62000C0099

Conclusões do advogado-geral Tizzano apresentadas em 21 de Fevereiro de 2002. - Processo-crime contra Kenny Roland Lyckeskog. - Pedido de decisão prejudicial: Hovrätten för Västra Sverige - Suécia. - Questões prejudiciais - Obrigação de reenvio - Conceito de órgão jurisdicional cujas decisões não são susceptíveis de recurso judicial de direito interno - Interpretação do Regulamento (CEE) n.º 918/83 - Regime comunitário das franquias aduaneiras. - Processo C-99/00.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-04839


Conclusões do Advogado-Geral


Introdução

1 Por despacho de 9 de Março de e 2000, o Hovrätt för Västra Sverige (tribunal de 2.a instância para a Suécia Ocidental, a seguir «hovrätt») submeteu ao Tribunal de Justiça quatro questões prejudiciais, nos termos do artigo 234._ CE. As duas primeiras são relativas a esta disposição, nomeadamente ao seu terceiro parágrafo, e dizem respeito, respectivamente, ao conceito de órgão jurisdicional nacional ao qual incumbe a obrigação de proceder ao reenvio prejudicial e ao alcance dessa obrigação. As outras duas questões, submetidas a título subsidiário, dizem respeito à interpretação do Regulamento (CEE) n._ 918/83 do Conselho, de 28 de Março de 1983, relativo ao estabelecimento do regime comunitário das franquias aduaneiras (a seguir «Regulamento n._ 918/83») (1).

Enquadramento jurídico

Aspectos relativos ao processo prejudicial

O direito comunitário

2 Relativamente ao direito comunitário, limito-me a lembrar que o terceiro parágrafo do artigo 234._ CE define nos seguintes termos a obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça as questões mencionadas no primeiro parágrafo deste preceito:

«Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.»

O direito sueco

3 Na Suécia, os órgãos jurisdicionais comuns com competência em matéria civil e penal articulam-se em tingsrätter (tribunais de 1.a instância), hovrätter (tribunais de 2.a instância, em número de seis para todo o território da Suécia) e Högsta domstolen (tribunal supremo). Em regra, o recurso para o tribunal supremo de um acórdão ou de uma decisão definitiva de um tribunal de 2.a instância proferida por sua vez na sequência do recurso da sentença de um tingsrätt, está subordinado a uma declaração de admissibilidade por parte do próprio tribunal supremo, salvo se o recurso tiver sido interposto pelo procurador-geral junto do tribunal supremo, em processos penais.

4 Nos termos do § 10 do capítulo 54 do rättegångsbalk (Código do Processo), o tribunal supremo só pode proferir a declaração de admissibilidade se:

«1. for importante para a aplicação uniforme do direito que o recurso seja apreciado por um órgão jurisdicional superior; ou

2. existirem razões especiais para a apreciação do recurso, tais como a existência de fundamentos de revisão, um vício de forma ou se a decisão proferida no processo submetido ao tribunal de 2.a instância assentar manifestamente numa omissão ou num erro grave».

5 A revisão do processo, regulada pelos §§ 1 a 3 do capítulo 58 do rättegångsbalk, é um dos meios extraordinários de recurso mediante o qual é possível impugnar decisões transitadas em julgado. O n._ 2 do referido § 10 especifica que a revisão pode ser requerida quando surjam factos novos ou meios de prova que, se conhecidos antes da decisão, teriam presumivelmente conduzido a uma solução diferente da causa.

6 O § 11 do capítulo 54 admite ainda a possibilidade de a declaração de admissibilidade se limitar a um aspecto específico do caso, relativamente ao qual o controlo reveste especial importância para a aplicação uniforme do direito. Quando o tribunal supremo julga da admissibilidade do recurso, tem em consideração tanto a matéria de direito como a probatória, não estando de forma alguma vinculado à apreciação dos meios de prova a que procedeu o tribunal inferior.

7 Segundo os elementos fornecidos pelo Governo sueco nas observações escritas, das cerca de 24 000 decisões judiciais proferidas anualmente pelos hovrätter, perto de 5 000 são objecto de recurso para o tribunal supremo; destes, uns 150 a 200 (portanto, uma percentagem entre 3% a 4%) são declarados admissíveis.

Aspectos relativos ao regime de franquia aduaneira

A legislação comunitária

8 Quanto ao objecto do processo principal, há que atender ao Regulamento n._ 918/83 na parte em que este enuncia os casos especiais em que é concedida uma franquia dos direitos da pauta aduaneira comum. Com efeito, considerando que tal tributação não se justifica quando, em certas circunstâncias bem definidas, as condições particulares de importação das mercadorias não exigem a aplicação das medidas habituais de protecção da economia (segundo considerando), o Conselho procedeu à determinação dos «casos em que, devido a circunstâncias especiais, é concedida franquia de direitos de importação ou de direitos de exportação, respectivamente, quando as mercadorias são introduzidas em livre prática ou são exportadas da Comunidade» (artigo 1._, n._ 1).

9 Assim, em primeiro lugar, o artigo 1._, n._ 2, do regulamento, estabelece algumas definições, dispondo, designadamente, que se entendem por:

«a) `direitos de importação', os direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente, bem como os direitos niveladores agrícolas e outras imposições a cobrar na importação, previstas no âmbito da política agrícola comum ou no dos regimes específicos aplicáveis a certas mercadorias resultantes da transformação de produtos agrícolas;

b) `direitos de exportação' os direitos niveladores agrícolas e outras imposições a cobrar na exportação, previstas no âmbito da política agrícola comum ou no dos regimes específicos aplicáveis a certas mercadorias resultantes da transformação de produtos agrícolas;

c) `bens pessoais', os bens afectos ao uso pessoal dos interessados ou às necessidades da sua casa.

Constituem nomeadamente bens pessoais:

[...]

as provisões de casa que correspondam a um abastecimento familiar normal. [...] Os bens pessoais não devem traduzir, pela sua natureza ou quantidade, qualquer preocupação de ordem comercial;

d) `recheio da casa', os objectos pessoais, a roupa de casa e os móveis ou artigos de equipamento destinados ao uso pessoal dos interessados e às necessidades da sua casa;

e) `produtos alcoólicos', os produtos (cervejas, vinhos, aperitivos que tenham por base o vinho ou o álcool, aguardentes, licores ou bebidas espirituosas, etc.) incluídos nas posições 22.03 a 22.09 da pauta aduaneira comum».

10 O título XI do regulamento estabelece o regime das franquias de direitos de importação que os Estados-Membros concedem às mercadorias contidas nas bagagens pessoais dos viajantes provenientes de países terceiros. Nos termos do artigo 45._, sem prejuízo do disposto nos artigos 46._ a 49._, as referidas mercadorias são admitidas com franquia de direitos de importação «desde que se trate de importações desprovidas de qualquer carácter comercial». O n._ 2 dispõe que se entendem por:

«a) `bagagens pessoais' o conjunto de bagagens que o viajante está em condições de apresentar aos serviços aduaneiros por ocasião da sua chegada à Comunidade, assim como as que apresente posteriormente a esses mesmos serviços, sob reserva de justificar que foram registadas como bagagens acompanhadas, no momento da sua partida, na companhia que as transportou do país terceiro de proveniência para a Comunidade.

[...]

b) `importações desprovidas de qualquer carácter comercial', as importações:

- que apresentem um carácter ocasional e

- que respeitem exclusivamente a mercadorias reservadas ao uso pessoal ou familiar dos viajantes, ou destinadas a serem oferecidas como presente, não devendo a sua natureza ou quantidade traduzir qualquer preocupação de ordem comercial».

11 O artigo 47._ especifica que a franquia referida no artigo 45._ é concedida, por viajante, até ao valor global de 175 ecus (2). Os Estados-Membros podem reduzir o valor e/ou as quantidades de mercadorias a importar com franquia, quando importadas por: pessoas que tenham a sua residência na zona fronteiriça, trabalhadores fronteiriços e pessoal dos meios de transporte utilizados no tráfego fronteiriço.

A regulamentação sueca

12 O valor global de 175 ecus indicado no artigo 47._ do Regulamento n._ 918/83 foi calculado pela Generaltullstyrelse (Direcção-Geral das Alfândegas da Suécia) e depois confirmado pelo Tullverk no equivalente a 1 700 SEK (3). Uma disposição administrativa dos serviços aduaneiros locais fixou em 20 kg por pessoa a quantidade de arroz que pode ser importada para uso pessoal com franquia de direitos aduaneiros.

13 Nos termos do § 1 da varusmugglingslag (1960:418) (lei sueca relativa ao contrabando de mercadorias) quem intencionalmente e sem dar conhecimento à autoridade competente introduzir no país ou fizer sair do país mercadorias em relação às quais sejam cobrados direitos aduaneiros ou outros impostos ou taxas para a fazenda pública ou que por força do estabelecido na lei ou na constituição não possam ser importadas ou exportadas, será punido com multa ou prisão até dois anos. O § 8 da mesma lei dispõe que a tentativa de contrabando será punida nos termos do capítulo 23 do brottsbalk (código penal), segundo o qual quem iniciar a execução de um determinado crime sem que o mesmo venha a ser consumado será punido nos casos especificamente previstos por crime na forma tentada caso exista o perigo de o crime vir a ser consumado ou tal perigo só seja afastado devido a circunstâncias acidentais.

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

14 Em 7 de Abril de 1998, Kenny Lyckeskog (a seguir «Lyckeskog» ou «arguido»), tentou introduzir na Suécia 500 kg de arroz provenientes da Noruega. Ao entrar na Suécia, foi mandado parar quando passava através do corredor verde da alfândega em Svinesund e presente a juízo no tribunal de Strömstad, acusado de tentativa de contrabando de 460 kg de arroz, no valor de 3 564 SEK. A acusação tinha como fundamento jurídico os §§ 1 e 8 da lei relativa ao contrabando de mercadorias (1960:418) e o § 1 do capítulo 23 do código penal.

15 No decurso do processo no tingsrätt, o arguido admitiu os factos mas refutou a acusação de contrabando, alegando que o arroz se destinava ao seu consumo pessoal e da sua família. Lyckeskog explicou nomeadamente que, tendo tido que se deslocar à Noruega acompanhado pela sua mulher, antes da viagem soube que era permitido importar legalmente mercadorias para a Suécia no valor máximo de 1 700 SEK por pessoa. Por isso, durante a viagem comprou 25 sacos de arroz, de 20 kg cada, num total de 3 400 NKR, tendo pago cerca de 145 NKR, contra as 240 SEK que teria pago na Suécia ao preço corrente neste Estado. Para refutar a acusação de contrabando, Lyckeskog alegou que a sua mulher é de origem asiática, que com ele vivem também três filhos menores, que a família consome pelo menos 25 kg de arroz por mês e que são frequentemente visitados por uma filha adulta com a família, os quais também comem muito arroz. Por estas razões, calculava que o arroz em causa, que tem como data-limite de consumo Novembro de 2000, duraria cerca de um ano e meio.

16 O tingsrätt, depois de ter considerado que não havia razão para duvidar da afirmação do arguido de que o arroz se destinava ao seu consumo e da sua família, reconheceu, com base no artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83, que o arroz estava contido na bagagem pessoal do arguido, uma vez que tinha sido carregado no seu automóvel particular. Todavia, relativamente à condição estabelecida no mesmo artigo, que se refere a «mercadorias [...] não devendo a sua natureza ou quantidade traduzir qualquer preocupação de ordem comercial», o tingsrätt considerou que deve ser entendida no sentido de que a natureza e a quantidade das mercadorias consideradas objectivamente não devem dar lugar a dúvidas quanto ao carácter da importação. Segundo o tingsrätt, é esta a maneira de ver que está subjacente à decisão tomada pela autoridade aduaneira local, que fixou em 20 kg por pessoa a quantidade isenta de direitos normalmente admitida relativamente à importação de arroz para fins privados. Devido à grande dimensão atingida pelas importações de arroz da Noruega e à necessidade de evitar incertezas, o tribunal considerou também inevitável e mesmo conveniente que as autoridades aduaneiras tivessem fixado previamente uma determinada quantidade - inferior ao valor limite que de outra forma seria aplicável - como isenta de direitos aduaneiros. O tingsrätt concluiu por isso que a circunstância de o arroz não se destinar a venda posterior - e portanto ser destinado a um uso não comercial - não eximia o arguido da sua responsabilidade e condenou-o em multa por tentativa de contrabando, declarando o arroz perdido a favor do Estado.

