61999J0172

Acórdão do Tribunal (Sexta Secção) de 25 de Janeiro de 2001. - Oy Liikenne Ab contra Pekka Liskojärvi e Pentti Juntunen. - Pedido de decisão prejudicial: Korkein oikeus - Finlândia. - Directiva 77/187/CEE - Manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresa - Directiva 92/50/CEE - Contratos públicos de serviços - Serviços de transporte público não marítimo. - Processo C-172/99.

Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-00745


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Política social - Aproximação das legislações - Transferências de empresas - Manutenção dos direitos dos trabalhadores - Directiva 77/187 - Âmbito - Retoma, por uma empresa, de actividades exercidas por uma outra empresa, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços previsto pela Directiva 92/50 - Inclusão

(Directiva 77/187 do Conselho, artigo 1.° , n.° 1)

2. Política social - Aproximação das legislações - Transferências de empresas - Manutenção dos direitos dos trabalhadores - Directiva 77/187 - Âmbito - Transferência - Conceito - Ausência de relações contratuais directas entre as duas empresas - Inclusão - Retoma, por uma empresa, de actividades exercidas por uma outra empresa, na ausência de transferência de elementos corpóreos significativos entre as duas empresas - Exclusão

(Directiva 77/187 do Conselho, artigo 1.° , n.° 1)

Sumário


1. A retoma, por uma empresa, de actividades de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - exercidas até aí por outra empresa, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços prevista pela Directiva 92/50, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, é susceptível de entrar no campo de aplicação material da Directiva 77/187, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos, tal como enunciado no seu artigo 1.° , n.° 1.

( cf. n.° 25, disp. 1 )

2. O artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187 relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos deve ser interpretado no sentido de que esta directiva é aplicável na ausência de relações contratuais directas entre as duas empresas às quais foi sucessivamente concedido, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços organizado em conformidade com a Directiva 92/50, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, um serviço de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - por uma pessoa colectiva de direito público. Contudo, em tal situação, a Directiva 77/187 não se aplica na ausência de transferência de elementos corpóreos significativos entre as duas empresas.

( cf. n.° 44, disp. 2 )

Partes


No processo C-172/99,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), pelo Korkein oikeus (Finlândia), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Oy Liikenne Ab

e

Pekka Liskojärvi,

Pentti Juntunen,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: C. Gulmann, presidente de secção, V. Skouris, J.-P. Puissochet (relator), R. Schintgen e N. Colneric, juízes,

advogado-geral: P. Léger,

secretário: H. von Holstein, secretário-adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação da Oy Liikenne Ab, por O. Rauhamaa,

- em representação de P. Liskojärvi e P. Juntunen, por T. Räty,

- em representação do Governo finlandês, por T. Pynnä, na qualidade de agente,

- em representação do Governo neerlandês, por M. A. Fierstra, na qualidade de agente,

- em representação do Governo do Reino Unido, por J. E. Collins, na qualidade de agente, assistido por K. Smith, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Gouloussis e E. Paasivirta, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Oy Liikenne Ab, representada por O. Rauhamaa, de P. Liskojärvi e P. Juntunen, representados por T. Räty e O. Sulkunen, do Governo finlandês, representado por E. Bygglin, na qualidade de agente, e da Comissão, representada por P. Hillenkamp, na qualidade de agente, e E. Paasivirta, na audiência de 14 de Setembro de 2000,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 12 de Outubro de 2000,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 27 de Abril de 1999, entrado no Tribunal de Justiça em 7 de Maio seguinte, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal de Justiça) colocou, em aplicação do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), uma questão prejudicial relativa à interpretação do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122).

2 Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe a empresa de transporte em autocarro Oy Liikenne Ab (a seguir «Liikenne») a dois dos seus condutores, P. Liskojärvi e P. Juntunen, a propósito da recusa por parte daquela de conceder a estes últimos as mesmas condições de trabalho de que beneficiavam no seu anterior empregador.

