61997J0404

Acórdão do Tribunal de 27 de Junho de 2000. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Portuguesa. - Incumprimento de Estado - Auxílio estatal incompatível com o mercado comum - Recuperação - Impossibilidade absoluta de execução. - Processo C-404/97.

Colectânea da Jurisprudência 2000 página I-04897


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1 Acção por incumprimento - Inobservância de uma decisão da Comissão relativa a um auxílio de Estado - Fundamentos de defesa - Impugnação da legalidade da decisão - Inadmissibilidade - Limites - Acto inexistente

(Tratado CE, artigos 93._, n._ 2, segundo parágrafo, 169._, 170._ e 175._ (actuais artigos 88._, n._ 2, segundo parágrafo, CE, 226._ CE, 227._ CE e 232._ CE) e artigo 173._ (que passou, após alteração, a artigo 230._ CE)

2 Acção por incumprimento - Inobservância de uma decisão da Comissão relativa a um auxílio de Estado - Fundamentos de defesa - Impossibilidade absoluta de execução - Limites

[Tratado CE, artigo 93._, n._ 2 (actual artigo 88._, n._ 2, CE)]

3 Auxílios concedidos pelos Estados - Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado comum - Dificuldades de execução - Obrigação da Comissão e do Estado-Membro de colaborarem na procura de uma solução que respeite o Tratado

[Tratado CE, artigos 5._ e 93._, n._ 2, primeiro parágrafo (actuais artigos 10._ CE e 88._, n._ 2, primeiro parágrafo, CE)]

4 Auxílios concedidos pelos Estados - Conceito - Intervenção tendo por efeito aliviar os encargos de uma empresa - Não transferência de recursos do Estado para o beneficiário - Garantia do Estado concedida a uma empresa que contraiu um empréstimo

[Tratado CE, artigo 92._, n._ 1 (que passou, após alteração, a artigo 87._, n._ 1, CE)]

5 Auxílios concedidos pelos Estados - Recuperação de um auxílio ilegal - Aplicação do direito nacional - Condições e limites - Tomada em consideração do interesse da Comunidade

[Tratado CE, artigo 93._, n._ 2, primeiro parágrafo (actual artigo 88._, n._ 2, primeiro parágrafo, CE)]

Sumário


1 O sistema de vias processuais estabelecido pelo Tratado distingue as acções previstas nos artigos 169._ e 170._ do Tratado (actuais artigos 226._ CE e 227._ CE), que têm como objecto a declaração de que um Estado-Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem, e os recursos visados nos artigos 173._ do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 230._ CE) e 175._ do Tratado (actual artigo 232._ CE), que visam controlar a legalidade dos actos ou omissões das instituições comunitárias. Essas vias processuais têm em vista objectivos distintos e estão sujeitas a regras diferentes. Um Estado-Membro não poderá por isso utilmente, na ausência de uma disposição do Tratado que expressamente lho autorize, invocar a ilegalidade de uma decisão de que é destinatário como meio de defesa contra uma acção por incumprimento fundada na falta de execução dessa decisão. Só poderia acontecer de forma diferente caso o acto em causa estivesse afectado de vícios particularmente graves e evidentes, a ponto de poder ser qualificado de acto inexistente.

Esta constatação impõe-se igualmente no âmbito de uma acção por incumprimento fundada no artigo 93._, n._ 2, segundo parágrafo, do Tratado (actual artigo 88._, n._ 2, segundo parágrafo, CE). (cf. n.os 34-36)

2 O único fundamento de defesa susceptível de ser invocado por um Estado-Membro numa acção por incumprimento intentada pela Comissão com base no artigo 93._, n._ 2, do Tratado (actual artigo 88._, n._ 2, CE) consiste na impossibilidade absoluta de executar correctamente a decisão. A este respeito, o receio de dificuldades internas, mesmo insuperáveis, não pode justificar que um Estado-Membro não respeite as obrigações que lhe incumbem por força do direito comunitário.

Em especial, as dificuldades financeiras com que as empresas beneficiárias de um auxílio ilegal podem ver-se confrontadas após a sua supressão não constituem, para o Estado-Membro em causa, um caso de impossibilidade absoluta de execução da decisão da Comissão que declara a incompatibilidade deste auxílio com o mercado comum e que ordena a sua restituição.

