61998C0456

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 16 de Março de 2000. - Centrosteel Srl contra Adipol GmbH. - Pedido de decisão prejudicial: Pretore di Brescia - Itália. - Directiva 86/653/CEE - Agentes comerciais independentes - Regulamentação nacional que prevê a nulidade dos contratos de agentes comerciais celebrados por pessoas não inscritas no registo dos agentes. - Processo C-456/98.

Colectânea da Jurisprudência 2000 página I-06007


Conclusões do Advogado-Geral


1 No seguimento do acórdão Bellone (1), o Pretore di Brescia (Itália) submeteu ao Tribunal de Justiça algumas questões sobre a interpretação e os efeitos, no âmbito de um contrato de agência, das disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços. No entanto, pelas razões a seguir enunciadas, considero que o litígio pendente junto do Pretore pode ser resolvido com base na Directiva 86/653/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1986, relativa à coordenação do direito dos Estados-Membros sobre os agentes comerciais (2).

Antecedentes do litígio

2 O acórdão Bellone dizia respeito à compatibilidade com esta directiva da Lei italiana n._ 204, de 3 de Maio de 1985 (3), e do artigo 1418._ do Código Civil italiano, na interpretação que lhes foi dada pelos tribunais italianos na época dos factos controvertidos.

3 O artigo 2._ da Lei n._ 204 prevê a instituição, em todas as Câmaras de Comércio de Itália, de um registo dos agentes e representantes de comércio, no qual «devem inscrever-se todos aqueles que exercem ou pretendem exercer a actividade de agente ou de representante de comércio». O artigo 9._ desta lei proíbe «o exercício da actividade de agente ou de representante de comércio a quem não esteja inscrito no registo a que se refere a presente lei». Nos termos do artigo 1418._ do Código Civil italiano, «o contrato é nulo quando contraria uma norma imperativa» (4). A Corte suprema di cassazione declarou em 1989 que o artigo 9._ da Lei n._ 204 é uma disposição imperativa. Por conseguinte, qualquer contrato de agência celebrado por uma pessoa não registada é nulo e essa pessoa não pode reclamar em juízo as comissões respeitantes às actividades por ela exercidas.

4 O objectivo da Directiva 86/653 é o de coordenar as legislações dos Estados-Membros no que diz respeito à relação jurídica existente entre as partes num contrato de agência e o de proteger os interesses dos agentes comerciais (5). Para o efeito, a directiva estabelece regras relativas aos direitos e obrigações dos agentes comerciais e dos comitentes (artigos 3._ a 5._), à remuneração dos agentes comerciais (artigo 6._ a 12._), à celebração e cessação do contrato de agência (artigos 13._ a 20._). A directiva não trata da questão da inscrição do agente comercial num registo, sendo conhecido que um certo número de Estados-Membros impõe esta obrigação. Neste contexto, o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Bellone que a directiva não se opõe a que um Estado-Membro exija um registo dos agentes comerciais (6). No entanto, considerou que a directiva regula de modo exaustivo as condições de validade do contrato de agência. Assim, o Tribunal de Justiça considerou que a directiva «se opõe a uma legislação nacional que subordina a validade do contrato de agência à inscrição do agente comercial num registo previsto com essa finalidade» (7). Tendo em conta o contexto factual do acórdão Bellone, esta declaração deve ser entendida no sentido de que a interpretação dada pelos tribunais italianos ao artigo 9._ da Lei n._ 204 como norma imperativa para efeitos do artigo 1418._ do Código Civil era contrária à Directiva 86/653.

