Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 29 de Novembro de 2001. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Italiana. - Incumprimento de Estado - Directiva 78/687/CEE - Manutenção de uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista - Manutenção da possibilidade de uma dupla inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas para os médicos visados no artigo 19.º da Directiva 78/686/CEE. - Processo C-202/99.
Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-09319
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
1. Acção por incumprimento - Exame da procedência pelo Tribunal de Justiça - Situação a tomar em consideração - Situação no termo do prazo fixado no parecer fundamentado
(Artigo 226.° CE)
2. Acção por incumprimento - Petição inicial - Indicação das acusações e fundamentos
(Artigo 226.° CE)
3. Livre circulação de pessoas - Liberdade de estabelecimento - Livre prestação de serviços - Dentistas - Reconhecimento dos diplomas e dos títulos - Directiva 78/686 - Coordenação das disposições nacionais - Directiva 78/687 - Manutenção de uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista - Inadmissibilidade
(Directivas do Conselho 78/686, artigo 19.° , e 78/687, artigo 1.° )
4. Livre circulação de pessoas - Liberdade de estabelecimento - Livre prestação de serviços - Dentistas - Reconhecimento dos diplomas e dos títulos - Directiva 78/686 - Coordenação das disposições nacionais - Directiva 78/687 - Inscrição simultânea na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas - Inadmissibilidade - Derrogação para um Estado-Membro - Incidência
(Directivas do Conselho 78/686, artigo 19.° , e 78/687)
1. No quadro de uma acção ex artigo 226.° CE destinada a obter a declaração de que um Estado-Membro manteve uma legislação contrária a uma directiva comunitária, o facto de que as disposições controvertidas não puderam, por assim dizer, ser mantidas uma vez que foram introduzidas no direito nacional após adopção da directiva em causa, não diminui as possibilidade de defesa do Estado-Membro em causa. Com efeito, por um lado, estando a realidade do incumprimento condicionada pela existência de medidas não conformes com o direito comunitário, quando do termo do prazo fixado pela Comissão no seu parecer fundamentado, esta realidade é independente da data de adopção das disposições nacionais em causa. Por outro lado, um Estado-Membro que adopte disposições nacionais contrárias ao direito comunitário, mantém-nas a partir do dia da respectiva entrada em vigor, até eventual modificação ou revogação.
( cf. n.os 11, 12 )
2. A Comissão deve indicar, em qualquer requerimento apresentado nos termos do artigo 226.° CE, as acusações exactas sobre as quais o Tribunal de Justiça se deve pronunciar, bem como, de forma pelo menos sumária, os elementos de direito e de facto em que essas acusações se baseiam. No que respeita, mais particularmente, à obrigação de indicar os elementos de direito e de facto em que se baseiam as acusações por si formuladas, não basta que a Comissão, para sustentar que o Estado-Membro demandado não respeitou uma disposição de direito comunitário, cite esta última apenas na parte do parecer fundamentado ou da petição consagrada ao enquadramento jurídico, a qual é puramente descritiva e desprovida de carácter demonstrativo.
Todavia, quando a Comissão alega que uma regulamentação nacional é contrária ao sistema, à economia ou ao espírito de uma directiva de harmonização, sem que a violação do direito comunitário que daí decorre possa ser associada a disposições específicas dessa directiva, a sua petição não pode, apenas por este facto, ser qualificada de inadmissível. Mas, numa situação desta natureza, o Tribunal de Justiça só pode examinar se a regulamentação nacional em causa é, neste sentido, contrária à directiva.
( cf. n.os 20, 21, 23 )
3. Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 78/687 que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de dentista um Estado-Membro que prevê uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista, que consiste numa formação de base de médico completada por uma especialização no domínio dentário.
A formação prevista no artigo 1.° , n.° 2, da Directiva 78/687 é expressamente qualificada de «formação dentária», o que pressupõe a existência de um curso especificamente adaptado à formação de dentistas. O diploma obtido no termo da segunda via formativa não é um diploma de dentista, mas um diploma de base de médico combinado com um diploma comprovativo de uma especialização no domínio dentário. Esta sucessão de diplomas não corresponde às exigências da Directiva 78/687 e da Directiva 78/686 que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de dentista e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efectivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços, ambas respeitantes a diplomas únicos.
