CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 25 de Setembro de 2003(1)



Processo C-194/01



Comissão das Comunidades Europeias
contra
República da Áustria


«Incumprimento de Estado – Ambiente – Directiva 75/442/CEE – Catálogo europeu de resíduos – Directiva 91/689/CEE – Lista europeia de resíduos perigosos – Transposição – Listas nacionais – Exclusão – Meio de defesa – Contestação da legalidade dos catálogos comunitários – Inadmissibilidade»






1.        Pela presente acção, intentada nos termos do artigo 226.° CE, a Comissão das Comunidades Europeias pretende obter a declaração de que a República da Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos seguintes textos:

Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975, relativa aos resíduos  (2) , na redacção dada pela Directiva 91/156/CEE, de 18 de Março de 1991  (3) (a seguir «Directiva 75/442 alterada»);

Decisão 94/3/CE da Comissão, de 20 de Dezembro de 1993, que estabelece uma lista de resíduos em conformidade com a alínea a) do artigo 1.° da Directiva 75/442  (4) (a seguir «catálogo europeu de resíduos» ou «CER»);

Directiva 91/689/CEE do Conselho, de 12 de Dezembro de 1991, relativa aos resíduos perigosos  (5) , na redacção dada pela Directiva 94/31/CE do Conselho, de 27 de Junho de 1994  (6) (a seguir «Directiva 91/689 alterada»), e

Decisão 94/904/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece uma lista de resíduos perigosos em aplicação do n.° 4 do artigo 1.° da Directiva 91/689  (7) (a seguir «lista de resíduos perigosos» ou «LRP»).

2.        A Comissão considera que as autoridades austríacas não adoptaram as medidas necessárias para dar cumprimento ao catálogo europeu de resíduos, à lista de resíduos perigosos e aos anexos I e II da Directiva 91/689 alterada.

I – Enquadramento jurídico

A – A legislação comunitária

3.        A Directiva 75/442 alterada estabelece as regras comunitárias relativas à gestão e eliminação de resíduos  (8) . Tem por objectivo essencial a protecção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos  (9) .

4.        O artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442 alterada estabelece a noção de resíduo. Dispõe:

«Na acepção da presente directiva, entende‑se por [...] resíduo: quaisquer substâncias ou objectos abrangidos pelas categorias fixadas no Anexo I de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer.

A Comissão, de acordo com o procedimento previsto no artigo 18.°, elaborará, o mais tardar em 1 de Abril de 1993, uma lista dos resíduos pertencentes às categorias constantes do Anexo I. Essa lista será reanalisada periodicamente e, se necessário, revista de acordo com o mesmo procedimento».

5.        O artigo 18.° da Directiva 75/442 alterada dispõe:

«A Comissão será assistida por um comité composto por representantes dos Estados‑Membros e presidida pelo representante da Comissão.

O representante da Comissão submete à apreciação do comité um projecto de medidas a tomar. O comité emite o seu parecer sobre esse projecto num prazo que o presidente pode fixar em função da urgência da questão em causa. O parecer é emitido por maioria, nos termos previstos no n.° 2 do artigo 148.° do Tratado, para a adopção das decisões que o Conselho é chamado a tomar sob proposta da Comissão. [...]

A Comissão adopta as medidas projectadas desde que sejam conformes com o parecer do comité.

Se as medidas projectadas não forem conformes com o parecer do comité, ou na ausência de parecer, a Comissão submeterá sem demora ao Conselho uma proposta relativa às medidas a tomar. O Conselho delibera por maioria qualificada.

[...]»

6.        A Comissão estabeleceu, através da Decisão 94/3, isto é, o CER, a lista prevista no artigo 1.°, alínea a), da Directiva 75/442 alterada. O n.° 5 da nota introdutória do anexo I dessa decisão estabelece que «[o] Catálogo Europeu de Resíduos pretende ser uma nomenclatura de referência, capaz de fornecer uma terminologia comum válida em toda a Comunidade, e tem por objectivo melhorar a eficácia das diversas actividades de gestão de resíduos».

7.        A Directiva 91/689 alterada, por sua vez, estabelece normas específicas relativas à gestão dos resíduos perigosos. Tem por objectivo melhorar as condições em que os resíduos perigosos são geridos e eliminados  (10) . O quinto considerando deste texto especifica que, «para tornar mais eficaz a gestão dos resíduos perigosos na Comunidade, é necessário dispor de uma definição clara e uniforme de resíduos perigosos [...]».