Enquadramento jurídico

3 A Directiva 77/187 é aplicável, nos termos do seu artigo 1.° , n.° 1, às transferências de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos que resultem de uma cessão convencional ou de fusão que impliquem mudança de empresário. O artigo 1.° , n.° 3, precisa que a directiva não se aplica aos navios.

4 A Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), visa, como indica o seu vigésimo considerando, melhorar o acesso dos prestadores de serviços aos processos de adjudicação dos contratos a fim de eliminar as práticas que restringem a concorrência, em geral, e as que restringem a participação nos contratos de nacionais de outros Estados-Membros, em particular.

5 O artigo 1.° , alínea a), da Directiva 92/50 define os «contratos públicos de serviços» como contratos a título oneroso celebrados por escrito entre um prestador de serviços e uma entidade adjudicante. Nos termos do seu artigo 1.° , alínea b), são consideradas «entidades adjudicantes» o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público, as associações formadas por uma ou mais autarquias ou organismos de direito público.

6 O artigo 3.° , n.° 1, da Directiva 92/50 prevê, nomeadamente, que, na adjudicação dos seus contratos públicos de prestação de serviços, as entidades adjudicantes apliquem procedimentos adaptados às disposições da referida directiva. Nos termos do n.° 2 da mesma disposição, as entidades adjudicantes assegurarão que não se verifique qualquer discriminação entre os vários prestadores de serviços.

7 Por força do anexo I A, para o qual remete o seu artigo 8.° , a Directiva 92/50 abrange, nomeadamente, os serviços de transporte terrestre.

O litígio no processo principal

8 Na sequência de um concurso público, a Pääkaupunkiseudun yhteistyövaltuuskunta (Comunidade urbana de cooperação da região da capital, a seguir «YTV») confiou, pelo período de três anos, a exploração de sete carreiras locais de autocarros, até então concedidas à sociedade Hakunilan Liikenne Oy (a seguir «Hakunilan Liikenne»), à sociedade Liikenne.

9 A Hakunilan Liikenne, que explorava essas carreiras com vinte e seis autocarros despediu, por essa altura, quarenta e cinco condutores, dos quais trinta e três, ou seja, todos os que se candidataram ao emprego, foram recrutados pela Liikenne. Esta última contratou ainda dezoito outros condutores. O recrutamento dos antigos condutores da Hakunilan Liikenne foi feito nas condições previstas pela convenção colectiva de trabalho nacional, que são no seu conjunto menos favoráveis do que as que vigoravam na Hakunilan Liikenne.

10 A sucessão da Liikenne à Hakunilan Liikenne não foi acompanhada de qualquer cessão de veículos nem de outros activos relacionados com a exploração das carreiras de autocarros em causa. A Liikenne apenas tomou de aluguer, durante dois ou três meses, enquanto aguardava a entrega de vinte e dois novos autocarros que encomendara, dois autocarros à Hakunilan Liikenne e adquiriu a esta última os uniformes de trabalho de alguns condutores que tinham passado para a sua empresa.

11 P. Liskojärvi e P. Juntunen contam-se entre os trinta e três condutores despedidos pela Hakunilan Liikenne que foram admitidos pela Liikenne. Porque entenderam que tinha havido entre as duas empresas uma transferência de estabelecimento e que, por conseguinte, tinham o direito de continuar a beneficiar das condições de trabalho em vigor no seu anterior empregador, instauraram contra a Liikenne uma acção no Vantaan käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Vantaa). Quanto a esta, contestou que tivesse havido lugar a essa transferência.

12 Por decisão de 17 de Junho de 1996, o Vantaan käräjäoikeus julgou procedente a acção de P. Liskojärvi e P. Juntunen. Uma vez que o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Segunda Instância de Helsínquia) rejeitou, por acórdão de 23 de Outubro de 1997, o recurso interposto daquela decisão pela Liikenne, esta última recorreu deste acórdão para o Korkein oikeus.

