

Colectânea da Jurisprudência 2003 página I-06319


Conclusões do Advogado-Geral


1. O Bundesvergabeamt (Áustria) interroga-nos quanto à interpretação do artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras de fornecimentos , modificada pela Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (a seguir «Directiva 89/665»).

2. O Bundesvergabeamt pretende essencialmente saber se a referida disposição deve ser entendida no sentido de que um concorrente é lesado ou pode vir a ser lesado pela violação que alega mesmo que, embora a sua proposta não haja sido eliminada pela entidade adjudicante, o órgão de recurso considera que a proposta do concorrente devia obrigatoriamente ter sido eliminada pela entidade adjudicante.

I - Enquadramento jurídico

A - A regulamentação comunitária

3. O artigo 1.° , n.os 1 e 3, da Directiva 89/665 dispõe:

«1. Os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para garantir que, no que se refere aos processos de adjudicação abrangidos pelo âmbito de aplicação das Directivas 71/305/CEE, 77/62/CEE e 92/50/CEE [...], as medidas necessárias para garantir que as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes possam ser objecto de recursos eficazes e, sobretudo, tão rápidos quanto possível, nas condições previstas nos artigos seguintes e, nomeadamente, no n.° 7 do artigo 2.° , com o fundamento de que essas decisões tenham violado o direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou as regras nacionais que transpõem esse direito.

[...]

3. Os Estados-Membros garantirão que os processos de recurso sejam acessíveis, de acordo com as regras que os Estados-Membros podem determinar, pelo menos a qualquer pessoa que esteja ou tenha estado interessada em obter um determinado contrato de fornecimento público ou de obras públicas e que tenha sido ou possa vir a ser lesada por uma alegada violação. Os Estados-Membros podem em particular exigir que a pessoa que pretenda utilizar tal processo tenha informado previamente a entidade adjudicante da alegada violação e da sua intenção de interpor recurso.»

4. Nos termos do artigo 2.° , n.os 1, 4 e 6, da Directiva 89/665:

«1. Os Estados-Membros velarão por que as medidas tomadas para os efeitos dos recursos referidos no artigo 1.° prevejam os poderes que permitam:

a) Tomar o mais rapidamente possível, através de um processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em causa, incluindo medidas destinadas a suspender ou a fazer suspender o processo de adjudicação do contrato de direito público em causa ou a execução de qualquer decisão tomada pelas entidades adjudicantes;

b) Anular ou fazer anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem dos documentos do concurso, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o processo de adjudicação do contrato em causa;

c) Conceder indemnizações às pessoas lesadas por uma violação.

[...]

4. Os Estados-Membros podem prever que, sempre que a instância responsável se debruce sobre a necessidade de tomar medidas provisórias, lhe seja possível tomar em consideração as prováveis consequências de tais medidas para todos os interesses susceptíveis de ser lesados, bem como o interesse público, e decidir não conceder essas medidas sempre que as consequências negativas possam superar as vantagens. A decisão de recusa de medidas provisórias não prejudicará os outros direitos reclamados pela pessoa que solicita essas medidas.

[...]

6. Os efeitos do exercício dos poderes referidos no n.° 1 sobre o contrato celebrado na sequência da atribuição de um contrato de direito público serão determinados pelo direito nacional.

Além disso, excepto se a decisão tiver de ser anulada antes da concessão de indemnizações, os Estados-Membros podem prever que, após a celebração do contrato na sequência da atribuição de um contrato de direito público, os poderes da instância de recurso responsável se limitem à concessão de indemnizações a qualquer pessoa que tenha sido lesada por uma violação.

[...]»

B - A regulamentação nacional

5. A Directiva 89/665 foi transposta para o direito austríaco pelo Bundesgesetz über die Vergabe von Aufträgen (Bundesvergabesegesetz 1997, lei federal de 1997 sobre a adjudicação de contratos de direito público, BGBI. I, 56/1997, a seguir «BVerG»).

6. O artigo 113.° do BVergG dispõe:

«1. O Bundesvergabeamt é competente para apreciar os recursos contra os processos de adjudicação de entidades públicas que lhe sejam submetidos, em conformidade com as disposições do capítulo seguinte.