5 À luz do acórdão Bellone do Tribunal de Justiça, a Corte suprema di cassazione alterou recentemente a sua posição quanto aos efeitos do artigo 9._ da Lei n._ 204 e do artigo 1418._ do Código Civil. No seu acórdão n._ 4817, de 18 de Maio de 1999, declarou que a falta do registo previsto na Lei n._ 204 não implica a nulidade do contrato de agência. Este acórdão foi, contudo, proferido posteriormente ao despacho de reenvio do presente processo, não tendo sido invocado nas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

Factos e argumentos

6 Os factos expostos no despacho de reenvio são os seguintes. A requerente, a Centrosteel Srl (a seguir «Centrosteel»), é uma sociedade italiana cuja sede social se situa em Brescia. Esta sociedade não está registada enquanto agente comercial nos termos da Lei n._ 204. A requerida, a Adipol GmbH (a seguir «Adipol»), é uma sociedade austríaca cuja sede se encontra em Viena. No final do ano de 1989 ou no início de 1990, a Centrosteel celebrou com a Adipol um contrato verbal por força do qual se comprometeu a encontrar, tanto em Itália como no estrangeiro, compradores e vendedores de produtos metálicos e de sucata. A Adipol pôs termo ao contrato em 1991. A Centrosteel entende ter actuado na qualidade de agente comercial da Adipol no período compreendido entre 1989 e 1991, tendo assim direito a uma comissão de 170 600 ATS pelos serviços prestados. Na acção principal, a Centrosteel pediu a condenação da Adipol no pagamento desta quantia.

7 A Adipol contesta dizendo que o pagamento não pode ser efectuado. Dado que a Centrosteel não estava registada nos termos da Lei n._ 204, o contrato de agência é, segundo a jurisprudência italiana desde 1989, nulo e sem efeito. A Centrosteel afirma que a Lei n._ 204 é incompatível com a Directiva 86/653, havendo assim que dar execução ao contrato de agência. A Adipol responde que a Centrosteel não pode invocar a directiva, porque, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as directivas não podem ter efeito directo nos litígios entre particulares.

As questões prejudiciais

8 Face a estes argumentos das partes, o Pretore di Brescia considera que a decisão do Tribunal de Justiça no acórdão Bellone não lhe permite resolver o litígio na acção principal. Visto que a Directiva 86/653 não tem efeito directo nos diferendos entre particulares, é necessário recorrer às disposições do Tratado. Assim, o Pretore decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1) Qual é a interpretação a dar aos artigos 52._, 53._, 54._, 55._, 56._ e 58._ do Tratado CE [actuais artigos 43._ a 48._ CE]; em especial, constituem uma restrição à liberdade de estabelecimento os artigos 2._ e 9._ da Lei italiana n._ 204 de 1985, nos termos dos quais a inscrição num registo é obrigatória para todo aquele que exerce uma actividade de agente comercial, sendo nulo o contrato de agência celebrado com pessoa não inscrita?

2) As regras relativas à liberdade de estabelecimento consagradas nos artigos 52._ a 58._ do Tratado [actuais artigos 43._ a 48._ CE] opõem-se a uma regulamentação nacional que subordina a validade do contrato de agência à inscrição do agente comercial num registo previsto com essa finalidade?

3) As regras relativas à livre prestação de serviços consagradas nos artigos 59._ a 66._ do Tratado [actuais artigos 49._ a 55._ CE] opõem-se a uma regulamentação nacional que subordina a validade do contrato de agência à inscrição do agente comercial num registo previsto com essa finalidade?»

Admissibilidade

9 Todas as partes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça - a Adipol, o Governo italiano e a Comissão - levantaram objecções à admissibilidade do reenvio prejudicial. Estas objecções dividem-se em duas categorias. Em primeiro lugar, alega-se que o despacho de reenvio está viciado por erros de facto e de direito. Em segundo lugar, argumenta-se que a decisão do Tribunal de Justiça sobre as questões que lhe foram submetidas não é necessária ao Pretore di Brescia para solucionar o litígio na acção principal.

