62000J0060

Acórdão do Tribunal de 11 de Julho de 2002. - Mary Carpenter contra Secretary of State for the Home Department. - Pedido de decisão prejudicial: Immigration Appeal Tribunal - Reino Unido. - Livre prestação de serviços - Artigo 49.º CE - Directiva 73/148/CEE - Nacional de um Estado-Membro estabelecido nesse Estado e que presta serviços a pessoas estabelecidas noutros Estados-Membros - Direito de residência no referido Estado do cônjuge nacional de um país terceiro. - Processo C-60/00.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-06279


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Livre prestação de serviços - Disposições do Tratado - Inaplicabilidade numa situação puramente interna de um Estado-Membro

(Artigo 49.° CE)

2. Livre prestação de serviços - Disposições do Tratado - Âmbito de aplicação - Serviços prestados por telefone a destinatários estabelecidos noutros Estados-Membros - Inclusão - Possibilidade de o prestador invocar as disposições do Tratado em relação ao Estado-Membro de estabelecimento

(Artigo 49.° CE)

3. Livre prestação de serviços - Restrições justificadas por razões de interesse geral - Admissibilidade sujeita ao respeito dos direitos fundamentais - Observância garantida pelo juiz comunitário - Tomada em consideração da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Direito ao respeito da vida familiar - Decisão de expulsão de uma pessoa de um país onde vivem os seus familiares chegados

(Artigo 49.° CE; Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 8.° )

4. Livre prestação de serviços - Restrições - Nacional de um Estado-Membro estabelecido neste Estado e que presta serviços noutros Estados-Membros - Recusa de permanência do cônjuge, nacional de um país terceiro - Medida que constitui uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar garantido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Inadmissibilidade - Critério

(Artigo 49.° CE; Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 8.° )

Sumário


1. As disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços e a regulamentação adoptada para a sua execução não podem ser aplicadas a situações que não apresentam qualquer elemento de ligação a uma das situações previstas no direito comunitário.

( cf. n.° 28 )

2. O direito à livre prestação de serviços garantido pelo artigo 49.° CE pode ser invocado por um prestador relativamente ao Estado em que está estabelecido, quando os serviços são prestados a destinatários estabelecidos noutro Estado-Membro.

( cf. n.° 30 )

3. Um Estado-Membro só pode invocar razões de interesse geral para justificar uma medida nacional que seja susceptível de entravar o exercício da livre prestação de serviços se essa medida for conforme aos direitos fundamentais cujo respeito o Tribunal de Justiça garante. A este propósito, excluir uma pessoa de um país onde vivem os seus parentes próximos pode constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar tal como vem protegido no artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o qual faz parte dos direitos fundamentais que são protegidos na ordem jurídica comunitária. Semelhante ingerência viola a convenção se tal decisão não cumprir as exigências do n.° 2 do mesmo artigo, ou seja, se não estiver «prevista na lei» e não for inspirada por uma ou várias finalidades legítimas à luz do referido número e «necessária numa sociedade democrática», isto é, justificada por uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcionada ao objectivo legítimo prosseguido.

( cf. n.os 40-42 )

4. O artigo 49.° CE, lido à luz do direito fundamental ao respeito da vida familiar, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o Estado-Membro de origem do prestador de serviços estabelecido nesse mesmo Estado, que presta serviços a destinatários estabelecidos noutros Estados-Membros, recuse a permanência no seu território ao cônjuge deste prestador, nacional de um país terceiro, quando tal decisão, que constitui uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar, não seja proporcionada ao objectivo prosseguido.

( cf. n.os 45, 46, disp. )

Partes


No processo C-60/00,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234._ CE, pelo Immigration Appeal Tribunal (Reino Unido), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Mary Carpenter

e

Secretary of State for the Home Department,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 49._ CE e da Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, N. Colneric, e S. von Bahr, presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, J.-P. Puissochet, M. Wathelet, R. Schintgen e J. N. Cunha Rodrigues (relator), juízes,

advogada-geral: C. Stix-Hackl,

secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação de M. Carpenter, por J. Walsh, barrister, mandatado por J. Wyman, solicitor,