O artigo 19.° , segundo parágrafo, da Directiva 78/686, que admite, no quadro do regime especial previsto por um Estado-Membro, o reconhecimento de um diploma de base de médico combinado com um diploma comprovativo de uma especialização no domínio dentário, não se opõe a esta interpretação. Com efeito, se o legislador tivesse querido admitir, de um modo geral, a possibilidade de reconhecimento mútuo de uma formação daquela natureza, não teria previsto, para os profissionais que dela dispõem, o reconhecimento da sua qualificação apenas a título derrogatório e transitório, concedendo-o exclusivamente àqueles que iniciaram a sua formação de médicos antes de 28 de Janeiro de 1980.
( cf. n.os 37-39, disp. )
4. Se a Directiva 78/687 exclui, fora do regime derrogatório e transitório, previsto para um Estado-Membro pelo artigo 19.° da Directiva 78/686, a possibilidade de aceder à actividade de dentista na acepção das referidas directivas, após uma formação composta de seis anos de formação de base de médico seguida de três anos de especialização no domínio dentário, daqui decorre que a mesma directiva exclui igualmente que uma pessoa que apenas possua esta formação possa estar inscrita, simultaneamente, na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas.
Embora seja verdade que as referidas directivas visam uma separação nítida entre as profissões de dentista e de médico, não existe, porém, qualquer indício de que o regime harmonizado instituído por aquelas directivas vise igualmente impedir que os médicos abrangidos pelo artigo 19.° da Directiva 78/686 estejam inscritos na Ordem dos Médicos.
O artigo 19.° da Directiva 78/686 instaurou um regime especial para uma categoria determinada de médicos cujo diploma foi emitido em Itália, a saber, os que, possuindo um diploma de médico, exerceram, a título principal, na qualidade de dentistas, em Itália, para dessa forma facilitar o processo de transição quando da instituição da profissão de dentista, naquele país, tal como esta profissão está prevista nas referidas directivas. Para este efeito, o referido artigo obriga os Estados-Membros a reconhecer, sob certas condições, os diplomas de médico desta categoria de profissionais tendo em vista o exercício da actividade de dentista.
A questão do reconhecimento eventual pelos outros Estados-Membros dos diplomas destes profissionais também com vista ao exercício da actividade de médico independentemente da inscrição dos profissionais em questão na Ordem dos Médicos é uma questão que deve ser resolvida no quadro da regulamentação comunitária sobre o reconhecimento dos diplomas, certificados e outros títulos de médico, e não no quadro das Directivas 78/686 e 78/687, relativas aos dentistas.
( cf. n.os 48, 50-54 )
No processo C-202/99,
Comissão das Comunidades Europeias, representada por E. Traversa e B. Mongin, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,
demandante,
contra
República Italiana, representada por U. Leanza, na qualidade de agente, assistido por P. G. Ferri, avvocato dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,
demandada,
que tem por objecto obter a declaração de que, ao manter uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista, não conforme com a Directiva 78/687/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de dentista (JO L 233, p. 10; EE 06 F2 p. 40), e ao manter a possibilidade de uma dupla inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas para os médicos que exercem actividade no domínio dentário, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da referida directiva,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),
composto por: P. Jann, presidente de secção, D. A. O. Edward (relator), A. La Pergola, L. Sevón e C. W. A. Timmermans, juízes,
advogado-geral: P. Léger,
secretário: L. Hewlett, administradora,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações das partes na audiência de 22 de Março de 2001, onde a Comissão foi representada por E. Traversa e a República Italiana por M. Fiorilli, avvocato dello Stato,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 31 de Maio de 2001,
profere o presente
Acórdão
1 Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 26 de Maio de 1999, a Comissão das Comunidades Europeias instaurou, nos termos do artigo 226.° CE, uma acção destinada a obter a declaração de que, ao manter uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista, não conforme com a Directiva 78/687/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de dentista (JO L 233, p. 10; EE 06 F2 p. 40, a seguir «directiva coordenação»), e ao manter a possibilidade de uma dupla inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas para os médicos que exercem actividade no domínio dentário, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da referida directiva.
A regulamentação comunitária
2 Em 25 de Julho de 1978, o Conselho adoptou a Directiva 78/686/CEE, que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de dentista e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efectivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços (JO L 233, p. 1; EE 06 F2 p. 32; a seguir «directiva reconhecimento»), e a directiva «coordenação».
