62000C0218

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 13 de Septembro de 2001. - Cisal di Battistello Venanzio & C. Sas contra Istituto nazionale per l'assicurazione contro gli infortuni sul lavoro (INAIL). - Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Vicenza - Itália. - Artigos 85.º, 86.º e 90.º do Tratado CE (actuais artigos 81.º CE, 82.º CE e 86.º CE) - Inscrição obrigatória num organismo de seguro contra acidentes de trabalho - Qualificação como empresa de um organismo de seguro contra acidentes de trabalho. - Processo C-218/00.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-00691


Conclusões do Advogado-Geral


1. O Tribunale di Vicenza submeteu ao Tribunal de Justiça a questão de saber se um organismo como o Istituto nazionale per l'assicurazione contro gli infortuni sul lavoro (Instituto Nacional de Seguros contra Acidentes de Trabalho, a seguir «INAIL» ou «Istituto»), que gere o regime nacional de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais, constitui uma empresa para efeitos de aplicação das regras comunitárias da concorrência. No caso de resposta afirmativa, o tribunal de reenvio submete a questão de saber se no contexto italiano a inscrição obrigatória dos artesãos no INAIL infringe aquelas regras, designadamente os artigos 86.° CE e 82.° CE.

2. O presente processo é o primeiro que diz respeito às relações entre as regras da concorrência e um regime nacional de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais. As questões levantadas são, contudo, idênticas às suscitadas nos processos Poucet e Pistre , FFSA e o. , Albany, Drijvende Bokken e Brentjens' bem como Pavlov e o. , que diziam principalmente respeito a pensões de velhice. No essencial, a questão central é a de saber se o regime, apesar de previsto na lei, partilha características intrínsecas de um regime privado, estando, portanto sujeito às regras da concorrência, ou se difere substancialmente dos regimes privados, em particular porque se caracteriza essencialmente pela solidariedade social e, por esta razão, não está sujeito a estas regras.

Contexto nacional

As origens do presente regime

3. O regime italiano de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais tem as suas raízes no último quarto do século XIX. Na altura, o número crescente de vítimas de acidentes industriais (ou os seus herdeiros no caso de acidentes mortais) só podia recorrer às regras comuns da responsabilidade civil. Só podiam, portanto, obter uma indemnização do empregador no caso de comportamento culposo da sua parte. Contudo, muitos acidentes de trabalho resultavam de casos de força maior ou até de negligência da vítima e não podiam, consequentemente, dar lugar a indemnização. Além disso, mesmo quando o acidente fosse causado por negligência do empregador, as vítimas tinham dificuldade em provar esta negligência ou abstinham-se de intentar uma acção com medo de porem em causa o seu emprego.

4. Nesta situação, era geralmente aceite que os trabalhadores e as suas famílias deveriam gozar de uma melhor protecção social contra as consequências económicas negativas das lesões ocorridas em resultado ou conexas com um trabalho perigoso. Também era aceite que o risco de um acidente de trabalho (risco profissional) deveria, em princípio, ser suportado pelo empregador que beneficia do trabalho causador do risco.

5. Todavia, rapidamente se tornou claro que uma mera modificação das regras da responsabilidade civil - por exemplo, inversão do ónus da prova, um regime especial de responsabilidade contratual ou um regime de responsabilidade subjectiva - por um lado, era insuficiente para proteger as vítimas que tinham sido responsáveis pelo acidente por comportamento negligente e, por outro lado, impunha um ónus excessivamente pesado aos empregadores.

6. O mecanismo finalmente escolhido para ultrapassar estas dificuldades foi um regime de seguro contra acidentes de trabalho financiado exclusivamente pelo empregador, que em contrapartida se libertava da sua responsabilidade. Este regime constituía, quer para os empregadores, quer para os trabalhadores, uma solução de compromisso no sentido em que:

- os trabalhadores aceitavam não ser integralmente ressarcidos dos danos causados pelo acidente, mas recebiam contrapartidas do seguro em função da sua remuneração anterior ao acidente, mesmo no caso de terem eles próprios causado o acidente, e

- os empregadores tinham de pagar o prémio do seguro mesmo em relação a um risco de acidente causado pela vítima, mas ficavam em contrapartida isentos da sua responsabilidade civil e da obrigação de reparação integral em caso de comportamento culposo que lhes fosse imputável .

7. O seguro era inicialmente facultativo, mas tornou-se obrigatório em 1898 . Assim, o empregador ainda tinha liberdade de escolha da entidade seguradora. Em 1933, o legislador atribuiu ao INAIL o direito exclusivo de gerir o regime de seguro .

O presente regime de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais e o papel do INAIL

8. Decorre, hoje, do artigo 38.° da Constituição italiana que os trabalhadores («lavoratori») têm o direito a que sejam previstos e assegurados meios adequados às suas necessidades quotidianas, designadamente em caso de acidente («infortunio») ou doença («malattia»). Por força do quarto parágrafo deste artigo, estas e outras atribuições são asseguradas por organizações e instituições criadas ou integradas pelo Estado. Nos termos do quinto parágrafo, a assistência privada é livre.

9. A maior parte das disposições reguladoras do seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais consta do Decreto n.° 1124 do Presidente da República, de 30 de Junho de 1965, «Testo unico delle disposizioni per l'assicurazione obbligatoria contro gli infortuni sul lavoro e le malattie professilionali» (texto único das disposições relativas ao seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais) , com alterações (a seguir «Testo unico» ou «T.U.»). O Decreto legislativo n.° 38, de 23 de Fevereiro de 2000, introduziu novas e importantes disposições. Como o processo principal respeita a períodos anteriores à entrada em vigor destas novas disposições, não as terei em conta.

10. O Testo unico distingue entre o sector industrial (artigos 1.° a 204.° ) e o sector agrícola (artigos 205.° a 290.° ), que está sujeito a um regime especial. No que respeita ao sector industrial - que é o que está em causa no caso em apreço - decorre do artigo 1.° do T.U. que o seguro é obrigatório para todos os que desempenham actividades definidas pelo legislador como envolvendo risco (por exemplo, actividades desenvolvidas com máquinas). Por força do artigo 4.° , n.° 3, artesãos («artigiani») que desempenhem habitualmente uma tarefa manual na sua própria empresa estão entre as pessoas abrangidas pelo seguro. Nos termos do artigo 9.° , os empregadores são obrigados a segurar os seus trabalhadores, as sociedades são obrigadas a segurar o seu pessoal e os trabalhadores independentes são obrigados a segurarem-se quando desempenhem actividades que envolvam um dos riscos enumerados no artigo 1.° e figurem entre as pessoas abrangidas pelo seguro nos termos do artigo 4.°

11. Por força do artigo 126.° do T.U., o regime de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais no sector industrial é gerido pelo INAIL .