13 No seu despacho de reenvio, o Korkein oikeus considera que o conceito de transferência de estabelecimento continua a ser obscuro, sobretudo quando, à semelhança do caso vertente, a transferência de uma actividade não assenta numa convenção entre as partes e não é acompanhada da cessão de elementos significativos do activo. Aquele tribunal salienta igualmente que o presente caso se situa no contexto de um concurso público organizado em conformidade com a Directiva 92/50. Ora, a aplicação da Directiva 77/187 num tal contexto, embora proteja os interesses dos trabalhadores, é susceptível de entravar a concorrência entre empresas e prejudicar o objectivo de eficácia prosseguido pela Directiva 92/50. Nestas condições, o Korkein oikeus interroga-se acerca da articulação das duas directivas.

14 Considerando que a solução do litígio do processo principal depende, deste modo, da interpretação do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187, o Korkein oikeus decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Há que considerar como uma transferência de estabelecimento na acepção do artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187/CEE uma situação em que a exploração de carreiras de autocarros é transferida de uma empresa de transportes para outra, na sequência de um processo de atribuição, por concurso, de serviços públicos nos termos da Directiva 92/50/CEE relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços?»

Quanto à questão prejudicial

15 Com a sua questão, o tribunal a quo pergunta, essencialmente, se a retoma, por uma empresa, de actividades de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - exercidas até aí por outra empresa, na sequência de um processo de adjudicação de contratos públicos organizado em conformidade com a Directiva 92/50, é susceptível de entrar no âmbito de aplicação da Directiva 77/187, tal como definido no seu artigo 1.° , n.° 1.

16 A Liikenne alega que a questão suscitada pelo Korkein oikeus exige, necessariamente, uma resposta negativa. Em primeiro lugar, a Hakunilan Liikenne e ela própria não tinham estabelecido entre si qualquer vínculo contratual aquando da adjudicação nem celebrado qualquer acordo com vista à transferência da exploração. Ora, embora o Tribunal de Justiça tenha admitido que uma transferência possa ser efectuada em duas etapas por intermédio de um terceiro, como o proprietário ou o arrendatário, a YTV não corresponde a esse terceiro uma vez que não é titular nem das carreiras de transporte que concede nem dos activos necessários à exploração destas mesmas carreiras. Em segundo lugar, a transferência deve respeitar a um estabelecimento, e uma carreira ou mesmo uma rede de carreiras de autocarro não constituem, obviamente, um estabelecimento. Em terceiro lugar, os activos da Hakunilan Liikenne necessários à exploração das carreiras em causa não foram adquiridos pela Liikenne. Em quarto lugar, os condutores da Hakunilan Liikenne admitidos pela Liikenne foram recrutados a seu pedido por esta última, a qual, aliás, poderia ter recrutado qualquer outro trabalhador habilitado a exercer essa profissão. Em último lugar, a aplicação da Directiva 77/187 às adjudicações de serviços de transportes rodoviários acarretaria graves inconvenientes pois a empresa adjudicatária deveria assumir obrigações que desconhece.

17 P. Liskojärvi e P. Juntunen, os Governos finlandês, neerlandês e do Reino Unido, bem como a Comissão, alegam que o critério decisivo para determinar a existência de uma transferência é o de saber se o estabelecimento sobre o qual incide a operação preserva a sua identidade, o que resulta, nomeadamente, do prosseguimento da exploração ou da sua retoma. Para este efeito, é irrelevante que a transferência seja efectuada por ocasião de um processo de adjudicação de contratos públicos, que não exista qualquer vínculo contratual directo entre o cedente e o cessionário e que a transferência resulte de uma decisão unilateral dos poderes públicos.

18 Nestas condições, P. Liskojärvi e P. Juntunen consideram que a questão suscitada pelo Korkein oikeus exige uma resposta positiva. Os três governos que apresentaram observações ao abrigo do artigo 20.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça e a Comissão alegam, por sua vez, que cabe ao tribunal a quo determinar, com base no conjunto das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa no processo principal, se, no caso vertente, houve efectivamente lugar a uma transferência.