3 O artigo 1.° , n.° 1, da directiva «coordenação» prevê que os Estados-Membros façam depender o acesso às actividades de dentista, exercidas sob os títulos referidos no artigo 1.° da directiva «reconhecimento», e o respectivo exercício, da posse de um diploma, certificado ou outro título referido no artigo 3.° da directiva «reconhecimento», que garanta que o interessado adquiriu, ao longo do período total da sua formação, os conhecimentos e a experiência exigidos pela directiva «coordenação». O artigo 1.° , n.° 2, desta última directiva precisa que esta formação dentária compreende, no total, pelo menos cinco anos de estudos teóricos e práticos a tempo inteiro.
4 Antes da adopção destas directivas e da sua transposição para o direito italiano, a profissão de dentista não existia em Itália e, na prática, era exercida por médicos. A fim de ter em conta esta situação especial, o artigo 19.° da directiva «reconhecimento», que figura no capítulo VII, intitulado «Disposições transitórias respeitantes à situação especial da Itália», dispõe:
«A partir do momento em que a Itália tome as medidas necessárias para dar cumprimento à presente directiva, os Estados-Membros reconhecerão, para efeito do exercício das actividades referidas no artigo 1.° da presente directiva, os diplomas, certificados e outros títulos de médico concedidos em Itália às pessoas que tenham iniciado a formação universitária de médico, o mais tardar, dezoito meses após a notificação da presente directiva, acompanhados de um atestado emitido pelas autoridades competentes italianas, comprovativo de que tais pessoas se consagraram, em Itália, efectiva e licitamente e a título principal, às actividades referidas no artigo 5.° da Directiva 78/687/CEE durante, pelo menos, três anos consecutivos dos cinco anos que precederam a emissão do atestado e que tais pessoas estão autorizadas a exercer as referidas actividades nas mesmas condições que os titulares do diploma, certificado ou outro título referido na alínea f) do artigo 3.° da presente directiva.
Ficam dispensadas da exigência da prática de três anos referida no primeiro parágrafo as pessoas que tenham feito com aproveitamento estudos de, pelo menos, três anos, comprovados pelas autoridades competentes como sendo equivalentes à formação referida no artigo 1.° da Directiva 78/687/CEE.»
A regulamentação nacional
5 Pela legge n.° 409, Istituzione della professione sanitaria di odontoiatra e disposizioni relative al diritto di stabilimento ed alla libera prestazione di servizi da parte dei dentisti cittadini di Stati membri delle Comunità europee (Lei n.° 409, que institui a profissão de dentista e disposições relativas ao direito de estabelecimento e de livre prestação de serviços dos dentistas nacionais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia), de 24 de Julho de 1985 (GURI n.° 190, de 13 de Agosto de 1985, supl. ord. n.° 69), a República Italiana transpôs para a sua ordem jurídica interna as directivas «reconhecimento» e «coordenação».
6 O artigo 1.° desta lei institui, em Itália, a profissão de dentista e reserva o seu exercício, sob o título de «odontoiatra», às pessoas que tenham seguido:
- ou a nova formação específica de dentista com a duração de cinco anos, comprovada pelo diploma de «laurea in odontoiatria e protesi dentaria» (diploma de dentista e de protésico dentário) e seguida da habilitação para o exercício da profissão;
- ou uma formação de base de médico, com uma duração de seis anos, comprovada por um diploma de «laurea in medicina e chirurgia» (diploma de medicina e de cirurgia), seguida da habilitação para o exercício da medicina e da cirurgia e completada por um diploma de especialização no domínio dentário, emitido após três anos de especialização.
7 O artigo 4.° da Lei n.° 409/85 prevê que a inscrição na Ordem dos Dentistas é incompatível com a inscrição em qualquer outra ordem profissional. O artigo 20.° desta lei obrigou, nomeadamente, os médicos não especializados no domínio dentário, que houvessem iniciado a sua formação antes de 28 de Janeiro de 1980 e tivessem a intenção de exercer neste domínio, a optar pela inscrição na Ordem dos Dentistas, no prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor da referida lei, isto é, até 28 de Agosto de 1990. O artigo 5.° permite, contudo, aos médicos especializados no domínio dentário manter, simultaneamente, a sua inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas.