8.        O artigo 1.°, n.° 4, da Directiva 91/689 alterada define a noção de resíduos perigosos do seguinte modo:

«Para efeitos da presente directiva, entende‑se por ‘resíduos perigosos’:

os resíduos constantes de uma lista a elaborar, de acordo com o procedimento estabelecido no artigo 18.° da Directiva 75/442/CEE e com base nos seus anexos I e II, o mais tardar seis meses antes do início da aplicação da presente directiva. Estes resíduos deverão possuir uma ou mais das características definidas no anexo III. [...]

quaisquer outros resíduos que um Estado‑Membro considerar possuírem pelo menos uma das características referidas no anexo III. Estes casos deverão ser notificados à Comissão e analisados de acordo com o procedimento estabelecido no artigo 18.° da Directiva 75/442/CEE, tendo em vista a sua inclusão na lista».

9.        A lista de resíduos perigosos foi adoptada pelo Conselho através da Decisão 94/904, isto é, a LRP. De acordo com o n.° 1 da introdução do anexo desta decisão, os diferentes tipos de resíduos incluídos na LRP são totalmente definidos por um código de seis dígitos.

B – O direito austríaco

10.      Em direito austríaco, a legislação geral relativa à gestão dos resíduos consta da Bundesgesetz über die Vermeidung und Behandlung von Abfällen (Abfallwirtschaftsgesetz), de 6 de Junho de 1990  (11) (lei federal relativa à prevenção e ao tratamento dos resíduos)  (12) .

11.      De acordo com o § 2, n.° 5, desta lei, na versão publicada em 1998  (13) , incumbe ao Ministro do Ambiente, da Juventude e da Família determinar quais os resíduos que devem ser considerados perigosos. A mesma disposição especifica que, para este efeito, o ministro competente pode proferir certas «ÖNORMEN» obrigatórias. As «ÖNORMEN» são normas adoptadas pelo instituto de normalização austríaco.

12.      O catálogo austríaco de resíduos consta da ÖNORM S 2100, de 1 de Setembro de 1997  (14) . Este texto, que não é vinculativo enquanto tal, contém a lista dos resíduos ordinários e a lista dos resíduos perigosos. É dado assente que a ÖNORM S 2100 classifica estes resíduos segundo um método diferente do utilizado pelo CER e pela LRP.

13.      Em Agosto de 1997, o Ministro do Ambiente, da Juventude e da Família adoptou o Verordnung über die Festsetzung von gefährlichen Abfällen und Problemstoffen (Festsetzunggsverordnung 1997)  (15) (decreto relativo à determinação dos resíduos perigosos e das substâncias perigosas, a seguir «decreto de 1997»).

14.      O § 3, n.° 1, deste decreto dispunha que os resíduos que fazem parte da ÖNORM S 2100 e eram referidos no anexo I (do referido decreto) deviam ser considerados perigosos. No entanto, o § 3, n.° 2, do decreto de 1997 previa uma alteração desta lista a partir de 1 de Julho de 2000. Dispunha:

«A partir de 1 de Julho de 2000, são consideradas perigosos os resíduos referidos pela [LRP]. O Ministério do Ambiente, da Juventude e da Família publicará esta lista no Bundesgesetzblatt até 1 de Julho de 2000».

15.      Em 30 de Junho de 2000, ou seja, na véspera da entrada em vigor desta disposição, o Ministro da Agricultura, das Florestas, do Ambiente e das Águas adoptou o Verordnung mit der die Festsetzungsverordnung 1997 geändert wird  (16) (decreto que altera o decreto de 1997, a seguir «decreto de 2000»). Este decreto revogou o § 3, n.° 2, do decreto de 1997 e introduziu uma disposição segundo a qual o decreto de 1997, assim modificado, assegurava a transposição da Directiva 91/689 alterada e da LRP.

II – Fase pré‑contenciosa

16.      Por considerar que a legislação austríaca não assegurava uma transposição correcta do CER, da LRP e das Directivas 91/689 alterada e 75/442 alterada, a Comissão enviou às autoridades austríacas, em 14 de Julho de 1999, uma notificação de incumprimento.

17.      Na sua resposta de 8 de Outubro de 1999, o Governo austríaco argumentou, designadamente, que o CER, a LRP e os anexos I e II da Directiva 91/689 alterada tinham sido correctamente transpostos pela ÖNORM S 2100 e pelo decreto de 1997. As autoridades austríacas reiteraram esta tese numa carta de 2 de Novembro de 2000, em resposta ao parecer fundamentado da Comissão, de 27 de Julho de 2000.