Erros de facto e de direito no despacho de reenvio

10 A Adipol apresenta dois argumentos que se prendem com a matéria de facto e as qualificações jurídicas do despacho de reenvio. Em primeiro lugar, afirma, contrariando declarações do Pretore di Brescia no despacho de reenvio, que a Centrosteel não actuava como seu agente comercial. A Centrosteel apenas havia recebido certos pagamentos da Adipol através de um dúbio arranjo entre um empregado desta última e o administrador da Centrosteel, que, aliás, era o seu cônjuge. O reenvio é pois inadmissível, uma vez que se baseia em factos inexactos ou numa qualificação jurídica incorrecta desses mesmos factos.

11 Este argumento não colhe. Com efeito, é jurisprudência assente que, no âmbito do processo previsto no artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE), cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais estabelecer os factos e apreciar, à luz desses factos, a necessidade de decisão prejudicial e a pertinência das questões por eles submetidas aos Tribunal de Justiça. O Tribunal decide «sem que, em princípio, tenha de se interrogar sobre as circunstâncias em que os órgãos jurisdicionais foram levados a colocar-lhe as questões» (8). Assim, é irrelevante para a admissibilidade do reenvio prejudicial em apreço saber se o Pretore di Brescia teve ou não razão ao dar como assente que a Centrosteel actuou como agente da Adipol.

12 Em segundo lugar, a Adipol sustenta que o reenvio é inadmissível, dado que a pertinência das disposições do Tratado relativas à livre circulação não foi invocada pelas partes na acção principal. O Pretore di Brescia incluiu estas disposições nas questões que submeteu ao Tribunal de Justiça sem dar às partes a possibilidade de se exprimirem quanto à sua pertinência.

13 Esta objecção não tem fundamento. Segundo jurisprudência constante, a competência conferida ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 177._ do Tratado não depende da conformidade do despacho de reenvio com as regras de processo do direito nacional (9). Se, como declara a Adipol, a decisão do Pretore viola os direitos processuais das partes previstos na legislação italiana, tal questão compete aos órgãos jurisdicionais italianos.

14 A Comissão sustenta que o despacho é inadmissível porque os tribunais italianos não têm competência para dirimir o conflito entre a Adipol e a Centrosteel, segundo o direito internacional privado. Na opinião da Comissão, o contrato entre a Adipol e a Centrosteel apresenta um nexo mais estreito com a Áustria do que com a Itália, uma vez que foi celebrado na Áustria e em grande parte executado na Polónia. Por conseguinte, os tribunais austríacos são o foro adequado para conhecer do litígio na acção principal.

15 Este argumento não pode também ser acolhido. A alegada incompetência do Pretore di Brescia para dirimir o diferendo na acção principal não pode afectar a admissibilidade do presente reenvio. Assim como a competência do Tribunal de Justiça para responder às questões que lhe são submetidas nos termos do artigo 177._ não depende do respeito das regras processuais nacionais, também não depende da conformidade com as regras de competência jurisdicional ditadas pelo direito internacional privado. A obediência a estas regras é uma matéria que cabe exclusivamente aos tribunais italianos que são os responsáveis finais pela decisão na acção principal.

A necessidade, para a resolução do litígio na acção principal, de decisões sobre as questões submetidas ao Tribunal de Justiça

16 A Adipol, o Governo italiano e a Comissão sustentam todos que as questões submetidas pelo Pretore di Brescia são desnecessárias à resolução do litígio na acção principal. Os argumentos apresentados em apoio desta tese são os seguintes.

17 A Comissão defende que o litígio na acção principal deveria ter sido resolvido ao abrigo do direito austríaco em vez do direito italiano. A legislação austríaca não consagra qualquer obrigação de registo dos agentes comerciais. Por conseguinte, não é nem necessário nem pertinente para a solução do diferendo que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a compatibilidade dessa exigência com o Tratado.

18 Em meu entender, esta tese não é convincente. Como foi acima explicado, não cabe ao Tribunal de Justiça examinar os factos nem indagar qual a lei aplicável ao litígio na acção principal ao abrigo do direito internacional privado.