- em representação do Governo do Reino Unido, por G. Amodeo, na qualidade de agente, assistida por D. Wyatt, QC,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por N. Yerrell, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de M. Carpenter, representada por J. Walsh, do Governo do Reino Unido, representado por R. Magrill, na qualidade de agente, assistida por D. Wyatt, e da Comissão, representada por N. Yerrell e H. Michard, na qualidade de agente, na audiência de 29 de Maio de 2001,

ouvidas as conclusões da advogada-geral apresentadas na audiência de 13 de Setembro de 2001,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 16 de Dezembro de 1999, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de Fevereiro de 2000, o Immigration Appeal Tribunal colocou, nos termos do artigo 234._ CE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 49._ CE e da Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132; a seguir «directiva»).

2 Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio que opõe M. Carpenter, cidadã filipina, ao Secretary of State for the Home Department (a seguir «Secretary of State») quanto ao direito de esta residir no Reino Unido.

Enquadramento regulamentar

A regulamentação comunitária

3 O artigo 49._, primeiro parágrafo, CE dispõe:

«No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

4 O primeiro considerando da directiva enuncia o seguinte:

«Considerando que a livre circulação de pessoas prevista no Tratado e no título II dos Programas Gerais para a supressão das restrições à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços implica a supressão das restrições à deslocação e à permanência na Comunidade dos nacionais dos Estados-Membros que desejam estabelecer-se ou prestar serviços no território de qualquer um deles».

5 O artigo 1._, n._ 1, da directiva dispõe:

«Os Estados-Membros suprimirão, nas condições previstas na presente directiva, as restrições à deslocação e à permanência:

a) Dos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos ou que desejem estabelecer-se em outro Estado-Membro para nele exercerem uma actividade não assalariada, ou nele desejem efectuar uma prestação de serviços;

b) Dos nacionais dos Estados-Membros que desejem deslocar-se a outro Estado-Membro na qualidade de destinatários de uma prestação de serviços;

c) Do cônjuge e filhos com menos de 21 anos destes nacionais independentemente da sua nacionalidade;

d) Dos ascendentes e descendentes destes nacionais e dos respectivos cônjuges que estejam a seu cargo, independentemente da sua nacionalidade.»

6 O artigo 4._, n._ 2, primeiro parágrafo, da directiva precisa:

«Relativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, o direito de permanência corresponde à duração da prestação.»

A legislação nacional

7 Resulta do Immigration Act 1971 (Lei de 1971 relativa à imigração) e das United Kingdom Immigration Rules (House of Commons Paper 395) (regras sobre a imigração adoptadas pelo Parlamento do Reino Unido em 1994, a seguir «Immigration Rules») que uma pessoa que não seja cidadão britânico só pode, regra geral, entrar ou permanecer no Reino Unido se tiver obtido autorização para tal. Essas autorizações são denominadas respectivamente «autorização de entrada» e «autorização de permanência».

8 A Section 7(1) do Immigration Act 1988 (Lei de 1988 relativa à imigração) dispõe:

«Uma pessoa não pedirá autorização de entrada ou de permanência no Reino Unido nos termos [do Immigration Act 1971] caso tenha direito a fazê-lo por força de um direito comunitário que possa invocar directamente ou de uma disposição adoptada nos termos da Section 2(2) do European Communities Act 1972 [Lei de 1972 sobre as Comunidades Europeias].»

9 O ponto 281 das Immigration Rules enumera as condições exigidas para a obtenção de uma autorização de entrada no Reino Unido na qualidade de cônjuge de uma pessoa presente e estabelecida no Reino Unido. Refere, no seu primeiro parágrafo, alínea vi), que o requerente deve possuir um certificado válido de entrada («entry clearance») na qualidade de cônjuge, emitido pelo Reino Unido. Todavia, uma pessoa presente no Reino Unido, que disponha de um direito de entrada ou de permanência a outro título, pode passar para a categoria dos cônjuges se satisfizer as exigências do ponto 284 das Immigration Rules.

10 O ponto 284 das Immigration Rules fixa as condições exigidas para obtenção de uma prorrogação do direito de permanência no Reino Unido na qualidade de cônjuge de uma pessoa residente e estabelecida no Reino Unido. Prevê, na alínea i), que o requerente deve beneficiar de uma autorização limitada de permanência no Reino Unido - a qual inclui a autorização de entrada - e, na alínea iv), que o requerente não pode ter permanecido em violação das leis sobre a imigração.