O processo pré-contencioso
8 Por considerar que a legislação mencionada nos n.os 5 a 7 do presente acórdão era contrária às directivas «reconhecimento» e «coordenação», a Comissão deu início ao procedimento por incumprimento. Por carta de 9 de Abril de 1997, notificou a República Italiana no sentido de esta lhe apresentar as suas observações a este respeito. Em resposta, as autoridades italianas comunicaram a proposta de lei n.° 2653 relativa à profissão de dentista, que prevê uma segunda via de acesso à profissão (formação específica comprovada pelo diploma de «laurea in odontoiatria e protesi dentaria»).
9 Ao concluir que esta proposta de lei ainda não tinha sido adoptada, a Comissão emitiu, em 18 de Maio de 1999, um parecer fundamentado convidando a República Italiana a tomar as medidas necessárias para lhe dar cumprimento, no prazo de dois meses a contar da respectiva notificação. Por considerar que as explicações fornecidas pelas autoridades italianas não eram satisfatórias, a Comissão decidiu instaurar a presente acção.
Quanto à admissibilidade
10 O Governo italiano suscita duas questões prévias de admissibilidade.
Quanto à primeira questão prévia
11 Em primeiro lugar, o Governo italiano alega que a acusação que lhe é dirigida de ter «mantido» a segunda via de formação e a possibilidade de uma dupla inscrição nas ordens profissionais dos médicos e dos dentistas não corresponde à realidade. As disposições controvertidas não puderam, por assim dizer, ser mantidas uma vez que foram introduzidas no direito nacional após adopção da directiva «coordenação» e com vista à sua transposição, tendo modificado substancialmente o regime anterior. Esta formulação errada induziu a República Italiana em erro quanto à compreensão das acusações suscitadas pela Comissão e diminuiu as suas possibilidades de defesa.
12 A este respeito, basta concluir, por um lado, que, estando a realidade do incumprimento condicionada pela existência de medidas não conformes com o direito comunitário, quando do termo do prazo fixado pela Comissão no seu parecer fundamentado, esta realidade é independente da data de adopção das disposições nacionais em causa. Por outro lado, um Estado-Membro que adopte disposições nacionais contrárias ao direito comunitário, mantém-nas a partir do dia da respectiva entrada em vigor, até eventual modificação ou revogação.
13 A primeira questão prévia de inadmissibilidade deve, por conseguinte, ser afastada.
Quanto à segunda questão prévia
14 O Governo italiano alega, em segundo lugar, que a Comissão não indicou, em apoio da sua acção, as disposições de direito comunitário que foram violadas. As obrigações que a República Italiana não terá cumprido não estavam, portanto, identificadas, pelo que a petição deve ser declarada inadmissível.
15 No que respeita à primeira acusação, relativa à segunda via de formação prevista pela Lei n.° 409, deve salientar-se que a Comissão precisou, na petição, que as obrigações objecto do incumprimento são as decorrentes do artigo 1.° da directiva «coordenação».
16 A acção da Comissão deve, portanto, ser declarada admissível no que toca à primeira acusação.
17 No que respeita à segunda acusação, relativa à possibilidade de dupla inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas, impõe-se concluir que, como alega o Governo italiano, a Comissão não associou esta acusação a uma disposição precisa de uma das duas directivas «reconhecimento» e «coordenação».
18 Com efeito, quer no decurso do processo pré-contencioso quer nos fundamentos da petição, a Comissão afirmou, em primeiro lugar, que a directiva «reconhecimento» exclui que um profissional titular de um único diploma e de uma única habilitação profissional esteja inscrito, simultaneamente, na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas. A este respeito, referiu-se, mais particularmente, ao artigo 19.° da directiva «reconhecimento», sem, contudo, sustentar que a legislação italiana controversa viola este artigo. Seguidamente, alegou que a situação actual em Itália é contrária ao regime harmonizado instituído pelas directivas «reconhecimento» e «coordenação». Por fim, no dispositivo da petição, alega que a directiva «coordenação» se opõe à manutenção da possibilidade de dupla inscrição.