17 O arguido recorreu da decisão do tingsrätt, pedindo a anulação da condenação e a revogação da decisão de declarar o arroz perdido a favor do Estado. Na sua opinião, o tingsrätt teria erradamente introduzido, de permeio entre a utilização de mercadorias para consumo pessoal e a destinada a fins comerciais, um conceito intermédio de uso para fins não comerciais, fixando para o efeito uma franquia diferente. Contudo, o Regulamento n._ 918/83 prevê apenas uma franquia para um valor limite de 175 ecus e põe como única condição que as mercadorias sejam destinadas a uso pessoal ou familiar. Assim, as autoridades suecas não poderiam impor restrições autónomas abaixo dos limites estabelecidos no regulamento nem introduzir um conceito de uso não comercial.

18 Perante uma questão que implicava a interpretação de disposições de direito comunitário, o hovrätt começou por se interrogar, no despacho de reenvio, se, no caso em apreço, devia ser considerado órgão jurisdicional de última instância e consequentemente destinatário, nessa qualidade, da obrigação de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. O mesmo tribunal respondeu afirmativamente à interrogação, na medida em que o sistema jurisdicional sueco só admite o recurso para o tribunal supremo nas condições previstas no § 10 do capítulo 54 do rättegångsbalk, acima referidas (n._ 3 e segs.), ou seja, apenas quando a complexidade jurídica da questão possa ter interesse como precedente jurisprudencial para efeitos da interpretação uniforme do direito, ou quando o hovrätt se tenha pronunciado de forma totalmente errada em matéria de direito. Em contrapartida, o despacho conclui que um erro não grave de interpretação e aplicação do direito comunitário não constitui, por si só, fundamento para a admissibilidade do recurso.

19 Tendo-se autoconsiderado «órgão jurisdicional de última instância» na acepção do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, o tribunal sueco interrogou-se depois no sentido de saber se era realmente necessário submeter ao Tribunal de Justiça as questões suscitadas no processo perante ele pendente. O hovrätt recorda que, com a conhecida jurisprudência CILFIT, o próprio Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de limitação da obrigação de reenvio prejudicial de uma questão de direito comunitário, quando o tribunal nacional constate que «a questão não é pertinente ou que a disposição comunitária em causa já foi objecto de interpretação da parte do Tribunal ou que a correcta aplicação do direito comunitário se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável» (4). Todavia, no caso específico, o hovrätt entende que as questões de direito comunitário que se colocam no processo principal não são do mesmo género das suscitadas no referido acórdão, muito embora a sua solução lhe pareça igualmente clara. Este órgão jurisdicional interroga-se, por conseguinte, quanto à questão de saber se, a confirmar-se a sua natureza de órgão jurisdicional de última instância, seria igualmente obrigado a proceder ao reenvio prejudicial, apesar de ele próprio considerar que pode dirimir o litígio sem interrogar o Tribunal de Justiça.

20 Nestas condições, o hovrätt decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

1) Um tribunal nacional que na prática é a última instância num processo, devido ao facto de ser exigida uma autorização específica para recorrer para que a causa possa ser apreciada pelo Supremo Tribunal do país, é um órgão jurisdicional de última instância na acepção do artigo 234._, terceiro parágrafo, CE?

2) Um tribunal nacional na situação prevista no artigo 234._, terceiro parágrafo, CE pode deixar de solicitar uma decisão a título prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias quando considerar que se mostra claro como devem ser apreciadas as questões de direito comunitário suscitadas no processo, mesmo que tais questões não estejam abrangidas pela doutrina do acto claro ou do acte éclairé?

No caso de o Tribunal de Justiça responder negativamente à primeira questão ou afirmativamente à primeira questão e negativamente à segunda questão - mas em nenhum outro caso -, o Hovrätt pretende que seja dada resposta também às questões seguintes.

3) Nos termos do artigo 45._, n._ 1, do Regulamento (CEE) n._ 918/83 do Conselho, de 28 de Março de 1983, relativo ao estabelecimento do regime comunitário das franquias aduaneiras, sem prejuízo do disposto nos artigos 46._ a 49._, são admitidas com franquia de direitos de importação as mercadorias contidas nas bagagens pessoais dos viajantes provenientes de um país terceiro, desde que se trate de importações desprovidas de qualquer carácter comercial. Isto implica que a natureza e a quantidade das mercadorias consideradas objectivamente não devem permitir dúvidas sobre o carácter da importação? Ou devem ser tidos em conta o modo de vida e os hábitos do indivíduo em causa?

4) Qual o valor legal de disposições administrativas das autoridades nacionais que fixam qual a quantidade isenta de direitos de uma determinada mercadoria - à qual é aplicável o Regulamento (CEE) n._ 918/83 do Conselho, de 28 de Março de 1983, relativo ao estabelecimento do regime comunitário das franquias aduaneiras - que normalmente é admitida?»

21 Na tramitação perante o Tribunal de Justiça apresentaram observações os Governos dinamarquês, finlandês, sueco e do Reino Unido, assim como a Comissão. Das respectivas posições irei dando conta na análise de cada uma das questões, que passo a desenvolver segundo a ordem em que se encontram formuladas no despacho de reenvio.

22 Antes, porém, cumpre-me ainda assinalar que, para uma melhor compreensão da primeira questão, o Tribunal de Justiça solicitou ao tribunal de reenvio que esclarecesse se o rättegångsbalk ou a prática dos tribunais se opõem a que o Högsta Domstol possa suscitar uma questão prejudicial no decorrer de um processo de declaração da admissibilidade de recurso de uma decisão do hovrätt. Este último respondeu que tal possibilidade não está vedada, embora a jurisprudência ainda não se tenha debruçado sobre a questão.

Análise jurídica

Quanto à primeira questão

23 Com a primeira questão o hovrätt pergunta se, na situação acima descrita, pode ser considerado um órgão jurisdicional de última instância e se está por isso obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial nos termos do artigo 234._, terceiro parágrafo, CE.

1. As observações das partes

24 Todos os intervenientes no processo tomaram posição sobre a questão em análise.

25 O Governo dinamarquês pronunciou-se a favor de uma resposta afirmativa à questão, preocupado com o facto de, caso contrário, se correr o risco de prejudicar a finalidade do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. Por isso, na opinião deste governo, os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões só são recorríveis na sequência de uma declaração de admissibilidade são considerados órgãos jurisdicionais de última instância na acepção daquele artigo.

26 Tese oposta defendem os Governos finlandês e sueco, com base sobretudo na referência formal, constante do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, aos órgãos jurisdicionais de última instância. Com efeito, segundo aqueles governos, o simples facto de as decisões do hovrätt serem susceptíveis de recurso é suficiente para excluir esses órgãos jurisdicionais do âmbito de aplicação da referida disposição, na medida em que a exigência de uma declaração de admissibilidade limita, mas não exclui, a possibilidade de o recurso ser apreciado pela instância superior. Além disso, observam aqueles governos, se o objectivo do artigo 234._ é evitar que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário, deve ter-se em conta que, no sistema jurisdicional sueco, a função de garantir a uniformidade da jurisprudência compete ao tribunal supremo e não aos tribunais de 2.a instância. Os dois governos acrescentam que, em todo o caso, a solução por eles preconizada não põe em risco a uniformidade do direito comunitário. Antes de mais porque os tribunais de 2.a instância têm a possibilidade de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, o que já de si reduz o risco de disparidades, mas sobretudo porque os casos em que se suscita a interpretação do direito comunitário e em que não existe já uma jurisprudência do Tribunal de Justiça podem ser considerados, regra geral, casos em que se impõe a declaração de admissibilidade, com a consequência de, na instância seguinte, incumbir ao próprio tribunal supremo, se necessário, proceder ao reenvio prejudicial. O Governo finlandês salienta que é isto o que acontece no seu país e que, segundo a doutrina, o tribunal supremo pode até decidir o reenvio logo no início da apreciação do pedido de admissibilidade do recurso. Por outro lado, aquele governo contrapõe que, se o tribunal de 2.a instância fosse considerado também um órgão jurisdicional de última instância, correr-se-ia o risco de, em relação a um mesmo processo, os destinatários da obrigação de reenvio serem não um, mas dois órgãos jurisdicionais.

27 Também o Governo britânico defende que a exigência de uma declaração de admissibilidade de um recurso para o tribunal supremo não é por si só suficiente para transformar o tribunal de 2.a instância em órgão jurisdicional de última instância na acepção do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. Se o objectivo específico desta disposição é evitar que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário, esse objectivo pode ser plenamente realizado impondo a obrigação do reenvio prejudicial ao tribunal que estatui sobre a declaração de admissibilidade. O Reino Unido, alargando o âmbito da análise a outros sistemas jurídicos, incluindo o britânico, afirma que este argumento vale tanto no caso em que o órgão jurisdicional competente para decidir da admissibilidade do recurso for o mesmo que proferiu a decisão de que se pretende recorrer («leave to appeal») como se for o órgão jurisdicional supremo («permission to appeal») ou se for primeiro um e depois o outro. Em todos estes casos, a ser necessária uma decisão sobre uma questão de direito comunitário, o órgão jurisdicional que decide em última instância quanto à admissibilidade deveria ou conceder a autorização para recorrer ou submeter a questão de direito comunitário ao Tribunal de Justiça. Segundo o Governo britânico, por conseguinte, a resposta à primeira questão deve ser negativa, na condição de que a ordem jurídica em causa permita ao órgão jurisdicional de última instância ter em conta a obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE e esse órgão efectivamente proceda em conformidade, em sede de apreciação da autorização.

28 Mais articulada é a análise que a Comissão desenvolve sobre a questão em apreço, dado que pensa conjugar ambas as possíveis respostas à questão, a fim de melhor aferir as suas implicações. Na óptica de uma resposta positiva, a Comissão observa que a exigência de uma declaração de admissibilidade significa que, em todo o caso, existe a possibilidade de o processo ser reapreciado. Contudo, se, na prática, a proporção dos pedidos acolhidos for demasiado baixa por ser difícil de conseguir a reapreciação do processo e se a admissão não constitui um direito por estar subordinada a determinadas condições, deve concluir-se que na realidade não existe um direito de recurso efectivo. Se esta posição for seguida, o hovrätt, como todos os órgãos jurisdicionais cujas decisões só são recorríveis na sequência de uma declaração de admissibilidade, será destinatário da obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. Porém, o facto de um órgão jurisdicional superior, como o Högsta domstol ou o seu equivalente noutros Estados-Membros, poder pronunciar-se quanto à declaração de admissibilidade ou conceder a autorização para recorrer implica que também este órgão jurisdicional pode estar obrigado ao cumprimento da referida obrigação. Esta circunstância não deveria no entanto criar problemas de maior porque tal eventualidade foi tida em consideração pelo próprio Tribunal de Justiça no acórdão Parfums Christian Dior no qual, como adiante se verá, o Tribunal de Justiça esclareceu que ainda que um órgão jurisdicional esteja obrigado, a mesmo título que outro, ao cumprimento do disposto no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, nem por isso o primeiro pode eximir-se à obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão idêntica ou similar (5). A Comissão observa que, se esta posição fosse acolhida, o tribunal e as partes ficariam com a certeza absoluta de que pelo menos um órgão jurisdicional nacional está obrigado a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, mas o número dos órgãos jurisdicionais destinatários dessa obrigação aumentaria consideravelmente.