11 A Section 3(5), alínea a), do Immigration Act 1971 estabelece as regras gerais em matéria de expulsão («deportation») do Reino Unido. Dispõe:

«Uma pessoa que não seja cidadão britânico pode ser sujeita a expulsão do Reino Unido

a) se, quando lhe tenha sido concedida apenas uma autorização limitada no tempo para entrar ou permanecer, não observar a condição a que tenha sido sujeita a autorização ou permanecer no país para além do tempo limitado da autorização [...]»

12 No que se refere mais especificamente à expulsão dos cônjuges de cidadãos britânicos, o Secretary of State tem a obrigação, nos termos do ponto 364 das Immigration Rules, de tomar em conta as circunstâncias particulares de cada caso antes de decidir ordenar ou não uma expulsão. Todavia, uma declaração de política geral (DP 3/96) define as circunstâncias em que o Secretary of State autorizará em princípio a permanência de cônjuges susceptíveis de serem expulsos ou que se encontram numa situação de permanência ilegal. O ponto 5 desta declaração enuncia, a título de regra geral, que as expulsões não devem normalmente ter lugar quando a pessoa em causa contraiu casamento autêntico e duradouro com uma pessoa instalada no Reino Unido e quando os cônjuges viveram juntos no Reino Unido de maneira contínua após o casamento durante pelo menos dois anos antes da instauração do procedimento de expulsão. Esta declaração acrescenta que não é razoável prever que a pessoa instalada no Reino Unido acompanhe o seu cônjuge em caso de expulsão.

O litígio na causa principal

13 M. Carpenter, de nacionalidade filipina, foi autorizada, em 18 de Setembro de 1994, a entrar no Reino Unido na qualidade de visitante («visitor») por um período de seis meses. Permaneceu no Reino Unido após o fim deste período e não requereu uma prorrogação da sua autorização de permanência. Em 22 de Maio de 1996 casou com Peter Carpenter, cidadão britânico.

14 Resulta do despacho de reenvio que P. Carpenter dirige uma empresa que vende espaços publicitários nas revistas médicas e científicas e que oferece aos editores dessas revistas diversos serviços em matéria de administração e de publicação. Esta empresa está estabelecida no Reino Unido, onde estão estabelecidos igualmente os editores das revistas nas quais a empresa vende espaços publicitários. A empresa realiza uma parte significativa da sua actividade com anunciantes estabelecidos noutros Estados-Membros da Comunidade Europeia. P. Carpenter desloca-se a outros Estados-Membros para as necessidades da sua empresa.

15 Em 15 de Julho de 1996, M. Carpenter requereu ao Secretary of State autorização de permanência no Reino Unido na qualidade de cônjuge de um nacional deste Estado-Membro. Este pedido foi indeferido por decisão do Secretary of State de 21 de Julho de 1997.

16 Além disso, o Secretary of State tomou uma decisão de expulsão de M. Carpenter para as Filipinas. Esta decisão prevê a possibilidade de M. Carpenter deixar voluntariamente o Reino Unido. Se o não fizer, o Secretary of State assina uma ordem de expulsão cuja revogação M. Carpenter deverá obter antes de poder requerer a autorização de entrada no Reino Unido na qualidade de cônjuge de um nacional britânico.

17 M. Carpenter interpôs recurso da decisão de expulsão para o Immigration Adjudicator (Reino Unido), alegando que o Secretary of State não tinha o poder de a expulsar porque ela beneficiava de um direito de permanência no Reino Unido por força do direito comunitário. Com efeito, sustentou que, devendo o seu marido, para as necessidades da sua empresa, circular noutros Estados-Membros para prestar e receber serviços, podia fazê-lo mais facilmente desde que ela se ocupava dos filhos dele nascidos de uma primeira união, de forma que a sua expulsão restringia o direito do seu marido a efectuar e receber prestações de serviços.