18.      A Comissão intentou a presente acção em 4 de Maio de 2001.

III – Pedidos e fundamentos das partes

19.      No âmbito desta acção, a Comissão invoca três fundamentos contra as autoridades austríacas  (17) .

20.      Em primeiro lugar, a Comissão acusa as autoridades austríacas de não terem transposto o CER para a sua ordem jurídica interna. Sublinha que, por força do artigo 249.°, quarto parágrafo, CE, a decisão que estabelece o CER é obrigatória para os destinatários que designa, isto é, os Estados‑Membros. Recorda igualmente que, de acordo com o n.° 5 da sua nota introdutória, o CER se destina a estabelecer uma nomenclatura e uma terminologia comuns dos resíduos, válidas em toda a Comunidade. É, pois, indispensável aplicar o CER no plano nacional para assegurar a eficácia da política comunitária dos resíduos.

21.      Em segundo lugar, a Comissão considera que as autoridades austríacas não transpuseram correctamente a LRP para a sua ordem jurídica interna. Alega que a LRP faz parte integrante da definição de «resíduo perigoso» na acepção da Directiva 91/689 alterada e que, de acordo com o quinto considerando deste diploma, é necessário dispor de uma definição clara e uniforme da noção de «resíduos perigosos» na Comunidade. As medidas nacionais que asseguram a transposição da LRP devem, pois, seguir fielmente o sistema estabelecido no quadro comunitário.

22.      Ora, sublinha a Comissão, a LRP nunca foi utilizada em direito austríaco. Com efeito, o § 3, n.° 2, do decreto de 1997, que previa o recurso à LRP a partir de 1 de Julho de 2000, foi revogado na véspera da sua entrada em vigor pelo decreto de 2000.

23.      Em terceiro lugar, a Comissão acusa as autoridades austríacas de não terem transposto os anexos I e II da Directiva 91/689 alterada. Alega que os Estados‑Membros têm a obrigação de transpor integralmente a Directiva 91/689 alterada, incluindo os anexos controversos.

24.      A República da Áustria contesta estas diferentes acusações.

25.      Quanto ao primeiro fundamento, o Governo austríaco argumenta que não é necessário transpor o CER para a ordem jurídica interna. Em seu entender, este diploma não tem carácter vinculativo nem faz parte da noção de «resíduo» na acepção da Directiva 75/442 alterada. Em quaisquer circunstâncias, o Governo austríaco sublinha que todos os resíduos citados pelo CER fazem parte da ÖNORM S 2100, de modo que o CER foi efectivamente transposto. A este respeito, o Governo austríaco refere que a lista nacional de resíduos (a ÖNORM S 2100) é mais detalhada e eficaz do que o CER na medida em que classifica os resíduos em função das suas características e não da sua origem.

26.      Quanto ao segundo fundamento, o Governo austríaco sublinha que o direito comunitário não lhe exige que transponha literalmente a LRP. Recorda que, nos termos do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE, as directivas vinculam os Estados‑Membros quanto ao resultado a alcançar, mas não quanto à forma e aos meios. Ora, no presente caso, o resultado prescrito pela Directiva 91/689 alterada estava alcançado, dado que a ÖNORM S 2100 e o decreto de 1997 transpuseram a LRP, na sua substância.

27.      O Governo austríaco explica igualmente que o § 3, n.° 2, do decreto de 1997 tinha por objectivo abandonar a classificação austríaca (prevista pelo § 3, n.° 1, e pelo anexo I do referido decreto) para passar à nomenclatura comunitária (a LRP). Esta disposição foi, no entanto, revogada em 2000 porque as autoridades austríacas consideravam insatisfatórios os progressos realizados na revisão da LRP.

28.      Com efeito, o Governo austríaco considera que a lista austríaca dos resíduos perigosos é mais precisa, mais severa e mais apropriada do que a LRP na medida em que classifica os resíduos em função das suas características e não da sua origem. Segundo o Governo austríaco, retomar a LRP, no seu estado actual, implicaria uma séria deterioração dos padrões ecológicos na Áustria. Além disso, a lista austríaca dos resíduos não constitui qualquer risco para o funcionamento do mercado interno visto que as autoridades austríacas asseguram a coordenação entre os códigos (de resíduos) utilizados ao nível nacional e os códigos utilizados ao nível comunitário.