19 Importa recordar que a Directiva 77/187 tem em vista assegurar a continuidade das relações de trabalho existentes no quadro de uma entidade económica, independentemente de uma mudança de proprietário. A circunstância de a actividade exercida por essa entidade ter sido atribuída sucessivamente a diferentes operadores por um organismo de direito público não pode excluir a aplicação da Directiva 77/187 na medida em que o transporte de pessoas em autocarros não faz parte do exercício do poder público (v., neste sentido, acórdão de 10 de Dezembro de 1998, Hidalgo e o., C-173/96 e C-247/96, Colect., p. I-8237, n.os 21 e 24).

20 Deste modo, o Tribunal de Justiça entendeu que a Directiva 77/187 é aplicável a uma situação em que um organismo público, que tinha adjudicado o seu serviço de ajuda ao domicílio a pessoas desfavorecidas ou o contrato de segurança de algumas das suas instalações a uma primeira empresa, decide, no termo ou após rescisão do contrato que o vinculava a esta, adjudicar este serviço ou este contrato a uma segunda empresa (acórdão Hidalgo, já referido, n.° 34).

21 Esta solução não pode ser posta em causa com o fundamento de que o contrato de transporte em autocarro em questão foi atribuído na sequência de um processo de adjudicação de contratos públicos organizado em conformidade com a Directiva 92/50. Com efeito, a Directiva 77/187 não prevê qualquer excepção deste tipo ao seu âmbito de aplicação e, por outro lado, a Directiva 92/50 não contém qualquer disposição neste mesmo sentido. Assim a circunstância de uma operação estar abrangida pela Directiva 92/50 não exclui, por si só, a aplicação da Directiva 77/187 (v., no mesmo sentido, pareceres do Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre de 25 de Setembro de 1996, E-2/95, Eilert Eidesund/Stavanger Catering A/S, Report of the EFTA Court 1 de Julho de 1995 - 31 de Dezembro de 1996, p. 1, n.° 50, e de 14 de Março de 1997, E-3/96, Tor Angeir Ask and Others/ABB Offshore Technology AS and Aker Offshore Partner AS, Report of the EFTA Court 1997, p. 1, n.° 33).

22 O facto de as disposições da Directiva 77/187 virem, eventualmente, a aplicar-se no contexto de uma operação abrangida pela Directiva 92/50 não pode ser analisada como pondo em causa os objectivos desta última. A Directiva 92/50 não tem, de modo algum, por objectivo dispensar, relativamente aos contratos em causa, as entidades adjudicantes e os operadores que oferecem os seus serviços do cumprimento das legislações e regulamentações aplicáveis às actividades visadas, nomeadamente, no domínio social ou no da segurança, de forma tal que as ofertas possam ser feitas sem qualquer restrição. A Directiva 92/50 tem por objectivo que, no respeito das referidas legislações ou regulamentações e nas condições por ela impostas, os operadores beneficiem de igualdade de oportunidades, em particular para exercer os seus direitos à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços.

23 Num quadro como este, os operadores conservam a sua margem de manobra para fazer funcionar o jogo da concorrência entre si e para apresentarem propostas diferentes. No domínio dos transportes públicos regulares em autocarro, podem por exemplo intervir ao nível do equipamento dos veículos e dos seus desempenhos energéticos e ecológicos, da eficácia da organização e das modalidades de contacto com o público bem como, à semelhança do que acontece em qualquer empresa, da margem de lucro desejada. O operador que apresenta uma proposta deve igualmente ser capaz de avaliar se, em caso de sucesso desta, poderá ter interesse em adquirir activos significativos ao actual titular do contrato e em recrutar a totalidade ou parte do seu pessoal ou se será obrigado a fazê-lo e se, eventualmente, se encontrará numa situação de transferência de empresa na acepção da Directiva 77/187.