18 O Immigration Adjudicator reconheceu que o casamento de M. Carpenter era autêntico e que ela desempenhava um papel importante na educação dos seus enteados. Admitiu igualmente que podia ser indirectamente responsável pelo êxito crescente da empresa do seu marido e que este era um prestador de serviços na acepção do direito comunitário. Segundo o Immigration Adjudicator, P. Carpenter tem o direito de se deslocar a outros Estados-Membros para aí prestar serviços e de ser acompanhado, para esse fim, pelo seu cônjuge. Todavia, quando reside no Reino Unido não se pode considerar que exerça qualquer liberdade de circulação na acepção do direito comunitário. Assim, o Immigration Adjudicator negou provimento ao recurso de M. Carpenter por decisão de 10 de Junho de 1998.

19 Tendo M. Carpenter recorrido para o Immigration Appeal Tribunal, este considera que a questão de direito comunitário suscitada incide sobre a questão de saber se é contrário ao direito comunitário, em particular ao artigo 49._ CE e/ou à directiva, que o Secretary of State recuse conceder um direito de permanência a M. Carpenter e decida expulsá-la, quando é certo que, por um lado, P. Carpenter exerce o seu direito à livre prestação de serviços noutros Estados-Membros e que, por outro lado, a guarda dos filhos e os trabalhos domésticos efectuados por M. Carpenter podem indirectamente assistir e ajudar P. Carpenter no exercício dos direitos que lhe são conferidos pelo artigo 49._ CE, fornecendo-lhe uma assistência económica que lhe permite consagrar mais tempo à sua empresa.

20 Considerando que a solução do litígio existente necessitava de uma interpretação do direito comunitário, o Immigration Appeal Tribunal decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Em circunstâncias em que:

a) um nacional de um Estado-Membro, estabelecido neste mesmo Estado-Membro e que fornece serviços a pessoas noutros Estados-Membros e

b) que tem um cônjuge que não é nacional de um Estado-Membro,

pode o cônjuge não nacional invocar i) o artigo 49._ CE e/ou

ii) a Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços

no sentido de conferir ao cônjuge não nacional o direito de residir com o seu cônjuge no Estado-Membro de origem deste?

A resposta à questão submetida é diferente caso o cônjuge não nacional auxilie indirectamente o nacional do Estado-Membro a efectuar a prestação de serviços noutros Estados-Membros, ocupando-se dos filhos deste?»

Quanto à questão prejudicial

Alegações apresentadas ao Tribunal de Justiça

21 M. Carpenter admite que não dispõe por si só de qualquer direito de permanência seja em que Estado-Membro for, mas alega que os seus direitos derivam daqueles de que P. Carpenter goza para efectuar prestações de serviços e se deslocar dentro da União Europeia. O seu marido tem o direito de exercer a sua actividade em todo o mercado interno sem que lhe sejam impostas restrições ilegais. A expulsão de M. Carpenter imporia que P. Carpenter fosse viver com ela nas Filipinas ou separaria os membros da célula familiar se ele permanecesse no Reino Unido. Nos dois casos, a actividade profissional de P. Carpenter seria afectada. Além disso, não se pode sustentar que a restrição à livre prestação de serviços que seria imposta a P. Carpenter se o seu cônjuge fosse expulso era puramente interna, uma vez que ele presta serviços em todo o mercado interno.

22 Segundo o Governo do Reino Unido, as disposições da directiva implicam, por exemplo, que um cidadão britânico que pretenda efectuar prestações de serviços noutro Estado-Membro tem o direito de permanecer nesse Estado enquanto durar a prestação e que o seu cônjuge tem o direito de aí permanecer durante o mesmo período. Todavia, estas disposições não dão qualquer direito de permanência no território do Reino Unido aos nacionais britânicos que, em qualquer circunstância, dispõem desse direito por força do direito nacional, nem aos seus cônjuges. O Tribunal de Justiça confirmou esta interpretação no seu acórdão de 7 de Julho de 1992, Singh (C-370/90, Colect., p. I-4265, n.os 17 e 18).