29 Na óptica de uma resposta negativa, a Comissão assinala que, em todo o caso, existe a possibilidade, embora incerta e condicionada, de obter a declaração de admissibilidade e que, portanto, é de considerar que está prevista uma possibilidade de recurso na acepção do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. A Comissão reconhece que desse modo se torna incerto identificar o órgão jurisdicional destinatário da obrigação de reenvio, mas considera que a solução das dúvidas deve ser procurada nas ordens jurídicas nacionais, especialmente no que respeita à margem de liberdade por estas concedida, para efeitos do cumprimento daquela obrigação, ao tribunal competente para decidir em última instância sobre a admissão do recurso. De facto, segundo a Comissão, é a este tribunal que incumbe garantir, tendo bem presente o princípio do primado do direito comunitário e a obrigação de proteger as situações jurídicas baseadas nesse direito, que uma questão de interpretação do direito comunitário tenha sido ou seja tratada correctamente. Quer isto dizer que se considera que, se tal não aconteceu, o órgão jurisdicional competente para se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso deve remeter o processo ao órgão jurisdicional inferior, se tal for admitido pelo sistema de quo ou, em alternativa, decidir ele mesmo ou adoptar outra medida dentro dos limites consentidos pelo seu sistema jurídico. Nestes termos, pode, por conseguinte, ou decidir directamente o reenvio ao Tribunal de Justiça, logo em sede de apreciação da admissibilidade do recurso ou, se for caso disso, quando proceder à análise do respectivo mérito. Segundo a Comissão, do ponto de vista do direito comunitário, em todo o caso, o aspecto mais importante não é tanto o de saber que órgão jurisdicional é obrigado a proceder ao reenvio mas o facto de, como pretende o Tribunal de Justiça, existir durante a tramitação processual um órgão jurisdicional competente para garantir que seja assegurada uma interpretação uniforme do direito comunitário.

30 Em conclusão, embora reconhecendo que ambas as hipóteses equacionadas apresentam vantagens e desvantagens, a Comissão considera que, em ordem a evitar um aumento excessivo do número dos órgãos jurisdicionais destinatários da obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, deve dar-se preferência à segunda hipótese e, nesses termos, adoptar a posição de que o órgão jurisdicional que decide da admissão do recurso deve, sem ultrapassar o limite das possibilidades que o seu sistema jurídico faculta, garantir o respeito do direito comunitário e ser considerado órgão jurisdicional de última instância na acepção do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE.

2. O grau de desenvolvimento da jurisprudência comunitária

31 Antes de tomar posição sobre a questão em análise e sobre as soluções equacionadas pelas partes, parece-me conveniente proceder uma breve exposição da jurisprudência do Tribunal de Justiça pertinente nesta matéria.

32 Para tanto, devo antes de mais lembrar que, nos aspectos que ao caso interessam, a interpretação do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE foi inicialmente objecto de duas orientações opostas. De facto, uma parte considerável da jurisprudência dos Estados-Membros e da doutrina considera que a obrigação de reenvio incumbe exclusivamente aos órgãos jurisdicionais posicionados no vértice da pirâmide da respectiva organização judiciária, ou seja, aos tribunais supremos, dada a sua missão específica de garantes da interpretação uniforme da lei e da unidade do respectivo direito interno. Do lado oposto defende-se, pelo contrário, que a obrigação de reenvio encontra a sua própria razão de ser na necessidade de evitar juízos definitivos que conduzam a uma aplicação diferenciada do direito comunitário. Segundo esta tese, para garantir o efeito útil do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, será necessário imputar a obrigação nele prevista a qualquer tribunal que se pronuncie a título definitivo, independentemente da sua posição na hierarquia do sistema jurisdicional nacional.

33 A jurisprudência do Tribunal de Justiça orientou-se desde logo para a segunda tese. No famoso processo Costa/ENEL, submetido para decisão a título prejudicial pelo Giudice conciliatore de Milão, competente em primeira e única instância em razão do valor da causa, o Tribunal de Justiça declarou a título incidental que, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), «os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões são, como no caso sub judice, irrecorríveis, devem submeter ao Tribunal uma questão a título prejudicial sobre `a interpretação do Tratado', quando essa questão for suscitada perante eles» (6).

34 Ainda mais significativo é o posterior acórdão Hoffman-La Roche, em que o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se sobre uma questão relativa à interpretação do terceiro parágrafo do artigo 177._ do Tratado CE, suscitada por um tribunal alemão no âmbito de um processo sumário que tinha como objecto o pedido de uma providência cautelar (einstweilige Verfügung). O facto de não existir qualquer expediente jurídico para contestar as decisões proferidas no âmbito desse processo, podendo no entanto as partes posteriormente instaurar uma acção ordinária com o mesmo objecto, levara o tribunal a perguntar ao Tribunal de Justiça se era obrigado a suscitar a questão prejudicial. O Tribunal de Justiça declarou que «no âmbito do artigo 177._, o qual visa garantir que o direito comunitário seja interpretado e aplicado de maneira uniforme em todos os Estados-Membros, o terceiro parágrafo tem como fim, nomeadamente, o de evitar que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário. As exigências decorrentes desta finalidade são respeitadas, no âmbito de processos de natureza sumária e urgente como os do caso em apreço, relativos a providências cautelares, quando uma acção ordinária principal, permitindo a reapreciação de toda a questão de direito resolvida provisoriamente no processo de natureza sumária, deva ser proposta, seja em qualquer circunstância, seja quando a parte vencida o pede. Nestas condições, o objectivo específico visado pelo terceiro parágrafo do artigo 177._ é salvaguardado pelo facto de a obrigação de submeter ao Tribunal questões prejudiciais se exercer no âmbito do processo principal» (7).

35 Idêntica foi a orientação adoptada no processo Morson e Jhanjan, no qual o Tribunal de Justiça declarou, sempre no âmbito de um processo de natureza urgente, que «o objectivo específico visado pelo artigo 177._, terceiro parágrafo, é protegido quando a obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais se aplica no âmbito da apreciação de mérito do processo, mesmo que este decorra nos órgãos jurisdicionais nacionais de uma outra ordem jurisdicional diferente da do processo de medidas provisórias, desde que exista a possibilidade de submeter ao Tribunal de Justiça as questões de direito comunitário suscitadas, nos termos do artigo 177._» (8).

36 Parece assim claro que a principal preocupação do Tribunal de Justiça é acautelar o objectivo da disposição em análise, consubstanciado na necessidade de «evitar que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário» e, como tal, susceptível de prejudicar a interpretação e a aplicação uniforme do direito comunitário. Precisamente por este motivo, aquele objectivo deve ser salvaguardado, não de forma abstracta e formal mas atendendo ao carácter, definitivo ou não, da decisão em causa, porque se trata justamente de evitar que os tribunais nacionais tomem posição em questões de direito comunitário sem submeterem ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial nos casos em que não existam subsequentemente outras instâncias competentes para o fazer (9).

37 Se esta exigência for satisfeita, perde importância também a questão de saber em que processo nacional a questão é suscitada, nos casos em que, em princípio, sejam competentes para o efeito mais órgãos jurisdicionais. Em concreto, como se sabe, foi o que ocorreu no processo Parfums Christian Dior, no qual, embora a título diferente e por razões que não interessa aqui aprofundar, estavam em causa tanto a jurisdição do tribunal nacional supremo (o Hoge Raad) como a da Cour de Justice do Benelux. No respectivo acórdão, supra-referido, o Tribunal de Justiça constatou que ambos os tribunais deviam ser considerados órgãos jurisdicionais de última instância e, por conseguinte, destinatários da obrigação de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça prevista no terceiro parágrafo do artigo 177._ Mas esclareceu também que, no caso de um deles já ter recorrido ao Tribunal de Justiça, «essa obrigação fica todavia privada de causa e assim esvaziada de conteúdo quando a questão suscitada é materialmente idêntica a uma questão que já foi objecto de uma decisão a título prejudicial no quadro do mesmo processo nacional» (n._ 31). Nas conclusões apresentadas nesse processo, o advogado-geral F. G. Jacobs sublinhou, por seu lado, que, para satisfazer as exigências colocadas pelo terceiro parágrafo do artigo 177._, o Tribunal de Justiça deve ser chamado a pronunciar-se numa fase do processo anterior à decisão definitiva do tribunal nacional, na medida em que «as normas do Tratado visam impedir que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões sejam definitivas, resolva uma questão de direito comunitário sem antes a ter submetido ao Tribunal de Justiça. Nesta perspectiva, é irrelevante a natureza do processo em que é solicitada a decisão prejudicial» (10).

38 Finalmente, quanto ao apuramento do carácter definitivo de uma decisão e dos meios de recurso cuja existência impede que a sentença ou o acórdão sejam definitivos, a jurisprudência do Tribunal de Justiça não teve ainda oportunidade de fornecer indicações de carácter geral. Parecem-me no entanto muito significativas as observações desenvolvidas a este propósito pelo advogado-geral F. Capotorti no já referido processo Hoffman-La Roche. Depois de sublinhar que o conceito de recurso judicial não é de modo nenhum unívoco e varia de um sistema jurídico nacional para outro, o advogado-geral excluía daquele conceito quer os meios de recurso dos quais podem beneficiar não as partes mas outros sujeitos de direito, como, por exemplo, a oposição de terceiro ou o recurso do ministério público no interesse da lei, quer os recursos extraordinários como o de revisão, para concluir que «as decisões às quais se refere o terceiro parágrafo do artigo 177._ são todas aquelas que revestem um carácter definitivo, querendo com isto dizer que não dão lugar à reapreciação da causa quanto à matéria de facto ou tão-só quanto à matéria de direito, a pedido de uma das partes e sem que seja necessário que se verifiquem circunstâncias novas ou que se preencham certas condições de excepção» (11).

3. Apreciação

39 Parece-me que a ampla análise até agora desenvolvida oferece todos os elementos úteis para uma resposta à questão, resposta que - acrescento - em minha opinião, pode valer tanto em relação ao sistema específico sueco, em que o tribunal supremo dispõe de poderes para declarar a admissibilidade do recurso, como em relação aos sistemas jurídicos que já referi, em que compete (só ou também) ao tribunal que proferiu a decisão impugnada pronunciar-se sobre a admissibilidade do recurso.

40 Tal como quase todos os intervenientes no presente processo, também penso que, por mais que a exigência de uma declaração de admissibilidade limite a possibilidade de recurso das decisões dos hovrätter, é incontestável que tal possibilidade existe. E acrescento que esta circunstância é tanto mais relevante para os presentes efeitos quanto, como lembram os Governos sueco e finlandês, o referido recurso não configura um meio de recurso extraordinário ou excepcional, mas antes um «recurso em sentido estrito», ou seja, uma «verdadeira via de recurso ordinário» no quadro dos expedientes judiciais facultados pelo sistema; aliás, isto mesmo é também confirmado pelo facto, realçado pelo Governo finlandês, de os acórdãos dos hovrätter só poderem ser considerados definitivos depois de indeferido o pedido de autorização para recorrer. Por outro lado, o próprio Governo sueco lembra que nalguns processos (nomeadamente em matéria penal), o recurso das sentenças dos tribunais de 1.a instância (tingsrätter) está sujeito a autorização dos tribunais de 2.a instância sem que, naturalmente, seja posto em causa o carácter ordinário deste recurso. Não existe portanto qualquer fundamento para que as incertezas quanto à admissão do recurso sejam invocadas no seu aspecto negativo, a fim de ocultar o dado objectivo da possibilidade de recurso, e sejam ignoradas nas suas implicações positivas, ou seja, pelo menos para questionar, senão mesmo para excluir, a natureza dos hovrätter como órgãos jurisdicionais de última instância. Pelo contrário, parece-me que, dada a susceptibilidade de recurso, estes últimos não poderiam ser qualificados como tribunais de última instância, nem em sentido técnico nem à luz dos princípios inferíveis da jurisprudência do Tribunal de Justiça há pouco recordada.

