61998C0393

Conclusões do advogado-geral Fennelly apresentadas em 21 de Septembro de 2000. - Ministério Público e António Gomes Valente contra Fazenda Pública. - Pedido de decisão prejudicial: Supremo Tribunal Administrativo - Portugal. - Imposições internas - Imposto especial que incide sobre os veículos a motor - Veículos usados. - Processo C-393/98.

Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-01327


Conclusões do Advogado-Geral


1 O facto de a Comissão ter dado início a um processo por incumprimento relativo a disposições legislativas nacionais, mas de posteriormente ter desistido do mesmo à luz das alterações introduzidas nessa legislação, afecta a obrigação de um órgão jurisdicional cujas decisões não são susceptíveis de recurso previsto no direito interno de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão resultante da compatibilidade daquelas disposições com o Tratado? O artigo 95._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90._ CE; a seguir «artigo 95._») exige que um Estado-Membro tenha em conta a depreciação real do valor de mercado de cada veículo usado importado para efeitos do cálculo de um imposto automóvel, ou pode considerar a depreciação de acordo com uma tabela baseada apenas na cilindrada e na idade do veículo? São estas as principais questões suscitadas por um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo, Portugal, em 7 de Outubro de 1998.

I - Matéria de facto e tramitação processual

2 Na sequência do acórdão do Tribunal de Justiça no processo Comissão/Dinamarca (1), a Comissão deu início ao procedimento ex artigo 169._ do Tratado CE (actual artigo 226._ CE, a seguir «artigo 169._») contra Portugal a respeito das suas disposições em matéria de tributação de carros usados importados. Esta legislação foi alterada em 1994 de forma a permitir uma progressiva redução do montante do imposto devido pelo primeiro registo de carros usados importados segundo uma tabela que era similar à que estava em vigor na altura aqui relevante (v. n._ 6 infra). À luz desta alteração a Comissão pôs termo ao processo; contudo, na sequência de queixas recebidas entretanto, a Comissão deu início a novo processo por incumprimento com o envio de uma carta de notificação de incumprimento às autoridades portuguesas em 15 de Maio de 1998.

3 Na parte decisória do seu acórdão no processo C-345/93, Nunes Tadeu (2), que dizia respeito à legislação em vigor antes das alterações de 1994, o Tribunal de Justiça afirmou que:

«A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95._ do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.»

4 Ao importar de França para Portugal um BMW 325 TD usado, com uma cilindrada de 2497 cm3, foi exigido ao recorrente no processo principal o pagamento do imposto automóvel num montante de 1 856 994 PTE, de acordo com a liquidação ordenada em 16 de Setembro de 1996. Segundo o Supremo Tribunal Administrativo, a data da primeira matrícula do veículo foi 2 de Fevereiro de 1991, sendo assim considerado que o veículo tinha sido usado entre cinco e seis anos. Resulta dos autos que o veículo foi de facto matriculado pela primeira vez em 2 de Dezembro de 1991, e que, na altura da importação, não podia ter sido usado mais que cinco anos. Esta discrepância não é relevante para as questões a que o Tribunal de Justiça deve responder no presente processo.

5 Segundo o artigo 1._, n._ 4, do Decreto-Lei n._ 40/93, de 18 de Fevereiro de 1993, com a redacção dada pela Lei n._ 10-B/96, de 23 de Março de 1996, os veículos automóveis ligeiros de passageiros importados em Portugal a partir de outros Estados-Membros da Comunidade estavam sujeitos a um imposto automóvel função da cilindrada. O imposto incidia igualmente em veículos usados importados, que beneficiavam da redução do montante do mesmo de acordo com a seguinte tabela:

Anos de uso Redução do imposto

Com 1 a 2 anos 18% Com 2 a 3 anos 24% Com 3 a 4 anos 32% Com 4 a 5 anos 41% Com 5 a 6 anos 49% Com 6 a 7 anos 55% Com 7 a 8 anos 61% Mais do que 8 anos 67%

6 O recurso do recorrente contra a liquidação alegando que as disposições nacionais eram incompatíveis com o artigo 95._ do Tratado foi julgado improcedente em primeira instância. Em recurso, o Supremo Tribunal Administrativo adoptou como suas as seguintes questões propostas pelo recorrente:

«1°. Garante a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (no caso, automóveis) e é compatível com o § 1 do artigo 95._ do Tratado CEE uma legislação, como a portuguesa, que tributa em taxa fixa os automóveis ligeiros de passageiros usados importados considerando apenas a cilindrada do veículo, com a dedução à colecta de uma percentagem de 18%, 24%, 52%, 41%, 49%, 55%, 61% e 67% (conforme o veículo importado tenha um a dois, dois a três, três a quatro, quatro a cinco, cinco a seis, seis a sete, sete a oito anos de uso) do que pagaria um veículo novo (importado ou adquirido no mercado nacional), e que um veículo com mais de oito anos de uso, tenha, de pagar 33% do IA que pagaria um veículo novo (importado ou adquirido no mercado nacional), sem, em qualquer dos referidos tipos de situações, tomar em consideração todos os outros factores que influenciam o valor de um automóvel, tais como a quilometragem, estado de conservação e o modelo, entre outros?

2°. É compatível com o § 1 do artigo 95._ do Tratado CEE uma disposição legislativa nacional segundo a qual o imposto que incide sobre o produto importado e o que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes: o IA do veículo usado importado é calculado com base na sua cilindrada, com uma dedução em função apenas dos anos de uso; enquanto nas transacções de um veículo usado similar feitas no mercado nacional não é pago IA (pois, sendo o imposto monofásico, só é pago uma vez, ao ser o veículo introduzido no consumo, no estado de novo), sendo certo que o seu preço pode incorporar ainda uma parcela residual desse imposto, se não tiver mais do que uns quatro a cinco anos de uso, parcela essa sempre de montante incerto, que não está autonomizada do preço de aquisição, nem é possível autonomizar, porque, entre outras razões possíveis, a aquisição de um veículo usado no país não é tributada em IA?

3°. Poderá, à luz do § 1 do artigo 95._ do Tratado CEE, considerar-se que um tal sistema não possa conduzir, mesmo que apenas em alguns casos, a uma tributação superior do produto importado e que está regulado de forma que fique sempre excluída a possibilidade de um automóvel importado ser tributado a nível mais elevado do que um automóvel nacional similar?

4°. Poderá, à luz do direito comunitário, considerar-se transparente, na medida do necessário, um tal sistema, por forma a permitir determinar objectivamente se a carga fiscal que incide sobre um automóvel importado excede a que incide sobre um automóvel nacional similar?

5°. Poderá, à luz do direito comunitário, um tal sistema ser aplicado de forma equitativa aos produtos do mercado interno e aos produtos importados?»

7 Além disso, por decisão de 7 de Outubro de 1998, o Supremo Tribunal Administrativo submeteu as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

«a) São pertinentes as questões postas nestes autos pelo recorrente e descritas [supra]? Qual a solução de direito comunitário para essas questões?

b) A depreciação do valor real dos veículos usados, a que se refere o acórdão do TJCE proferido no processo C-345/95 (Nunes Tadeu) implica obrigatoriamente que se tenha de fazer uma avaliação ou prova pericial da cada veículo, ou poda ser calculada em termos gerais e abstractos por meio de um critério legal?

c) Se a Comissão Europeia desistir da uma determinada acção de incumprimento contra um Estado-Membro por ter entendido que a nova legislação nacional passou a estar conforme com o direito comunitário, pode um supremo tribunal nacional, baseando-se na interpretação do direito comunitário e do direito nacional feita pela Comissão, ficar dispensado da obrigação que lhe é imposta pelo artigo 177._ do Tratado de fazer um pedido de decisão a título prejudicial ao TJCE, e decidir a causa segundo a interpretação feita pela Comissão Europeia?»

8 Foram apresentadas observações escritas pelo recorrente no processo principal, pela Finlândia, pelos Países Baixos, por Portugal e pela Comissão; só os últimos dois estiveram representados na audiência.