24 Esta avaliação, bem como a dos custos decorrentes das diferentes soluções possíveis, faz também parte do jogo da concorrência e não pode ser analisada, contrariamente ao que defende a Liikenne, como reveladora de uma inobservância do princípio da segurança jurídica. Com efeito, qualquer iniciativa no domínio concorrencial está sujeita a uma dose de incerteza relativamente a um determinado número de parâmetros e cabe aos operadores efectuar análises realistas. É verdade que a empresa anteriormente titular do contrato conhece, ao contrário das suas concorrentes, exactamente os custos necessários para assegurar o serviço objecto do contrato; contudo, por um lado, esta situação é inerente ao sistema e não pode justificar a inaplicabilidade das legislações sociais e, por outro, esta vantagem é provavelmente compensada, a maioria das vezes, pela maior dificuldade dessa empresa em alterar as suas condições de exploração, a fim de adaptá-las às novas condições do concurso público, comparativamente às concorrentes que apresentam uma proposta a partir de uma situação virgem.

25 Deve, por conseguinte, responder-se, em primeiro lugar, ao tribunal a quo que a retoma, por uma empresa, de actividades de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - exercidas até aí por outra empresa, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços previsto pela Directiva 92/50, é susceptível de entrar no campo de aplicação material da Directiva 77/187, tal como enunciado no seu artigo 1.° , n.° 1.

26 Tendo em conta a possível aplicação da Directiva 77/187 a uma situação como a que foi submetida ao tribunal a quo, convém em segundo lugar fornecer a este último os elementos de apreciação necessários para que possa apreciar se, no caso vertente, houve lugar a uma transferência, na acepção do artigo 1.° , n.° 1, da referida directiva. O tribunal a quo sublinha, a este respeito, que a retoma das carreiras de autocarro não assenta em nenhuma convenção entre o antigo e o novo titular do contrato e que não houve entre estes qualquer cessão de elementos significativos do activo.

27 O critério decisivo para estabelecer a existência de uma transferência na acepção da Directiva 77/187 é o de saber se a entidade em questão mantém a sua identidade, o que resulta nomeadamente da continuação efectiva da exploração ou da sua retoma (acórdãos de 18 de Março de 1986, Spijkers, 24/85, Colect., p. 1119, n.os 11 e 12, e de 2 de Dezembro de 1999, Allen e o., C-234/98, Colect., p. I-8643, n.° 23).

28 A ausência de qualquer vínculo de natureza contratual entre o cedente e o cessionário ou, como no caso dos autos, entre as duas empresas a que foi sucessivamente confiada a exploração das carreiras de autocarro, embora possa constituir um indício de que não houve transferência na acepção da directiva, não pode revestir uma importância determinante a esse respeito (acórdão de 11 de Março de 1997, Süzen, C-13/95, Colect., p. I-1259, n.° 11).

29 Com efeito, a directiva é aplicável em todas as hipóteses de mudança, no âmbito de relações contratuais, da pessoa singular ou colectiva responsável pela exploração da empresa, que contrai as obrigações de entidade patronal relativamente aos empregados da empresa. Assim, para que a directiva seja aplicável, não é necessário que existam relações contratuais directas entre o cedente e o cessionário, já que a cedência pode também efectuar-se em duas fases, por intermédio de um terceiro, como o proprietário ou o locador (v., nomeadamente, acórdãos de 7 de Março de 1996, Merckx e Neuhuys, C-179/94 e C-172/94, Colect., p. I-1253, n.os 28 a 30, e Süzen, já referido, n.° 12).

30 A Directiva 77/187 é, por conseguinte, aplicável na ausência de relações contratuais directas entre as duas empresas às quais foi sucessivamente concedido, na sequência do processo de adjudicação de um contrato público de serviços organizado em conformidade com a Directiva 92/50, um serviço de transporte público não marítimo, como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro, por uma pessoa colectiva de direito público.