Esta conclusão também se impõe no que toca ao risco pretensamente incorrido pelo Estado-Membro de ser posta em causa a sua responsabilidade em virtude da supressão unilateral de uma garantia concedida a uma empresa que tenha obtido um empréstimo junto da banca privada. (cf. n.os 39, 52-53)

3 Um Estado-Membro que, quando da execução de uma decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado, depara com dificuldades imprevistas e imprevisíveis ou toma consciência de consequências que não foram tidas em consideração pela Comissão, deve submeter estes problemas à apreciação desta última, propondo modificações apropriadas à decisão em causa. Num tal caso, a Comissão e o Estado-Membro devem, por força do princípio que impõe aos Estados-Membros e às instituições comunitárias, deveres recíprocos de cooperação leal e que inspira, nomeadamente, o artigo 5._ do Tratado (actual artigo 10._ CE), colaborar de boa fé com vista a superar as dificuldades, respeitando plenamente as disposições do Tratado, nomeadamente, as relativas aos auxílios. (cf. n.o 40)

4 O conceito de auxílio é mais geral do que o de subvenção porque abrange não só prestações positivas, como as subvenções, mas também intervenções que, sob formas diversas, aliviam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, não sendo subvenções na acepção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos. Daqui decorre que, para que uma medida constitua um auxílio na acepção do artigo 92._, n._ 1, do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 87._, n._ 1, CE), não é necessário que ocorra transferência de recursos da parte do Estado para o beneficiário. Tal é o caso de uma garantia do Estado concedida a uma empresa que tenha obtido um empréstimo junto da banca privada. (cf. n.os 44-45)

5 Se, na falta de disposições comunitárias sobre o processo de recuperação dos auxílios ilegalmente concedidos, esta recuperação deva ser efectuada, em princípio, de acordo com as disposições pertinentes do direito nacional, estas disposições devem, todavia, ser aplicadas de forma a não tornar praticamente impossível a restituição exigida pelo direito comunitário e respeitando em toda a sua extensão o interesse da Comunidade. (cf. n.o 55)

Partes


No processo C-404/97,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por D. Triantafyllou e A. M. Alves Vieira, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de C. Gómez de la Cruz, membro do mesmo Serviço, Centre Wagner, Kirchberg,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada pelo professor J. Mota de Campos, L. Fernandes, director do Serviço Jurídico da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e M. L. Duarte, consultora jurídica no mesmo serviço, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de Portugal, 33, allée Scheffer,

demandada,

que tem por objecto obter a declaração de que, ao não ter suprimido e exigido, nos prazos fixados, a recuperação dos auxílios de que a EPAC - Empresa para a Agroalimentação e Cereais SA beneficiou indevidamente, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE e da Decisão 97/762/CE da Comissão, de 9 de Julho de 1997, relativa às medidas tomadas por Portugal em favor da EPAC - Empresa para a Agroalimentação e Cereais, SA (JO L 311, p. 25),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward, L. Sevón (relator) e R. Schintgen, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, C. Gulmann, P. Jann, H. Ragnemalm, M. Wathelet e V. Skouris, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 21 de Setembro de 1999,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 28 de Outubro de 1999,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 2 de Dezembro de 1997, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, nos termos do artigo 93._, n._ 2, segundo parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 88._, n._ 2, segundo parágrafo, CE), uma acção destinada a obter a declaração de que, ao não ter suprimido e exigido, nos prazos fixados, a recuperação dos auxílios de que a EPAC - Empresa para a Agroalimentação e Cereais SA (a seguir «EPAC») beneficiou indevidamente, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE e da Decisão 97/762/CE da Comissão, de 9 de Julho de 1997, relativa às medidas tomadas por Portugal em favor da EPAC - Empresa para a Agroalimentação e Cereais, SA (JO L 311, p. 25, a seguir «decisão litigiosa»).

2 Como resulta do preâmbulo da decisão litigiosa, antes da adesão da República Portuguesa às Comunidades Europeias, a comercialização dos cereais nesse Estado constituía um monopólio público gerido pela EPAC. Após a adesão, este monopólio foi progressivamente desmantelado. A partir de 1991, o mercado dos cereais foi liberalizado e a EPAC transformada numa sociedade anónima de capitais públicos. Todavia, a EPAC manteve-se obrigada a assegurar o sistema de abastecimento do país em cereais.

3 A EPAC apresentava uma situação patrimonial desequilibrada, com um excesso de activos fixos e uma insuficiência de capitais próprios para o financiamento da sua actividade corrente. Além disso, o seu pessoal era excessivo e a sua situação financeira foi agravada pelo não pagamento pela Silopor, uma sociedade com capitais exclusivamente públicos constituída pelo Decreto-Lei n._ 293-A/86 por transferência de activos, passivos e capital da EPAC, do montante correspondente à cessão de silos portuários.

4 A partir de Abril de 1996, a EPAC renunciou ao pagamento da maior parte dos seus encargos financeiros, sendo o seu nível de endividamento e a importância dos seus encargos financeiros tais que se lhe tinha tornado impossível continuar a assumi-los com os seus próprios meios.