12. O INAIL é uma entidade de direito público dotada de personalidade jurídica e autonomia administrativa . Tem poderes especiais para inspeccionar se os empregadores cumprem as suas obrigações e se as vítimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais seguem o seu tratamento . Não gere apenas o regime de seguro, mas tem também outras atribuições, como a prevenção de acidentes (por exemplo, através de campanhas de informação), a gestão de bases de dados especificamente sobre acidentes de trabalho, várias iniciativas no domínio da reabilitação e reintegração das vítimas (por exemplo, através de um centro de próteses e de uma rede de centros móveis de reabilitação) e assistência social. Nos termos do artigo 55.° da Lei n.° 88, de 9 de Março de 1989, relativa à reestruturação do INAIL , o INAIL é classificado como entidade pública de prestação de serviços e está sujeito ao controlo do Ministério do Trabalho e da Segurança Social. O INAIL cumpre as funções que lhe são atribuídas com critérios económicos e empresariais («criteri di economicità e di imprenditorialità»), adequando autonomamente a sua organização à exigência de eficiente e tempestiva cobrança das contribuições e à atribuição das prestações, realizando uma gestão do património móvel e imóvel que assegure um adequado rendimento financeiro. O mesmo objectivo deve prosseguir o governo no acompanhamento e no controlo das actividades do INAIL.

As prestações do seguro

13. As principais prestações económicas atribuídas pelo INAIL ao abrigo do regime de seguro no sector industrial são:

- indemnização diária por incapacidade temporária;

- renda mensal por incapacidade permanente;

- pensão mensal aos supérstites da vítima e pagamento de uma prestação única para despesas de funeral em caso de morte.

14. O direito ao pagamento da indemnização diária é reconhecido em caso de acidente ou doença que dê lugar a ausência no trabalho superior a três dias. A indemnização é paga a partir do quarto dia a contar da data do acidente ou da ocorrência da doença até ao momento do restabelecimento. Nos primeiros 90 dias, a indemnização é de 60% da remuneração média diária paga durante os quinze dias anteriores à cessação do trabalho, passando, em seguida, a 75% desta remuneração.

15. O montante da renda mensal por incapacidade permanente é uma percentagem da remuneração do ano anterior à cessação do trabalho. A percentagem em causa é determinada com base no grau de incapacidade permanente para o trabalho e por um factor adicional previsto no T.U. No que respeita à remuneração no ano anterior à cessação do trabalho, o artigo 116.° , n.° 3, do T.U. fixa um limite máximo e mínimo às remuneração a ter em conta. O limite máximo corresponde à remuneração média nacional fixada por decreto ministerial, acrescida de 30%, e o mínimo à mesma remuneração média diminuída de 30%. Para 1999, o decreto aplicável fixava, por exemplo, as remunerações máxima e mínima anuais em cerca de 19 850 euros e 10 690 euros, respectivamente.

16. O montante da pensão para os familiares da vítima é uma percentagem (por exemplo, 50% para o cônjuge sobrevivo) das remunerações auferidas por esta antes do acidente ou da doença. Estas remunerações são calculadas de acordo com os princípios expostos no número anterior.

17. O montante destas três prestações é actualizado periodicamente de acordo com os aumentos médios das remunerações.

18. Por força do princípio do pagamento automático das prestações (artigo 67.° do T.U.), a cobertura do seguro é assegurada para o beneficiário mesmo no caso de o empregador não ter cumprido as suas obrigações de declarar as suas actividades e/ou de pagar as contribuições para o seguro. Nos termos de uma Lei de 1997, o princípio do pagamento automático parece ter deixado de se aplicar aos trabalhadores independentes a partir de 1 de Janeiro de 1998. Dado que o processo principal respeita a períodos anteriores a esta alteração legislativa, não a terei em conta.

As contribuições para o seguro

19. As prestações do seguro são financiadas por contribuições pagas pelos empregadores ou pelos trabalhadores independentes abrangidos pelo seguro obrigatório.

20. No sector agrícola aplica-se o sistema de repartição: para cada ano o INAIL cobra as contribuições necessárias para cobrir as despesas (indemnizações, pensões) correntes que prevê para o ano (artigo 262.° do T.U.). As contribuições devidas são fixadas por decreto ministerial (artigo 257.° do T.U.). No caso de défice significativo, o financiamento pelo Estado está garantido (artigo 263.° do T.U.).

21. No que respeita ao sector industrial, o artigo 39.° , n.° 2, do T.U. prevê um sistema designado por repartição do capital de cobertura («ripartizione dei capitali di copertura»): as contribuições anuais devem ser determinadas de forma a cobrirem antecipadamente os encargos resultantes de acidentes a verificar durante o ano, incluindo as prestações a curto prazo e o valor do capital das pensões a longo prazo a pagar em relação a estes acidentes. Para o cálculo do valor do capital das pensões, o INAIL tem de submeter à aprovação do ministro competente tabelas actuariais (artigo 39.° , n.° 1, do T.U.). Os fundos cobrados para cobrir o valor do capital para as futuras pensões constituem uma reserva técnica. Esta reserva tem de ser gerida pelo INAIL de forma a obter as receitas necessárias para financiar as pensões e as indemnizações sem prejudicar a estabilidade destes fundos. Não está claro se as actualizações periódicas das prestações do seguro de acordo com os aumentos médios das remunerações são financiadas essencialmente pelos lucros obtidos através de investimentos feitos com a reserva técnica para as pensões ou por um aumento das contribuições correntes . As actualizações em questão são provavelmente financiadas por uma combinação dos dois elementos .

22. Ao abrigo do artigo 41.° do T.U., as contribuições dos trabalhadores são calculadas com base numa percentagem da sua remuneração . Essa percentagem («tasso») depende do risco médio da actividade da empresa em que trabalham. A percentagem assim determinada pode ser modificada em relação a determinadas empresas que provem que, por exemplo, devido a medidas de segurança aplicadas, o risco das suas actividades é inferior à média nacional.