19 Não obstante, a Comissão considera ter explicado, quer no parecer fundamentado quer na petição, de forma coerente, precisa e detalhada as violações que imputa à República Italiana. Na réplica, precisa que é o artigo 1.° da directiva «coordenação» que constitui o «pilar» de todo o sistema harmonizado instituído pelas directivas «reconhecimento» e «coordenação» e que é a este mesmo artigo, mencionado, simultaneamente, no parecer fundamentado e na petição, que deve ser feita referência nos casos de violações graves e fundamentais do referido sistema harmonizado que não possam, como acontece no caso vertente, ser associadas a disposições mais específicas das duas directivas mencionadas.
20 A título liminar, deve recordar-se que, segundo jurisprudência constante, a Comissão deve indicar, em qualquer requerimento apresentado nos termos do artigo 226.° CE, as acusações exactas sobre as quais o Tribunal de Justiça se deve pronunciar, bem como, de forma pelo menos sumária, os elementos de direito e de facto em que essas acusações se baseiam (v., nomeadamente, acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Grécia, C-375/95, Colect., p. I-5981, n.° 35).
21 No que respeita, mais particularmente, à obrigação de indicar os elementos de direito e de facto em que se baseiam as acusações por si formuladas, não basta que a Comissão, para sustentar que o Estado-Membro demandado não respeitou uma disposição de direito comunitário, cite esta última apenas na parte do parecer fundamentado ou da petição consagrada ao enquadramento jurídico, a qual é puramente descritiva e desprovida de carácter demonstrativo.
22 Daqui decorre que a menção feita pela Comissão ao artigo 1.° da directiva «coordenação», na parte do parecer fundamentado e da petição consagrada ao enquadramento jurídico, não pode estabelecer qualquer ligação entre a violação deste artigo e a existência de uma faculdade de inscrição nas duas ordens profissionais, em simultâneo. Além disso, a citação deste mesmo artigo pela Comissão, em apoio da primeira acusação, não implica, salvo indicação em contrário, que esse artigo é igualmente invocado em apoio da segunda acusação.
23 Todavia, quando a Comissão alega que uma regulamentação nacional é contrária ao sistema, à economia ou ao espírito de uma directiva de harmonização, sem que a violação do direito comunitário que daí decorre possa ser associada a disposições específicas dessa directiva, a sua petição não pode, apenas por este facto, ser qualificada de inadmissível. Mas, numa situação desta natureza, o Tribunal de Justiça só pode examinar se a regulamentação nacional em causa é, neste sentido, contrária à directiva.
24 No caso vertente, a Comissão alegou que a actual situação jurídica em Itália, que permite uma dupla inscrição na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas, é contrária ao regime harmonizado instituído pelas directivas «reconhecimento» e «coordenação» e que esta última se opõe, enquanto tal, à manutenção da possibilidade de dupla inscrição. Assim, a petição introduzida permitiu à República Italiana apresentar a sua defesa quanto a este ponto, a fim de refutar as acusações formuladas pela Comissão a este respeito.
25 Consequentemente, no que toca à segunda acusação, a acção da Comissão deve ser declarada admissível, na medida em que a Comissão alega que a regulamentação nacional em causa é contrária ao regime harmonizado instituído pelas directivas «reconhecimento» e «coordenação».
Quanto ao mérito
Quanto à primeira acusação
Argumentação das partes
26 Segundo a Comissão, a segunda via formativa prevista pela Lei n.° 409/85, na qual são consagrados três anos ao domínio dentário, não preenche manifestamente a condição de uma formação específica de cinco anos, enunciada no artigo 1.° da directiva «coordenação».
27 A Comissão alega que essa segunda via de formação de dentistas corresponde exactamente ao diploma de médico especialista em estomatologia («odontostomatologia»), mencionada no artigo 7.° da Directiva 93/16/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, destinada a facilitar a livre circulação dos médicos e o reconhecimento mútuo dos seus diplomas, certificados e outros títulos (JO L 165, p. 1).
28 Ora, uma especialização no domínio médico não pode estar abrangida, simultaneamente, pelo campo de aplicação da Directiva 93/16, relativa aos médicos, e pelo da directiva «reconhecimento», relativa aos dentistas. A directiva «coordenação» prevê expressamente a criação de uma nova categoria de profissionais habilitados a exercer a actividade de dentista, sob um título diferente do de médico. Esta é a razão pela qual o artigo 19.° da directiva «reconhecimento» prevê que os médicos - especializados ou não na actividade de dentista - cujo diploma de médico tenha sido emitido em Itália não beneficiam de pleno direito do reconhecimento, nos termos daquele directiva. Tal reconhecimento é concedido, a título derrogatório e temporário, aos médicos que iniciaram a sua formação antes de 28 de Janeiro de 1980.