29.      Finalmente, quanto ao terceiro fundamento, o Governo austríaco considera que os anexos I e II da Directiva 91/689 alterada não devem ser transpostos para a ordem jurídica interna. Em seu entender, estes anexos destinavam‑se a ser utilizados no âmbito do processo de estabelecimento da LRP, mas não tinham de ser integrados na legislação interna dos Estados‑Membros.

30.      O Governo austríaco pede, pois, ao Tribunal de Justiça que declare a acção improcedente e condene a Comissão nas despesas.

IV – Apreciação

31.      Os dois primeiros fundamentos invocados pela Comissão suscitam questões idênticas, que se prendem com a margem de manobra de que dispõem os Estados‑Membros para se adaptarem ao CER e à LRP e com a legalidade dos catálogos comunitários. Serão portanto examinados em conjunto antes de abordar o terceiro fundamento, relativo à não transposição dos anexos I e II da Directiva 91/689 alterada.

A – Quanto aos dois primeiros fundamentos (não execução do CER e da LRP)

32.      No caso vertente, é dado assente que os catálogos austríacos dos resíduos não correspondem ao CER e à LRP. A ÖNORM S 2100 e o decreto de 1997 classificam os resíduos em função das suas características e composição, enquanto os catálogos comunitários os classificam em função da sua origem  (18) . Portanto, as listas austríacas afastam‑se da nomenclatura e da classificação adoptadas ao nível comunitário.

33.      Em meu entender, a procedência dos dois primeiros fundamentos decorre da natureza dos actos em causa.

34.      Importa sublinhar que, no presente caso, estes fundamentos não respeitam à não transposição de uma directiva comunitária. A Comissão pretende que seja declarado que as autoridades austríacas não executaram correctamente «decisões» na acepção do artigo 249.°, quarto parágrafo, CE. De facto, é sabido que o CER e a LRP são decisões (da Comissão e do Conselho) que foram dirigidas aos Estados‑Membros.

35.      Ora, nos termos do artigo 249.°, quarto parágrafo, CE, a decisão é «obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar». Diversamente da directiva, que só vincula quanto ao resultado a alcançar  (19) , a decisão impõe‑se na totalidade das suas disposições. Por conseguinte, proíbe qualquer aplicação incompleta ou selectiva  (20) , de modo que os Estados‑Membros dela destinatários devem adoptá‑la integralmente. Os Estados‑Membros conservam unicamente a possibilidade de escolher a forma jurídica da aplicação da decisão na ordem jurídica interna  (21) .

36.      Daí resulta, contrariamente ao que alega a República da Áustria, que os Estados‑Membros não dispunham de qualquer margem de manobra na aplicação do CER e da LRP.

37.      A este respeito, recorde‑se que, nos termos da jurisprudência, o Tribunal de Justiça pode proceder à requalificação de um acto comunitário. Com efeito, o Tribunal considera que a verdadeira natureza de um acto não pode resultar apenas da qualificação que lhe foi dada pelo seu autor  (22) ou das suas regras de adopção  (23) . Assim, se as disposições de um regulamento não têm carácter geral, o Tribunal considera que estas disposições devem ser analisadas como um conjunto de decisões individuais  (24) . Igualmente, uma decisão que produza efeitos jurídicos relativamente a uma categoria de pessoas considerada de modo abstracto e geral deve, apesar da sua denominação de «decisão», ser qualificada como um acto de alcance geral  (25) . Finalmente, o Tribunal de Justiça pode verificar que uma directiva, na acepção do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE, não contém qualquer disposição específica com a natureza de decisão individual  (26) .

38.      No presente caso, o Governo austríaco não contesta que o CER e a LRP constituem verdadeiras decisões. Em nenhum momento do processo avançou a tese segundo a qual a qualificação dos actos objecto de litígio era errónea.

39.      De qualquer modo, penso que o CER e a LRP não apresentam as características de uma «directiva» na acepção do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE.

40.      Por um lado, cabe sublinhar que a decisão de adoptar o CER e a LRP sob a forma de decisões é uma opção deliberada do legislador comunitário. Com efeito, é sabido que, inicialmente, a Directiva 75/442 não previa o estabelecimento de uma lista comunitária de resíduos. O artigo 1, alínea a), deste diploma limitava‑se a definir a noção de resíduo como «qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a obrigação de se desfazer». No entanto, aquando da alteração da Directiva 75/442, em 1991, o Conselho entendeu que era «necessário dispor de uma terminologia comum e de uma definição de resíduos»  (27) . O CER foi, pois, adoptado com o objectivo de «ser uma nomenclatura de referência, capaz de fornecer uma terminologia comum válida em toda a Comunidade»  (28) .