23. O cálculo das contribuições dos artesãos independentes é regulado pelo artigo 42.° do T.U. e, em relação ao período em causa no processo principal, pelo Decreto ministerial de 21 de Junho de 1988 . As actividades desenvolvidas pelos artesãos independentes estão classificadas em dez classes de risco diferentes. Para cada uma das classes de risco são definidos prémios unitários especiais («premi speciali unitari»). Esses prémios unitários especiais baseiam-se no risco que teoricamente a actividade em causa apresenta e nas remunerações declaradas pelo artesão em causa.

24. Resulta do T.U. e dos documentos apresentados ao Tribunal de Justiça que são tidas em conta para o cálculo da contribuição todas as remunerações superiores ao salário mínimo legal.

25. Ao abrigo dos artigos 41.° e 42.° do T.U., os montantes das contribuições dos trabalhadores assalariados e dos artesãos independentes por conta própria são aprovados («approvato») por decreto ministerial com base numa resolução («delibera») do INAIL. O INAIL apresentou ao Tribunal de Justiça uma carta de 1981 do ministro competente, na qual este se recusa a aprovar a resolução do INAIL relativa aos novos prémios unitários especiais para os artesãos e pede ao INAIL que reconsidere a proposta de tabelas procedendo às actualizações necessárias.

Algumas estatísticas

26. Decorre das estatísticas por si publicadas que, em 1999, o INAIL gastou cerca de 3 500 milhões de euros em rendas por incapacidade permanente para o trabalho, cerca de 1 000 milhões de euros em pensões para os supérstites das vítimas e cerca de 500 milhões de euros em indemnizações por incapacidade temporária absoluta para o trabalho. Em 2001, o INAIL prevê receitas resultantes dos prémios de seguros de cerca de 6 175 milhões de euros, despesas com pagamento de prestações de 5 410 milhões de euros, despesas para outras medidas (prevenção, tratamentos médicos, reabilitação) de 284 milhões de euros e despesas administrativas de 692 milhões de euros.

O processo principal e a decisão de reenvio

27. Por despacho em processo de injunção, proferido em 30 de Dezembro de 1998, o Pretore di Vicenza ordenou que a empresa Cisal di Battistello Venanzio & C. Sas (a seguir «Cisal di Battistello Venanzio» ou «demandante») pagasse ao INAIL 6 606 890 ITL a título de contribuições do sócio comanditado («socio accomandatario») Battistello Venanzio relativas ao período de 1992 a 1996. O despacho afirmava que, nos termos das regras aplicáveis , Battistello Venanzio, enquanto artesão («artigiano») contratado pela sociedade, deveria estar seguro pelo INAIL contra acidentes de trabalho.

28. No processo principal no Tribunale di Vicenza, Cisal di Battistello Venanzio opôs-se a esta injunção. Sustenta que Battistello Venanzio está seguro contra acidentes de trabalho por uma apólice de uma companhia de seguros privada desde 1986. Este seguro cobre, concretamente, o seu trabalho como artesão independente, que trabalha manualmente a madeira com a utilização de máquinas. Alega que a legislação nos termos da qual a sociedade está sujeita à obrigação de estar segura contra os mesmos riscos também no INAIL deve ser considerada contrária ao direito da concorrência, na medida em que mantém injustificadamente um monopólio a favor do INAIL, o que leva este último a abusar da sua posição dominante. Observava também a sociedade demandante que a autoridade italiana em matéria de concorrência, através de uma comunicação de 9 de Fevereiro de 1999 , afirmava que o INAIL não apresenta elementos de solidariedade que excluam, com base na jurisprudência comunitária, a natureza económica da actividade desenvolvida.

29. O tribunal de reenvio afirma que o INAIL apresenta algumas características que, em sua opinião, dificilmente se conciliam com o conceito de empresa na acepção do direito comunitário da concorrência. Refere, a este respeito, a automaticidade das prestações, a própria filiação obrigatória e a ausência de fins lucrativos. Todavia, a par destas características, refere ainda características típicas de entidades que têm actividades predominantemente económicas. Menciona a estreita ligação entre o risco e as contribuições, a obrigação do INAIL de desenvolver a sua actividade de acordo com «critérios económicos e empresariais» e o facto de em dois casos o legislador italiano ter considerado os seguros obrigatórios privados contra acidentes de trabalho, pelo menos durante um período transitório, como uma alternativa ao seguro oferecido pelo INAIL.

30. O tribunal de reenvio considera também que a legislação italiana pode ser contrária aos artigos 86.° CE e 82.° CE na medida em que obriga à inscrição de artesãos independentes no INAIL, mesmo que já estejam cobertos contra o mesmo risco numa companhia de seguros privada. Além disso, a abolição da obrigatoriedade de inscrição dos artesãos que já estão seguros em relação aos mesmos riscos cobertos pelo INAIL não compromete o cumprimento das outras funções específicas atribuídas ao Istituto pela legislação nacional.

31. O tribunal de reenvio decidiu, assim, submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«Constitui uma empresa na acepção dos artigos 81.° e seguintes do Tratado uma entidade pública de seguros sem fim lucrativo, como o INAIL, que se dedica segundo critérios económicos e empresariais à gestão monopolística de um regime de seguros contra os riscos resultantes de acidentes de trabalho e doenças profissionais baseado num sistema de inscrição obrigatória, que concede prestações segundo o princípio da automaticidade parcial (que garante a cobertura do seguro ao trabalhador dependente, mas não também ao trabalhador autónomo - a partir de 1998), também no caso de falta de pagamento dos prémios por parte do empregador, e calcula os prémios com base no tipo de risco em que se coloca a actividade segura?

No caso de resposta afirmativa à primeira questão, constitui uma violação dos artigos 86.° CE e 82.° CE o facto de a referida entidade pública exigir o pagamento dos prémios também no caso de o interessado, um trabalhador independente (artesão), estar já seguro numa companhia de seguros contra os mesmos riscos que seriam cobertos inscrevendo-se na referida entidade?»

32. Foram apresentadas observações escritas pela Cisal di Battistello Venanzio, o INAIL, o Governo italiano e a Comissão, que estiveram representados na audiência.

Objecções preliminares

33. O INAIL alega, primeiro, que o reenvio é inadmissível, porque as dúvidas do tribunal de reenvio se baseiam no facto de que a partir de 1 de Janeiro de 1998 o princípio da automaticidade de pagamento das prestações do seguro foi abolido no que respeita aos artesãos independentes. Uma vez que o processo principal se refere ao período de 1992 a 1996, uma decisão prejudicial baseada nestas alterações da lei não produziria qualquer efeito no processo principal.

