Acórdão do Tribunal de 29 de Junho de 1999. - Staatssecretaris van Financiën contra Coffeeshop "Siberië" vof. - Pedido de decisão prejudicial: Hoge Raad - Países Baixos. - Disposições fiscais - Harmonização das legislações - Impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado - Sexta Directiva - Âmbito de aplicação - Colocação à disposição de uma mesa para venda de estupefacientes. - Processo C-158/98.
Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-03971
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
Disposições fiscais - Harmonização das legislações - Impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado - Sexta Directiva - Âmbito de aplicação - Colocação à disposição de uma mesa para venda de estupefacientes - Inclusão
(Directiva 77/388 do Conselho, artigo 2._)
O artigo 2._ da Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios, deve ser interpretado no sentido de que a locação de um local utilizado para a venda de estupefacientes, praticada com o acordo do fornecedor da prestação, se inscreve no âmbito de aplicação desta directiva.
Com efeito, a referida locação constitui, em princípio, uma actividade económica, e o facto de as actividades exercidas no local alugado serem penalmente repreensíveis, o que pode tornar a locação ilícita, por um lado, em nada altera o carácter económico da referida locação e, por outro, não impede que exista uma concorrência nesse sector, inclusive entre actividades lícitas e ilícitas, de modo que a sua não tributação comprometeria o princípio da neutralidade fiscal do sistema do imposto sobre o valor acrescentado.
No processo C-158/98,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre
Staatssecretaris van Financiën
e
Coffeeshop «Siberië» vof,
" uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 2._ da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, P. J. G. Kapteyn, J.-P. Puissochet, G. Hirsch e P. Jann (relator), presidentes de secção, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward, H. Ragnemalm e R. Schintgen, juízes,
advogado-geral: N. Fennelly,
secretário: R. Grass,
vistas as observações escritas apresentadas:
- em representação da Coffeeshop «Siberië» vof, por G. A. C. Beckers, advogado no foro de Maastricht,
- em representação do Governo neerlandês, por J. G. Lammers, consultor jurídico substituto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,
- em representação Comissão das Comunidades Europeias, por E. Traversa e H. van Vliet, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,
visto o relatório do juiz-relator,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 11 de Março de 1999,
profere o presente
Acórdão
1 Por acórdão de 22 de Abril de 1998, entrado no Tribunal de Justiça em 24 de Abril seguinte, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 2._ da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54 a seguir «Sexta Directiva»).
2 Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe a sociedade Coffeeshop «Siberië» vof (a seguir «Siberië») à administração das finanças neerlandesa a respeito de um aviso de liquidação adicional do imposto sobre o volume de negócios referente aos anos de 1990 a 1993.
3 O artigo 2._ da Sexta Directiva dispõe:
«Estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado:
1. As entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
2. As importações de bens.»
4 O artigo 4._, n._ 1, da Sexta Directiva prevê:
«Por `sujeito passivo' entende-se qualquer pessoa que exerça, de modo independente, em qualquer lugar, uma das actividades económicas referidas no n._ 2, independentemente do fim ou do resultado dessa actividade.»
5 A Siberië explora uma «coffeeshop» em Amesterdão, ou seja, um estabelecimento no qual são vendidas e consumidas drogas leves. Durante o período coberto pelo aviso de liquidação adicional, colocou uma mesa no seu estabelecimento à disposição de um terceiro (a seguir «fornecedor autorizado»), que vendia produtos à base de cannabis a qualquer pessoa interessada. A Siberië tinha conhecimento dessa actividade.
6 A contrapartida pecuniária paga pelo fornecedor autorizado pela colocação à sua disposição da mesa figura nas contas da Siberië com a denominação «tafelhuur» (aluguer da mesa).
7 Não tendo a Siberië pago o imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») sobre esse aluguer, a administração fiscal emitiu-lhe uma liquidação adicional referente ao período de 1 de Janeiro de 1990 a 31 de Dezembro de 1993, com base na Wet op omzetbelasting 1968 (lei de 1968 do imposto sobre o volume de negócios).
8 Sobre o recurso que a Siberië interpôs da decisão da administração fiscal, o Gerechtshof te Amsterdam decidiu que a locação da mesa ao fornecedor autorizado constituía uma implicação repreensível no delito do comércio de drogas leves e não estava, portanto, sujeita ao IVA. Segundo esse órgão jurisdicional, o facto de esse delito não ser sistematicamente objecto de procedimento criminal nos Países Baixos não pode alterar esta apreciação, que, de resto, é conforme ao acórdão de 5 de Julho de 1988, Happy Family (289/86, Colect., p. 3655), no qual o Tribunal de Justiça declarou que o fornecimento de estupefacientes não está sujeito a IVA, pois que esses produtos apresentam características particulares, pelo facto de, pela sua própria natureza, serem objecto de uma proibição total de circulação em todos os Estados-Membros.