II - Apreciação

a) As obrigações do Supremo Tribunal Administrativo nos termos do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE)

9 A terceira questão colocada pelo Supremo Tribunal Administrativo diz respeito ao alcance da obrigação de um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso previsto no direito interno de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão respeitante à compatibilidade, com o direito comunitário, de certas disposições nacionais, e se tal obrigação é afectada pelo facto de a Comissão ter desistido do processo por incumprimento anteriormente iniciado a respeito das mesmas disposições. O Supremo Tribunal Administrativo explicou que quando a questão surgiu num caso anterior a respeito da mesma legislação, não submeteu o assunto ao Tribunal de Justiça por entender que as disposições portuguesas de 1994 eram compatíveis com o artigo 95._ Afirmou assim que «Se uma decisão da Comissão puder dispensar um supremo tribunal da obrigação de reenvio prejudicial... este STA procedeu bem no acórdão proferido no processo n._ 22 396. Caso contrário, terá sido violado o artigo 177._ do Tratado CE. De qualquer modo, importa que a questão fique esclarecida, para que de futuro este STA cumpra com a obrigação que o artigo 177._ do Tratado lhe impõe».

10 Com a sua questão, o tribunal a quo procura directrizes quanto à interpretação do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE, a seguir «artigo 177._»), e ao significado de uma decisão da Comissão de não dar seguimento a um processo por incumprimento ex artigo 169._ Parece lógico analisar esta questão em primeiro lugar, antes de qualquer uma das questão substantivas sobre a interpretação do artigo 95._ É verdade que o pedido relativo às questões substantivas não está de modo algum subordinado a uma resposta negativa à terceira questão, e que pode além disso revelar-se não ser necessária qualquer resposta. O tribunal a quo indicou que a resposta à terceira questão lhe permitirá apreciar a sua própria decisão num caso anterior e aplicar convenientemente o artigo 177._ no futuro o que, em minha opinião, é legítimo. A este respeito, deve lembrar-se que, quando uma questão de direito comunitário, conforme definida no primeiro parágrafo do artigo 177._, seja suscitada num tribunal de última instância, tal tribunal não tem o poder discricionário de não submeter uma questão prejudicial, tendo a obrigação de «submeter a questão ao Tribunal de Justiça».

11 Segundo o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Fornasar «segundo jurisprudência constante, é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, que são chamados a conhecer do litígio e aos quais cabe a responsabilidade pela decisão a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poderem proferir decisão como a pertinência das questões submetidas ao Tribunal. A rejeição de um pedido formulado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação do direito comunitário ou o exame da validade de uma norma comunitária, solicitados por esse órgão jurisdicional, não têm qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal» (3).

12 No presente caso, nenhuma das partes que apresentou observações sugeriu que fosse inadmissível a questão relativa ao artigo 177._ Além disso, em minha opinião, não se pode defender que a interpretação do artigo 177._ manifestamente «não tem qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal». O tribunal a quo fundamentou aqui a sua decisão de submeter as questões substantivas ao Tribunal de Justiça numa interpretação das suas obrigações resultantes daquela disposição, que difere da que adoptou num processo anterior. Ao inserir a questão do artigo 177._ no presente caso, o tribunal a quo pretende saber se a posição que adoptou no presente caso foi correcta, e não compete a este Tribunal indagar as suas razões para procurar tal esclarecimento. Não se pode também dizer que a questão é hipotética, apenas porque foi submetida ao Tribunal de Justiça no mesmo pedido que as questões substantivas; o problema do alcance da obrigação do Supremo Tribunal Administrativo submeter a questão surgiu normalmente no decurso da instância. A tramitação seguida pelo tribunal a quo pode de qualquer modo ser justificada por razões de economia processual. Uma alternativa teria sido o órgão jurisdicional nacional submeter em primeiro lugar separadamente a questão sobre as suas obrigações nos termos do artigo 177._ e só no caso de uma resposta negativa apresentar subsequentemente as questões substantivas, com todas as demoras que tal inevitavelmente acarretaria.