19 A Comissão, apoiada pelo Governo italiano, alega também que uma resposta às questões colocadas pelo Pretore é desnecessária à resolução do litígio, dado que os órgãos jurisdicionais nacionais estão obrigados a interpretar o direito interno à luz das directivas comunitárias. Assim, o Pretore deve interpretar o direito italiano no sentido de que a inobservância da obrigação, consagrada na Lei n._ 204, de inscrição num registo não implica a nulidade do contrato de agência. O Governo italiano sublinha que o Pretore está em condições de assim decidir, uma vez que não existe no direito italiano qualquer disposição legislativa que explicitamente declare que a falta de registo implica a nulidade. O litígio na acção principal pode, pois, ser resolvido sem que seja necessário recorrer às disposições do Tratado em matéria de livre circulação, sendo inútil repensar a decisão do Tribunal de Justiça no acórdão Bellone com base nessas mesmas disposições.

20 Em meu entender, o facto de o processo poder ser resolvido por interpretação da legislação nacional à luz da directiva não é uma razão suficiente para rejeitar, por falta de pertinência, as questões colocadas pelo tribunal nacional. Na realidade, este elemento pode mesmo fornecer uma base para a resposta a essas questões. O Tribunal de Justiça, quando se propõe ajudar o órgão jurisdicional nacional, não está limitado às disposições específicas invocadas no despacho de reenvio.

21 Finalmente, a Comissão e a Adipol sustentam que o reenvio é inadmissível porque o litígio na acção principal diz respeito a um contrato entre uma sociedade italiana, dirigida por uma pessoa de nacionalidade italiana (10), e uma sociedade austríaca, contrato esse que foi celebrado, executado e resolvido no decurso do período que vai de 1989 a 1991. Nessa altura, a Áustria não era membro nem da União Europeia nem do Espaço Económico Europeu. Por conseguinte, a Centrosteel encontra-se numa situação que os juristas comunitários qualificam frequentemente de «interna», não podendo assim invocar as disposições do Tratado referidas no despacho de reenvio. A interpretação destas disposições é pois, sob todos os pontos de vista, desnecessária e irrelevante para a resolução do litígio na acção principal.

22 Penso que esta objecção não merece acolhimento.

23 Em primeiro lugar, apesar de o Tribunal de Justiça ter declarado que não respondia a questões gerais ou hipotéticas (11) nem a questões respeitantes a disposições do direito comunitário sem qualquer relação com a realidade ou com o objecto da causa principal (12), até à presente data utilizou com grande moderação o seu poder de rejeitar os reenvios prejudiciais por irrelevantes (13). O processo Bertini e o. é ilustrativo da abordagem adoptada pelo Tribunal de Justiça, tendo este último aceite responder às questões que lhe eram colocadas, apesar de ter observado que, «no caso em apreço, é difícil conceber de que forma as respostas solicitadas ao Tribunal podem influir na solução dos litígios no processo principal» (14). Mais recentemente, nos processos Tombesi e o. (15), o Tribunal de Justiça foi interrogado sobre a interpretação das Directivas 91/156/CEE e 91/689/CEE (16). O Tribunal de Justiça considerou, a propósito da admissibilidade destas questões, que, «apesar de se verificar que alguns factos dos processos principais são anteriores às datas em que as Directivas 91/156 e 91/689... se tornaram aplicáveis, deve observar-se que os despachos de reenvio contêm uma exposição desses factos e que os juízes nacionais visam expressamente, com as questões prejudiciais, esses diplomas comunitários. Assim, deve apreciar-se a totalidade das questões submetidas ao Tribunal» (17).