41 Na realidade, porém, como acima se viu, o problema que se põe, neste como nos casos análogos há pouco recordados, não é tanto o de determinar qual, entre os órgãos jurisdicionais considerados, deve ser formalmente qualificado como órgão jurisdicional de última instância na acepção do artigo 234._, terceiro parágrafo, CE, como o de evitar que, optando pela solução que identifica o tribunal supremo como sendo esse órgão jurisdicional, se ponha em risco o insistentemente relembrado objectivo do artigo 234._ CE, de «impedir que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário» e, como tal, susceptível de prejudicar a interpretação e a aplicação uniforme do direito comunitário. O que de facto importa é a garantia do respeito deste objectivo relativamente a hipóteses como a do caso em apreço, em que o tribunal competente para decidir da autorização para recorrer pode recusá-la e pôr assim ponto final em todo o processo, sem que o Tribunal de Justiça tenha tido forma de se pronunciar sobre questões de direito comunitário eventualmente suscitadas no decurso do processo. Daí as reservas quanto às soluções que impliquem esse risco e a procura de expedientes jurídicos aptos a eliminá-lo, sempre que não seja possível fugir a tais soluções. É, de resto, o que claramente decorre das observações de quase todos os intervenientes no presente processo, apesar da opinião concordante quanto o facto de a possibilidade de recurso para o tribunal supremo excluir à partida a natureza do hovrätt como órgão jurisdicional de última instância. Por minha parte, considero que o Governo dinamarquês, mais do que uma real discordância quanto a esta apreciação, pretendeu sobretudo exprimir a sua preocupação pelos riscos que daí poderiam advir para a uniformidade de interpretação do direito comunitário nos Estados-Membros.

42 Parece-me, todavia, que para responder a esta legítima e fundamentada preocupação não é necessário forçar a natureza das decisões dos hovrätter, a fim de as transmutar em decisões de última instância, ou apelar às estatísticas do número de recursos admitidos, ou ainda invocar argumentos alheios à essência da questão em debate. A resposta deve antes ser encontrada no próprio artigo 234._ CE e na natureza da colaboração que este institui entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais de reenvio. Por outras palavras, deve ter-se presente que, ainda que normalmente se resolva na relação entre o Tribunal de Justiça e o tribunal de reenvio, esta colaboração envolve na realidade todo o sistema jurisdicional nacional, na sua globalidade e organicidade. É portanto ao quadro global do sistema jurisdicional em causa e não ao órgão jurisdicional em si que se deve atender no caso de incertezas ou de dificuldades como as do caso em apreço, a fim de apurar se esse sistema faculta os instrumentos aptos para satisfazer os objectivos do artigo 234._ CE. Foi de acordo com este percurso lógico que o Tribunal de Justiça decidiu, por exemplo, o já referido processo Parfums Christian Dior; e penso que o caso em apreço também se resolve seguindo o mesmo percurso. Pretendo com isto dizer, em suma, que o que interessa não é tanto levar a cabo um exercício abstracto de definição da natureza do órgão jurisdicional em questão quanto o verificar se e de que modo, à luz de uma análise global do sistema jurisdicional em causa, este último permite garantir o respeito dos objectivos do artigo 234._ CE.

43 Voltando às preocupações que expus nos últimos números, parece-me que um ponto ficou estabelecido com total clareza, a saber que, em princípio, órgãos jurisdicionais como o tribunal supremo sueco, precisamente enquanto órgãos jurisdicionais de última instância, estão em absoluto adstritos ao cumprimento da obrigação consagrada no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, a menos que o próprio sistema jurídico que integram lhes proporcione a faculdade de se eximirem a essa obrigação, sem violar aquela disposição. Seria este o caso, por exemplo, se a esses órgãos jurisdicionais fosse permitido, uma vez verificada a existência de uma questão de direito comunitário, não proceder directamente ao reenvio prejudicial e remeter o processo ao tribunal inferior para ser este a fazê-lo. Nesse caso, evidentemente, não se colocariam problemas de acatamento do artigo 234._ CE porque, repito, o que interessa ao direito comunitário é que se garanta o objectivo visado pela referida disposição e não que seja um determinado tribunal ou outro a assegurá-lo. Mas, aparte estas hipóteses, a obrigação do reenvio prejudicial impõe-se sem reservas a esses órgãos jurisdicionais, mesmo que o sistema jurídico a que pertencem não preveja a possibilidade de o fazerem no âmbito de determinados processos. Nestes casos, na verdade, independentemente do grau de desenvolvimento do direito nacional, a obrigação de reenvio decorre directamente do artigo 234._ CE e do primado do direito comunitário, visto que aqueles órgãos jurisdicionais, como o Tribunal de Justiça tem insistentemente salientado, não podem deixar de assegurar o cumprimento da obrigação em questão.

44 À luz do que antecede e dos elementos emergentes no decorrer do processo, parece-me agora mais fácil responder à questão específica suscitada no presente processo. Em primeiro lugar lembro que, nos termos do seu próprio direito interno, o tribunal supremo sueco deve declarar a admissibilidade de um recurso quando este envolva questões que põem em causa a aplicação uniforme do direito naquela ordem jurídica. Ora, é evidente que uma questão de interpretação do direito comunitário se enquadra nesta hipótese como, aliás, expressamente o confirmaram tanto o Governo sueco como o finlandês; este último assinalou mesmo a existência de uma prática e de orientações doutrinais nesse sentido.

45 Devo ainda acrescentar que, em resposta a uma pergunta do Tribunal de Justiça, o tribunal de reenvio esclareceu que, embora não existindo precedentes neste sentido, o sistema jurídico sueco não coloca qualquer impedimento a que, quando uma questão prejudicial de direito comunitário seja suscitada no decorrer da apreciação da admissibilidade de recurso de uma decisão do hovrätt, o Högsta domstol interrogue directamente o Tribunal de Justiça. Em contrapartida, não é claro se, nessa sede, pode recusar a autorização para recorrer e simultaneamente remeter o processo ao hovrätt para que seja este a proceder ao reenvio. No entanto, ainda que assim fosse, ficaria salvaguardado o respeito do artigo 234._ CE.

46 Ressalvada porém esta última hipótese, como já tive ocasião de afirmar, nada autoriza o Högsta domstol, quando perante ele for suscitada uma questão de direito comunitário, a eximir-se à obrigação de submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão a título prejudicial sempre que, bem entendido, se encontrem reunidas as outras condições prescritas pelo terceiro parágrafo do artigo 234._ CE e precisadas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Aquele poderá pronunciar-se obviamente em sede da apreciação do mérito do recurso, desde que o respectivo pedido de admissão tenha sido deferido. Mas também pode pronunciar-se logo em sede de apreciação daquele pedido, sobretudo se a tendência for no sentido de o recusar. Neste caso, se a posterior resposta do Tribunal de Justiça não fosse concordante com a decisão do hovrätt, e se não fosse possível remeter o processo a este último, o Högsta domstol seria obrigado a admitir o recurso, a fim de dar lugar à interpretação do Tribunal de Justiça. Isto devido quer às obrigações que nesse sentido decorrem do artigo 234._ CE quer ao facto de a própria lei sueca impor ao tribunal supremo que admita o recurso se for importante para a aplicação uniforme do direito.

47 Tanto num como noutro caso o acatamento do artigo 234._ CE seria salvaguardado sem que a solução que acabo de ilustrar acarretasse qualquer risco para o objectivo desta disposição ou, pelo menos, sem um risco maior do que o previsível em situações análogas e menos problemáticas.

48 À luz dos argumentos expostos, proponho por isso que se responda à primeira questão no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões sejam recorríveis, mas tal dependendo de uma apreciação da admissibilidade do recurso, não é, em princípio, um órgão jurisdicional de última instância na acepção do artigo 234._, terceiro parágrafo, CE.

Quanto à segunda questão

1. Introdução

49 Com esta questão, e partindo da hipótese de que, no caso em apreço, lhe incumba a obrigação consignada no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, o hovrätt pergunta-se se ainda assim pode não proceder ao reenvio prejudicial caso considere, como considera no caso sub judice, que as questões de direito comunitário suscitadas no processo perante ele pendente são «claras»; e isto, acrescenta o hovrätt em evidente alusão à jurisprudência CILFIT, mesmo que não estejam reunidas as condições indicadas nesse acórdão, designadamente se essas questões não forem enquadráveis na doutrina do «acte claire» ou «acte éclairé».

2. Os argumentos das partes

50 Só o Governo finlandês e a Comissão tomaram posição nesta matéria, tanto um como a outra a pretexto da generalidade e do sintetismo da própria questão, sugerindo uma reconsideração mais ou menos ampla da jurisprudência CILFIT.

51 Com efeito, por razões tanto de princípio como de ordem prática, o Governo dinamarquês defende que o Tribunal de Justiça reconsidere esta jurisprudência, que já leva mais de vinte anos. Nesse sentido, aquele governo subscreve inteiramente as conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs apresentadas no processo Wiener (12) nas quais se salientava que, como o direito comunitário se estendeu a numerosos novos domínios e o volume da legislação aumentou fortemente, essas circunstâncias implicaram inevitavelmente um aumento do número de reenvios prejudiciais ao Tribunal de Justiça. Todavia, como observava o advogado-geral, o recurso excessivo a decisões prejudiciais afectaria a qualidade, a coerência, e mesmo a acessibilidade da jurisprudência e pode, assim, mostrar-se contraproducente em relação ao objectivo final do artigo 234._ CE, que é garantir a aplicação uniforme do direito em toda a União Europeia. Em contrapartida, a limitação da obrigação de reenvio não só não poria necessariamente em perigo a certeza do direito mas poderia até ser-lhe útil; além disso, teria a vantagem de aligeirar a sobrecarga de trabalho do Tribunal de Justiça e reduzir o tempo dos processos. Por estes motivos, e partindo da premissa de que a missão do Tribunal de Justiça por força do artigo 234._ CE é não tanto garantir que o direito comunitário seja correctamente aplicado sempre que num órgão jurisdicional nacional se suscite uma questão de direito comunitário, quanto assegurar que este direito seja aplicado de modo uniforme em toda a Comunidade, o advogado-geral F. G. Jacobs propunha que se limitassem os reenvios aos casos em que «exista verdadeira necessidade de aplicação uniforme em toda a Comunidade por a questão ter um interesse geral» (n._ 50). Com efeito, uma vez que os tribunais nacionais vão estando cada vez mais familiarizados com o direito comunitário e que sobre este já hoje existe uma vasta e sedimentada jurisprudência a que esses órgãos jurisdicionais podem recorrer autonomamente, é possível pensar-se, segundo o advogado-geral F. G. Jacobs, numa autolimitação dos reenvios prejudiciais tanto por parte dos próprios tribunais nacionais, eventualmente com base nas linhas de orientação traçadas pelo próprio Tribunal de Justiça, como por parte deste último, que teria a liberdade de «desencadear um processo de autolimitação e de se confinar a questões de interpretação mais gerais» (n._ 45). Sem pôr em questão a jurisprudência CILFIT, pelo menos no essencial, o advogado-geral concluía no sentido de que as condições nela indicadas «só devem aplicar-se quando o reenvio ao Tribunal seja realmente adequado para realizar os objectivos do artigo 177._; quer dizer, quando uma questão de ordem geral se suscita e existe uma real necessidade de interpretação uniforme» (n._ 64).

52 Fazendo suas essas conclusões, o Governo dinamarquês lembra também que em sentido análogo se pronunciou o grupo de especialistas de alto nível criado pela Comissão no Outono de 1999 para proceder a uma reflexão sobre o futuro do sistema jurisdicional das Comunidades europeias. Com efeito, no seu relatório final (13) este grupo recomendou igualmente que, por um lado, se atribua maior responsabilidade aos tribunais nacionais no sentido de aplicarem eles próprios com mais frequência o direito comunitário e, por outro, que se limite a obrigação imposta aos órgãos jurisdicionais de última instância aos casos em que «as questões forem suficientemente importantes para o direito comunitário» e se, após exame pelos tribunais inferiores, subsistirem dúvidas razoáveis sobre a resposta a dar-lhes. Na opinião do Governo dinamarquês, o Tribunal de Justiça deveria inspirar-se neste modo de ver, atenuando os critérios demasiadamente restritivos do acórdão CILFIT, quer em geral quer no que concerne à sua explicitação no mesmo acórdão. Em especial, isto vale para a afirmação de que o tribunal nacional pode abster-se de proceder ao reenvio quando estiver convencido de que a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com evidência e que «a mesma evidência se imporia também aos órgãos jurisdicionais dos outros Estados-Membros e ao Tribunal de Justiça» (CILFIT, n._ 16). De facto, este critério não teria como pressuposto, segundo o Governo dinamarquês, a ausência de «dúvidas razoáveis» mas a ausência de dúvidas «tout court». Finalmente, reportando-se uma vez mais às conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs apresentadas no processo Wiener (n._ 65), o Governo dinamarquês solicita ao Tribunal de Justiça que elimine também o critério definido no acórdão CILFIT, de acordo com o qual o tribunal nacional deve estar convencido da evidência da solução da questão de interpretação tendo em conta a dificuldade de proceder ao confronto das várias versões linguísticas de uma norma comunitária.