23 O mesmo governo recorda que, no acórdão de 27 de Junho de 1996, Asscher (C-107/94, Colect., p. I-3089), o Tribunal de Justiça examinou a questão de saber se um nacional de um Estado-Membro, que exerça uma actividade não assalariada noutro Estado-Membro no qual reside, pode invocar o artigo 52._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43._ CE) em relação ao seu Estado-Membro de origem em cujo território exerce outra actividade não assalariada. O Tribunal de Justiça declarou, no n._ 32 desse acórdão, que embora as disposições do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento não possam ser aplicadas a situações puramente internas de um Estado-Membro, não é menos certo que o alcance do artigo 52._ do Tratado não pode ser interpretado de modo a negar o benefício do direito comunitário aos próprios nacionais de um determinado Estado-Membro quando estes, pelo seu comportamento, se encontrem, relativamente ao seu Estado de origem, numa situação equiparável à de todas as outras pessoas que beneficiam dos direitos e liberdades garantidos pelo Tratado.

24 Todavia, não tendo P. Carpenter exercido o seu direito à livre circulação, o seu cônjuge não pode invocar a jurisprudência dos acórdãos Singh e Asscher, já referidos. Por conseguinte, uma pessoa que se encontra na situação de M. Carpenter não pode basear no direito comunitário qualquer direito de entrada ou de permanência no Reino Unido.

25 Segundo a Comissão, importa estabelecer uma distinção clara entre a situação de M. Carpenter e a do cônjuge de um nacional de um Estado-Membro que exerceu o seu direito de livre circulação e deixou o seu Estado-Membro de origem para um outro Estado-Membro a fim de aí se estabelecer ou trabalhar.

26 Neste último caso, o cônjuge, seja qual for a sua nacionalidade, está indubitavelmente abrangido pelo direito comunitário e tem o direito de se instalar com o nacional de um Estado-Membro no Estado-Membro de acolhimento uma vez que, no caso contrário, o referido nacional poderia ser dissuadido de exercer o seu direito de livre circulação. Além disso, conforme o Tribunal de Justiça declarou no n._ 23 do acórdão Singh, já referido, o cônjuge deste nacional de um Estado-Membro deve, quando este último regressa ao seu país de origem, dispor pelo menos dos mesmos direitos de entrada e de permanência que os que lhe seriam reconhecidos pelo direito comunitário se o seu cônjuge escolhesse entrar ou permanecer noutro Estado-Membro.

27 Em contrapartida, o princípio enunciado no n._ 23 do acórdão Singh, já referido, não pode ser aplicado a uma situação como a que está em causa no processo principal, em que o nacional de um Estado-Membro nunca procurou estabelecer-se com o seu cônjuge noutro Estado-Membro, fornecendo simplesmente serviços a partir do seu Estado de origem. A Comissão sugere que esta situação deve antes ser considerada um assunto interno, na acepção do acórdão de 27 de Outubro de 1982, Morson e Jhanjan (35/82 e 36/82, Recueil, p. 3723), de forma que o direito de M. Carpenter de permanecer no Reino Unido, se existir, é uma questão abrangida exclusivamente pelo direito nacional.

Apreciação do Tribunal

28 Importa liminarmente recordar que as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços e a regulamentação adoptada para a sua execução não podem ser aplicadas a situações que não apresentam qualquer elemento de ligação a uma das situações previstas no direito comunitário (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 21 de Outubro de 1999, Jägerskiöld, C-97/98, Colect., p. I-7319, n.os 42 a 45).

29 Deve a seguir referir-se que, como resulta do n._ 14 do presente acórdão, uma parte significativa da actividade profissional de P. Carpenter consiste em fornecer prestações de serviços, mediante remuneração, a anunciantes estabelecidos noutros Estados-Membros. Estas prestações inserem-se no conceito de prestações de serviços na acepção do artigo 49._ CE, tanto quando o prestador se desloca, para este fim, ao Estado-Membro do destinatário como quando fornece os serviços transfronteiriços sem se deslocar do Estado-Membro no qual está estabelecido (v., a propósito da prática denominada «cold calling», acórdão de 10 de Maio de 1995, Alpine Investments, C-384/93, Colect., p. I-1141, n.os 15 e 20 a 22).

30 P. Carpenter faz portanto uso do direito à livre prestação de serviços garantido pelo artigo 49._ CE. Além disso, conforme o Tribunal de Justiça já declarou por várias vezes, este direito pode ser invocado por um prestador relativamente ao Estado em que está estabelecido, quando os serviços são prestados a destinatários estabelecidos noutro Estado-Membro (v., nomeadamente, acórdão Alpine Investments, já referido, n._ 30).