24 Esta generosa atitude para com questões prima facies sem objecto, é, em meu entender, totalmente adequada, dada a finalidade e a importância fundamental do processo previsto no artigo 177._ do Tratado (18). A rejeição de um pedido de decisão prejudicial só é possível quando é manifesto que não tem qualquer relação com o objecto do litígio no processo principal. Trata-se de uma situação rara, existindo apenas um exemplo na jurisprudência recente do Tribunal de Justiça. No processo Falciola (19), o Tribunale amministrativo regionale di Lombardia perguntava, no essencial, ao Tribunal de Justiça se uma lei italiana que limitava a imunidade de que gozavam os magistrados italianos em matéria de responsabilidade civil os impedia de exercerem as suas funções de forma imparcial e satisfatória. Estas questões eram colocadas no âmbito de um litígio relativo à adjudicação pelo conselho comunal de Pavia de uma empreitada de obras públicas a um concorrente da empresa de construção civil Impresa Falciola Angelo. Nessas condições, o Tribunal de Justiça considerou que as questões colocadas não tinham qualquer relação com o objecto do litígio no processo principal, dado que não diziam de modo nenhum respeito à interpretação das regras comunitárias sobre contratos públicos (20).

25 É manifesto que as circunstâncias do caso em apreço são diferentes das que haviam sido colocadas ao Tribunal de Justiça no processo Falciola. As questões colocadas no caso vertente não são totalmente destituídas de relação com o objecto do litígio; o juiz referiu expressamente disposições do direito comunitário nas suas questões e, como admitiu o Tribunal de Justiça no acórdão Tombesi e o., pode ser útil responder a questões relativas a factos anteriores à entrada em vigor das regras comunitárias cuja interpretação é solicitada.

26 De qualquer modo, como sublinhou a própria Comissão, é possível responder às preocupações subjacentes às questões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional explicando o alcance da Directiva 86/653. A aplicação desta directiva não está sujeita a qualquer elemento transfronteiriço. Portanto, a objecção da Comissão e da Adipol não procede se o Tribunal de Justiça responder às perguntas do Pretore com base na directiva, e não com base nas disposições do Tratado em matéria de livre circulação.

27 Por conseguinte, afigura-se adequado examinar o mérito das questões prejudiciais.

Quanto ao mérito

28 As questões colocadas pelo Pretore di Brescia dizem respeito à compatibilidade com as disposições do Tratado em matéria de livre circulação de regras nacionais que tornam obrigatória a inscrição de todos os agentes comerciais num registo e que declaram nulo o contrato de agência celebrado por uma pessoa não inscrita nesse registo.

29 Antes de tentarmos responder a questões de tão amplo alcance, é preciso recordar o contexto em que foram suscitadas. O Tribunal de Justiça declarou no acórdão Bellone que uma legislação nacional que subordina a validade de um contrato de agência à inscrição do agente comercial num registo é contrária à Directiva 86/653. No caso agora em apreço, a Centrosteel invoca este acórdão em apoio do seu pedido de condenação da Adipol no pagamento da comissão alegadamente devida ao abrigo do contrato celebrado entre as duas partes. No entanto, o Pretore di Brescia considera que a Centrosteel não pode basear-se na Directiva 86/653, uma vez que as directivas não têm efeito directo nos litígios entre particulares. Daí a referência às disposições do Tratado.

30 Ora, como sublinharam a Comissão e Governo italiano, não é necessário recorrer neste caso às disposições do Tratado, uma vez que o litígio na acção principal pode ser resolvido com base na Directiva 86/653 e na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos efeitos jurídicos das directivas.

31 Segundo jurisprudência assente, uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações na esfera dos particulares (21). No entanto, também em conformidade com jurisprudência constante, os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros estão obrigados a interpretar as respectivas legislações nacionais, na medida do possível, de modo a atingir o resultado prosseguido pelas directivas. A obrigação de interpretar o direito nacional de acordo com as directivas aplica-se tanto aos litígios entre particulares e poderes públicos (22) como aos litígios entre particulares (23). Assim, no acórdão Marleasing (24), o Tribunal de Justiça declarou que os tribunais espanhóis estavam obrigados a interpretar o direito espanhol à luz da Directiva 68/151/CEE (25). Como esta directiva enumerava taxativamente os motivos que poderiam estar na base da declaração de invalidade de uma sociedade e entre esses motivos não figurava a natureza ilícita da actividade efectivamente exercida pela sociedade (por oposição ao objecto social declarado nos estatutos), o direito comunitário não permitia ao juiz nacional decretar a invalidade da sociedade requerida, La Comercial, por falta de objecto legal, ainda que, como pretendia a Marleasing, esta apenas tivesse sido criada para expoliar os credores.