34. Considero que esta afirmação se baseia numa confusão em relação ao despacho de reenvio. A alteração da lei em causa é referida na parte introdutória do despacho de reenvio que descreve o enquadramento legal nacional e como um dos elementos que suscitaram a primeira questão . Quando o tribunal de reenvio expõe as razões pelas quais, em sua opinião, o INAIL deveria ser considerado uma empresa, não refere sequer a alteração em causa . Não há, assim, qualquer indicação de que as dúvidas sejam «baseadas» unicamente nesta alteração. De qualquer forma, como já afirmei, face ao âmbito temporal do processo principal, não terei em conta esta alteração na minha análise .

35. Em segundo lugar, o INAIL parece alegar que, mesmo que o Tribunal de Justiça venha a responder às duas questões na afirmativa, o tribunal nacional não seria competente para afastar as normas legais que atribuem ao INAIL o monopólio legal nesta matéria. Isto porque, em primeiro lugar - tendo em vista o objectivo social e o estatuto de direito público do INAIL -, é o artigo 86.° , n.° 2, CE e não o artigo 86.° , n.° 1, CE que seria de aplicar. Em segundo lugar, o tribunal de reenvio não poderia, por sua iniciativa, adoptar as medidas regulamentares necessárias para assegurar a efectiva protecção social num sistema com mais do que uma entidade seguradora. Em terceiro lugar, decorre do artigo 86.° , n.° 3, CE que compete à Comissão e não aos tribunais nacionais velar pela aplicação do artigo 86.° CE.

36. A este respeito, basta referir que a questão de saber se o artigo 86.° , n.° 2, CE se aplica é uma questão de mérito da qual me ocuparei mais adiante e que o artigo 86.° , n.° 1, CE, quando aplicado em conjugação com o artigo 82.° CE, tem efeito directo . O artigo 86.° , n.° 1, CE pode, portanto, ser aplicado por qualquer tribunal nacional e não só pela Comissão.

Primeira questão: qualificação do INAIL como empresa

37. Na primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta se uma entidade como o INAIL, que gere o regime italiano de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais, deve ser considerado uma empresa para efeitos das regras da concorrência do Tratado CE.

38. Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça no domínio do direito da concorrência que o conceito de empresa abrange qualquer entidade que exerça uma actividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e modo de funcionamento . A questão essencial reside em saber se a entidade em causa exerce uma actividade que consiste em vender bens ou serviços num determinado mercado, que seria, pelo menos em princípio, susceptível de ser exercida por uma empresa privada com fins lucrativos . No que respeita à qualificação de regimes de seguro com finalidade social, todas as observações apresentadas concordam que os acórdãos Poucet e Pistre, FFSA e o., Albany, Drijvende Bokken e Pavlov e o. são particularmente relevantes.

39. No acórdão Poucet e Pistre , o Tribunal de Justiça declarou que determinados organismos franceses encarregados da gestão de um regime de seguro de doença e de maternidade dos trabalhadores não assalariados das profissões não agrícolas e o regime geral de pensões dos artesãos não constituem empresas. O Tribunal de Justiça sublinhou que estes organismos desempenham uma função de carácter exclusivamente social e exercem uma actividade, baseada no princípio da solidariedade nacional, desprovida de qualquer fim lucrativo e que as prestações pagas são prestações legais e independentes do montante das contribuições.

40. No acórdão FFSA e o. , o Tribunal de Justiça clarificou e precisou a sua jurisprudência, declarando que um organismo sem fins lucrativos, que gere um regime de seguro de velhice complementar dos trabalhadores agrícolas não assalariados, constitui uma empresa.

41. Naquele acórdão, o Tribunal de Justiça começou por resumir o seu acórdão anterior no processo Poucet e Pistre e salientar a importância particular de certos aspectos desse processo : os regimes eram regimes de segurança social obrigatórios baseados no princípio da solidariedade; no regime de seguro de doença e de maternidade, as prestações eram idênticas para todos os beneficiários, mas as contribuições eram proporcionais aos rendimentos; no regime de seguro de velhice, o financiamento das pensões de reforma era assegurado pelos trabalhadores em actividade; os direitos à pensão eram fixados na lei e não eram proporcionais às contribuições pagas e os regimes excedentários participavam no financiamento dos regimes que tinham dificuldades financeiras estruturais.

42. O Tribunal de Justiça continuou, a seguir, a analisar o regime de pensões em causa e sublinhou que o regime era facultativo, que esse regime funcionava segundo o princípio da capitalização e que as prestações a que conferia direito dependiam unicamente do montante das contribuições pagas pelos beneficiários, bem como dos resultados financeiros dos investimentos efectuados pelo organismo gestor. Os elementos de solidariedade que o referido regime continha, a prossecução de uma finalidade de carácter social e a ausência de fins lucrativos do regime, não retiravam à actividade exercida a sua natureza económica. Embora estas características pudessem tornar o serviço prestado menos competitivo do que o serviço equiparável prestado pelas companhias de seguros privadas, não impediam que se considerasse a actividade exercida uma actividade económica. Restava analisar se estas características podiam ser invocadas, por exemplo, para justificar o direito exclusivo do organismo em questão.

43. Nos três acórdãos paralelos Albany, Drijvende Bokken e Brentjens' e no acórdão seguinte Pavlov e o. , o Tribunal de Justiça confirmou os princípios definidos no acórdão FFSA e o. e declarou que os fundos de pensões neerlandeses que geriam um regime de pensões complementares de velhice para os trabalhadores e os médicos especialistas, respectivamente, deviam ser considerados empresas. O Tribunal de Justiça salientou que eram os próprios fundos que determinavam o montante das contribuições e das prestações e que a gestão era feita através da aplicação do princípio da capitalização. O montante das prestações dependia, portanto, dos resultados dos investimentos efectuados. A ausência de fins lucrativos bem como os elementos de solidariedade constantes do regime não eram suficientes para retirar aos fundos em causa a qualidade de empresa na acepção das regras da concorrência, mas podiam justificar os direitos exclusivos em questão.

44. No caso em apreço, a Cisal di Battistello Venanzio alega que à luz desta jurisprudência o INAIL deve ser qualificado como empresa. Os serviços de seguro prestados pelo INAIL aos artesãos são, em sua opinião, comparáveis aos prestados pelas companhias de seguros privadas: as prestações são financiadas exclusivamente pelas contribuições, as contribuições são determinadas em função do risco, há uma conexão estreita entre as contribuições e as prestações, na medida em que ambas representam uma percentagem da remuneração da vítima, e o INAIL deve gerir o regime de acordo com critérios económicos e empresariais de forma a maximizar os rendimentos. Nem os objectivos sociais do INAIL ou a sua natureza não lucrativa, nem os escassos elementos de solidariedade presentes no regime afectam o facto de que a actividade do INAIL é predominantemente de natureza económica.