41.      Do mesmo modo, o quinto considerando da Directiva 91/689 alterada refere que «para tornar mais eficaz a gestão dos resíduos perigosos na Comunidade, é necessário dispor de uma definição clara e uniforme de resíduos perigosos». A LRP teve, pois, também por objectivo fornecer uma definição uniforme da noção de resíduos perigosos na Comunidade.

42.      Nestas condições, é evidente que o legislador comunitário não podia adoptar o CER e a LRP sob a forma de directivas. Deixar aos Estados‑Membros uma certa liberdade quanto à forma e aos meios teria sido manifestamente contrário aos objectivos dos catálogos comunitários, que visam estabelecer uma definição e uma nomenclatura uniforme dos resíduos (perigosos) na Comunidade. Ao recorrer à decisão, o legislador comunitário optou, portanto, deliberadamente por suprimir a margem de manobra dos Estados‑Membros neste domínio.

43.      Por outro lado, a análise do conteúdo dos catálogos comunitários confirma que estes constituem verdadeiras «decisões» na acepção do artigo 249.° CE. O CER e a LRP enunciam de maneira precisa e detalhada as diferentes categorias de resíduos. Além disso, classificam‑nos segundo uma orem e um método determinados, que se baseiam essencialmente na origem dos resíduos.

44.      Em consequência, penso que a República da Áustria não dispunha de qualquer margem de manobra na execução do CER e da LRP. Ela tinha a obrigação de aplicar integral e fielmente os catálogos comunitários na ordem jurídica interna.

45.      Esta conclusão é aliás confirmada pelo acórdão de 15 de Janeiro de 2002, Comissão/Luxemburgo  (29) . Neste processo, o Tribunal de Justiça considerou que o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbem visto ter adoptado uma nomenclatura puramente luxemburguesa dos resíduos, diferente do CER.

46.      A República da Áustria, no entanto, contesta esta conclusão, pondo em causa a pertinência dos catálogos comunitários. Apresentou numerosos argumentos para demonstrar que as listas austríacas são mais precisas, mais severas e mais eficazes do que os catálogos comunitários.

47.      No plano jurídico, penso que esta tese não pode ter acolhimento.

48.      Com efeito, segundo jurisprudência constante, o sistema de vias processuais estabelecido pelo Tratado distingue as acções referidas nos artigos 226.° CE e 227.° CE, que têm como objecto a declaração de que um Estado‑Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem, e os recursos e acções previstos nos artigos 230.° CE e 232.° CE, que visam fiscalizar a legalidade dos actos ou omissões das instituições comunitárias. Estas vias processuais têm em vista objectivos distintos e estão sujeitas a regras diferentes. Um Estado‑Membro não poderá, portanto, invocar a ilegalidade de uma directiva como defesa contra uma acção por incumprimento fundada na falta de transposição dessa directiva  (30) . Não pode também invocar a ilegalidade de uma decisão de que é destinatário como meio de defesa contra uma acção por incumprimento fundado na não execução dessa decisão  (31) . O Tribunal de Justiça considerou que só poderia ser de outro modo se o acto em causa estivesse afectado por vícios particularmente graves e evidentes, a ponto de poder ser qualificado de acto inexistente  (32) .

49.      Esta jurisprudência baseia‑se no princípio segundo o qual uma decisão ou directiva adoptada pelas instituições comunitárias que não tenha sido impugnada pelo seu destinatário no prazo previsto pelo artigo 230.° CE se torna, em relação a ele, definitiva  (33) .

50.     É certo que, no presente caso, vimos que o CER e a LRP foram adoptados antes da adesão da República da Áustria à União Europeia. As autoridades austríacas não tiveram portanto a possibilidade de impugnar a validade dos catálogos comunitários, nos termos do artigo 230.° CE.

51.      No entanto, esta circunstância não significa que os fundamentos de defesa invocados pela República da Áustria devam ser acolhidos.

52.      Com efeito, o artigo 2.° do Acto relativo à adesão da República da Áustria à União Europeia  (34) refere que, «[a] partir da adesão, as disposições dos Tratados originários e os actos adoptados pelas instituições antes da adesão vinculam os novos Estados‑Membros e são aplicáveis nestes Estados nos termos desses Tratados e do presente Acto». Além disso, o artigo 10.° do Acto de Adesão dispõe que «[a] aplicação dos Tratados originários e dos actos adoptados pelas instituições fica sujeita, a título transitório, às disposições derrogatórias previstas no presente Acto».