32 Todavia, os princípios gerais do direito reconhecidos pelo Tribunal de Justiça impõem certas limitações à obrigação de interpretar o direito nacional à luz das directivas. Por um lado, como declarou o Tribunal de Justiça no acórdão Pretore di Salò, a interpretação do direito nacional não deve criar ou agravar a responsabilidade penal que não existiria sem a directiva (26). Por outro lado, o órgão jurisdicional nacional não está obrigado a interpretar o direito interno em sentido oposto aos termos expressamente utilizados na legislação aplicável (27).

33 Estes princípios bem consolidados relativos à interpretação da lei nacional não foram afectados pela decisão do Tribunal de Justiça no acórdão Arcaro (28). O demandado neste processo era alvo de uma acção penal num tribunal italiano por ter efectuado descargas de substâncias perigosas no meio ambiente, sem para tal estar autorizado. O juiz italiano teve dúvidas quanto à conformidade da lei italiana, que estava na origem dos processos penais, com as duas directivas cuja aplicação ela promovia. Perguntou assim ao Tribunal de Justiça se era possível utilizar um mecanismo para «eliminar da ordem jurídica nacional as normas internas incompatíveis com as comunitárias». O Tribunal de Justiça respondeu que os órgãos jurisdicionais nacionais devem efectivamente interpretar o direito nacional à luz das directivas comunitárias (29), mas acrescentou (30):

«... esta obrigação de o juiz nacional ter em conta o conteúdo da directiva ao interpretar as normas relevantes do direito nacional encontra os seus limites quando tal interpretação leve a impor a um particular uma obrigação prevista numa directiva não transposta ou, por maioria de razão, quando leve a determinar ou a agravar, com base na directiva e na falta de uma lei adoptada para sua aplicação, a responsabilidade penal daqueles que actuem em violação das suas disposições (v. acórdão Kolpinghuis Nijmegen, já referido, n.os 13 e 14)».

34 Esta declaração pode parecer impor limitações drásticas ao princípio da interpretação do direito nacional em conformidade com as directivas comunitárias (31). Não creio, porém, que esta declaração deva ser lida nesse sentido. Foi feita no âmbito de um processo penal e o acórdão Kolpinghuis Nijmegen referido pelo Tribunal de Justiça também se prendia com a responsabilidade penal. Se, pela sua letra, estes dois acórdãos podem parecer aplicar-se para além do contexto penal, é difícil conciliá-los com a jurisprudência anterior e subsequente do Tribunal de Justiça (32).

35 Em resumo, penso que a jurisprudência do Tribunal de Justiça estabelece duas regras: 1) na falta de transposição adequada para o direito nacional, uma directiva não pode, por si só, criar obrigações para os particulares (33); 2) os órgãos jurisdicionais nacionais devem, no entanto, interpretar o direito interno, na medida do possível, à luz da letra e da finalidade das directivas aplicáveis. Embora este método de interpretação não possa, por si só e independentemente de uma lei nacional que transponha a directiva, ter como efeito criar ou agravar a responsabilidade penal, pode perfeitamente implicar a responsabilidade de um particular ou uma obrigação civil que, de outro modo, não existiria.