53 Por seu lado, a Comissão considera não dever repor em discussão as condições estabelecidas pelo Tribunal de Justiça no processo CILFIT, com excepção do critério de que a interpretação do direito comunitário deve impor-se «com tal evidência» que não dê lugar a qualquer dúvida razoável. A propósito, lembra as recentes alterações ao artigo 104._, n._ 3, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça (14), no sentido de autorizar o Tribunal de Justiça a responder a um reenvio prejudicial mediante um despacho fundamentado não só, como anteriormente previsto, «quando uma questão prejudicial for manifestamente idêntica a uma questão que o Tribunal de Justiça já tenha decidido», mas também «quando a resposta a essa questão possa ser claramente deduzida da jurisprudência ou quando a resposta à questão não suscite nenhuma dúvida razoável». O facto de a última condição posta pelo artigo 104._, n._ 3, não ser acompanhada do esclarecimento de que a ausência de dúvidas razoáveis deve resultar «com evidência», como se diz no acórdão CILFIT, poderia ser considerado um indício no sentido de que esta ulterior condição já não é necessária e de que se poderia, por conseguinte, aludir apenas à ausência de «dúvidas razoáveis». Isto tanto mais que, como observa a Comissão, a experiência demonstra que os tribunais nacionais hesitam em reconhecer a «evidência» de uma situação e que o critério da evidente ausência de qualquer dúvida razoável parece impossível de respeitar.

54 Regressando ao caso em apreço, e depois de ter sublinhado que as derrogações aos princípios estabelecidos pelo Tratado devem ser interpretadas restritivamente, a Comissão observa que o tribunal de reenvio não esclareceu em que sentido e de que modo, no caso em apreço, a questão de interpretação do direito comunitário se coloca com «clareza». Seja como for, deve ater-se ao princípio de que a sua resposta não deve dar lugar a qualquer dúvida razoável, tendo em conta as várias versões linguísticas, a terminologia e os conceitos jurídicos, bem como os objectivos e o grau de desenvolvimento do direito comunitário. Só nessas condições é que o tribunal nacional poderá abster-se de submeter a questão ao Tribunal de Justiça e resolvê-la sob a sua própria responsabilidade, nos termos da jurisprudência CILFIT; todavia a existência daquelas condições deve ser fundamentada de forma a permitir a sua verificação objectiva, a fim de garantir que os objectivos do artigo 234._ não sejam comprometidos. A Comissão propõe, por conseguinte, que se responda negativamente à segunda questão, no sentido de que um órgão jurisdicional de última instância não pode deixar de cumprir a obrigação de reenvio, caso subsista uma dúvida razoável quanto à solução de uma questão relativa à aplicação do direito comunitário, tendo em consideração as várias versões linguísticas que fazem fé na mesma medida, a terminologia, os objectivos e o grau de desenvolvimento do direito comunitário.

3. A jurisprudência CILFIT

55 Antes de passar à análise das teses em presença, julgo conveniente lembrar, de forma sucinta mas mais pontual, os termos da jurisprudência CILFIT relevantes para o que ao caso interessa, bem como o contexto em que foi elaborada.

56 Como é sabido, esta jurisprudência nasceu sob a pulsão de exigências opostas, entre as quais procurou encontrar um ponto de equilíbrio razoável, muito embora não tenha conseguido lograr uma composição definitiva das posições discordantes como, de resto, o presente caso confirma. De um lado, em nome das exigências de ordem prática acima referidas, sublinhava-se a necessidade de evitar um afluxo excessivo de reenvios prejudiciais, com base no argumento de que a utilização do termo «questão» no artigo 234._ CE suporia a existência de uma dúvida de interpretação, ou invocando o princípio in claris non fit interpretatio ou ainda, seguindo as pisadas da jurisprudência francesa, recorrendo à doutrina do «acte claire» ou do «acte éclairé». Do outro lado, insistia-se na função fundamental do artigo 234._ CE, de garantir a uniformidade da interpretação do direito comunitário, para denunciar o risco de que eventuais fissuras no mecanismo de reenvio pudessem provocar um progressivo enfraquecimento de todo o sistema, devido à sua inevitável tendência para aumentar e ao risco da sua utilização diversificada, na prática.

57 Esta divergência, que surgiu de forma mais acentuada logo nos primeiros anos de aplicação do Tratado CE, veio a atenuar-se com o tempo e, na prática, só voltou a surgir com à prolação do acórdão CILFIT. O que não quer dizer que entretanto tudo tivesse seguido o rumo certo; pelo contrário, a prática dos órgãos jurisdicionais nacionais tornou-se tudo menos linear e, nalguns casos, revelou até clamorosas fugas ao cumprimento da obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. Com o correr do tempo, também o próprio Tribunal de Justiça pareceu atenuar a sua atitude inicial de total rigidez, por um conjunto de razões que não se torna necessário explanar a não ser para assinalar que entre elas se contava também, mas não só, o forte e rápido aumento do número e complexidade dos reenvios prejudiciais. Do outro lado, a ideia de que o artigo 234._ CE implica não uma sobreordenação mas uma colaboração entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais - ideia de início algo fluida, mas que veio depois a ser insistentemente valorizada pela jurisprudência comunitária em sentido verdadeiramente bilateral e como caracterizadora de todo o sistema - favorecia uma interpretação da obrigação de reenvio prejudicial em termos menos mecânicos e automáticos e levava necessariamente a reconhecer um papel mais activo e participativo aos tribunais nacionais, mesmo os de última instância.

58 É neste contexto e a partir destas premissas que nasce a jurisprudência CILFIT. Antes de mais esta procurou fazer face à já referida exigência de evitar reenvios desnecessários que teriam sobrecarregado desnecessariamente a actividade do Tribunal de Justiça e prejudicado o exercício eficaz da função que lhe é confiada pelo artigo 234._ CE. Para tanto, pese embora a rigidez de redacção do terceiro parágrafo deste artigo, considerou-se conveniente deixar aos tribunais nacionais de última instância alguma margem de apreciação que lhes permitisse ajuizar da efectiva necessidade do reenvio. Por conseguinte, como aliás já aqui recordei, o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de limitar a obrigação daqueles tribunais, de submeterem um pedido de decisão a título prejudicial relativamente uma questão de direito comunitário, quando se verifique que «a questão não é pertinente ou que a disposição comunitária em causa já foi objecto de interpretação pelo Tribunal (15) ou ainda que a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável» (16).

59 Precisamente com referência a esta última condição, todavia, o Tribunal de Justiça adoptou uma série de precauções destinadas a circunscrever a margem de discricionariedade dos órgãos jurisdicionais nacionais e a salvaguardar, apesar das fissuras abertas pela jurisprudência CILFIT, o objectivo fundamental do artigo 234._ CE, de garantir a correcta aplicação e a interpretação uniforme do direito comunitário em todos os Estados-Membros e, mais concretamente, no que respeita ao terceiro parágrafo deste preceito, de «evitar que se verifiquem divergências de jurisprudência no interior da Comunidade sobre questões de direito comunitário» (17). Reconhecendo assim que «a correcta aplicação do direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada», o Tribunal de Justiça advertiu, no entanto, que «antes de chegar a tal conclusão, o órgão jurisdicional nacional deve convencer-se de que a mesma evidência se imporia também aos órgãos jurisdicionais dos outros Estados-Membros e ao Tribunal de Justiça» (n._ 16). Além disso, «a configuração de tal eventualidade deve ser apreciada em função das características próprias do direito comunitário, das particulares dificuldades que a sua interpretação apresenta e do risco de divergências de jurisprudência no interior da Comunidade» (n._ 21). Em especial «deve, antes de mais, observar-se que as normas comunitárias são redigidas em diversas línguas e que as várias versões linguísticas fazem fé na mesma medida: a interpretação de uma norma comunitária implica, portanto, o confronto dessas versões». Mas, «mesmo em caso de plena concordância das versões linguísticas, o direito comunitário emprega uma terminologia que lhe é própria. Além disso, deve sublinhar-se que os conceitos jurídicos não apresentam necessariamente o mesmo conteúdo no direito comunitário e nos vários direitos nacionais. Finalmente, qualquer disposição de direito comunitário deve ser integrada no seu contexto e interpretada à luz do conjunto das disposições deste direito, dos seus objectivos, bem como do seu estádio de desenvolvimento no momento de aplicação da referida disposição» (n.os 18 a 20).

4. Apreciação

60 Voltando ao caso em apreço, devo antes de tudo insistir em que o sintetismo do despacho de reenvio neste ponto não facilita a exacta compreensão da questão colocada pelo hovrätt. Embora com alguma ambiguidade, resulta ainda assim evidente do contexto do processo principal que, das três condições enunciadas pela jurisprudência CILFIT, o hovrätt teve em mente a terceira. De facto, está fora de discussão a pertinência da questão relativa à interpretação do artigo 45._, n._ 1, do Regulamento n._ 918/83 para resolver o processo pendente no tribunal sueco; e por outro lado não existe uma jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a norma em questão (18).

61 Com tudo isto, porém, ainda nada se disse porque, na realidade, o hovrätt interroga-se quanto à existência da obrigação do reenvio ao Tribunal de Justiça por força do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, relativamente a uma questão de direito comunitário «clara», tendo contudo o cuidado de esclarecer que essa hipótese não se enquadra nos casos - como, por exemplo o do «acto claro» - em que um órgão jurisdicional de última instância pode, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, abster-se de proceder ao reenvio. Sendo a referência ao acórdão CILFIT evidente, a hipótese considerada pelo hovrätt diferenciar-se-ia no entanto, nas próprias palavras deste tribunal, da hipótese citada no acórdão CILFIT, de uma questão cuja solução «se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável». De facto, no caso presente, tratar-se-ia simplesmente de uma questão cuja solução é «clara».

62 Abstraio, por agora, das - não obstante justas - considerações da Comissão sobre a extrema generalidade de questão e sobre a ausência de qualquer fundamentação da mesma e abstraio também do facto de, como adiante se verá, as questões de fundo submetidas pelo despacho de reenvio não me parecerem tão «claras» quanto este pretende. O que mais me preme salientar é que o hovrätt parece propor uma espécie de articulação ulterior ou de explicitação da terceira condição enunciada pela jurisprudência CILFIT perspectivando-a de feição mais limitada e eu diria mesmo «subjectiva», porque alicerçada no facto de o tribunal nacional estar convencido de que lhe é possível resolver autonomamente uma questão, na medida em que esta não apresenta dificuldades de interpretação e é, por conseguinte, susceptível de ter uma solução «clara».

63 Bastam estas observações para justificar as grandes dúvidas que suscitaria uma eventual resposta afirmativa à questão em análise. Dúvidas que, de um ponto de vista geral, resultam do facto de essa resposta vir a alargar sensivelmente a margem de discricionariedade do tribunal nacional e, por consequência, a reduzir o alcance da obrigação de reenvio imposta aos tribunais de última instância pelo terceiro parágrafo do artigo 234._ CE; contudo, resultam ainda mais especificamente do facto de se introduzirem, de modo totalmente arbitrário, fortes elementos de incerteza e de subjectividade, logo de confusão, na aplicação daquele preceito.

64 Para justificar e até reforçar estas dúvidas, julgo conveniente recordar que o princípio da obrigatoriedade do reenvio prejudicial imposta aos tribunais de última instância não é fruto de uma opção extemporânea do Tribunal de Justiça, antes tem fundamento directo e formal no Tratado e constitui mesmo, pelos seus objectivos e implicações, um dos princípios fundamentais e mais caracterizantes, diria mesmo estrutural, da ordem jurídica comunitária. Desnecessário se torna pois afirmar que qualquer eventual derrogação a este princípio deve ser objecto de uma interpretação rigorosa. De resto, a partir precisamente desta matéria, foi recentemente sublinhado por fonte autorizada que, depois da jurisprudência CILFIT, seria difícil ao Tribunal de Justiça atenuar posteriormente o rigor do princípio em questão e permanecer simultaneamente fiel à letra e ao espírito do Tratado (19).