53.      Daí resulta que o Acto de Adesão se baseia no princípio da aplicação imediata e integral das disposições do direito comunitário aos novos Estados‑Membros e que só podem ser admitidas derrogações a este princípio na medida em que estejam expressamente previstas pelas disposições transitórias do referido acto  (35) .

54.      No que respeita às directivas e decisões adoptadas pelas instituições comunitárias, o artigo 168.° do Acto de Adesão dispõe, aliás, que «[o]s novos Estados‑Membros porão em vigor as medidas necessárias para dar cumprimento, a partir da adesão, ao disposto nas directivas e decisões, na acepção do artigo 189.° do Tratado CE [actual artigo 249.° CE] (...), a menos que seja fixado um prazo na lista do Anexo XIX, ou noutras disposições do presente Acto».

55.      Ora, no caso em apreço, é certo que nenhuma disposição do Acto de Adesão permite que a República da Áustria derrogue as obrigações constantes do CER ou da LRP. O Acto de Adesão também não lhe permite derrogar as obrigações impostas pela Directiva 75/442 alterada ou pela Directiva 91/689 alterada.

56.      Consequentemente, penso que o Governo austríaco não pode validamente pôr em causa a legalidade do CER e da LRP no âmbito da presente acção. Estes actos fazem parte integrante do acervo comunitário, de modo que a República da Áustria tem a obrigação de os aplicar integralmente  (36) .

57.      Na audiência, o Tribunal de Justiça também colocou a questão da coexistência das listas na ordem jurídica interna. Perguntou à Comissão se, segundo ela, a execução correcta do CER e da LRP implica que a República da Áustria revogue as listas nacionais ou se, pelo contrário, este Estado‑Membro pode continuar a aplicar estas listas paralelamente aos catálogos comunitários.

58.      Pelo meu lado, penso que a República da Áustria não pode ser autorizada a aplicar simultaneamente as duas categorias de listas. Com efeito, resulta de jurisprudência constante que os Estados‑Membros devem executar as suas obrigações decorrentes do direito comunitário com a especificidade, a precisão e a clareza necessárias, a fim de satisfazer as exigências decorrentes do princípio da segurança jurídica  (37) . A este respeito, pouco importa que as disposições comunitárias em causa sejam directamente aplicáveis e que os particulares tenham assim a possibilidade de as invocar directamente contra um Estado‑Membro inadimplente  (38) .

59.      Ora, a aplicação simultânea das listas comunitárias e nacionais, que se baseiam em métodos de classificação diferentes, será inevitavelmente susceptível de criar uma situação de confusão e de incerteza quanto ao direito aplicável. As pessoas afectadas, bem como as autoridades competentes deixarão de ter a possibilidade de determinar com exactidão se devem aplicar os catálogos comunitários ou as listas nacionais.

60.      Além disso, recorde‑se que, no acórdão Comissão/Luxemburgo, já referido, o Tribunal de Justiça já excluiu que um Estado‑Membro possa aplicar simultaneamente duas categorias de listas. Neste processo, o Tribunal entendeu que o Grão‑Ducado do Luxemburgo não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam, ao introduzir, em simultâneo com o CER, uma lista puramente luxemburguesa de resíduos, diferente do CER.

61.      Nestas condições, penso que os dois primeiros fundamentos invocados pela Comissão devem ser acolhidos. Proponho, pois, ao Tribunal de Justiça que decida que, ao não adoptar as medidas necessárias para dar cumprimento ao CER e à LRP, a República da Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 249.°, quarto parágrafo, CE e das referidas decisões.

B – Quanto ao terceiro fundamento (não transposição dos anexos I e II da Directiva 91/689 alterada)

62.      Com o terceiro fundamento, a Comissão acusa as autoridades austríacas de não terem transposto os anexos I e II da Directiva 91/689 alterada. Estes anexos são referidos no artigo 1.°, n.° 4, da Directiva 91/689 alterada  (39) e enumeram as categorias de resíduos perigosos caracterizados pela sua natureza ou pela actividade que os produziu (anexo I), bem como os constituintes que tornam os resíduos do anexo I B perigosos, quando estes possuem as características enumeradas no anexo III (anexo II).

63.      O Governo austríaco não contesta que estes dois anexos não foram transpostos para a ordem jurídica interna. Alega que os mesmos se destinavam a ser utilizados no âmbito do processo de estabelecimento da LRP, mas não tinham de ser integrados na legislação interna dos Estados‑Membros.