36 Estas duas regras têm implicações no caso agora em apreço. O Pretore di Brescia deve, quando interpreta as disposições do artigo 9._ da Lei n._ 204 e o artigo 1418._ do Código Civil italiano, tomar em consideração a Directiva 86/653. Não é obrigado a atingir um resultado oposto às disposições expressas da lei italiana, mas tal não parece ser o caso aqui. Segundo o Governo italiano, não há, no direito italiano, regras legislativas que consagrem explicitamente que os contratos celebrados pelos agentes comerciais não inscritos no registo de acordo com a Lei n._ 204 são nulos. Esta nulidade parece resultar da jurisprudência da Corte suprema di cassazione desde 1989. Essa jurisprudência é, segundo o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Bellone, contrária ao direito comunitário. Parece assim que o Pretore di Brescia está obrigado a resolver o litígio na acção principal com base numa interpretação diferente do direito italiano que esteja em conformidade com a Directiva 86/653. Esta conclusão é corroborada pelo facto de, como já foi referido, a Corte suprema di cassazione, depois de já ter sido submetido ao Tribunal de Justiça o presente pedido prejudicial, ter alterado a sua jurisprudência no sentido de que a inobservância da obrigação, prevista na Lei n._ 204, de inscrição no registo já não implica, no direito italiano, a nulidade dos contratos de agência (34).

37 À luz desta conclusão, não é necessário que o Tribunal de Justiça responda às questões do Pretore di Brescia relativas às disposições do Tratado em matéria de livre circulação. Parece-me, pois, desnecessário pronunciar-me sobre estas questões.

Conclusão

38 Penso assim que o Tribunal de Justiça deve responder do seguinte modo:

«1) A Directiva 86/653/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1986, relativa à coordenação do direito dos Estados-Membros sobre os agentes comerciais, opõe-se a uma legislação nacional que subordina a validade do contrato de agência à inscrição do agente comercial num registo previsto com essa finalidade.

2) Ao aplicar o direito interno, o órgão jurisdicional nacional chamado a interpretar essa legislação deve fazê-lo, na medida do possível, à luz da letra e da finalidade da directiva para atingir o resultado por esta prosseguido.»

(1) - Acórdão de 30 de Abril de 1998 (C-215/97, Colect., p. I-2191).

(2) - JO L 382, p. 17.

(3) - GURI n._ 119, de 22 de Maio de 1985, p. 3623.

(4) - A versão italiana desta disposição tem a seguinte redacção: «Il contratto è nullo quando è contrario a norme imperative.»

(5) - Nos termos do artigo 1._, n._ 2, o agente comercial é um «intermediário independente... encarregado a título permanente, quer de negociar a venda ou a compra de mercadorias para uma outra pessoa... quer de negociar e concluir tais operações em nome e por conta do comitente».

(6) - N._ 11 do acórdão.

(7) - N._ 18 do acórdão.

(8) - V. os acórdãos de 18 de Outubro de 1990, Dzodzi (C-297/88 e C-197/89, Colect., p. I-3763, n._ 39), e de 20 de Março de 1997, Phytheron International (C-352/95, Colect., p. I-1729, n.os 11 a 14).

(9) - V. o acórdão de 11 de Julho de 1996, SFEI e o. (C-39/94, Colect., p. I-3547, n._ 24). V. igualmente os acórdãos de 14 Janeiro de 1982, Reina (65/81, Recueil, p. 33, n.os 7 e 8), e de 20 de Outubro de 1993, Balocchi (C-10/92, Colect., p. I-5105, n.os 16 e 17).

(10) - Os documentos apresentados pela requerida mostram que o administrador da Centrosteel tem dupla nacionalidade alemã e italiana.

(11) - V. o acórdão de 16 de Julho de 1992, Meilicke (C-83/91, Colect., p. I-4871).

(12) - V., por exemplo, os acórdãos de 16 de Junho de 1981, Salonia (126/80, Recueil, p. 1563, n._ 6), e de 18 de Janeiro de 1996, SEIM (C-446/93, Colect., p. I-73, n._ 28).

(13) - V. os acórdãos de 16 de Julho de 1992, Lourenço Dias (C-343/90, Colect., p. I-4673); de 17 de Maio de 1994, Corsica Ferries (C-18/93, Colect., p. I-1783, n.os 14 e 15), e de 15 de Setembro de 1998, Ansaldo Energia e o. (C-279 a C-281/96, Colect., p. I-5025, n.os 33 e 34).