29 A segunda via formativa de dentistas não podia, portanto, ser mantida por ocasião da transposição da directiva «coordenação».
30 Além disso, a Comissão faz suas as conclusões adoptadas, em Junho de 1989, pelo Comité Consultivo para a Formação dos Médicos Dentistas, no seu «Relatório e parecer acerca da compatibilidade com o artigo 1.° da Directiva 78/678/CEE da formação de dentistas em Itália, que consiste numa formação de médico seguida de uma especialização no domínio dentário», anexo à réplica da Comissão e que tem a referência III/D/5045/3/89 de 15 de Novembro de 1989.
31 Este comité, que reúne peritos na matéria de todos os Estados-Membros, concluiu no n.° 4, alíneas a) e b), do referido relatório e parecer:
«a) Uma formação de dentista que suceda a estudos de medicina não corresponde ao conteúdo do artigo 1.° da Directiva 78/687/CEE, o qual exige uma formação específica de dentista no âmbito de estudos universitários com a duração de cinco anos, exclusivamente consagrados à odontologia. Uma formação que complete estudos de medicina e corresponda apenas a uma especialização em odontologia distingue-se claramente, quer pela sua estrutura quer pelo seu conteúdo, de um curso de cinco anos concebido segundo os imperativos do artigo 1.° da Directiva 78/678/CE, consagrado exclusivamente à odontologia e que termine com exames respeitantes apenas a esta última.
b) O segundo tipo de formação existente em Itália corresponde à formação de estomatologista. O diploma de estomatologista e a especialização neste domínio estão abrangidos pelas directivas sobre os médicos. Ora, as directivas respeitantes aos médicos e aos dentistas baseiam-se no princípio de que se trata de duas profissões distintas. Segundo este princípio, a qualificação de especialista em estomatologia atribuída em Itália foi retomada, a justo título, nas directivas Médicos. As directivas Dentistas não constituem o quadro apropriado para o reconhecimento mútuo de um diploma emitido no final de uma especialização médica.»
32 O Governo italiano considera que, para calcular a duração da segunda via de formação, há que ter em conta o tempo consagrado ao estudo das disciplinas de base e das disciplinas médicas gerais, no quadro da formação exigida para a obtenção do diploma de médico, na medida em que, de acordo com o anexo da directiva «coordenação», estas disciplinas fazem parte igualmente do programa de estudos dos dentistas. Além disso, o artigo 1.° da directiva «coordenação» não exige que a formação visada no anexo seja adquirida no quadro de um ciclo único de estudos, exclusivamente destinado à obtenção de um diploma no domínio dentário.
33 Segundo este governo, o argumento da Comissão, segundo o qual a directiva «coordenação» exige que os estudos especificamente dentários decorram no conjunto da duração da formação quinquenal, não encontra qualquer suporte nas disposições da referida directiva. Com efeito, o anexo desta última não prevê nem uma repartição da duração da formação entre as disciplinas médicas gerais e as disciplinas especificamente odontoestomatológicas nem o estudo simultâneo e misto dos dois grupos de disciplinas.
Apreciação do Tribunal
34 O artigo 1.° , n.° 2, da directiva «coordenação» dispõe que a «formação dentária» prevista no n.° 1 do mesmo artigo «inclui, globalmente, pelo menos cinco anos de estudos teóricos e práticos a tempo inteiro incidindo sobre as disciplinas constantes do anexo e efectuados numa universidade, num instituto superior de nível reconhecido como equivalente ou sob o controlo de uma universidade».
35 É verdade que, entre os três grupos de disciplinas que figuram no referido anexo, apenas o grupo c), intitulado «Disciplinas especificamente odontoestomatológicas», corresponde a uma formação especificamente dentária. Os grupos a) e b), intitulados, respectivamente, «Disciplinas de base» e «Disciplinas médico-biológicas e disciplinas médicas gerais», compreendem matérias cujo conhecimento é necessário ao exercício quer da medicina quer da actividade de dentista.