65 Ora, aparte o facto de no caso em análise não serem claros o sentido e o alcance da pretendida derrogação posterior do princípio, devo dizer que, de qualquer maneira, não só não se vislumbram a utilidade e necessidade de tal derrogação como, em contrapartida, é possível antever todos os riscos que lhe são inerentes. Com efeito, a jurisprudência CILFIT pretendeu dar corpo a um conjunto coerente e responsável de indicações úteis para orientar, com razoável equilíbrio, os tribunais nacionais; penso, no entanto, que nem o próprio Tribunal de Justiça alimentou a ilusão de ter desse modo conseguido estabelecer critérios seguros e definitivos, para não dizer infalíveis, para definir a obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE. De facto, não obstante aquela jurisprudência, é a própria natureza do problema que impede tais soluções, porque a aplicação do preceito presta-se objectivamente - e nem de outro modo poderia ser - a manter margens de «flexibilidade» e portanto a deixar em aberto alguma fissura, além mesmo das intenções dos tribunais, para possíveis evasões ao cumprimento da obrigação de reenvio. O facto de isso nem sempre acontecer ou de nem sempre conduzir a desenvolvimentos significativos não quer dizer que na prática tudo corra na perfeição, antes depende sobretudo da circunstância de tal evasão permanecer por vezes desconhecida ou parecer de menor importância; mas depende mormente da ausência de um mecanismo eficaz de controlo e resposta, ou melhor, no caso em apreço, da natureza puramente teórica do mecanismo existente. De facto, sabe-se que, nestes casos, a Comissão (e não só ela) considera justamente pouco viável e ainda menos conveniente o recurso à acção por incumprimento prevista no artigo 226._ CE. Mas, repito, o problema existe, e de vez em quando, volta mesmo a aflorar com algum aparato (20). Ora, as dificuldades objectivas a que, por si só, a aplicação da jurisprudência CILFIT já dá lugar, deveria desaconselhar a introdução de ulteriores elementos de incerteza e de ambiguidade nesta matéria e principalmente passar-se de uma linha de interpretação cimentada em critérios de apreciação o mais possível objectivos para outra que dê margem a apreciações subjectivas, para não dizer mesmo arbitrárias, por parte dos tribunais nacionais. Não julgo dramatizar a questão se observar que, doutra forma, se abriria a porta a uma ruptura progressiva da unidade e da uniformidade do direito comunitário e, em definitivo, do seu próprio primado.

66 Dito isto, poderia dar por concluída a minha análise se não fosse necessário dizer ainda algumas palavras sobre aos argumentos desenvolvidos pela Dinamarca, e em certa medida também pela Comissão, quanto à necessidade de rever a jurisprudência CILFIT. Como já antes lembrei, aquele governo, nas suas observações, fazendo-se eco das preocupações expressas pelo advogado-geral F. G. Jacobs e retomadas no já referido relatório do grupo de reflexão sobre o futuro do sistema jurisdicional das Comunidades europeias, solicita abertamente uma atenuação dos critérios da jurisprudência CILFIT, considerados demasiadamente rígidos e, como tal, inaptos para evitar o risco de um afluxo excessivo de reenvios prejudiciais. Em especial, volta a avançar com a ideia de limitar a obrigação imposta pelo artigo 234._ CE aos órgãos jurisdicionais de última instância aos casos em que «as questões forem suficientemente importantes para o direito comunitário» e em que subsistam «dúvidas razoáveis sobre a resposta a dar-lhes».

67 Não pretendo, em princípio, contestar a razão das preocupações que estão na base das propostas em análise e nem sequer a utilidade de algumas delas, a começar, nomeadamente, pelas relativas aos órgãos jurisdicionais que não estatuem em última instância (penso, por exemplo, na exigência de se fomentar uma autolimitação dos reenvios por parte desses tribunais). No entanto, gostaria antes do mais de recordar que, já depois da apresentação das propostas em análise, foram introduzidas alterações importantes ao Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça a que já acima me referi (n._ 53) e que, pelo menos em parte, essas alterações vão ao encontro das referidas preocupações, já que, como a prática se tem encarregado de demonstrar, permitem resolver mediante processos mais simples e mais expeditos uma série de questões menos problemáticas.

68 Por outro lado, julgo que estas preocupações também não devem ser exageradas, nomeadamente no que concerne ao contexto geral e aos problemas a que a quase totalidade dos órgãos jurisdicionais contemporâneos têm de fazer face. Com efeito, o número global dos reenvios prejudiciais é ainda limitado em comparação com a grande e crescente quantidade de processos em que nos tribunais nacionais é suscitada uma questão de direito comunitário e ainda mais se se tiver em conta o elevado número dos órgãos jurisdicionais habilitados a proceder ao reenvio e dos processos neles instaurados. Mas estas preocupações parecem-me sobretudo deslocadas se, como acontece no presente caso, se referem aos órgãos jurisdicionais de última instância, porque o número dos reenvios prejudiciais decididos por esses órgãos sempre foi e continua a ser ainda muito reduzido, quer em termos absolutos quer em termos de percentagem do número total de reenvios (21).

69 Parece-me portanto que não é neste sentido que, em termos úteis, se deve avançar para fazer face às referidas preocupações e que, em todo o caso, as vantagens decorrentes seriam na realidade demasiado modestas para justificar, se possível ou desejável, as implicações negativas e os riscos inerentes àquelas propostas. Basta pensar no risco de tornar ainda mais difícil para os interessados obter um despacho de reenvio de órgãos jurisdicionais que, como mostra a experiência, não demonstram especial vocação para atender esses pedidos e que já dispõem de (ou se arrogam) suficiente margem de autonomia. O que não só acarretaria o risco de limitar a protecção jurisdicional dos particulares mas acabaria inevitavelmente por se reflectir na interpretação e aplicação uniforme do direito comunitário. O próprio Tribunal de Justiça já várias vezes lembrou que o instituto do reenvio prejudicial constitui a verdadeira chave mestra para salvaguarda do carácter comunitário do direito instituído pelos tratados, porque protege a sua unidade e lhe permite ter os mesmos efeitos em toda a União, garantindo simultaneamente uma protecção jurisdicional eficaz dos particulares (22). Pode acontecer que o Tribunal de Justiça tenha ou venha a ter problemas resultantes do afluxo de reenvios prejudiciais; é minha firme convicção, no entanto, que exigências fortuitas e de ordem prática, por mais legítimas e compreensíveis que sejam, não podem ser satisfeitas em detrimento dos princípios e da coerência do sistema e ainda menos induzindo o Tribunal de Justiça a abdicar das responsabilidades que lhe incumbem nos termos do Tratado.

70 As dúvidas de carácter geral até agora expressas adensam-se quando se apreciam as propostas em análise do ponto de vista do seu mérito específico. Com efeito, o critério que assenta na «suficiente importância» da questão prejudicial de direito comunitário parece-me, como de resto os seus próprios autores reconhecem, pelo menos em parte, tão vago e incerto que se torna por demais natural imaginar o risco a que esse critério se prestaria, de dar acesso a recorrentes contenciosos e, sobretudo, de conceder uma margem excessiva de discricionariedade aos tribunais nacionais (e recorde-se que me refiro aos tribunais de última instância). Devo acrescentar que também se me torna difícil compreender aquela que continua a ser, em minha opinião, a fundamentação mais séria dessa proposta, ou seja, a ideia de que não cabe ao Tribunal de Justiça garantir que o direito comunitário seja correctamente aplicado nos processos concretos, mas apenas que este seja aplicado de modo uniforme. Pergunto-me se é possível separar os dois aspectos: aplicação correcta e interpretação uniforme; ou seja, se é possível conceber uma correcta aplicação do direito comunitário num caso concreto sem que tenha havido, se necessário, uma prévia interpretação uniforme do mesmo.

71 Mas também não me convenceu a outra proposta avançada nesta matéria, no sentido de excluir a obrigação de reenvio apenas nos casos em que a solução da questão de direito comunitário não suscite «dúvidas razoáveis», sem que seja também necessário, como decorre do acórdão CILFIT, que a ausência de tal dúvida se manifeste «com evidência». Gostaria antes de mais de esclarecer, a este propósito, que a necessidade dessa evidência não constitui uma condição ulterior, uma espécie de requisito adicional que o Tribunal de Justiça exige para eximir o órgão jurisdicional da obrigação de reenvio; trata-se, pelo contrário, de uma qualificação da «dúvida razoável», destinada a salientar não só que a dúvida tem realmente que existir, como também que não deve ser meramente subjectiva. Ou seja, trata-se de uma explicitação que, tal como o confronto das versões linguísticas dos textos, que daqui a pouco abordarei, pretende chamar a atenção para a especial prudência de que o tribunal nacional deve ter antes de excluir a existência de qualquer dúvida razoável. Suprimir do referido acórdão a expressão «de tal evidência» não tornaria a dúvida mais «razoável», antes a sujeitaria a um grau ainda maior de subjectividade e de discricionariedade (23). Todavia, parece-me ser este, em última análise - mesmo para além das intenções dos seus defensores - o resultado da proposta em análise, caso contrário não penso que valha a pena travar uma batalha terminológica numa situação em que o acórdão CILFIT já concedeu aos tribunais de última instância uma margem de apreciação significativa.

72 Ora, já antes me pronunciei várias vezes sobre ao facto de essa margem ser suficientemente ampla e de ser arriscado alargá-la ainda mais. O que pretendo salientar é que a idêntica conclusão tinha chegado já a própria instituição que solicitou o referido relatório do grupo de reflexão, isto é, a Comissão Europeia, apesar da posição mais aberta do que a que assumiu no presente processo. De facto, a Comissão observou que as vantagens da proposta em análise são muito reduzidas do ponto de vista do volume de trabalho do Tribunal de Justiça e que, em contrapartida, existe um perigo real para a uniformidade de aplicação do direito comunitário, em especial na perspectiva do alargamento da União, considerando assim indispensável manter a redacção actual do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, o que, como é sabido, veio a acontecer com a assinatura do Tratado de Nice, em 26 de Fevereiro do ano transacto (24).

73 No presente processo, como já lembrei, a Comissão partilha porém a opinião de que é conveniente atenuar o rigor da jurisprudência CILFIT no que diz respeito à evidência da existência de uma dúvida razoável, socorrendo-se, nomeadamente, das recentes alterações ao artigo 104._, n._ 3, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, que define os casos em que este pode responder a uma questão prejudicial mediante um simples despacho fundamentado (v., supra, n._ 53). Em especial, a Comissão salienta que o Tribunal de Justiça também pode fazer uso desta faculdade quando «a resposta a essa questão possa ser claramente deduzida da jurisprudência ou quando a resposta à questão não suscite nenhuma dúvida razoável». Portanto, o facto de nesta passagem não ter sido reproduzida integralmente a fórmula CILFIT, nomeadamente no ponto em que sublinha que a correcta interpretação do direito comunitário deve impor-se com «tal evidência» que não dê lugar a qualquer dúvida razoável, poderia avalizar a proposta para se reconhecer ao tribunal nacional uma mais ampla margem de apreciação.

74 Devo no entanto dizer que, mesmo sem proceder a uma análise literal das referidas alterações, não consigo vislumbrar a conexão entre aquela proposta e a nova redacção do artigo 104._, n._ 3, do Regulamento de Processo. De facto, no primeiro caso atende-se à qualidade e consistência das dúvidas que o tribunal nacional deve ter relativamente a uma questão de direito comunitário, para decidir se há-de ou não submetê-la ao Tribunal de Justiça; no segundo, atende-se às dúvidas que a solução pode eventualmente suscitar no Tribunal de Justiça para efeitos de escolha do processo a adoptar na resposta (25). Nestes termos, é evidente que os pressupostos e os objectivos do terceiro parágrafo do artigo 234._ CE e do terceiro parágrafo do artigo 104._ do Regulamento de Processo são, como não poderiam deixar de ser, completamente diferentes e que, em consequência, não se pode invocar um para efeitos do outro e vice-versa.