(14) - Acórdão de 12 de Junho de 1986 (98/85, 162/85 e 258/85, Colect., p. 1885, n._ 8).

(15) - Acórdão de 25 de Junho de 1997 (C-304/94, C-330/94, C-342/94 e C-224/95, Colect., p. I-3561).

(16) - Directiva 91/156/CEE do Conselho, de 18 de Março de 1991, que altera a Directiva 75/442/CEE relativa aos resíduos (JO L 78, p. 32); Directiva 91/689/CEE do Conselho, de 12 de Dezembro de 1991, relativa aos resíduos perigosos (JO L 377, p. 20).

(17) - N._ 40 do acórdão.

(18) - V., também, a favor deste ponto de vista, o acórdão de 5 de Junho de 1997, Celestini (C-105/94, Colect., p. I-2971, n._ 22), e as conclusões do advogado-geral N. Fennelly no processo Corsica Ferries France (acórdão de 18 de Junho de 1998, C-266/96, Colect., p. I-3949, n._ 20).

(19) - Despacho de 26 de Janeiro de 1990 (C-286/88, Colect., p. I-191).

(20) - V., também, o despacho de 16 de Maio de 1994, Monin Automobiles (C-428/93, Colect., p. I-1707), e o acórdão de 15 de Junho de 1995, Zabala Erasun e o. (C-422/93 a C-424/93, Colect., p. I-1567), sobre a necessidade de responder às questões colocadas quando o processo principal ficou sem objecto.

(21) - Acórdãos de 26 de Fevereiro de 1986, Marshall (152/84, Colect., p. 723, n._ 48), e de 14 de Julho de 1994, Faccini Dori (C-91/92, Colect., p. I-3325, n._ 26).

(22) - V., por exemplo, os acórdãos de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann (14/83, Recueil, p. 1891), e de 25 de Fevereiro de 1999, Carbonari e o. (C-131/97, Colect., p. I-1103, n._ 48).

(23) - V., por exemplo, os acórdãos de 10 de Abril de 1984, Harz (79/83, Recueil, p. 1921), e de 16 de Dezembro de 1993, Wagner Miret (C-334/92, Colect., p. I-6911).

(24) - Acórdão de 13 de Novembro de 1990 (C-106/89, Colect., p. I-4135).

(25) - Primeira directiva do Conselho, de 9 de Março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-Membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58._ do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO L 65, p. 8; EE 17 F1 p. 3).

(26) - Acórdão de 11 de Junho de 1987 (14/86, Colect., p. 2545). V., também, o acórdão de 8 de Outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen (80/86, Colect., p. 3969).

(27) - V., por exemplo, o acórdão Wagner Miret, já referido (nota 23), n._ 22. V., também, as conclusões do advogado-geral W. Van Gerven no processo Barber (acórdão de 17 de Maio de 1990, C-262/88, Colect., p. I-1889, I-1937), nas quais declarava que o direito comunitário não obriga o órgão jurisdicional nacional a interpretar contra legem, bem como as do advogado-geral A. Saggio, apresentadas em 16 de Dezembro de 1999 no processo Quintero e o. (C-240/98 a C-244/98, ainda pendente no Tribunal de Justiça, n._ 28).

(28) - Acórdão de 26 de Setembro de 1996 (C-168/95, Colect., p. I-4705).

(29) - N._ 41 do acórdão.

(30) - N._ 42 do acórdão (o sublinhado é meu).

(31) - V. Craig, P., «Directives: Direct Effect, Indirect Effect and the Construction of National Legislation» (1997), E. L. Rev., pp. 519, 527.

(32) - V., por exemplo, o acórdão de 12 de Dezembro de 1996, X (C-74/95 e C-129/95, Colect., p. I-6609, n.os 23 e 24).

(33) - V., neste sentido, as minhas conclusões no processo Tombesi e o., já referido (nota 15), n._ 37.

(34) - V. n._ 5 supra.