2. Até à adjudicação e com a finalidade de reparar as infracções a esta lei federal e aos seus regulamentos de execução, o Bundesvergabeamt é competente para 1) decretar medidas provisórias e 2) anular as decisões ilegais tomadas pela entidade adjudicante.

3. Após a adjudicação ou o encerramento do processo de concurso, o Bundesvergabeamt pode verificar se, em razão de uma violação da presente lei ou dos seus regulamentos de execução, o contrato não foi adjudicado ao concorrente que apresentou a proposta mais vantajosa [...]».

7. O artigo 115.° , n.° 1, do BVergG dispõe:

«Uma empresa que afirme ter interesse na celebração de um contrato abrangido por esta lei pode recorrer duma decisão da entidade adjudicante no decurso do processo de concurso por violação da lei, na medida em que a referida ilegalidade lhe tenha causado ou ameace causar prejuízo.»

8. De acordo com o artigo II, n.° 2, alínea c), ponto 40a, da Einführungsgesetz zu den Verwaltungsverfahrensgesetzen 1991 (lei introdutória às leis de procedimento administrativo de 1991, BGBI. 50/1991), a Allgemeines Verwaltungsverfahrensgesestz 1991 (lei geral do processo administrativo de 1991, BGBI. 51/1991, a seguir «AVG») aplica-se ao procedimento administrativo do Bundesvergabeamt.

II - O litígio no processo principal

9. A sociedade BIG Bundesimmobiliengesellschaft mbH e a WED Wiener Entwicklungsgesellschaft mbH für den Donauraum AG (a seguir «recorridas») abriram um concurso público em várias fases para obterem projectos de arquitectura e parâmetros de decisão para a abertura de concursos de prestações de serviços de planeamento geral da obra da nova faculdade de engenharia de máquinas da TU-Wien. Na primeira fase, tratou-se de um concurso público de «detecção de ideias».

10. Diversos interessados, entre os quais o engenheiro-arquitecto Werner Hackermüller (a seguir «Hackermüller») e a sociedade Dipl.- Ing. Hans Lechner-ZT GmbH (a seguir «Lechner»), participaram no concurso por fases apresentando projectos. No decurso da segunda fase do concurso - a da negociação -, o Beratungsgremium (comité consultivo) aconselhou o prosseguimento a curto prazo das negociações com a Lechner. Por carta de 10 de Fevereiro de 1999, foi comunicado aos restantes quatro participantes das negociações, entre os quais Hackermüller, que os seus projectos não tinham sido aconselhados para execução do projecto, por decisão do Beratungsgremium de 8 de Fevereiro de 1999.

11. Em 29 de Março de 1999, Hackermüller apresentou ao Bundesvergabeamt um pedido de abertura de um processo de recurso em conformidade com o artigo 113.° , n.° 2, do BVergG e pediu designadamente que o Bundesvergabeamt declarasse a nulidade: 1) da decisão de 8 de Fevereiro de 1999, através da qual o Beratungsgremium e/ou as recorrentes consideram o projecto de um concorrente como sendo a melhor proposta e recomendaram que continuassem a curto prazo as negociações com esse concorrente, 2) da decisão que procedeu à referida escolha sem observância dos critérios mencionados no aviso de concurso.

12. Por decisão de 31 de Maio de 1999, o Bundesvergabeamt indeferiu todos os pedidos de Hackermüller por falta de legitimidade, uma vez que a sua proposta devia ter sido excluída na primeira fase do concurso, nos termos do artigo 52.° , n.° 1, ponto 8, do BVergG.

13. Em apoio da sua decisão, o Bundesvergabeamt afirmou desde logo que decorre do artigo 115.° , n.° 1, do BVergG que uma empresa só tem legitimidade para recorrer de uma decisão na medida em que esta lhe cause um prejuízo ou outra desvantagem. Recordou também que, por força do artigo 52.° , n.° 1, ponto 8, do BVergG, a entidade adjudicante deve, antes da selecção da proposta para a adjudicação, excluir imediatamente, com base no resultado da verificação das condições do concurso, as propostas que não respeitem as condições do concurso, que sejam deficientes ou estejam incompletas, sempre que as falhas não forem ou não possam ser supridas.