13 Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça deve responder em primeiro lugar à terceira questão. De qualquer forma a resposta é relativamente simples. Uma decisão da Comissão de não dar seguimento a um processo por incumprimento, mesmo que baseada no facto de que um determinado conjunto de disposições legislativas é agora conforme ao Tratado, não afecta, de forma alguma, a obrigação de um órgão jurisdicional nacional de última instância, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 177._, submeter ao Tribunal de Justiça uma questão de direito comunitário que possa ser suscitada. Resulta claro do artigo 169._ que «a Comissão não é obrigada a instaurar o processo nele previsto, dispondo, pelo contrário de um poder discricionário de apreciação» (4). Enquanto a verificação de que um Estado-Membro não cumpre as suas obrigações é uma condição prévia necessária para instaurar tal processo, a não prossecução do mesmo não está dependente da verificação de que as obrigações estão a ser cumpridas; tal decisão pode ser acompanhada de considerações políticas ou práticas que escapam à competência do Tribunal de Justiça. De qualquer forma, a consideração decisiva é a de que a opinião da Comissão de que a situação legislativa num Estado-Membro é conforme ao Tratado não é de forma alguma determinante para a questão que só pode ser definitivamente resolvida pelo Tribunal de Justiça, quer directamente numa posterior acção por incumprimento, quer indirectamente respondendo a um pedido de decisão prejudicial.

14 Uma resposta completa a esta questão pode ser encontrada no acórdão do Tribunal de Justiça no processo Essevi e Salengo (5), citado pela Finlândia. Nesse acórdão, no contexto de um processo por incumprimento em curso, a Comissão tinha indicado à Itália que podia manter provisoriamente o seu sistema de tributação da produção de álcool. O Tribunal de Justiça afirmou que «a Comissão não tem poderes para determinar de modo definitivo, através de pareceres formulados nos termos do artigo 169._ ou através de outras tomadas de posição no quadro deste procedimento, os direitos e obrigações de um Estado-Membro, ou de lhe dar garantias quanto à compatibilidade de um determinado comportamento com o Tratado... a determinação dos direitos e obrigações dos Estados-Membros e a apreciação do seu comportamento só podem resultar de um acórdão do Tribunal de Justiça» (6). A «tomada de posição» da Comissão no presente processo em sede de compatibilidade do sistema português revisto de tributação com o artigo 95._ não pode assim afectar as obrigações do tribunal a quo nos termos do artigo 177._

15 A fim de ser exaustivo, diria ainda que não vislumbro no Tratado ou na jurisprudência relevante qualquer apoio para a posição defendida pelos Países Baixos de que a desistência de um processo por incumprimento pela Comissão constitui um factor que pode ser tomado em consideração na apreciação, por um tribunal inferior, da «necessidade» de resolver uma questão de direito comunitário. De acordo com o segundo parágrafo do artigo 177._, a necessidade ou não de um pedido de decisão prejudicial depende da questão de direito comunitário ser ou não necessária ao julgamento da causa, e a desistência da Comissão de uma acção por incumprimento não pode influenciar a questão.

b) A compatibilidade da legislação portuguesa aplicável com o artigo 95._

16 As cinco questões propostas pelo recorrente no processo principal, que o tribunal a quo retomou na sua primeira questão, e a segunda questão formulada por esse órgão jurisdicional, têm por objecto esclarecer a correcta aplicação do artigo 95._ em circunstâncias como as do processo principal. Parece-me que foi por esta razão que o Supremo Tribunal Administrativo perguntou se as questões do recorrente, algumas das quais vão para além dos factos do presente caso, eram relevantes, quando a pertinência das questões colocadas é da competência exclusiva do tribunal a quo. Assim proponho que o Tribunal só responda a estas questões na medida em que uma resposta possa ser útil ao julgamento da causa pendente no tribunal nacional.

17 As questões colocadas pelo Supremo Tribunal Administrativo suscitam duas questões distintas mas que estão relacionadas entre si. A primeira, que corresponde à segunda questão do tribunal a quo, é se um Estado-Membro pode adoptar critérios gerais para a imposição do imposto automóvel sobre carros usados importados, como Portugal tem, ou se são obrigados a fazer uma avaliação ou prova pericial de cada veículo. Se a primeira situação for permitida, a segunda questão é a de saber se a tabela aplicada no presente caso é conforme às exigências do artigo 95._

18 O primeiro parágrafo do artigo 95._ proíbe a imposição «sobre os produtos dos outros Estados-Membros [de] imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam... sobre produtos nacionais similares». Que «os automóveis usados importados e os que são comprados no país constituem produtos similares ou concorrentes» a que se aplica o artigo 95._ foi claramente estabelecido no processo Comissão/Dinamarca (7). O Tribunal de Justiça tem afirmado reiteradamente que essa disposição é violada «sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar sejam calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes, que conduzam, ainda que apenas em certos casos a uma tributação superior do produto importado» (8). Daqui resulta que «um sistema de tributação só pode ser considerado compatível com o artigo 95._ do Tratado se se verificar estar organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta em caso algum efeitos discriminatórios» (9).