75 Por último, penso que também é de afastar a outra crítica que o Governo dinamarquês formula em relação à jurisprudência CILFIT, nomeadamente quanto ao ponto em que esta exige que o tribunal nacional esteja convencido da evidência de uma questão de interpretação, tendo em conta a dificuldade de proceder ao confronto das várias versões linguísticas de uma disposição comunitária. De facto, como há pouco assinalei, parece-me que não se trata aqui da imposição de uma condição ulterior por parte do Tribunal de Justiça, mas de sublinhar a especial prudência que o tribunal nacional deve ter antes de excluir a existência de qualquer dúvida razoável. Ou seja, parece-me que aquilo que o Tribunal de Justiça exige já não é que o tribunal nacional compare em todos os casos as várias versões linguísticas de uma disposição, mas que tenha presente o facto de se encontrar perante uma disposição que produz os mesmos efeitos jurídicos em todas as versões e que, por conseguinte, antes de dar por adquirida uma interpretação, deve pelo menos ter a certeza de não o ter feito apenas com uma abordagem literal da disposição. Neste sentido parece-me deporem também, embora tenham sido invocadas pelo Governo dinamarquês em abono da sua própria tese, as já referidas conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs em que este afirma que a referência no acórdão CILFIT às várias versões linguísticas «deve antes ser considerada [...] como uma medida de precaução essencial contra uma abordagem demasiado literal em matéria interpretação das disposições comunitárias. Reforça igualmente a tese de que essas disposições devem ser interpretadas à luz do seu contexto e das suas finalidades, tais como resultam do preâmbulo, de preferência a serem-no apenas com base no texto» (26). Pela minha parte, acrescento que a leitura comparada das diversas versões linguísticas é um método de interpretação que deve ser adoptado de igual modo quando haja que interpretar qualquer norma redigida em várias línguas, seja de origem estatal (nos Estados multilingues), comunitária ou internacional.

76 Proponho portanto que se responda à segunda questão que o terceiro parágrafo do artigo 234._ CE deve ser interpretado no sentido de que, mesmo que um tribunal nacional cuja decisão não seja susceptível de recurso judicial previsto no direito interno considere que uma questão de direito comunitário é clara, não deixa por isso de estar obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão a título prejudicial, a menos que tenha verificado que a questão não é pertinente ou que a disposição comunitária em causa já foi objecto de interpretação pelo Tribunal de Justiça ou que a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável, tendo em consideração, para esse efeito, as características próprias do direito comunitário, as especiais dificuldades que a sua interpretação apresenta e o risco de divergências de jurisprudência no interior da Comunidade.

Quanto à terceira questão

77 Com a terceira questão, o hovrätt solicita ao Tribunal de Justiça que o elucide sobre os elementos de apreciação a ter em conta para determinar os casos em que a importação de mercadorias contidas nas bagagens pessoais dos viajantes provenientes de um país terceiro pode ser considerada desprovida de qualquer carácter comercial nos termos do n._ 1 do artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83. Em especial, pergunta se esta disposição implica que a natureza e a quantidade das mercadorias consideradas objectivamente não devem permitir dúvidas sobre o carácter da importação ou se devem ser tidos em conta também o modelo de vida e os hábitos de cada indivíduo.

78 O Governo finlandês lembra que, nos termos do artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83, a franquia aduaneira para as mercadorias não mencionadas no artigo 46._ desse regulamento, é limitada pelo valor. Dentro dos limites desse valor (175 ecus por viajante), fixado pelo artigo 47._ do regulamento, é possível importar como bagagem pessoal uma quantidade considerável de mercadorias de escasso valor económico. Todavia, para decidir se o regime de franquia aduaneira também se aplica nesse caso, é essencial apurar se a importação reveste fins comerciais ou se destina ao uso pessoal ou familiar do viajante; para isso, é necessário atender, em cada caso concreto, não tanto à natureza e à quantidade das mercadorias importadas quanto o modelo de vida e os hábitos do viajante, porque é em relação a estes que a importação é qualificada como comercial ou não.

79 Por seu lado, o Governo sueco considera que para apurar se a importação é desprovida de qualquer carácter comercial nos termos do artigo 45._, n._ 2, alínea b), do Regulamento n._ 918/83, é preciso atender a todas as circunstâncias específicas do caso e, por conseguinte, tanto à natureza e à quantidade das mercadorias importadas como às condições económicas e pessoais do viajante; além disso, a importação deve ser ocasional.

80 Finalmente, a Comissão também considera que o artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83 não contém qualquer elemento a partir do qual se possa depreender que a quantidade e a natureza das mercadorias é determinante para decidir se a importação reveste ou não carácter comercial. Considera por isso contrário ao direito comunitário estabelecer uma quantidade fixa para um determinado tipo de mercadorias, para além da qual a franquia aduaneira não pode ser concedida; as autoridades nacionais devem antes ponderar, caso a caso, as condições exigidas pelo regulamento para a concessão da franquia.

81 Como já antes se viu, o n._ 1 do artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83 dispõe que, sem prejuízo do disposto nos artigos 46._ a 49._, são admitidas com franquia de direitos de importação as mercadorias contidas nas bagagens pessoais dos viajantes provenientes de um país terceiro, desde que se trate de importações desprovidas de qualquer carácter comercial. Para beneficiar desta disposição, devem assim verificar-se simultaneamente duas condições: que as mercadorias estejam contidas nas bagagens pessoais dos viajantes e que se trate de importações sem qualquer carácter comercial. Os limites à importação estão definidos nos artigos 46._ e 47._ Enquanto para algumas categorias de mercadorias - produtos de tabaco, bebidas alcoólicas, perfumes e medicamentos - o artigo 46._ limita a franquia admitida, por viajante, às quantidades fixadas em relação a cada uma delas, para as outras mercadorias o artigo 47._ estipula o valor global de 175 ecus, por viajante. Donde decorre que, dentro deste limite, e sempre que se verifiquem as duas condições enunciadas no artigo 45._, n._ 1, não é possível excluir, a priori, a importação de uma quantidade considerável de mercadorias de escasso valor económico.

82 No caso em análise, o tribunal de reenvio pede precisamente que lhe seja esclarecido em que medida, no âmbito da referida franquia aduaneira, a natureza e a quantidade das mercadorias são pertinentes para qualificar a importação. Para tanto, julgo que convém partir do artigo 45._, n._ 2, alínea b), em cujos termos são consideradas como desprovidas de carácter comercial as importações que apresentem carácter ocasional e as que respeitem exclusivamente a mercadorias reservadas ao uso pessoal ou familiar dos viajantes, ou destinadas a serem oferecidas como presente, não devendo a sua natureza ou quantidade revestir qualquer preocupação de carácter comercial. A norma faz assim referência a um conjunto de elementos de carácter objectivo e subjectivo. Entre os primeiros conta-se o carácter ocasional da importação, a natureza e a quantidade das mercadorias; entre os segundos, o seu destino para uso pessoal ou familiar e a inexistência de qualquer preocupação de carácter comercial.

83 Nestes termos, parece-me que no artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83 não existem elementos que permitam considerar que a natureza e a quantidade das mercadorias sejam por si só determinantes para decidir se uma importação reveste ou não carácter comercial. Se tivesse sido essa a intenção, o legislador comunitário teria fixado um limite quantitativo às importações de mercadorias em vez de um limite de valor. É certo que não se pode excluir que, em determinadas situações, a natureza e a quantidade das mercadorias suscitem a dúvida de que a importação reveste carácter comercial; todavia esse constatação por si só não pode levar a uma presunção inilidível do carácter comercial da importação, tanto mais que no artigo 45._, n._ 2, alínea b), a natureza e a quantidade das mercadorias só são tidas em consideração quando existam possíveis indícios do carácter comercial da operação.

84 Em contrapartida, e tal como quase todas as partes que se pronunciaram sobre este ponto, julgo que se devem ter em consideração todos os critérios indicados no preceito em análise e, portanto, também os de natureza subjectiva, ou seja, os que atendem ao destino das mercadorias para uso pessoal ou familiar e à ausência de preocupações de carácter comercial na importação. Por outras palavras, penso que é necessário proceder a uma análise das circunstâncias específicas de cada caso concreto e que, em especial, tratando-se de apreciar o destino para uso pessoal ou familiar do viajante, atender ao modelo de vida e aos hábitos do viajante.

85 Consequentemente, proponho que se responda ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 45._, n._ 1, do Regulamento n._ 918/83 deve ser interpretado no sentido de que, quando a natureza e a quantidade das mercadorias suscitem dúvidas sobre o destino da importação, o carácter não comercial desta deve ser avaliado pontualmente, à luz de uma apreciação global das circunstâncias específicas do caso concreto, tendo em conta o carácter ocasional da importação, o destino das mercadorias para uso pessoal ou familiar do viajante e os seus hábitos de vida, bem como a inexistência, por parte do viajante, de qualquer objectivo de carácter comercial.

Quanto à quarta questão

86 Com a quarta questão, o órgão jurisdicional sueco pretende saber qual o valor legal de disposições administrativas das autoridades nacionais que fixam a quantidade isenta de direitos de uma determinada mercadoria à qual é aplicável o Regulamento n._ 918/83.

87 A propósito, o Governo finlandês lembrou que o Regulamento n._ 918/83 se propõe estabelecer um regime uniforme das franquias aduaneiras em todo o território da Comunidade. Mas não atribui aos Estados-Membros o direito de imporem restrições quantitativas ou presunções inilidíveis em relação a determinados produtos. Tais disposições nacionais seriam contrárias ao direito comunitário, mas já não o seriam os actos sem efeito vinculativo, com instruções às autoridades aduaneiras, fixando quantidades indicativas abaixo das quais se presume o carácter não comercial da importação.

88 Por seu lado, o Governo sueco explica que as disposições da administração aduaneira, que fixam em 20 kg por pessoa a quantidade de arroz admitida em franquia, não têm carácter vinculativo, sendo meras recomendações destinadas exclusivamente a dispensar os funcionários aduaneiros da necessidade de verificar, caso a caso, se subsistem as condições para admissão em franquia aduaneira. A fim de demonstrar a correcção da sua posição, o Governo sueco reporta-se à jurisprudência do Tribunal de Justiça na qual, sempre relativamente a questões de direitos e de franquias aduaneiras, este declarou que «os Estados-Membros apenas conservam no domínio em questão a competência limitada que lhes é reconhecida» pelos actos comunitários pertinentes (no caso, a Directiva 69/169/CEE (27) que - tal como o Regulamento n._ 918/83 aqui objecto de interpretação - não prevê a faculdade de fixar limites quantitativos para mercadorias não expressamente contempladas pela directiva). Com base nesta premissa, o Tribunal de Justiça considerou ilegítima uma medida nacional que tinha fixado um limite quantitativo à admissão em franquia aduaneira de determinadas mercadorias, em termos que implicavam uma presunção inilidível do carácter comercial da importação (28). O Governo sueco deduz portanto desta jurisprudência, a contrario, que os Estados-Membros podem adoptar disposições sem efeito vinculativo nos casos em que sejam fixadas quantidades de mercadorias admitidas em franquia aduaneira, sem prejuízo da possibilidade de o viajante provar o carácter não comercial da importação de uma quantidade de mercadorias superior àquele limite mas abrangida pelo limite de 175 ecus previsto no artigo 47._ do regulamento.

89 No mesmo sentido se pronunciou também a Comissão, embora salientando que, no caso em apreço, não é claro se as disposições suecas têm ou não efeitos vinculativos. Contudo, quanto a este ponto, a Comissão assinala que é o tribunal nacional que tem de se pronunciar, tendo presente que as disposições em causa só são legítimas se não tiverem efeitos vinculativos.

90 Como se acaba de ver, todas as partes que se pronunciaram sobre este ponto concordam em considerar que os Estados-Membros não podem adoptar disposições com efeito vinculativo para fixar limites quantitativos às franquias aduaneiras ou, em qualquer caso, para criar uma presunção inilidível do carácter comercial de uma importação, em razão da quantidade de mercadorias importadas. No máximo, são permitidas instruções de serviço emanadas das autoridades aduaneiras, indicando as quantidades de uma determinada mercadoria admitida em franquia, sem prejuízo da possibilidade de o viajante provar que a quantidade superior não é importada para fins comerciais.