31 Deve igualmente referir-se que, no domínio do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços, a directiva tem em vista suprimir as restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-Membros no interior da Comunidade.

32 Resulta tanto do objectivo prosseguido pela directiva como da redacção do seu artigo 1._, n._ 1, alíneas a) e b), que esta se aplica numa hipótese em que um nacional de um Estado-Membro deixa o seu Estado-Membro de origem e se desloca para outro Estado-Membro, para aí se estabelecer, quer para efectuar uma prestação de serviços quer ainda para receber essa prestação.

33 Esta interpretação é corroborada nomeadamente pelos artigos 2._, n._ 1, segundo o qual «[o]s Estados-Membros reconhecem às pessoas referidas no artigo 1._ o direito de abandonar o seu território», 3._, n._ 1, segundo o qual «[o]s Estados-Membros admitem no seu território as pessoas referidas no artigo 1._ mediante a simples apresentação do bilhete de identidade ou passaporte válidos», 4._, n._ 1, segundo o qual «[o]s Estados-Membros reconhecem o direito de residência permanente aos nacionais dos outros Estados-Membros que se estabeleçam no seu território» e 4._, n._ 2, da directiva, segundo o qual, «[r]elativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, o direito de permanência corresponde à duração da prestação».

34 É certo que o artigo 1._, n._ 1, alínea c), da directiva torna extensivo aos cônjuges dos nacionais dos Estados-Membros referidos nas alíneas a) e b) do mesmo artigo o direito de se deslocarem e de permanecerem noutro Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade. Mas, na medida em que a directiva tem em vista facilitar o exercício pelos nacionais dos Estados-Membros da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, os direitos reconhecidos aos cônjuges dos referidos nacionais foram-no para que estes possam acompanhá-los quando estes últimos, deslocando-se ou permanecendo noutro Estado-Membro que não seja o seu Estado de origem, exercem nas condições previstas na directiva os direitos que lhes confere o Tratado.

35 Por conseguinte, decorre tanto dos objectivos prosseguidos pela directiva como do seu conteúdo que esta regula as condições em que um nacional de um Estado-Membro, assim como as outras pessoas referidas no artigo 1._, n._ 1, alíneas c) e d), podem deixar o Estado-Membro de origem do referido nacional e entrar e permanecer no território de outro Estado-Membro, com uma das finalidades enunciadas no artigo 1._, n._ 1, alíneas a) e b), e isto por uma duração especificada no artigo 4._, n.os 1 ou 2.

36 Como a directiva não regulamenta o direito de permanência dos membros da família de um prestador de serviços no Estado-Membro de origem deste, a resposta à questão prejudicial depende, portanto, da questão de saber se, numa situação como a do processo principal, se pode inferir dos princípios ou de outras normas do direito comunitário um direito de permanência em benefício do cônjuge.

37 Conforme foi afirmado nos n.os 29 e 30 do presente acórdão, P. Carpenter exerce o direito à livre prestação de serviços previsto no artigo 49._ CE. As prestações de serviços efectuadas por P. Carpenter correspondem a uma parte significativa da sua actividade económica que se desenvolve tanto no território do seu Estado de origem em benefício de pessoas estabelecidas no território de outros Estados-Membros como no território destes últimos.

38 Neste contexto, deve recordar-se que o legislador comunitário reconheceu a importância de assegurar a protecção da vida familiar dos nacionais dos Estados-Membros a fim de eliminar os obstáculos ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado, tal como resulta nomeadamente das disposições dos regulamentos e directivas do Conselho relativas à livre circulação de trabalhadores assalariados e não assalariados no interior da Comunidade [v., por exemplo, artigo 10._ do Regulamento (CEE) n._ 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77); artigos 1._ e 4._ da Directiva 68/360/CEE do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativa à supressão das restrições à deslocação e permanência dos trabalhadores dos Estados-Membros e suas famílias na Comunidade (JO L 257, p. 13; EE 05 F1 p. 77), e artigos 1._, n._ 1, alínea c), e 4._ da Directiva 73/148].