14. Seguidamente, o Bundesvergabeamt salientou que, no caso em apreço, no que diz respeito à exclusão de um projecto do processo de adjudicação, o ponto 1.6.7. do aviso de concurso remete expressamente para o artigo 36.° , n.° 4, da Wettbewerbsordnung der Architekten (código da concorrência dos arquitectos, a seguir «WOA»), que, por sua vez, estabelece que, perante uma causa de exclusão na acepção do artigo 8.° do WOA, o projecto em causa deve ser excluído, e que o n.° 1, alínea d), desta última disposição exclui da participação num determinado concurso de arquitectura, nomeadamente, as pessoas que incluam qualquer indicação nos documentos apresentados que permita identificar o autor.

15. Finalmente, depois de ter constatado que a Hackermüller preenchia a condição de exclusão prevista no artigo 8.° , n.° 1, alínea d), do WOA ao indicar o seu nome na rubrica «organização prevista do planeamento geral», de maneira que o seu projecto deveria ter sido excluído por força das disposições conjugadas do artigo 52.° , n.° 1, ponto 8, do BVergG e do artigo 36.° , n.° 4, do WOA, o Bundesvergabeamt concluiu que o projecto de Hanckermüller não podia ser considerado na adjudicação do contrato e, consequentemente, a não ser que pudesse ser lesado por qualquer violação do princípio da melhor proposta e das regras do processo de negociação, Hackermüller carecia de legitimidade para invocar as ilegalidades que alega nos seus pedidos.

16. Em 7 de Julho de 1999, Hackermüller interpôs para o Verfassungsgerichtshof recurso da decisão do Bundesvergabeamt de 31 de Maio de 1999. Na decisão de 14 de Março de 2001 (B 1137/99-9), em que se refere à sua decisão anterior de 8 de Março de 2001 (B 707/00), o Tribunal Constitucional austríaco considerou que, tendo em conta a interpretação lata que há a fazer, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça , da noção de legitimidade para interpor recurso nos termos do artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665, parece duvidoso que as condições de recurso estabelecidas pelas disposições conjugadas dos artigos 115.° , n.° 1, e 52.° , n.° 1, do BVergG possam ser interpretadas de forma a que um proponente não excluído de facto pela entidade adjudicante possa ser excluído do acesso ao processo de recurso por uma decisão da autoridade de recurso que indefere o seu pedido de protecção jurídica quando esta verifica, a título liminar, a existência de fundamentos para a exclusão do concorrente. O Tribunal Constitucional austríaco anulou também a decisão impugnada do Bundesvergabeamt por violação do direito constitucional a um processo perante um órgão jurisdicional legal, obrigando o Bundesvergabeamt, por força do artigo 234.° , terceiro parágrafo, CE, a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão título prejudicial a este respeito.

III - As questões prejudiciais

17. Foi neste contexto que o Bundesvergabeamt decidiu, por despacho de 25 de Junho de 2001, submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) O artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 [...] deve ser interpretado no sentido de que tem legitimidade para interpor recurso qualquer pessoa que tenha interesse em obter a adjudicação de um contrato público?

2) No caso de resposta negativa à primeira questão:

Deve interpretar-se a referida disposição no sentido de que um proponente é lesado ou pode vir a ser lesado - e por isso dispõe do direito de recorrer - em virtude da ilegalidade por ele invocada - no caso vertente, o facto de a entidade adjudicante ter considerado mais vantajosa a proposta apresentada por outro proponente -, mesmo quando, embora a sua proposta não tenha sido eliminada pela entidade adjudicante, a instância de recurso conclui que a sua proposta deveria obrigatoriamente ter sido eliminada pela referida entidade?»

IV - Análise

A - Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

18. A título liminar, há que ter em conta uma questão que foi apreciada pela jurisprudência recente que é a de saber se o Bundesvergabeamt é uma jurisdição no sentido do artigo 234.° CE.