9 A administração das finanças neerlandesa recorreu em cassação do acórdão do Gerechtshof, invocando, essencialmente, que a colocação à disposição de um local para a venda de drogas leves não é objecto de uma proibição legal absoluta nem nos termos da regulamentação neerlandesa nem de uma regulamentação internacional, e que deve ser considerada de uma forma distinta do fornecimento de drogas enquanto tal. A solução a que chegou o Tribunal de Justiça no acórdão Happy Family, já referido, não se aplicará, portanto, ao caso em apreço.
10 Devendo decidir do recurso, o Hoge Raad interroga-se sobre a aplicabilidade da jurisprudência Happy Family, já referida, às circunstâncias do caso em apreço. Refere, em primeiro lugar, que o facto de colocar à disposição de um terceiro a possibilidade de comercializar drogas é reprimido, como cumplicidade, pelo direito penal neerlandês, que, de resto, está em conformidade com o disposto na convenção única sobre os estupefacientes assinada em Nova Iorque em 31 de Março de 1961 e ratificada pelo conjunto dos Estados-Membros da Comunidade.
11 Todavia, esta qualificação penal não impedirá que a colocação à disposição de um ponto de venda constitua, enquanto tal, uma prestação de serviços, na acepção da regulamentação comunitária referente ao IVA, e que possa, por esse facto, cair no âmbito de aplicação do artigo 2._ da Sexta Directiva.
12 Na medida em que a actividade em causa no processo principal constitua uma prestação de serviços na acepção da legislação referente ao imposto sobre o volume de negócios, O Hoge Raad interroga-se sobre a questão de saber se a jurisprudência Happy Family, já referida, deve também ser aplicada à colocação à disposição de um ponto de comercialização de produtos à base de cannabis, de modo a estar excluída a sua tributação. O órgão jurisdicional de reenvio considera que uma resposta positiva terá por consequência reduzir-se consideravelmente o âmbito de aplicação da Sexta Directiva, sendo que, além disso, em certos Estados-Membros, as concepções referentes ao carácter ilegal da comercialização das drogas leves evoluíram num sentido mais liberal após ter sido proferido o acórdão Happy Family, já referido, colocando-se, assim, a questão da manutenção desta jurisprudência.
13 Foi nestas circunstâncias que o Hoge Raad decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«O artigo 2._ da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que não se constitui qualquer obrigação de pagamento do imposto sobre o valor acrescentado por parte de quem, mediante compensação, dá a um terceiro a possibilidade de comercializar cannabis e derivados?»
14 A título liminar, há que recordar que o Tribunal de Justiça decidiu que o princípio da neutralidade fiscal se opõe efectivamente, em matéria de cobrança do IVA, a uma diferenciação generalizada entre as transacções lícitas e as transacções ilícitas. Contudo, isto não é verdadeiro em relação à transacção de produtos como os estupefacientes, que apresentam características particulares devido a, pela sua própria natureza, serem objecto de uma proibição total de circulação em todos os Estados-Membros, à excepção de um circuito económico estritamente vigiado com vista a uma utilização para fins médicos e científicos. Em tal situação específica, em que está excluída toda a concorrência entre um sector económico lícito e um sector económico ilícito, a não sujeição ao IVA não pode afectar o princípio da neutralidade fiscal (v., designadamente, acórdãos Happy Family, já referido, n._ 20, e de 5 de Julho de 1988, Mol, 269/86, Colect., p. 3627, n._ 18).
15 A Siberië considera que estes acórdãos têm aplicação plena no processo na causa principal, pelo que o aluguer referente à colocação à disposição de uma mesa escapa à tributação do IVA. O facto de colocar uma mesa à disposição de um fornecedor autorizado de drogas e de tal informar os clientes do café deve ser considerado como uma colaboração deliberada à comercialização de estupefacientes e constitui, sem contestação, um delito penal que deve ser tratado do mesmo modo que o fornecimento de estupefacientes enquanto tal.