45. O INAIL, o Governo italiano e a Comissão sustentam que o INAIL não pode ser qualificado como empresa. Invocam, em substância, que:

- o INAIL é uma entidade de direito público que, para além da actividade seguradora, desenvolve actividades de prevenção, reabilitação e assistência social e ao qual foi confiada pela Constituição italiana uma missão social;

- o regime de seguro que gere não pode ser comparado a um seguro privado uma vez que, por exemplo, as prestações não estão directamente dependentes das contribuições;

- uma vez que as prestações e as contribuições são previamente determinadas pela lei ou rigorosamente controladas pelo governo, não há o risco de se verificarem os comportamentos que as regras da concorrência têm por objectivo evitar;

- o regime de seguro é caracterizado por fortes elementos de solidariedade (por exemplo, pagamento automático das prestações) que um seguro privado não pode disponibilizar.

Alguns aspectos irrelevantes

46. Em minha opinião, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça e, em particular, dos acórdãos já referidos que o estatuto de direito público do INAIL, a sua finalidade não lucrativa e a prossecução de objectivos sociais não podem ser tidos em conta para a sua qualificação. Constitui uma questão diferente a de saber se estes aspectos podem conduzir à atribuição de um direito especial ou exclusivo ao abrigo do artigo 86.° , n.° 2, CE. Contudo, enquanto tais, não podem ter qualquer influência na questão de determinar se a actividade seguradora do INAIL deveria ou não ser considerada uma actividade económica.

47. Tão-pouco pode ser tido em conta o facto de a missão do INAIL lhe ter sido confiada pela Constituição italiana. As regras da concorrência têm de ser aplicadas uniformemente na Comunidade. O estatuto legal de uma entidade face ao direito nacional não pode condicionar a sua qualificação.

48. O facto de o INAIL, paralelamente às suas actividades seguradoras, desenvolver actividades de prevenção, reabilitação e assistência social também é irrelevante. O conceito de empresa é relativo, no sentido de que uma determinada entidade pode ser considerada como empresa em relação a uma parte das suas actividades (por exemplo, a actividade seguradora), enquanto a outra parte das suas actividades não faz parte do âmbito de aplicação das regras da concorrência (por exemplo, prevenção, reabilitação, assistência social) . Financeiramente, estas últimas actividades são até menos importantes do que a actividade seguradora .

49. O argumento de que o conceito de empresa é relativo aplica-se também em relação aos poderes especiais do INAIL . Embora o INAIL possa ser encarado como um organismo que actua no exercício da autoridade pública, portanto, fora do âmbito de aplicação das regras da concorrência quando actua no exercício destes poderes, a qualificação da sua actividade seguradora não é afectada.

A natureza das actividades do INAIL

50. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça atribui grande importância à natureza dos serviços de seguros prestados. De acordo com a jurisprudência geral relativa ao conceito de empresa, importa, por conseguinte, apreciar se os serviços de seguros prestados pelo INAIL são susceptíveis de ser prestados por uma companhia de seguros privada.

51. A Cisal di Battistello Venanzio invoca o artigo 55.° da Lei n.° 88, de 9 de Março de 1989, nos termos da qual o INAIL deve gerir o regime de seguro de acordo com «critérios económicos e empresariais» e tentar «maximizar o rendimento». Em sua opinião, isto demonstra a natureza empresarial do INAIL.

52. Este argumento não me convence. A maior parte das entidades públicas devem ser geridas de acordo com o princípio da boa administração, o que inclui a obrigação de minimizar os custos e, se necessário, maximizar as receitas, por exemplo, através da cobrança eficiente de taxas administrativas. Uma obrigação legal de reduzir custos e maximizar receitas não é, portanto, por si só, suficiente para classificar as actividades do INAIL como sendo de natureza económica.

53. O INAIL e o Governo italiano referem, em primeiro lugar, que a actividade seguradora do INAIL é atípica porque:

- as prestações são pagas mesmo no caso de negligência da vítima;

- o regime assegura meios de subsistência, determinados em função da remuneração da vítima, em vez de prever a indemnização do prejuízo;

- as prestações cobrem não só os danos imediatos e directos mas também as consequências económicas do acidente.

54. Não consigo perceber por que razão os três elementos referidos são atípicos na actividade seguradora. Estes elementos limitam-se a distinguir o regime de seguro em causa do resultado da aplicação das regras gerais de responsabilidade civil. O seguro contra acidentes de trabalho foi precisamente criado para ultrapassar as desvantagens resultantes da aplicação dessas regras . Importa, também, recordar que em vários Estados-Membros o seguro obrigatório contra acidentes de trabalho financiado pelos empregadores é assegurado por companhias de seguro privadas .

55. O INAIL, o Governo italiano e a Comissão alegam, em segundo lugar, que as prestações pagas pelo INAIL são financiadas integralmente (no sector agrícola) ou parcialmente (no sector industrial) de acordo com o princípio da repartição.

56. Em minha opinião, um regime de seguro gerido de acordo com o princípio da repartição não poderia ser oferecido por uma companhia de seguros privada, na medida em que ninguém estaria disposto a financiar as pensões actuais de outras pessoas sem a garantia de que a próxima geração fizesse o mesmo .

57. Por razões idênticas, o seguro gerido pelo INAIL no sector agrícola não parece ser uma actividade susceptível de ser desenvolvida por companhias de seguros privadas. Os trabalhadores activos no sector agrícola financiam as pensões actuais sem que tenham qualquer garantia de que, no futuro, haja igual número de trabalhadores capazes de financiar as suas pensões em caso de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. O facto de, aparentemente, o Estado garantir o financiamento do regime em caso de défice e de fixar directamente o montante das contribuições, são indicações adicionais de que o seguro em causa neste sector não pode ser considerado uma actividade económica na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça .

58. Contudo, é necessário recordar que, no sector industrial, as prestações são integralmente financiadas pelas contribuições e que as contribuições são calculadas de forma a cobrirem todos os encargos previstos (incluindo as responsabilidades a longo prazo com as pensões) com os acidentes a ocorrer previsivelmente durante o ano. Um aumento do montante das prestações paralelamente a um aumento da remuneração média parece ser financiado em parte pelos investimentos efectuados através da reserva técnica e em parte pelo aumento das contribuições. A filosofia financeira subjacente ao regime no sector industrial parece ser bastante diferente da que seria aplicada no sector segurador privado.