19. Esta questão foi suscitada, designadamente no processo Swoboda, já referido, pela Comissão, no seguimento do despacho de reenvio do Bundesvergabeamt, de 11 de Julho de 2002, no processo Siemens e Arge Telekom & Partner , no qual este teria reconhecido que as sua decisões não contêm «intimações à entidade adjudicante, susceptíveis de execução coerciva» .

20. No acórdão Swoboda, já referido, que dizia respeito a um processo no qual o Bundesvergabeamt exerceu as suas competências no período posterior à adjudicação do contrato, o Tribunal de Justiça considerou-o um órgão jurisdicional no sentido do artigo 234.° CE.

21. O Tribunal de Justiça, com efeito, julgou nos n.os 27 e 28 deste acórdão que:

«[...] o processo principal diz respeito ao período posterior à adjudicação do contrato. Ora, é pacífico que, em direito austríaco, tanto as partes como os órgãos jurisdicionais civis a quem seja apresentado, durante esse período, um pedido de indemnização por perdas e danos estão vinculados, em qualquer caso, pelas conclusões do Bundesvergabeamt.

Nestas condições, a natureza vinculativa da decisão do Bundesvergabeamt no processo principal não pode validamente ser posta em causa.»

22. A questão que agora se coloca é a de saber se esta conclusão também é válida no presente processo no qual o Bundesvergabeamt exerce as suas competências num período anterior à adjudicação do contrato.

23. Em minha opinião, a resposta é inquestionavelmente positiva.

24. De facto, contrariamente ao período posterior à adjudicação do contrato, durante o qual o Bundesvergabeamt é competente, por força do artigo 113.° , n.° 3, do BvergG para «verificar se [...] o contrato não foi adjudicado à melhor proposta [...]», o período precedente a esta atribuição caracteriza-se pelo facto de o Bundesvergabeamt ser competente, por força do artigo 113.° , n.° 2, do BVergG, para «[...] 1) decretar medidas provisórias e 2) anular decisões ilegais tomadas pela entidade adjudicante».

25. Ora, se a competência de «verificar» já é de natureza vinculativa, as competências para decretar medidas provisórias e anular decisões ilegais parecem-me que o são por maioria de razão.

26. O Bundesvergabeamt é, assim, um órgão jurisdicional no sentido do artigo 234.° CE. Neste entendimento, as questões prejudiciais por ele submetidas devem ser consideradas admissíveis.

B - Quanto à primeira questão prejudicial

27. Na primeira questão prejudicial, o Bundesvergabeamt pergunta se se deve interpretar o artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 no sentido de que tem legitimidade para interpor recurso da decisão de um concurso público qualquer pessoa que tenha interesse em obter a adjudicação dum contrato público.

28. Hackermüller propõe que se responda afirmativamente a esta questão, uma vez que, em sua opinião, qualquer pessoa que seja excluída de um processo de adjudicação sofre um prejuízo.

29. Em contrapartida, as recorridas, os Governos austríaco e italiano, assim como a Comissão, propõem que, no essencial, se dê resposta negativa à primeira questão.

30. Subscrevo esta última posição.

31. Com efeito, decorre claramente da redacção do artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 que os processos de recurso devem ser «[...] acessíveis [...] pelo menos a qualquer pessoa que esteja ou tenha estado interessada em obter um determinado contrato de fornecimento público ou de obras públicas e que tenha sido ou possa vir a ser lesada por uma alegada violação» .

32. A Directiva 89/665 permite portanto que os Estados-Membros sujeitem o acesso aos processos de recurso a duas condições cumulativas, a saber 1) o interesse de um concorrente na adjudicação de um contrato público e 2) o facto de ter sido ou poder vir a ser lesado.

33. É, assim, correcto que a Comissão considere que «[o] simples interesse em obter um contrato é, por si só, insuficiente».

34. Esta interpretação é de resto corroborada, como bem o salientou o Governo austríaco, pelos trabalhos preparatórios da Directiva 89/665.