19 O modo correcto de verificar o respeito do artigo 95._ em circunstâncias como as do processo principal resulta do processo Comissão/Grécia, em que o Tribunal de Justiça aprovou expressamente a comparação feita pela Comissão entre «o montante do imposto... sobre os veículos usados importados e a parte residual do imposto que permanece incorporada nos veículos que foram lançados em circulação [no Estado-Membro de importação] no estado de novos antes de aí serem revendidos» (10).

20 Até agora, o Tribunal de Justiça não teve ainda que examinar o método de cálculo do imposto residual incorporado no valor de carros usados. Contudo, nas suas conclusões no processo Nunes Tadeu, o advogado-geral F. G. Jacobs sugeriu que «para calcular o imposto residual incorporado no valor de um automóvel usado nacional é necessário ter em conta o seu valor de mercado, partindo do princípio de que o valor do imposto residual diminui na proporção directa do valor do automóvel» (11). E continuou, «o Estado de importação não é obrigado a basear o imposto no preço que o importador paga pelo automóvel ou no respectivo valor no Estado de exportação; tem o direito de tomar em consideração o seu valor no Estado de importação. Isto resulta da exigência de que o imposto cobrado no Estado de importação não pode exceder o imposto residual incluído no valor de um automóvel usado nacional com as mesmas características. Se o Estado de importação fosse obrigado a basear o imposto no valor mais baixo do Estado de exportação, isso não apenas preservaria a vantagem concorrencial resultante desse valor mais baixo, mas, além disso, daria ao importador um benefício fiscal incompatível com a neutralidade fiscal» (12).

21 Penso que é de seguir esta análise. O imposto residual incorporado num automóvel usado nacional pode ser expresso como o produto de dois factores: a percentagem do seu preço de venda novo que representa o imposto automóvel, e o seu valor no mercado nacional quando da importação de um veículo importado similar. O recorrente e Portugal não estão de acordo quanto ao preço do carro em questão quando novo; segundo o recorrente era de 8 450 000 PTE, enquanto Portugal afirma que o valor correcto era 10 478 000 PTE. Divergem também quanto ao valor do mesmo em 1996: segundo Portugal o carro valia 4 600 000 PTE e segundo o recorrente o seu valor era de 3 330 000 PTE.

22 A obrigação de o Estado-Membro de importação atender à depreciação do valor de carros usados ao calcular o imposto automóvel foi também consagrada pela jurisprudência. No processo Comissão/Dinamarca, o Estado-Membro demandado foi condenado por aplicar aos carros usados importados uma base de tributação de 90%, limitando assim a depreciação a 10% «seja qual for a sua antiguidade ou estado de utilização» (13). De igual modo, no processo Nunes Tadeu, o Tribunal de Justiça considerou que a legislação portuguesa em vigor na altura relevante «calcula[va] [o imposto] sem tomar em conta a depreciação real do veículo» (14). Contudo, em nenhuma destas decisões, nem no processo Comissão/Grécia (15), o Tribunal de Justiça decidiu que as autoridades nacionais estavam obrigadas a tributar os automóveis usados importados um a um, e não de acordo com critérios gerais, como em nenhum destes casos a legislação nacional impugnada tinha em conta a depreciação de qualquer modo que não simbólico. Em vez disso, o Tribunal de Justiça comparou os automóveis usados importados como uma categoria de produtos com os carros usados nacionais vendidos como uma categoria, e não teve qualquer dificuldade nas circunstâncias de cada caso em defender que era «manifesta» a discriminação em relação à primeira.