31 Para que a Directiva 77/187 seja aplicável, a transferência deve, porém, ter como objecto uma entidade económica organizada de modo estável, cuja actividade se não limite à execução de uma obra determinada (acórdão de 19 de Setembro de 1995, Rygaard, C-48/94, Colect., p. I-2745, n.° 20). A noção de entidade remete assim para um conjunto organizado de pessoas e elementos que permitam o exercício de uma actividade económica que prossegue um objectivo próprio (acórdão Süzen, já referido, n.° 13).

32 Cabe, oportunamente, ao tribunal a quo estabelecer, à luz dos elementos de interpretação precedentes, se a exploração das carreiras de autocarro em causa no processo principal estava organizada como uma entidade económica no seio da Hakunilan Liikenne antes de ser confiada à Liikenne.

33 Contudo, para determinar se se verificam as condições de uma transferência de entidade, convirá igualmente tomar em consideração o conjunto das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa, entre as quais figuram, designadamente, o tipo de empresa ou de estabelecimento de que se trata, a transferência ou não de elementos corpóreos, tais como os edifícios e os bens móveis, o valor dos elementos incorpóreos no momento da transferência, o emprego ou não por parte do novo empresário do essencial dos efectivos, a transferência ou não da clientela, bem como o grau de similitude das actividades exercidas antes e depois da transferência e da duração de uma eventual suspensão destas actividades. Estes elementos não passam, todavia, de aspectos parciais da avaliação de conjunto que se impõe e não poderão, por isso, ser apreciados isoladamente (v., nomeadamente, acórdãos, já referidos, Spijkers, n.° 13, e Süzen, n.° 14).

34 Deste modo, a mera circunstância de o serviço efectuado pelo antigo e pelo novo adjudicatário de um contrato ser semelhante não permite concluir pela transferência de uma entidade económica. Com efeito, esta entidade não pode ser reduzida à actividade de que está encarregada. A sua identidade resulta também de outros elementos, como o pessoal que a compõe, o seu enquadramento, a organização do seu trabalho, os seus métodos de exploração ou ainda, sendo caso disso, os meios de exploração à sua disposição (acórdãos, já referidos, Süzen, n.° 15; Hidalgo e o., n.° 30, e Allen e o., n.° 27; v. igualmente acórdão de 10 de Dezembro de 1998, Hernández Vidal e o., C-127/96, C-229/96 e C-74/97, Colect., p. I-8179, n.° 30).

35 Tal como foi recordado no n.° 32 do presente acórdão, o órgão jurisdicional nacional, na sua apreciação das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em questão, deve nomeadamente ter em conta o tipo de empresa ou de estabelecimento de que se trata. Daí resulta que a importância respectiva a atribuir aos diferentes critérios da existência de transferência na acepção da directiva varia necessariamente em função da actividade exercida, ou mesmo dos métodos de produção ou de exploração utilizados na empresa, no estabelecimento ou na parte do estabelecimento em questão (acórdãos, já referidos, Süzen, n.° 18; Hernández Vidal e o., n.° 31, e Hidalgo e o., n.° 31).

36 A este respeito, a Comissão, referindo-se ao acórdão Süzen, já referido, alega que a ausência de cessão de activos entre o antigo e o novo titular do contrato de transportes em autocarro é uma circunstância irrelevante e que, pelo contrário, o facto de o novo titular ter admitido uma parte essencial dos efectivos do seu predecessor é determinante.

37 É certo que o Tribunal de Justiça sublinhou que uma entidade económica pode, em certos sectores, funcionar sem elementos do activo, corpóreos ou incorpóreos, significativos, de tal forma que a manutenção da sua identidade para além da operação de que é objecto não pode, por hipótese, depender da cessão de tais elementos (acórdãos, já referidos, Süzen, n.° 18; Hernández Vidal e o., n.° 31, e Hidalgo e o., n.° 31).