36 Do mesmo modo, é dado assente que o artigo 1.° , n.° 2, da directiva «coordenação» não prevê nem uma eventual duração mínima a consagrar às disciplinas puramente dentárias nem uma repartição do tempo consagrado a estas disciplinas ao longo da duração total de cinco anos de estudos, necessária à aquisição de uma formação dentária.
37 Contudo, a formação prevista no artigo 1.° , n.° 2, da directiva «coordenação» é expressamente qualificada de «formação dentária», o que pressupõe a existência de um curso especificamente adaptado à formação de dentistas.
38 O diploma obtido no termo da segunda via formativa prevista pela Lei n.° 409/85 não é um diploma de dentista, mas um diploma de base de médico combinado com um diploma comprovativo de uma especialização no domínio dentário. Esta sucessão de diplomas não corresponde às exigências das directivas «coordenação» e «reconhecimento», ambas respeitantes a diplomas únicos.
39 O artigo 19.° , segundo parágrafo, da directiva «reconhecimento», que admite, no quadro do regime especial previsto para Itália, o reconhecimento de um diploma de base de médico combinado com um diploma comprovativo de uma especialização no domínio dentário, não se opõe a esta interpretação. Com efeito, se o legislador tivesse querido admitir, de um modo geral, a possibilidade de reconhecimento mútuo de uma formação daquela natureza, não teria previsto, para os profissionais que dela dispõem, o reconhecimento da sua qualificação apenas a título derrogatório e transitório, concedendo-o exclusivamente àqueles que iniciaram a sua formação de médicos antes de 28 de Janeiro de 1980.
40 Esta interpretação da directiva «coordenação» é apoiada pelas conclusões adoptadas em 1989 pelo Comité Consultivo para a Formação dos Médicos Dentistas, nomeadamente as reproduzidas no n.° 31 do presente acórdão.
41 A primeira acusação deve, por conseguinte, ser julgada procedente.
Quanto à segunda acusação
Argumentação das partes
42 A Comissão alega que a directiva «reconhecimento» exclui que o mesmo profissional titular de um único diploma e de uma única habilitação profissional esteja simultaneamente inscrito na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas.
43 Com efeito, um profissional titular de um único diploma e de uma única habilitação profissional deve estar abrangido ou pela directiva «reconhecimento», se for um médico que exerça a título principal a actividade de dentista, nos termos da norma especial e transitória enunciada no artigo 19.° daquela directiva, ou pela Directiva 93/16, se for um médico especializado em estomatologia que tenha optado por continuar a exercer nesta qualidade.
44 A Comissão acrescenta que não põe em causa a competência dos Estados-Membros em matéria de instituição e manutenção de ordens profissionais, mas contesta que, em Itália, o titular de um único diploma de médico possa continuar a estar, simultaneamente, inscrito na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas e, portanto, exercer as duas profissões ao mesmo tempo.
45 O Governo italiano alega que o artigo 1.° da directiva «coordenação» não exige que o acesso à actividade de dentista esteja subordinado à inscrição numa ordem profissional e não exclui uma dupla inscrição, salvo se esta fosse possível para pessoas que não respondam às condições de formação previstas no artigo 1.° da directiva «coordenação» ou se estivesse expressamente prevista uma incompatibilidade pela directiva «coordenação».
Apreciação do Tribunal
46 Como resulta da apreciação efectuada no quadro da primeira acusação, a directiva «coordenação» opõe-se a que um Estado-Membro preveja uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista, que consiste numa formação de base de médico completada por uma especialização no domínio dentário.
47 Com efeito, a referida directiva exige uma formação expressamente qualificada de «formação dentária», que conduza ao diploma único previsto pela directiva «reconhecimento».
48 Se, portanto, a directiva «coordenação» exclui, fora do regime derrogatório e transitório instaurado pelo artigo 19.° da directiva «reconhecimento», a possibilidade de aceder à actividade de dentista na acepção das directivas «reconhecimento» e «coordenação», após uma formação composta de seis anos de formação de base de médico seguida de três anos de especialização no domínio dentário, daqui decorre que a mesma directiva exclui igualmente que uma pessoa que apenas possua esta formação possa estar inscrita, simultaneamente, na Ordem dos Médicos e na Ordem dos Dentistas.