39 Ora, é facto assente que a separação dos cônjuges Carpenter prejudicaria a sua vida familiar e, portanto, as condições do exercício de uma liberdade fundamental de P. Carpenter. Com efeito, esta liberdade não poderá produzir a plenitude dos seus efeitos se P. Carpenter for dissuadido de a exercer em virtude de obstáculos colocados pelo seu país de origem à entrada e à permanência do seu cônjuge (v., neste sentido, acórdão Singh, já referido, n._ 23).

40 Quanto a este aspecto, deve referir-se que um Estado-Membro só pode invocar razões de interesse geral para justificar uma medida nacional que seja susceptível de entravar o exercício da livre prestação de serviços se essa medida for conforme aos direitos fundamentais cujo respeito o Tribunal de Justiça garante (v., neste sentido, acórdãos de 18 de Junho de 1991, ERT, C-260/89, Colect., p. I-2925, n._ 43, e de 26 de Junho de 1997, Familiapress, C-368/95, Colect., p. I-3689, n._ 24).

41 A decisão de expulsão de M. Carpenter constitui uma ingerência no exercício por P. Carpenter do seu direito ao respeito da sua vida familiar na acepção do artigo 8._ da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «convenção»), o qual faz parte dos direitos fundamentais que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, aliás reafirmada no preâmbulo do Acto Único Europeu e no artigo 6._, n._ 2, UE, são protegidos na ordem jurídica comunitária.

42 Mesmo que a convenção não garanta como tal qualquer direito de um estrangeiro de entrar e permanecer no território de um país determinado, excluir uma pessoa de um país onde vivem os seus familiares chegados pode constituir uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar tal como vem protegido no artigo 8._, n._ 1, da convenção. Semelhante ingerência viola a convenção se não cumprir as exigências do n._ 2 do mesmo artigo, ou seja, se não estiver «prevista na lei» e não for inspirada por uma ou várias finalidades legítimas à luz do referido número e «necessária numa sociedade democrática», isto é, justificada por uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcionada ao objectivo legítimo prosseguido (v., nomeadamente, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, acórdão Boultif c. Suíça, de 2 de Agosto de 2001, Recueil des arrêts et décisions 2001-IX, §§ 39, 41 e 46).

43 Uma decisão de expulsão de M. Carpenter tomada em circunstâncias como as do litígio na causa principal não respeita um justo equilíbrio entre os interesses em presença, a saber, por um lado, o direito de P. Carpenter ao respeito da sua vida familiar e, por outro, a defesa da ordem pública e da segurança pública.

44 Embora, no processo principal, o cônjuge de P. Carpenter tenha infringido as leis do Reino Unido sobre a imigração ao não deixar o território nacional após a expiração da sua autorização de permanência na qualidade de visitante, a sua conduta, desde a sua chegada ao Reino Unido em Setembro de 1994 não foi objecto de qualquer outra censura susceptível de criar o receio de que constitua futuramente um perigo para a ordem pública e a segurança pública. Além disso, é facto assente que o casamento do casal Carpenter, celebrado no Reino Unido em 1996, é um casamento autêntico e que M. Carpenter continua a aí ter uma vida familiar efectiva ocupando-se nomeadamente dos filhos do seu cônjuge nascidos de uma primeira união.

45 Nestas condições, a decisão de expulsão de M. Carpenter constitui uma ingerência não proporcionada ao objectivo prosseguido.

46 Perante o que antecede, deve responder-se à questão colocada que o artigo 49._ CE, lido à luz do direito fundamental ao respeito da vida familiar, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o Estado-Membro de origem do prestador de serviços estabelecido nesse mesmo Estado, que presta serviços a destinatários estabelecidos noutros Estados-Membros, recuse a permanência no seu território ao cônjuge deste prestador, nacional de um país terceiro.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

47 As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Immigration Appeal Tribunal, por despacho de 16 de Dezembro de 1999, declara:

O artigo 49._ CE, lido à luz do direito fundamental ao respeito da vida familiar, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o Estado-Membro de origem do prestador de serviços estabelecido nesse mesmo Estado, que presta serviços a destinatários estabelecidos noutros Estados-Membros, recuse a permanência no seu território ao cônjuge deste prestador, nacional de um país terceiro.