38 Assim, o Tribunal de Justiça declarou que, na medida em que, em certos sectores nos quais a actividade assenta essencialmente na mão-de-obra, um conjunto de trabalhadores que executa de forma durável uma actividade comum pode corresponder a uma entidade económica, é forçoso admitir que essa entidade é susceptível de manter a sua identidade para além da sua transferência, quando o novo empresário não se limita a prosseguir a actividade em causa, mas também retoma uma parte essencial, em termos de número e de competências, dos efectivos que o seu predecessor afectava especialmente a essa missão. Nessa hipótese, a nova entidade patronal adquire, com efeito, um conjunto organizado de elementos que lhe permitirá a prossecução, de modo estável, das actividades ou de parte das actividades da empresa cedente (acórdãos, já referidos, Süzen, n.° 21; Hernández Vidal e o., n.° 32, e Hidalgo e o., n.° 32).

39 Contudo, o transporte em autocarro não pode ser considerado uma actividade que assenta essencialmente na mão-de-obra na medida em que exige material e instalações importantes (v., quanto à mesma conclusão no que respeita à perfuração de túneis de mina, acórdão Allen e o., já referido, n.° 30). Por conseguinte, a ausência de transferência, do antigo para o novo titular do contrato, dos activos corpóreos utilizados na exploração das carreiras de autocarro em causa constitui uma circunstância a ter em consideração.

40 Na audiência, o advogado dos recorridos no processo principal sublinhou o valor económico do contrato celebrado entre a YTV, entidade adjudicante, e a Liikenne, indicando que se trata de um activo incorpóreo significativo. Este valor não pode ser contestado; contudo, nas circunstâncias de um contrato objecto de uma renovação, o valor deste activo incorpóreo torna-se, em princípio, nulo aquando do termo do contrato do antigo titular, uma vez que este contrato é, precisamente, posto em jogo.

41 É certo que, se um processo de adjudicação, como o que está em causa no processo principal, previr a retoma, pelo novo adjudicatário, dos contratos em curso com a clientela ou se a maior parte desta puder ser considerada cativa, deve entender-se, não obstante, que há transferência de clientela.

42 Porém, num sector como o do transporte público regular em autocarro, em que os elementos corpóreos contribuem de maneira importante para o exercício da actividade, a ausência de transferência a um nível significativo do antigo para o novo titular do contrato de tais elementos, indispensáveis ao bom funcionamento da entidade, deve levar a que se considere que esta última não conserva a sua entidade.

43 Daqui resulta que, numa situação como a do processo principal, a Directiva 77/187 não se aplica na ausência de transferência de elementos corpóreos significativos entre o antigo e o novo titular do contrato.

44 Consequentemente, há que responder, em segundo lugar, ao tribunal a quo que o artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187 deve ser interpretado no sentido de que:

- esta directiva é aplicável na ausência de relações contratuais directas entre as duas empresas às quais foi sucessivamente concedido, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços organizado em conformidade com a Directiva 92/50, um serviço de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - por uma pessoa colectiva de direito público;

- numa situação como a do processo principal, a referida directiva não se aplica na ausência de transferência de elementos corpóreos significativos entre as duas empresas supramencionadas.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

45 As despesas efectuadas pelos Governos finlandês, neerlandês e do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Korkein oikeus, por despacho de 27 de Abril de 1999, declara:

1) A retoma, por uma empresa, de actividades de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - exercidas até aí por outra empresa, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços prevista pela Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, é susceptível de entrar no campo de aplicação material da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos, tal como enunciado no seu artigo 1.° , n.° 1.

2) O artigo 1.° , n.° 1, da Directiva 77/187 deve ser interpretado no sentido de que:

- esta directiva é aplicável na ausência de relações contratuais directas entre as duas empresas às quais foi sucessivamente concedido, na sequência de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços organizado em conformidade com a Directiva 92/50, um serviço de transporte público não marítimo - como a exploração de carreiras locais regulares de autocarro - por uma pessoa colectiva de direito público;

- numa situação como a do processo principal, a Directiva 77/187 não se aplica na ausência de transferência de elementos corpóreos significativos entre as duas empresas supramencionadas.