49 Todavia, na réplica, a Comissão precisou que a segunda acusação diz respeito aos médicos cujo diploma foi emitido em Itália, façam ou não prova de uma especialização, que estejam abrangidos pelo regime derrogatório previsto no artigo 19.° da directiva «reconhecimento» e exerçam legalmente a actividade de dentista. Neste caso, segundo a Comissão, a inscrição ilegal é a inscrição na Ordem dos Médicos, uma vez que dela resulta o direito de exercer, ao mesmo tempo que a profissão de dentista, a actividade de médico, com um único diploma (de médico) e uma única habilitação profissional, quando a actividade de médico está regulada pela Directiva 93/16.
50 A este respeito, deve concluir-se, em primeiro lugar, que o regime transitório previsto no artigo 19.° da directiva «reconhecimento» é omisso quanto à questão de saber se os médicos visados neste artigo podem ou não continuar a estar inscritos na Ordem dos Médicos.
51 Seguidamente, embora seja verdade que as directivas «reconhecimento» e «coordenação» visam uma separação nítida entre as profissões de dentista e de médico, não existe, porém, qualquer indício de que o regime harmonizado instituído por aquelas directivas vise igualmente impedir que os médicos abrangidos pelo artigo 19.° da directiva «reconhecimento» estejam inscritos na Ordem dos Médicos, o que se traduziria, na prática, em retirar-lhes o direito de exercer medicina.
52 O artigo 19.° da directiva «reconhecimento» instaurou um regime especial para uma categoria determinada de médicos cujo diploma foi emitido em Itália, a saber, os que, possuindo um diploma de médico, exerceram, a título principal, na qualidade de dentistas, em Itália, para dessa forma facilitar o processo de transição quando da instituição da profissão de dentista, naquele país, tal como esta profissão está prevista nas directivas «reconhecimento» e «coordenação». Para este efeito, o referido artigo obriga os Estados-Membros a reconhecer, sob certas condições, os diplomas de médico desta categoria de profissionais tendo em vista o exercício da actividade de dentista.
53 A questão de saber se os outros Estados-Membros são obrigados a reconhecer os diplomas destes profissionais também com vista ao exercício da actividade de médico é uma questão que deve ser resolvida no quadro da regulamentação comunitária sobre o reconhecimento dos diplomas, certificados e outros títulos de médico, e não no quadro das directivas «reconhecimento» e «coordenação», relativas aos dentistas.
54 Em qualquer dos casos, o reconhecimento eventual destes diplomas nos outros Estados-Membros não depende da inscrição dos profissionais interessados na Ordem dos Médicos, em Itália. Com efeito, o reconhecimento das qualificações profissionais não tem por base a inscrição de uma pessoa numa ordem profissional, sendo antes levada a cabo, de um modo geral, em função das características do diploma em causa e das experiências profissionais adquiridas pelo seu titular.
55 Por último, esta interpretação não está em contradição com o acórdão de 1 de Junho de 1995, Comissão/Itália (C-40/93, Colect., p. I-1319). No n.° 24 deste acórdão, o Tribunal de Justiça sublinhou que não cabe aos Estados-Membros criar uma categoria de dentistas que não corresponda a qualquer categoria prevista pelas directivas em causa. No caso vertente, em contrapartida, não se trata da criação de uma nova categoria de médicos cujos diplomas possam não ser reconhecidos nos outros Estados-Membros, mas de consequências pontuais de um regime transitório para uma categoria limitada de médicos.
56 Nestas condições, a segunda acusação deve ser julgada improcedente.
Quanto às despesas
57 Por força do disposto no artigo 69.° , n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas se tal tiver sido requerido. Porém, segundo o n.° 3, primeiro parágrafo, da mesma disposição, o Tribunal de Justiça pode determinar que as despesas sejam repartidas entre as partes ou que cada uma das partes suporte as suas próprias despesas, se cada parte obtiver vencimento parcial. Tendo a República Italiana e a Comissão sido parcialmente vencidas nos seus fundamentos, há que decidir que cada uma das partes suportará as suas próprias despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)
decide:
1) Ao prever uma segunda via formativa de acesso à profissão de dentista, não conforme com a Directiva 78/687/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1978, que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de dentista, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da referida directiva.
2) A acção é julgada improcedente quanto ao resto.
3) A República Italiana e a Comissão das Comunidades Europeias suportarão as suas próprias despesas.