35. Na verdade, enquanto a proposta inicial da Comissão relativa à directiva sobre os recursos, apresentada em 1 de Julho de 1987 , nada previa quanto à qualidade da pessoa habilitada a interpor recurso, a proposta modificada, apresentada em 25 de Novembro de 1988 , referia, no seu artigo 1.° , que o processo de recurso devia ser acessível a «[...] qualquer empresário ou fornecedor participante num processo de adjudicação de contratos públicos de fornecimento ou obras e a todos os terceiros habilitados [...]».

36. Ora, uma vez que esta redacção não foi acolhida na Directiva 89/665, há que inferir que foi uma opção deliberada do Conselho a de permitir aos Estados-Membros a sujeição do acesso aos processos de recurso às duas referidas condições.

37. Proponho pois que se responda à primeira questão prejudicial que o artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que os processos de recurso devem ser acessíveis a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter determinado contrato público desde que, além disso, essa pessoa tenha sido ou possa vir a ser lesada pela alegada violação.

C - Quanto à segunda questão prejudicial

38. Dado que proponho uma resposta negativa à primeira questão prejudicial, cabe-me agora analisar também a segunda. Através desta, o Bundesvergabeamt pergunta se o artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 deve ser entendido no sentido de que um concorrente é lesado ou pode vir a ser lesado - pelo que lhe deve ser permitido recorrer - pela violação que alega, no caso vertente o facto de a entidade adjudicante ter considerado como a melhor proposta a apresentada por um concorrente, mesmo quando, embora a sua proposta não tenha sido eliminada pela entidade adjudicante, o órgão de recurso considera que a proposta do concorrente devia obrigatoriamente ter sido eliminada pela referida entidade.

39. Hackermüller considera que, em caso de resposta negativa à primeira questão, haverá sempre que responder afirmativamente à segunda questão, sob pena de o recurso ser inacessível cada vez que um concorrente seja, por qualquer razão, eliminado pela entidade adjudicante.

40. Em contrapartida, as recorridas, o Governo austríaco e a Comissão propõem que se dê uma resposta negativa. As observações do Governo italiano podem ser interpretadas no sentido de que este governo também propõe responder pela negativa no caso do Bundesvergabeamt poder ser considerado um órgão jurisdicional.

41. Estas intervenientes apoiam-se, quanto a esta matéria, na finalidade do processo de recurso, no efeito útil da Directiva 89/665, assim como no princípio da igualdade de tratamento que impedem que a um requerente possa ser adjudicado o contrato ou atribuída uma indemnização apesar de não ter cumprido as condições do aviso do concurso ou as disposições relativas aos contratos públicos.

42. Importa, em primeiro lugar, verificar que o Bundesvergabeamt, na decisão de 31 de Maio de 1999, considerou que Hackermüller não tinha legitimidade para recorrer, uma vez que a sua proposta deveria, nos termos do artigo 52.° , n.° 1, ponto 8, do BVergG, ter sido excluída na primeira fase do processo .

43. Na sua questão prejudicial, o Bundesvergabeamt pergunta, no essencial, se a Directiva 89/665, e mais concretamente o seu artigo 1.° , n.° 3, se opõe a uma tal regra de direito nacional por si aplicada.

44. Ora, como justamente refere o Governo austríaco nas suas observações escritas, «[...] a directiva sobre os recursos não contém nenhuma disposição relativa aos critérios de apreciação que o órgão competente do processo de recurso deve aplicar. [...] Consequentemente, cabe aos Estados-Membros adoptar as disposições necessárias que devem de maneira inequívoca respeitar os princípios gerais do direito dos contratos públicos tais como o da transparência e o da não discriminação. As mesmas disposições não podem também ser contrárias à finalidade da directiva relativa aos recursos [...]».

45. Neste mesmo sentido, o Tribunal de Justiça julgou, a propósito de matéria não especificamente regulada pela Directiva 89/665 - a saber, a determinação do momento decisivo para efeito de apreciação da legalidade da decisão de anulação de um convite para apresentação de propostas -, que compete à ordem jurídica de cada Estado-Membro definir este momento «[...] desde que as normas nacionais aplicáveis não sejam menos favoráveis do que as respeitantes aos recursos análogos de natureza interna (princípio da equivalência) e não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da eficácia) (v., por analogia, acórdãos de 20 de Setembro de 2001, Banks, C-390/98, Colect., p. I-6117, n.° 121, e Courage e Crehan, C-453/99, Colect., p. I-6297, n.° 29)» .