16 Segundo o Governo neerlandês e a Comissão, impõe-se a sujeição ao IVA da actividade em causa. Com efeito, convém fazer uma distinção entre o fornecimento de drogas propriamente dito e os actos que se prendem com esse fornecimento. Assim, a locação é um acto que, enquanto tal e por si só, não é proibido. Também existe um mercado legal que está em concorrência com o mercado ilegal. Por conseguinte, esta prestação está sujeita ao IVA, como o Tribunal de Justiça decidiu a respeito da exportação sem autorização de sistemas informáticos (acórdão de 2 de Agosto de 1993, Langue, C-111/92, Colect., p. I-4677), do fornecimento de perfumes de contrafacção (acórdão de 28 de Maio de 1998, Goodwin e Unstead, C-3/97, Colect., p. I-3257), e da organização de jogos de azar ilícitos (acórdão de 11 de Junho de 1998, Fischer, C-283/95, Colect., p. I-3369), pela razão de não se tratar de mercadorias ou prestações situadas fora do circuito económico regular ou que se encontrassem numa situação em que estivesse completamente excluída qualquer concorrência entre um sector económico lícito e um sector ilícito.
17 Contudo e caso o Tribunal de Justiça entenda que a actividade em causa deve ser sujeita ao mesmo regime que o fornecimento de estupefacientes propriamente dito, convém, segundo o Governo neerlandês, ter em conta a considerável evolução da atitude das autoridades dos Países Baixos em relação à utilização de drogas leves no decurso destes últimos anos. É assim que, embora a venda das drogas leves nas coffeeshops constitua ainda um delito em direito penal neerlandês, uma «directiva» do colectivo dos procuradores gerais neerlandeses prevê a possibilidade de tolerar essa actividade nas coffeeshops que preencham certas condições, em caso de uma concertação local nesse sentido entre a administração municipal, a polícia e o ministério público. Nestas circunstâncias, já não há uma proibição total da colocação em circulação de drogas leves que possa justificar uma excepção ao princípio da neutralidade fiscal.
18 Por outro lado, a Comissão alega que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma actividade económica deve ser apreciada, para a aplicação do sistema comum de IVA, em si mesma, independentemente dos seus objectivos e dos seus resultados e tendo em conta a realidade económica (acórdãos de 26 de Março de 1987, Comissão/Países Baixos, 235/85, Colect., p. 1471, n._ 8, e de 20 de Fevereiro de 1997, DFDS, C-260/95, p. I-1005, n._ 23).
19 A este respeito, há que sublinhar que a actividade susceptível de ser tributada no caso em apreço não é a venda de estupefacientes, mas uma prestação de serviços constituída pela colocação à disposição de um local no qual a venda destes produtos é praticada com o acordo do fornecedor da prestação. Portanto, as considerações desenvolvidas no acórdão Happy Family, já referido, não são directamente transponíveis para os factos do presente processo.
20 Há, pois, que examinar se se impõe uma extensão destas considerações às actividades ligadas, de um qualquer modo, à comercialização de estupefacientes.
21 Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, como foi recordado no n._ 14, o princípio da neutralidade fiscal opõe-se, em matéria de cobrança do IVA, a uma diferenciação generalizada entre as transacções lícitas e as transacções ilícitas. Donde resulta que a qualificação de um comportamento como repreensível não determina, por si só, uma excepção à tributação do IVA, mas que esta excepção só opera em situações específicas nas quais, em razão das características particulares de certas mercadorias ou de certas prestações, está excluída qualquer concorrência entre um sector económico lícito e um sector ilícito.
22 Ora, no caso em apreço, não se trata de semelhante situação específica. Com efeito, a locação de um local destinado a acolher as actividades comerciais constitui, em princípio, uma actividade económica e inscreve-se, portanto, no âmbito de aplicação da Sexta Directiva. O facto de as actividades exercidas no local alugado serem penalmente repreensíveis, o que pode tornar a locação ilícita, em nada altera o carácter económico da referida locação e não impede que exista uma concorrência nesse sector, inclusive entre actividades lícitas e ilícitas. Donde resulta que, em caso da sua não tributação, ficaria comprometido o princípio da neutralidade fiscal do sistema do IVA.
23 Portanto, há que responder ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 2._ da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que a locação de um local utilizado para a venda de estupefacientes em condições como as do processo principal se inscreve no âmbito de aplicação desta directiva.
Quanto às despesas
24 As despesas efectuadas pelo Governo neerlandês e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden, por acórdão de 22 de Abril de 1998, declara:
O artigo 2._ da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que a locação de um local utilizado para a venda de estupefacientes em condições como as do processo principal se inscreve no âmbito de aplicação desta directiva.