91 Em meu entender, esta conclusão é correcta e por isso não tenho qualquer dificuldade em subscrevê-la; creio todavia que é possível precisar o seu alcance ulterior e coerentemente, acrescentando algumas considerações. De facto, convém lembrar que o Regulamento n._ 918/83 parte directamente da constatação da necessidade de uma disciplina comum na matéria que dele é objecto, em conformidade com as convenções internacionais de que os Estados-Membros são partes; ou seja, nasce da necessidade imperiosa de adopção de uma «regulamentação comunitária das franquias aduaneiras, de modo a eliminar, de acordo com as exigências da união aduaneira, as divergências quanto ao objecto, alcance e condições de aplicação das franquias previstas por essas convenções e a permitir a todas as pessoas interessadas beneficiarem das mesmas vantagens em toda a Comunidade» (quarto considerando). Portanto, se é legítimo permitir a cada Estado-Membro dar «instruções» ou «recomendações» aos funcionários aduaneiros, mesmo que sem efeitos vinculativos, com o objectivo de fixar limites quantitativos não previstos pelo regulamento, isso não deve comprometer de modo algum a aplicação uniforme do regime comunitário das franquias aduaneiras.

92 Para tanto, parece-me antes de mais que a eventual indicação de um limite quantitativo à importação através de uma disposição administrativa nacional deve ser razoável e proporcional. Quero com isto dizer que, uma vez traduzido esse quantitativo em termos monetários, não deve andar muito longe do limite do valor global de 175 ecus fixado pelo artigo 47._ do Regulamento n._ 918/83. Deste ponto de vista parece-me que, pelo contrário, no que diz respeito ao caso em apreço, a quantidade de 20 kg de arroz por pessoa admitida em franquia aduaneira e a que corresponde o preço de 240 SEK, está bastante longe do limite de 175 ecus fixado pelo artigo 47._ do regulamento, limite esse fixado pelas autoridades suecas no montante de 1 700 SEK.

93 Na mesma perspectiva, penso ainda que o viajante deve ter condições para defender os seus interesses sem dificuldades excessivas quer no que respeita ao conhecimento do conteúdo exacto do seu direito de admissão em franquia aduaneira tal como definida pelo Regulamento n._ 918/83 quer no que diz respeito às provas que tem de fornecer e que não devem ser excessivamente rigorosas ou colocá-lo na impossibilidade material de demonstrar o carácter não comercial da importação.

94 À luz das considerações que antecedem, considero portanto que o artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83 se opõe a disposições ou práticas administrativas nacionais com efeitos vinculativos, que fixem limites quantitativos às franquias aduaneiras ou, em qualquer caso, gerem uma presunção inilidível do carácter comercial da importação, em razão da quantidade das mercadorias importadas.

95 Em conclusão, proponho que se responda às questões submetidas pelo Hovrätten för Västra Sverige nos seguintes termos:

«1) O artigo 234._, terceiro parágrafo, CE, deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional cujas decisões sejam recorríveis, dependendo de um exame da admissibilidade do recurso, não é em princípio um órgão jurisdicional de última instância na acepção do artigo 234._, terceiro parágrafo, CE.

2) O artigo 234._, terceiro parágrafo, CE, deve ser interpretado no sentido de que, mesmo que um tribunal nacional cuja decisão não seja susceptível de recurso judicial previsto no direito interno considere que uma questão de direito comunitário é clara, não deixa por isso de estar obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão a título prejudicial, a menos que tenha verificado que a questão não é pertinente ou que a disposição comunitária em causa já foi objecto de interpretação pelo Tribunal de Justiça ou que a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável, tendo em consideração, para esse efeito, as características próprias do direito comunitário, as especiais dificuldades que a sua interpretação apresenta e o risco de divergências de jurisprudência no interior da Comunidade.

3) O artigo 45._, n._ 1, do Regulamento 918/83 do Conselho, de 28 de Março de 1983, relativo ao estabelecimento do regime comunitário das franquias aduaneiras deve ser interpretado no sentido de que, quando a natureza e a quantidade das mercadorias suscitem dúvidas quanto ao destino da importação, o carácter não comercial desta deve ser avaliado pontualmente, à luz de uma ponderação global das circunstâncias específicas do caso concreto, tendo em conta o carácter ocasional da importação, o destino das mercadorias para uso pessoal ou familiar do viajante e os seus hábitos de vida, bem como a inexistência, por parte do viajante, de qualquer objectivo de carácter comercial.

4) O artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83 opõe-se a disposições e práticas administrativas nacionais com efeitos vinculativos, que fixem limites quantitativos às franquias aduaneiras ou que, em qualquer caso, gerem uma presunção inilidível do carácter comercial da importação, em razão da quantidade de mercadorias importadas.»

(1) - JO L 105, p. 1; EE 02 F9 p. 276.

(2) - Na versão alterada pelo artigo 1._ do Regulamento (CE) n._ 355/94 do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1994, que altera o Regulamento n._ 918/83 (JO L 46, p. 5).

(3) - Tullverkets författningssamling 1996:36, 1998:34 och 1999:47.

(4) - Acórdão de 6 de Outubro de 1982, CILFIT (283/81, Recueil, p. 3415).

(5) - Acórdão de 4 de Novembro de 1997, Parfums Christian Dior (C-337/95, Colect., p. I-6013, n._ 30).

(6) - Acórdão de 15 de Julho de 1964 (6/64, Colect., p. 549, em particular p. 554).

(7) - Acórdão de 24 de Maio de 1977 (107/76, Colect., p. 333, n._ 5).

(8) - Acórdão de 27 de Outubro de 1982 (35/82, Recueil, p. 3273, n._ 9).

(9) - Como observou o advogado-geral F. Capotorti nas conclusões apresentadas no processo 107/76, já referido (Colect. 1977, p. 339, n._ 4), «com o fim de permitir ao Tribunal o exercício pleno e eficaz da sua função de protecção uniforme dos direitos criados pela ordem comunitária em favor dos particulares, será justo considerar que os juízes em qualquer instância estão obrigados ao reenvio prejudicial no âmbito de qualquer processo que conduza necessariamente a uma decisão definitiva».

(10) - Conclusões apresentadas no processo C-337/95, já referido (Colect. 1997, p. I-6023, n._ 28).

(11) - V. as referidas conclusões apresentadas no processo 107/76 (Colect. 1977, p. 333, em particular p. 339).

(12) - Acórdão de 20 de Novembro de 1997 (C-338/95, Colect., p. I-6495, n._ 60 das conclusões).

(13) - Relatório do grupo de reflexão sobre o futuro do sistema jurisdicional das Comunidades europeias, Janeiro de 2000.

(14) - Alterações ao Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, de 16 de Maio de 2000 (JO L 122, p. 43).

(15) - A propósito, o Tribunal de Justiça tinha já declarado no acórdão de 27 de Março de 1963, Da Costa (28/62 a 30/62, Colect., p. 233) que, «se o artigo 177._, último parágrafo, obriga, sem excepção, os órgãos jurisdicionais nacionais [...] cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional no direito interno a submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão de interpretação suscitada perante eles, pode, porém, acontecer que, por força da interpretação dada pelo Tribunal ao abrigo do artigo 177._, essa obrigação perca a sua razão de ser e fique destituída de conteúdo. Isto acontece, designadamente, quando a questão suscitada é materialmente idêntica a uma questão que foi já objecto de uma decisão a título prejudicial num processo análogo»; v. também o acórdão Parfums Christian Dior, já referido, n._ 29.

(16) - Acórdão CILFIT, já referido no n._ 21.

(17) - Acórdão CILFIT, já referido no n._ 7.

(18) - Até agora, o Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a interpretação do Regulamento n._ 918/83 nos acórdãos de 3 de Dezembro de 1998, Schoonbroodt (C-247/97, Colect., p. I-8095), relativamente ao artigo 112._, n._ 2, alínea c), sobre o conceito de «reservatórios normais»; e de 19 de Janeiro de 1999, Heinonen (C-394/97, Colect., p. I-3599), relativamente às restrições à importação de bebidas alcoólicas em função da duração da viagem.

(19) - V., neste sentido, Edward, D., «Reform of article 234 procedure: the limits of the possible», in D. O'Keeffe (ed.), Judicial Review in European Union Law, Liber Amicorum Slynn 119-142 (2000), The Hague, p. 123.

(20) - V., por exemplo, a decisão de 9 de Janeiro de 2001, 1 BvR 1036/99, pela qual o Bundesverfassungsgericht, embora interpretando com alguma generosidade a obrigação prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ CE, anulou um acórdão do Bundesverwaltungsgericht, porque este último, sendo embora um órgão jurisdicional de última instância, não tinha submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial relativamente a uma questão de direito comunitário (v. Juristenzeitung 2001, pp. 923 e 924).

(21) - Limito-me a lembrar que, de 1960 a 2000, o número de reenvios prejudiciais apresentados pelos órgãos jurisdicionais de última instância foi pouco mais de um quarto do total (1 173 em 4 381).

(22) - V., por exemplo, o «Relatório do Tribunal de Justiça sobre certos aspectos da aplicação do Tratado da União Europeia», Luxemburgo, Maio de 1995, p. 6.

(23) - Lembro que nas conclusões apresentadas no processo 283/81, CILFIT, já referido (n._ 7), o advogado-geral F. Caportorti advertiu que «é evidente que se se acolhesse a ideia de que a obrigação de reenvio prejudicial só existe em presença de uma razoável dúvida de interpretação, isso introduziria um elemento subjectivo e incerto; tal poderia comprometer a prossecução do objectivo do processo ex artigo 177._».

(24) - Na «Contribuição complementar da Comissão para a Conferência Intergovernamental sobre a reforma institucional - A reforma do sistema jurisdicional comunitário», de 1 de Março de 2000, [COM (2000) 109 final, p. 5], pode ler-se que «a Comissão não considera oportuno flexibilizar a obrigação que é imposta aos tribunais de última instância de formularem questões prejudiciais e que actualmente está prevista no terceiro parágrafo do artigo 234._ do Tratado, no sentido de obrigar esses tribunais a só interrogarem o Tribunal de Justiça se as questões forem suficientemente importantes para o direito comunitário e se, após exame pelos tribunais inferiores, subsistirem dúvidas razoáveis sobre a resposta a dar-lhe. A Comissão considera que as vantagens desta flexibilização seriam muito reduzidas do ponto de vista do volume de trabalho do Tribunal de Justiça e que, em contrapartida, existe um perigo real para a uniformidade da aplicação do direito comunitário, em especial na perspectiva do alargamento. A Comissão considera indispensável, por isso, manter a redacção actual do terceiro parágrafo do artigo 234._ do Tratado. Evidentemente, a flexibilidade introduzida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça continuará a aplicar-se».

(25) - De resto, a demonstrar que a disposição em causa se destina ao Tribunal de Justiça e diz exclusivamente respeito às suas exigências específicas, está o facto de, diferentemente do que acontece na jurisprudência CILFIT, não se fazer qualquer referência às exigências da pertinência da questão prejudicial para o objecto da acção, condição cuja apreciação compete em princípio ao tribunal nacional (v. acórdãos CILFIT, já referido, n._ 10, e de 27 de Junho de 1991, Mecanarte, C-348/89, Colect., p. 3277, n._ 47).

(26) - Conclusões apresentadas no processo C-338/95 (Colect. 1997, p. I-6495, n._ 65). Sublinhado meu.

(27) - Directiva do Conselho, de 28 de Maio de 1969, relativa à harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às franquias dos impostos sobre consumos específicos cobrados na importação no tráfego internacional de viajantes (JO L 133, p. 6; EE 09 F1 p. 19), na versão alterada pela Directiva 87/198/CEE do Conselho, de 16 de Março de 1987 (JO L 78, p. 53). O artigo 3._ da directiva retoma, no que ao caso interessa, no que diz respeito às «importações sem carácter comercial» a mesma definição do artigo 45._ do Regulamento n._ 918/83.

(28) - V. acórdão de 6 de Dezembro de 1990, Comissão/Dinamarca (C-208/88, Colect., p. I-4445).