64.      Em meu entender, esta tese não assenta em qualquer fundamento jurídico. Com efeito, nem a Directiva 91/689 alterada nem o Acto de Adesão contêm qualquer disposição que exclua os anexos I e II da obrigação de transposição com o fundamento de que se integram no processo de estabelecimento da LRP. Pelo contrário, a meu ver, fazem parte integrante da Directiva 91/689 alterada e devem ser transpostos em conformidade com o artigo 10.° da referida directiva e o artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE.

65.      Em consequência, entendo que o terceiro fundamento da Comissão também é procedente.

V – Conclusão

66.      Com base nas considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça dê provimento à acção da Comissão e declare o seguinte:

«1)
Ao não adoptar as medidas legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para assegurar a execução das Decisões 94/3/CE da Comissão, de 20 de Dezembro de 1993, que estabelece uma lista de resíduos em conformidade com a alínea a) do artigo 1.° da Directiva 75/442/CEE e 94/904/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece uma lista de resíduos perigosos em aplicação do n.° 4 do artigo 1.° da Directiva 91/689/CEE, relativa aos resíduos perigosos, bem como a transposição dos anexos I e II da Directiva 91/689/CEE do Conselho, de 12 de Dezembro de 1991, relativa aos resíduos perigosos, na redacção dada pela Directiva 94/31/CE do Conselho, de 27 de Junho de 1994, a República da Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 249.°, terceiro e quarto parágrafos, CE e das decisões e directivas já referidas.

2)
A República da Áustria é condenada nas despesas.»


1
Língua original: francês.


2
JO L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129.


3
JO L 78, p. 32.


4
JO 1994, L 5, p. 15.


5
JO L 377, p. 20.


6
JO L 168, p. 28.


7
JO L 356, p. 14.


8
Primeiro considerando.


9
Terceiro considerando.


10
Segundo e quarto considerandos.


11
BGBl. 1990/325.


12
Esta legislação foi substituída em 2002 pela Bundesgesetz, mit dem ein Bundesgesetz über eine nachhaltige Abfallwirtschaft (Abfallwirtschaftsgesetz 2002) erlassen (BGBl. 2002/102) (lei federal relativa à gestão duradoura dos resíduos). Este novo texto não é, contudo, pertinente para a apreciação do litígio visto que é posterior ao termo do prazo fixado pelo parecer fundamentado.


13
BGBl. 1998/151.


14
Este texto foi transmitido pelas autoridades austríacas ao Tribunal de Justiça por carta de 4 de Abril de 2003.


15
BGBl. 1997/227.


16
BGBl. 2000/178.


17
Inicialmente, a Comissão formulava igualmente outros fundamentos contra a República da Áustria. Acusava‑a de ter excluído certas substâncias do âmbito de aplicação da Directiva 75/442 alterada e de não ter transposto o anexo I desta directiva. No entanto, na audiência, desistiu expressamente deles, de modo que as presentes conclusões podem ser limitadas aos três fundamentos mantidos pela Comissão.


18
Na audiência, o Governo austríaco ilustrou esta diferença referindo‑se à categoria 30103 do CER, que abrange «aparas, fitas de aplainamento, resto de madeiras, de aglomerados e de folheados». Explicou que, devido ao seu carácter geral, esta categoria podia incluir simultaneamente resíduos de madeira tratada mecanicamente e resíduos de madeira tratada quimicamente. No sistema comunitário, estes dois tipos de resíduos entram na mesma categoria visto que a sua origem é idêntica (resíduos de madeira). Inversamente, no sistema austríaco, os dois tipos de resíduos entram em categorias distintas visto que as suas características e composição são diferentes.


19
Artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE.


20
V., quanto ao regulamento, que é igualmente «obrigatório em todos os seus elementos», acórdão de 7 de Fevereiro de 1973, Comissão/Itália (39/72, Colect., p. 39, n.° 20).


21
Isaac, G. e Blanquet, M., Droit communautaire général, 8ª ed., Armand Colin, Dalloz, Paris, 2001, p. 146. Sobre as características dos diversos actos comunitários; v. igualmente Louis, J.‑V., Vandersanden, G., Waelbroeck, D. e Waelbroeck, M., Commentaire J. Megret, Le droit de la CEE, volume 10, La Cour de justice, les actes des institutions, 2.a ed., Universidade de Bruxelas, Bruxelas, 1993, pp. 479 e segs.; Van Raepenbusch, S., Droit institutionnel de l’Union et des Communautés européennes, 3.a ed., Universidade De Boeck, Bruxelas, 2001, pp. 293 e segs.; bem como Hartley, T., The Foundations of European Community Law, 4.a ed., Oxford University Press, Nova Iorque, 1998, pp. 99 e segs.