59. O INAIL e o Governo italiano alegam, em terceiro lugar, que as contribuições não são sistematicamente proporcionais ao risco, porque alguns riscos específicos (por exemplo, o risco relacionado com o amianto ou com o ruído) são parcialmente suportados por outros sectores.

60. Concordo que tal repartição parcial dos riscos introduz um elemento adicional de solidariedade entre os sectores. A vertente financeira do regime parece, contudo, reflectir essencialmente uma lógica de seguro baseada no risco. Nos termos das disposições anteriormente resumidas, as contribuições dos trabalhadores assalariados e dos trabalhadores independentes são normalmente calculadas tendo como única base o risco conexo com a actividade desenvolvida pela empresa e referente à remuneração da pessoa segurada. No que respeita aos trabalhadores assalariados há ainda uma apreciação do risco concreto em cada uma das empresas de forma a calcular a percentagem específica da contribuição. A vertente financeira do regime parece, assim, obedecer a uma filosofia idêntica à do seguro automóvel cujo prémio é determinado em função do grau de risco.

61. O INAIL, o Governo italiano e a Comissão referem, em quarto lugar, que, a nível individual, as prestações não estão directamente relacionadas com as contribuições.

62. Em minha opinião, um dos aspectos fundamentais do seguro privado consiste no facto de a dependência entre as prestações e as contribuições se verificar não só a nível global (o total das prestações tem de ser financiado pelo total das contribuições) mas também a nível individual. A pessoa segura (ou uma terceira pessoa que contribua em relação a uma pessoa segura) só estará disposta a pagar as contribuições se, em contrapartida, tiver a expectativa de vir a beneficiar de prestações proporcionais ao montante das contribuições pagas. Numa economia de mercado, nenhuma empresa privada poderia, por exemplo, gerir um regime de seguro de doença no qual as contribuições estivessem dependentes das remunerações, sendo as prestações idênticas para todos os segurados .

63. Importa recordar que, no caso em apreço, quer as prestações pagas pelo INAIL quer as contribuições são determinadas com base nas remunerações . Do ponto de vista legal, não existe qualquer dependência entre contribuições e prestações.

64. A Cisal di Battistello Venanzio alega, contudo, que, em termos actuariais e económicos, é indiferente se as disposições da lei em causa estabelecem uma dependência directa entre as contribuições e as prestações ou se o fazem através de um terceiro factor com base no qual ambas são calculadas. Nos dois casos, contribuições mais elevadas ou menos estarão matematicamente relacionadas de forma proporcional com prestações mais elevadas ou menos.

65. Com base num raciocínio idêntico, a autoridade italiana em matéria de concorrência considera que as actividades do INAIL são integralmente comparáveis com as de uma companhia de seguros privada, na medida em que:

- há uma dependência directa entre as contribuições e as prestações, porque ambas são calculadas com base numa percentagem aplicada à mesma variável, que consiste na remuneração da vítima;

- as contribuições estão relacionadas com os riscos; e

- as prestações são financiadas na sua totalidade através de contribuições.

66. Tenho grandes dúvidas no que respeita a este raciocínio. Recorde-se que para efeitos do cálculo do montante das pensões só são tidas em conta as remunerações anuais que se situem entre um máximo e um mínimo - de um salário médio nacional, majorado e diminuído em 30%, respectivamente- enquanto para o cálculo das contribuições todas as remunerações superiores ao salário mínimo legal são relevantes. Pode, portanto, acontecer que um empregador tenha de pagar contribuições elevadas em relação a um trabalhador com um salário elevado, mas que o trabalhador em causa não tenha direito a uma pensão correspondentemente elevada, porque a sua remuneração ultrapassa o máximo da remuneração prevista por decreto. Ao invés, pode acontecer que remunerações relativamente baixas, calculadas com base no salário mínimo legal, dêem lugar a prestações que, quando relacionadas com as correspondentes remunerações, correspondem, em termos matemáticos, a salários consideravelmente mais elevados, designadamente ao salário médio nacional menos 30%. A existência de limites máximo e mínimo de remuneração a ter em conta para o cálculo do montante da pensão significa que o regime do INAIL se situa algures no centro do espectro: num dos extremos do espectro encontram-se os regimes em que as contribuições e as prestações são totalmente proporcionais; no outro extremo encontram-se os regimes em que as contribuições correspondem às remunerações, enquanto as prestações são idênticas para todos.

Elementos de solidariedade presentes no regime

67. Nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, são relevantes os elementos de solidariedade presentes na regulamentação da actividade do organismo em causa. Estes elementos podem de tal maneira ser fundamentais e predominantes que, em princípio, nenhuma companhia de seguros privada pode oferecer este tipo de seguros no mercado. Por outro lado, não são de forma a excluir a qualificação da actividade como actividade económica. Neste último caso, o problema resulta muitas vezes de saber em que medida estes elementos podem ajudar a justificar os direitos especiais ou de exclusivo atribuídos ao organismo em causa.

68. A este respeito, o INAIL, o Governo italiano e a Comissão chamam a atenção para o princípio do pagamento automático das prestações, nos termos do qual as prestações são pagas mesmo quando o empregador não cumpriu a obrigação de pagar as contribuições.

69. Concordo que este princípio constitui um importante elemento de solidariedade que contribui para a protecção de todos os trabalhadores contra as consequências de um acidente de trabalho ou de uma doença profissional. Quanto maior for o número de contratos de trabalho não declarados às autoridades ou quanto maior for a extensão do não pagamento das suas contribuições, maior será a relevância do princípio. Significa, em termos práticos, que os empregadores e os trabalhadores independentes que cumprem as suas obrigações têm de pagar por aqueles que não o fazem.

70. Importa, contudo, não esquecer que o princípio do pagamento automático é apenas um aspecto do regime em causa e que não faz parte directamente da finalidade essencial do regime, que é garantir aos trabalhadores assalariados um seguro baseado nas suas remunerações que cubra os acidentes de trabalho e as doenças profissionais mesmo quando o comportamento culposo do empregador não puder ser estabelecido e, em contrapartida, libertar estes últimos da sua responsabilidade civil. Acresce que a autoridade italiana em matéria de concorrência refere acertadamente que o pagamento automático das prestações poderia igualmente ser garantido por um fundo gerido pelo Estado ou por um organismo auxiliar. Importa recordar que, no ramo do seguro automóvel obrigatório, um fundo comum garante o pagamento das prestações do seguro, mesmo que o automóvel que causou o acidente não esteja seguro.