46. A questão que se coloca é assim a de saber se a referida regra considerada pelo Bundesvergabeamt na decisão de 31 de Maio de 1999 torna ou não na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária .

47. A este propósito, gostaria de me referir a uma consideração suscitada no acórdão do Verfassungsgerichtshof de 8 de Março de 2001 e que é, tal como o Governo austríaco a descreve, a seguinte: «[...] existe uma incerteza quanto à questão de saber se é admitido pelo direito comunitário - como afirma a doutrina - reduzir a protecção jurídica do proponente no processo principal uma vez que não disporia de meios de recurso contra a decisão de exclusão decretada pelo Bundesvergabeamt no lugar da entidade adjudicante» .

48. Se fosse verdade que, por força do critério em questão, o proponente não dispusesse de um meio de recurso de uma decisão como a de exclusão, seria efectivamente da opinião de que este critério se mostra excessivamente difícil para o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária e, mais particularmente, pela Directiva 89/665.

49. Com efeito, não existe dúvida de que uma decisão de exclusão de um proponente constitui uma decisão no sentido do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 89/665, da qual deve ser possível interpor recurso.

50. Segundo jurisprudência constante, a disposição do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 89/665 não prevê qualquer restrição no que diz respeito à natureza e ao conteúdo das decisões a que se refere . Nas suas conclusões de 7 de Fevereiro de 2002 no processo Santex , o advogado-geral S. Alber inferiu que uma decisão de exclusão deve ser considerada uma decisão da qual é possível interpor recurso no sentido da Directiva 89/665 .

51. Mas será correcto afirmar, numa situação como a do processo principal, que «o proponente não dispõe de nenhum meio de recurso contra a decisão de exclusão decretada pelo Bundesvergabeamt no lugar da entidade adjudicante»?

52. Para mim, tudo depende de saber se a instância de recurso chegou à conclusão de que o proponente devia ter sido excluído na sequência de um processo contraditório, ou seja, após lhe ter sido dado a possibilidade de se pronunciar sobre as razões de uma eventual exclusão.

53. Decorre, com efeito, do artigo 2, n.° 8, da Directiva 89/665, segundo o qual «[...] [a] instância independente tomará as suas decisões na sequência de um processo contraditório [...]», que um tal processo constitui uma característica essencial de um processo de recurso no sentido da Directiva 89/665.

54. Ora, a partir do momento em que a instância de recurso chega à conclusão supramencionada na sequência de um processo contraditório, não vejo qualquer diferença relativamente à situação - hipotética - em que a entidade adjudicante tivesse primeiro admitido a proposta de Hackermüller e que um outro proponente, que tivesse tido conhecimento de uma eventual violação por parte de Hackermüller da obrigação de anonimato, tivesse em seguida interposto recurso por violação pela entidade adjudicante das regras aplicáveis aos concursos públicos.

55. Não pode efectivamente contestar-se que, nessa situação hipotética, a instância de recurso pudesse decidir que Hackermüller devia ter sido excluído do processo do concurso público, sem que a entidade adjudicante o tivesse decidido anteriormente.

56. A única diferença entre os dois casos reside, portanto, no facto de, na situação tal como se apresenta no processo principal, a violação das regras de anonimato ter sido apreciada oficiosamente pelo órgão de recurso, enquanto, na situação hipotética, esta violação foi denunciada por uma parte.

57. Ora, nesta perspectiva, partilho da opinião expressa por L. A. Geelhoed nas suas conclusões de 10 de Outubro de 2002 no processo GAT , segundo o qual «[a] Directiva 89/665 [...] não proíbe que o organismo responsável pela apreciação dos processos de recurso [...] suscite oficiosamente, e independentemente dos pedidos das partes, circunstâncias relevantes» .