22
V., designadamente, acórdãos de 14 de Dezembro de 1962, Confédération nationale des producteurs de fruits et légumes e o./Conselho (16/62 e 17/62, Colect. 1962‑1964, p. 175), e de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, Colect., p. 69, n.os 38 e segs.).


23
V., designadamente, acórdão de 6 de Outubro de 1982, Alusuisse Italia/Conselho e Comissão (307/81, Recueil, p. 3463, n.° 13).


24
Acórdão de 13 de Maio de 1971, International Fruit Company e o/Comissão (41/70 a 44/70, Colect., p. 131, n.os 16 a 21).


25
Acórdão do Tribunal de Primeira Instância, de 27 de Junho de 2001, Andres de Dios e o./Conselho (T‑166/99, Colect., p. II‑1857, n.os 35 a 44).


26
Despacho de 23 de Novembro de 1995, Asocarne/Conselho (C‑10/95 P, Colect., p. I‑4149, n.os 28 a 31).


27
Directiva 91/156 (terceiro considerando).


28
Nota introdutória do anexo do CER (n.° 5).


29
C‑196/01, Colect. p. I‑569.


30
V., designadamente, acórdãos de 27 de Outubro de 1992, Comissão/Alemanha (C‑74/91, Colect., p. I‑5437. n.° 10); de 25 de Abril de 2002, Comissão/França (C‑52/00, Colect., p. I‑3827, n.° 28); e de 25 de Abril de 2002, Comissão/Grécia (C‑154/00, Colect., p. I‑3879, n.° 28).


31
V., designadamente, acórdãos de 30 de Abril de 1988, Comissão/Grécia (226/87, Colect., p. 3611, n.os 13 e 14); de 10 de Junho de 1993, Comissão/Grécia (C‑183/91, Colect., p. I‑3131, n.° 10); de 27 de Junho de 2000, Comissão/Portugal (C‑404/97, Colect., p. I‑4897, n.os 34 e 35); de 22 de Março de 2001, Comissão/França (C‑261/99, Colect., p. I‑2537, n.os 18 e 19); e de 13 de Dezembro de 2001, Comissão/França (C‑1/00, Colect., p. I‑9989, n.° 101).


32
V., designadamente, acórdãos de 30 de Junho de 1988, Comissão/Grécia, já referido, (n.os 15 e 16), e Comissão/Alemanha, já referido, (n.° 11).


33
V., como exemplo recente duma jurisprudência constante, acórdão de 22 de Outubro de 2002, National Farmers’ Union (C‑241/01, Colect., p. I‑9079, n.° 34, e jurisprudência citada).


34
Acto relativo às condições de adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 1994, C 241, p. 21), na redacção dada pela Decisão 95/1/CE, Euratom, CECA, do Conselho da União Europeia, de 1 de Janeiro de 1995, que adapta os instrumentos relativos à adesão de novos Estados‑Membros à União Europeia (JO L 1, p. 1, a seguir «Acto de Adesão»).


35
V., por analogia, acórdão de 9 de Dezembro de 1982, Metallurgiki Halyps/Comissão (258/81, Recueil, p. 4261, n.os 7 e 8).


36
V. neste sentido, num outro contexto, acórdãos de 16 de Fevereiro de 1982, Halyvourgiki e Helleniki Halyvourgia/Comissão (39/81, 43/81, 85/81 e 88/81, Recueil, p. 593, n.os 9 a 12); Metallurgiki Halyps/Comissão, já referido (n.os 3 a 14); e de 13 de Outubro de 1992, Portugal e Espanha/Conselho (C‑63/90 e C‑67/90, Colect., p. I‑5073, n.os 31 a 34).


37
V., designadamente, acórdãos de 19 de Maio de 1999, Comissão/França (C‑225/97, Colect., p. I‑3011, n.° 37); de 17 de Maio de 2001, Comissão/Itália (C‑159/99, Colect., p. I‑4007, n.° 32); e de 20 de Junho de 2002, Mulligan e o. (C‑313/99, Colect., p. I‑5719, n.° 47).


38
V., designadamente, acórdãos de 25 de Julho de 1991, Emmott (C‑208/90, Colect., p. I‑4269, n.os 20 e 21), e de 18 de Janeiro de 2001, Comissão/Itália (C‑162/99, Colect., p. I‑541, n.° 22).


39
V. n.° 8 das presentes conclusões.