A autonomia do INAIL

71. Nos termos da jurisprudência já referida, deve, por último, ser apreciado se é o INAIL que fixa o montante das contribuições e das prestações. A questão subjacente é a de saber se esta entidade se encontra numa posição que lhe permita gerar efeitos que as regras da concorrência se destinam a evitar. Regimes em que os montantes das prestações e das contribuições são fixados pelo legislador estão fora do âmbito das regras da concorrência.

72. O INAIL, o Governo italiano e a Comissão alegam, em primeiro lugar, que o montante das prestações é fixado pelo T.U., portanto, pela lei. Estas prestações têm de ser pagas independentemente dos resultados financeiros dos investimentos do INAIL. Contrariamente ao regime em análise nos acórdãos Albany ou Pavlov e o., as prestações não são determinadas em função das contribuições, mas estas são determinadas com base nas prestações.

73. Em minha opinião, o facto de as prestações serem determinadas pela lei não pode excluir o INAIL do âmbito de aplicação das regras da concorrência. Em muitos sectores da economia, o legislador determina antecipada e obrigatoriamente as exigências (mínimas) dos serviços ou dos bens a fornecer pelas empresas. Na medida em que as empresas em causa possam competir, por exemplo, em relação ao preço desses bens ou serviços, podem desenvolver uma actividade económica.

74. O INAIL, o Governo italiano e Comissão sublinham, em segundo lugar, o facto de o montante das contribuições ter de ser aprovado por decreto do ministro competente. A Comissão considera, assim, que não só as prestações mas também as contribuições são determinadas pela lei.

75. A Cisal di Battistello Venanzio sustenta que, de acordo com o disposto no T.U., é o INAIL que tem de adoptar por resolução as tabelas em questão, enquanto o ministro tem apenas o poder de as aprovar ou recusar.

76. Com base nos documentos apresentados a este Tribunal, julgo que o poder de determinar os montantes das contribuições incumbe, em termos práticos e em última instância, ao governo. As disposições relativas aos montantes das contribuições dos trabalhadores assalariados e dos trabalhadores independentes são publicadas sob a forma de decretos ministeriais e publicadas na Gazzetta ufficiale della Repubblica italiana. Estes decretos não são uma mera aprovação formal das regras adoptadas por um organismo regulador separado e independente, mas vigoram como legislação comum preparada pelo governo. Além disso, o INAIL apresentou ao Tribunal de Justiça, a título de exemplo, uma carta na qual o ministro competente recusa a aprovação de novas tabelas para os artesãos. Com base em dados concretos, o ministro, designadamente, critica o facto de, no sector têxtil, os artesãos terem de pagar prémios muito mais altos do que os empregadores em relação aos seus trabalhadores e pede ao INAIL que lhe submeta uma nova proposta com as necessárias alterações.

Conclusões quanto à qualificação como empresa

77. Os regimes de seguro com um objectivo social têm diversas formas que vão dos regimes de segurança social estatais geridos, essencialmente, de acordo com o princípio da solidariedade, num dos extremos do espectro, a regimes com elementos de solidariedade isolados geridos por companhias de seguros privadas, no outro extremo. A tarefa de classificar os regimes intermédios é uma questão de grau que exige a análise de um conjunto de critérios. Considero que o regime gerido pelo INAIL é particularmente difícil de classificar.

78. Como se referiu anteriormente, a autoridade italiana em matéria de concorrência considera, baseada no seu profundo conhecimento da regulamentação legal nacional, que os seguros disponibilizados pelo INAIL são «integralmente comparáveis» aos seguros privados. Na opinião desta autoridade, isto resulta do facto de as contribuições estarem relacionadas com os riscos, de as prestações serem financiadas na sua totalidade através de contribuições e de existir uma dependência directa entre as contribuições e as prestações.

79. À luz da informação limitada de que dispõe este Tribunal, chego à conclusão oposta por duas razões fundamentais.

80. Em primeiro lugar, considero a conexão entre contribuições e prestações através da remuneração da vítima demasiado indirecta para ser comparável à conexão típica dos seguros privados. Concretamente, considero que nenhuma companhia de seguros privada poderia oferecer no mercado um regime em que apenas fossem consideradas para o cálculo do montante das pensões as remunerações que se situassem dentro de limites relativamente estreitos, compreendidos entre um máximo e um mínimo, enquanto para o cálculo das contribuições se considerassem todas as remunerações acima do salário mínimo legal. O regime permite atribuir pensões médias, mesmo no caso em que se tenha verificado o pagamento de contribuições elevadas ou muito baixas. Por força do elemento repartitivo, o regime actua sobretudo, em minha opinião, como um regime de segurança social que garante uma protecção social de base para todos os que participam no regime, e não tanto como um regime que garante prestações proporcionais às contribuições pagas pelas pessoas seguras.

81. Em segundo lugar, os montantes das prestações e das contribuições parecem ser determinados em última instância pelo Estado. Os montantes das prestações são fixados no T.U. Os das contribuições são fixados por decreto ministerial, portanto, por regulamentação normal do governo. Na prática, parecem também ser determinados pelo ministro competente, no uso das suas prerrogativas para aprovar ou recusar as tabelas propostas pelo INAIL. Uma vez que o INAIL não tem controlo sobre os dois elementos fundamentais do regime, não pode ser considerado uma entidade independente que desenvolve uma actividade económica.

82. Face ao exposto, concluo que uma entidade que assegura a gestão de um sistema nacional de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais, em condições idênticas às aplicadas ao Istituto nazionale per l'assicurazione contro gli infortuni sul lavoro, não pode constituir uma empresa para efeitos da aplicação das regras da concorrência.

Em alternativa: artigos 86.° CE e 82.° CE

83. Na sua segunda questão, o tribunal de reenvio pergunta, no essencial, se, no contexto italiano, um seguro obrigatório para artesãos contra acidentes de trabalho e doenças profissionais no INAIL infringe os artigos 86.° CE e 82.° CE.

84. O tribunal de reenvio coloca esta questão apenas no caso de o INAIL ser considerado uma empresa. Uma vez que, em minha opinião, o INAIL não pode ser considerado uma empresa e uma vez que as partes apresentaram observações muito escassas sobre esta questão, analisarei este aspecto apenas de forma alternativa e breve.