23 Em minha opinião, não resulta destas decisões que o artigo 95._ exige que os Estados-Membros actuem com base numa determinação individual do valor de automóveis usados importados e deste modo o elemento do imposto residual que determina o imposto automóvel máximo que pode ser imposto à importação. Não se deve esquecer que o imposto, quer na importação quer na primeira matrícula, de automóveis novos é aqui calculado apenas com base na cilindrada sem ter em conta outros elementos como os equipamentos ou a reputação de diferentes modelos. Além disso, é notório que certos modelos se depreciam mais depressa do que outros. Na prática, pode não haver um elemento de comparação exacto identificável para o automóvel usado importado; como o recorrente alegou, a marca e o modelo do veículo, o seu estado de conservação e a sua quilometragem são factores que afectam o valor de mercado de um automóvel usado, bem como a sua idade. Devido a estas diferenças, o valor de mercado de automóveis usados vendidos no mercado nacional, e deste modo o elemento residual do imposto incorporado neste valor, são, estritamente falando, infinitamente variáveis. Mesmo se o importador pudesse encontrar um veículo idêntico no mercado nacional, não existem meios fiáveis para determinar o seu valor exacto, que é na prática igual ao que o comprador está disposto a pagar e o vendedor a aceitar. Embora o assunto não tenha sido discutido exaustivamente na presente instância, parece-me plausível a sugestão dos Países Baixos de que mesmo as avaliações individuais seriam, na prática, efectuadas utilizando uma espécie de tabela.

24 Deste modo penso que, em princípio, os Estados-Membros podem adoptar critérios gerais para determinar o montante do imposto automóvel devido na importação de automóveis usados, desde que tais critérios garantam que esse montante não excede, mesmo que tal só se verifique em certos casos, o imposto residual sobre veículos similares no mercado nacional. Ao reconhecimento pelo Tribunal de Justiça do efeito directo do primeiro parágrafo do artigo 95._ (16) é inerente que um particular possa impugnar a tabela para o cálculo do imposto aplicável ao seu veículo usado importado. Deve ainda assinalar-se que as dificuldades práticas em determinar com exactidão o valor de um automóvel usado não obsta a que as autoridades de um Estado-Membro se baseiem como orientação nos valores médios de automóveis usados reconhecidos como tal no mercado nacional, respeitando as exigências do artigo 95._ atrás referidas. Na verdade, como já foi assinalado, no presente caso tanto o recorrente como Portugal apresentaram números, embora divergentes, para o valor médio no mercado português em 1996 de um veículo similar ao do recorrente.

25 Na medida em que o Tribunal de Justiça deva responder às mesmas, o objecto das cinco questões formuladas pelo recorrente no processo principal, e assim o da primeira questão do órgão jurisdicional nacional, é essencialmente determinar se no caso concreto o sistema aplicado pelas autoridades portuguesas é conforme ao artigo 95._ do Tratado. Portugal explicou que a redução do imposto para os veículos usados importados não está directamente relacionada com a depreciação; pelo contrário, a redução é determinada por uma fórmula que tem em conta uma variedade de factores, incluindo a inflação e um elemento para depreciação. Este último é por sua vez composto por uma média ponderada de factores que afectam o valor de mercado de um veículo nacional usado, suposto estar em boas condições de funcionamento, e com uma quilometragem não superior a 15 000 km por ano. Enquanto na aplicação da tabela só são relevantes a idade do veículo e a sua cilindrada, no estabelecimento da mesma é tida em certa medida em conta a depreciação.

26 Portugal alegou que a aplicação das tabelas em vigor na altura dos factos correspondia a uma depreciação próxima da depreciação real. De igual modo, a Comissão, pelo menos nas suas observações escritas, afirmou que as percentagens de redução do imposto pareciam corresponder à depreciação do valor real de veículos usados. A Finlândia e os Países Baixos afirmaram que um Estado-Membro pode aplicar uma tabela que tenha em conta a depreciação anual de modo que o valor atribuído a um veículo usado diminua com a idade tendo por referência dados fiáveis sobre preços médios de mercado.

27 O recorrente no processo principal contrapõe que «de acordo com a experiência», a parte de depreciação considerada no sistema português era «manifestamente insuficiente».

28 Conforme interpretado pela jurisprudência já referida, o artigo 95._ exige claramente que o montante do imposto devido à importação, seja qual for a sua forma, não exceda o imposto residual incorporado no valor de veículos semelhantes no mercado nacional. É incontestável que o imposto residual incorporado num veículo usado nacional num determinado momento é função do seu valor, que por seu turno depende bastante da depreciação. Segundo a legislação portuguesa em causa no processo principal o imposto devido é no entanto função do valor do veículo quando novo, reduzido de acordo com uma tabela progressiva que, como Portugal admite, não reflecte totalmente a depreciação real. Em tais circunstâncias, o sistema português não garante que o montante de imposto devido por um veículo importado não é superior ao imposto residual de um veículo nacional correspondente, e deste modo o sistema não é susceptível de «excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais», como exigido pelo artigo 95._ (17).