58. Uma tal conclusão parece-me, aliás, estar de acordo com a finalidade da Directiva 89/665 e com o princípio da igualdade de tratamento entre todos os proponentes.

59. Quanto à finalidade, há que recordar que «[...] o artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 89/665 impõe aos Estados-Membros que prevejam recursos eficazes tão rápidos quanto possível para que seja assegurado o cumprimento das directivas comunitárias em matéria de contratos de direito público» .

60. Ora, parece-me contrário a este objectivo de dispor de recursos eficazes e rápidos que, numa situação como a do caso em apreço, se obrigue a instância a esperar que um problema relativo a uma irregularidade processual, de que ela própria se apercebeu, lhe fosse submetido por uma parte.

61. No que diz respeito ao princípio da igualdade de tratamento entre todos os proponentes, que constitui um princípio que corresponde à própria essência das directivas em matéria de concursos públicos , dele resulta que todos os proponentes têm direito a que a sua proposta, como as de todos os outros, seja tratada com respeito pelas condições constantes do aviso do concurso público bem como pelas regras existentes em matéria de concursos públicos.

62. Assim, a adjudicação não pode ser feita a um proponente se tiver violado as condições do aviso do concurso público ou as regras aplicáveis aos concursos públicos. O facto de neste caso concreto, como referiu na audiência Hackermüller, outros proponentes terem igualmente cometido ilegalidades não tem relevância, pois um proponente, para sustentar que é vítima de uma discriminação, não pode invocar que outros proponentes beneficiam duma ilegalidade.

63. Por outro lado, o facto de a instância de recurso poder conhecer oficiosamente de tal ilegalidade parece mais justificado ainda tendo em conta o princípio da igualdade de tratamento, na medida em que, como bem salienta o Governo austríaco, os proponentes na maior parte das vezes não têm conhecimento de um motivo de exclusão dos seus concorrentes do concurso público.

64. Sou, portanto, da opinião de que uma regra de direito nacional segundo a qual um requerente não tem legitimidade para recorrer por a sua proposta já dever ter sido excluída pela entidade adjudicante não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício de direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária, desde que o requerente tenha podido antes pronunciar-se quanto ao motivo de exclusão alegadamente existente.

65. Em contrapartida, se essa possibilidade de se pronunciar não lhe tiver sido concedida, a decisão da instância de recurso seria de facto equivalente a uma decisão de exclusão sem possibilidade de recurso, o que seria contrário à Directiva 89/665.

66. Consequentemente, proponho que se responda à segunda questão prejudicial que o artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 não se opõe a que um concorrente seja considerado não lesado pela violação que alega, constituída no caso vertente pela decisão da entidade adjudicante que considerou a melhor proposta a apresentada por outro concorrente, se, apesar de a sua proposta não ter sido eliminada pela entidade adjudicante, a instância de recurso verificar no processo de recurso que a proposta do concorrente devia obrigatoriamente ter sido eliminada pela referida entidade, desde que o motivo da exclusão tenha sido objecto de um processo contraditório.

V - Conclusão

67. Face às considerações precedentes proponho que se responda:

- à primeira questão prejudicial:

«O artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos, modificada pela Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que tem legitimidade para interpor recurso da decisão dum concurso público qualquer pessoa que tenha interesse em obter a adjudicação dum contrato público desde que essa pessoa tenha, além disso, sido lesada ou pode vir a ser lesada por uma violação alegada.»

- à segunda questão prejudicial:

«O artigo 1.° , n.° 3, da Directiva 89/665 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras de fornecimentos, modificada pela Directiva 92/50, não se opõe a que um concorrente seja considerado como não lesado pela violação que alega, constituída no caso vertente pela decisão da entidade adjudicante que considerou a melhor proposta a apresentada por outro concorrente, se, apesar de a sua proposta não ter sido eliminada pela entidade adjudicante, a instância de recurso verificar no processo de recurso que a proposta do concorrente devia obrigatoriamente ter sido eliminada pela referida entidade, desde que o motivo da exclusão tenha sido objecto de um processo contraditório.»