85. A Cisal di Battistello Venanzio sustenta que a legislação italiana infringe os artigos 86.° , n.° 1, CE e 82.° CE, na medida em que o seguro do INAIL não corresponde às necessidades das empresas filiadas . A protecção adequada dos trabalhadores pode, no seu ponto de vista, ser alcançada através de um seguro obrigatório oferecido por companhias de seguros às quais fosse fixado um conjunto de exigências mínimas.

86. O INAIL, o Governo italiano e Comissão referem que não há qualquer indício de violação do artigo 86.° , n.° 1, CE, aplicado em conjugação com o artigo 82.° CE. De qualquer forma, o direito exclusivo em causa justifica-se ao abrigo do artigo 86.° , n.° 2, CE.

87. É pacífico que o INAIL exerce um direito exclusivo na acepção do artigo 86.° , n.° 1, CE no que respeita ao seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais e que gere um monopólio legal em Itália e que, assim, tem uma posição dominante numa parte substancial do mercado comum na acepção do artigo 82.° CE.

88. É jurisprudência assente que o simples facto de criar uma posição dominante no mercado através de concessão de um direito exclusivo não é, em si mesmo, incompatível com o artigo 86.° , n.° 1, CE. Contudo, os artigos 86.° , n.° 1, CE e 82.° CE são violados no caso de o Estado-Membro criar um conflito de interesses que leve a empresa em causa a abusar da sua posição dominante ou no caso de a empresa não se encontrar manifestamente em condições de satisfazer a procura .

89. Como não há qualquer indício de conflito de interesses na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, há que examinar se o INAIL é manifesta e sistematicamente incapaz de satisfazer a procura.

90. A demandante - se bem compreendi as suas observações - queixa-se essencialmente do facto de apenas as remunerações abaixo de um determinado limite máximo serem tidas em conta para calcular o montante das pensões. Isto obriga os artesãos como Battistello Venanzio a subscrever um seguro privado suplementar de forma a que as prestações de que possam vir a beneficiar estejam verdadeiramente relacionadas com as remunerações anteriores ao acidente.

91. Penso que nada há de errado quando um regime público garante meios de subsistência baseados no salário médio nacional, podendo uma cobertura suplementar ser obtida através de um seguro privado. Esta complementaridade entre a protecção obrigatória de natureza pública e a protecção voluntária e suplementar de natureza privada constitui algo de normal em vários Estados-Membros.

92. Na sua opinião atrás mencionada, a autoridade italiana em matéria de concorrência também refere os seguintes problemas: as percentagens e classes de riscos para efeitos de cálculo das contribuições não são, em sua opinião, suficientemente adaptadas à natureza imprevisível das actividades em causa, as contribuições no sector industrial são artificialmente elevadas de forma a subsidiarem o regime deficitário do sector agrícola e o seguro do INAIL não cobre integralmente o âmbito potencial da responsabilidade dos empregadores, o que os obriga a subscrever seguros privados suplementares em relação a estes riscos.

93. Uma vez que nenhuma das partes que apresentou observações suscitou ou discutiu estes aspectos, não posso expor a minha opinião acerca dos mesmos. Se, contrariamente às minhas conclusões, o INAIL for considerado uma empresa, caberá ao tribunal nacional determinar se existem indícios concretos de que a República Italiana criou uma situação em que o INAIL, por um lado, detém um monopólio, mas, por outro lado, não se encontra manifestamente em condições de satisfazer a procura. Ao fazê-lo, terá de analisar se um abuso concreto ou potencial por parte do INAIL é consequência directa da intervenção regulamentar do legislador, se o regime é manifestamente inadequado e se o legislador ultrapassou a margem de apreciação que necessariamente tem neste âmbito .

94. O aspecto seguinte é saber se a atribuição ao INAIL do direito exclusivo de gerir o regime italiano de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais poderá, de alguma maneira, ser justificado ao abrigo do artigo 86.° , n.° 2, CE.

95. A este respeito, é pacífico que o INAIL foi encarregado de gerir um serviço de interesse económico geral na acepção do artigo 82.° , n.° 2, CE. Bastará, portanto, verificar se a supressão do direito exclusivo do INAIL entravará, de facto ou de direito, o cumprimento das missões que foram confiadas ao INAIL.

96. A Cisal di Battistello Venanzio sustenta que o monopólio do INAIL não é necessário para o cumprimento da exigência constitucional da protecção social dos trabalhadores. O mesmo resultado seria alcançado através de um seguro obrigatório de companhias de seguros privadas, às quais seriam impostas certas exigências legais mínimas. O princípio do pagamento automático das prestações poderia ser garantido através da criação de um fundo público.

97. O INAIL, o Governo italiano e a Comissão alegam que a supressão do direito exclusivo levaria a que os «bons riscos» fossem assumidos pelas seguradoras privadas, enquanto os «maus riscos» ficariam para o INAIL.

98. Ainda que esta linha de argumentação siga de perto o raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão Albany, penso que, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça não deveria pronunciar-se sobre este aspecto, na medida em que muitos dos dados relativos ao enquadramento factual e legal continuam pouco claros. Em minha opinião, o perigo de que apenas os bons riscos fossem assumidos pelos privados é bastante menor do que no caso do acórdão Albany porque, no caso em apreço, as contribuições estão em certa medida relacionadas com o risco. A apreciação final, se necessária, incumbirá ao tribunal de reenvio.

99. A este respeito, o INAIL o Governo italiano e a Comissão sublinham acertadamente, contudo, que o seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais tem uma função social essencial e que os Estados-Membros têm uma margem de apreciação para organizarem os seus sistemas de segurança social. Incumbe, assim, a cada Estado-Membro decidir se - tendo em conta as particularidades do contexto legal nacional - um regime com várias companhias de seguros privadas sujeitas a exigências legais mínimas lhe permitiria ainda assegurar o nível de protecção que visa garantir .

100. Face aos exposto, concluo que, se o INAIL for considerado uma empresa, caberá ao tribunal de reenvio determinar se o INAIL se encontra manifestamente em condições de satisfazer a procura e se a atribuição de um direito exclusivo se justifica ao abrigo do artigo 86.° , n.° 2, CE.

Conclusão

101. Pelas razões acima expostas, as questões submetidas devem ser respondidas, em minha opinião, da seguinte forma:

«Uma entidade que assegura a gestão de um sistema nacional de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho e doenças profissionais em condições idênticas às aplicadas ao Istituto nazionale per l'assicurazione contro gli infortuni sul lavoro não pode ser considerada uma empresa para efeitos da aplicação das regras da concorrência do Tratado CE.»