29 Pelo contrário, os números adiantados por Portugal em resposta às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça demonstram que a aplicação da tabela não exclui a discriminação na situação factual que deu origem ao processo principal. Em 1996 (na altura da importação do veículo do recorrente), o valor médio no mercado português de um veículo comparável de 1991 era, segundo estes números 4 600 000 PTE. Como foi assinalado na audiência tal representa uma depreciação de 56% no valor do carro, enquanto a redução do imposto automóvel foi apenas de 41%. Embora tal não seja em si determinante, o agente da República Portuguesa afirmou inequivocamente na audiência que o imposto automóvel pretende garantir que o valor do veículo importado seja similar ao de um veículo no mercado nacional relativamente ao qual o imposto já foi pago. No entanto, como o Tribunal de Justiça defendeu no processo Nunes Tadeu, «[um] regime fiscal nacional que tivesse por objectivo eliminar uma vantagem concorrencial dos produtos importados em relação aos produtos nacionais seria manifestamente contrário ao artigo 95._, que visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados» (18).

30 Atendendo ao que precede penso que, embora um Estado-Membro não seja obrigado a calcular caso a caso o valor dos veículos usados importados, não pode aplicar um sistema de que possa resultar, ainda que apenas em certos casos, a aplicação de um imposto à importação superior ao imposto residual incorporado no valor de veículos similares usados no mercado nacional.

III - Conclusão

31 À luz do que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões colocadas pelo Supremo Tribunal Administrativo:

1) Uma decisão da Comissão de desistir de um processo por incumprimento não afecta a obrigação imposta pelo terceiro parágrafo do artigo 177._ do Tratado CE a um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso previsto no direito interno de submeter à apreciação do Tribunal de Justiça uma questão de direito comunitário suscitada numa causa nele pendente;

2) Os Estados-Membros podem adoptar critérios gerais para calcular o montante de imposto automóvel devido à importação de veículos usados, desde que tais critérios garantam que tal montante não é superior, ainda que apenas em certos casos, ao imposto residual incorporado em veículos similares no mercado nacional.

(1) - Acórdão de 11 de Dezembro de 1990 (C-47/88, Colect., p. I-4509).

(2) - Acórdão de 9 de Março de 1995 (C-345/93, Colect., p. I-479).

(3) - Acórdão de 22 de Junho de 2000 (C-318/98, Colect., p. I-0000, n._ 27).

(4) - Acórdão de 14 de Fevereiro de 1989, Star Fruit/Comissão (247/87, Colect., p. 291, n._ 11).

(5) - Acórdão de 27 de Maio de 1981, Amministrazione delle Finanze dello Stato/Essevi e Salengo (142/80 e 143/80, Recueil, p. 1413). V. igualmente processos apensos 15/76 e 16/76, França/Comissão, no qual o Tribunal de Justiça afirmou que «a desistência da acção [não equivale] a um reconhecimento de licitude do comportamento contestado» (acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, Colect., p. 145, n._ 27).

(6) - Ibidem, n._ 16.

(7) - Já referido na nota 1 supra, n._ 17.

(8) - Acórdão de 2 de Abril de 1998, Outokumpu Oy (C-213/96, Colect., p. I-1777, n._ 34).

(9) - Acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Grécia (C-375/95, Colect., p. 5981, n._ 29).

(10) - Ibidem, n._ 18.

(11) - Já referido na nota 2 supra (n._ 14 das conclusões).

(12) - Ibidem, n._ 18.

(13) - Já referido na nota 1 supra, n._ 20.

(14) - Já referido na nota 2 supra, n._ 20.

(15) - Já referido na nota 9 supra.

(16) - Acórdão de 16 de Junho de 1966, Lütticke/Hauptzollamt Saarlouis (57/65, Colect. 1965-1968, p. 361).

(17) - Acórdão já referido na nota 9 supra, n._ 29.

(18) - Já referido na nota 2 supra, n._ 18.