5 Por decisão interministerial de 26 de Julho de 1996, foi adoptado um plano de rentabilização económica e de saneamento financeiro da EPAC, no âmbito do qual esta foi autorizada a negociar um empréstimo até ao montante máximo de 50 mil milhões de PTE, dos quais 30 mil milhões beneficiariam de um aval do Estado.

6 Por Despacho n._ 430/96-XIII, de 30 de Setembro de 1996, o ministro das Finanças concedeu esta garantia no quadro de um empréstimo obtido pela EPAC junto de um grupo de bancos com o objectivo de reestruturar o passivo bancário a curto prazo da EPAC. Este empréstimo foi concedido por uma duração de sete anos a uma taxa de juro Lisbor a 6 meses para a parte garantida, e Lisbor a 6 meses + 1,2% para a parte não garantida.

7 Tendo sido informada desta operação por uma queixa, a Comissão decidiu, por carta de 27 de Fevereiro de 1997 dirigida às autoridades portuguesas, dar início ao procedimento previsto no n._ 2 do artigo 93._ do Tratado. Com efeito, considerou que a garantia do Estado não respeitava as disposições da carta da Comissão aos Estados-Membros SG(89) D 4328, de 5 de Abril de 1989, relativa à subordinação das garantias a obrigações específicas. Além disso, também considerou que as taxas de juro dos empréstimos, sensivelmente inferiores à taxa de referência, incluíam um elemento de auxílio, uma vez que uma empresa numa situação financeira difícil como a EPAC não poderia, nas condições normais de mercado, obter empréstimos em condições mais favoráveis que as oferecidas aos operadores em situação financeira equilibrada. Indicou ainda que o mecanismo de consolidação do passivo da EPAC parecia constituir um auxílio com fortes repercussões em favor da Silopor. Por último, considerou que a garantia de Estado em favor da EPAC não satisfazia as condições para poder ser compatível com o mercado comum à luz dos critérios comunitários para os auxílios à reestruturação das empresas em dificuldade. Tendo em conta a afectação das trocas comerciais e a consequente distorção da concorrência, a Comissão considerou que o auxílio era abrangido pela proibição constante do artigo 92._, n._ 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87._, n._ 1, CE), sem poder beneficiar das derrogações previstas nos n.os 2 e 3 do referido artigo.

8 Nesta mesma carta, a Comissão intimou a República Portuguesa a apresentar as suas observações e solicitou-lhe que tomasse todas as medidas necessárias para suspender, com efeito imediato, o efeito da garantia concedida à EPAC para todas as futuras actividades comerciais dessa empresa no mercado dos cereais.

9 Por carta de 21 de Março de 1997, a República Portuguesa informou que nenhuma intervenção da administração pública tinha tido lugar na negociação dos empréstimos concedidos pelos bancos à EPAC. Por carta de 8 de Abril de 1997, apresentou observações, resumidas nos n.os 6 a 8 da decisão litigiosa, relativas às medidas contestadas.

10 Em 30 de Abril de 1997, a Comissão adoptou a Decisão 97/433/CE, que exige ao Governo português que suspenda o auxílio sob a forma de uma garantia de Estado concedida à empresa EPAC - Empresa para a Agroalimentação e Cereais, SA (JO L 186, p. 25). Em 7 de Julho de 1997, foram interpostos dois recursos de anulação desta decisão pela República Portuguesa (C-246/97) e pela EPAC (T-204/97).

11 Por carta de 21 de Maio de 1997, as autoridades portuguesas, sem darem conhecimento da adopção de quaisquer medidas para essa suspensão, contestaram a natureza de auxílio à garantia concedida que, em seu entender, não terá constituído um auxílio financeiro ao funcionamento da empresa e, portanto, não terá falseado as condições de concorrência. Além disso, não terá sido demonstrado como e em que medida a concessão desta garantia poderia afectar as trocas comerciais entre os Estados-Membros. Indicaram de novo que o Estado não interveio na negociação dos empréstimos bancários contraídos pela EPAC junto das instituições financeiras para a sua actividade corrente.

12 Na sequência das respostas das autoridades portuguesas, a Comissão decidiu encerrar o processo previsto no n._ 2 do artigo 93._ do Tratado, tendo adoptado a decisão litigiosa, na qual concluiu que a garantia do Estado a favor da EPAC constituía um auxílio em favor desta empresa, uma vez que lhe tinha permitido obter condições de empréstimo mais favoráveis do que as que teria podido obter sem essa garantia, tendo em conta a sua situação financeira difícil [n._ 13, alínea d), da decisão litigiosa]. Também considerou que a garantia do Estado em favor da EPAC constituía um auxílio indirecto em favor da Silopor, uma vez que permitia à EPAC não exigir a satisfação dos seus créditos sobre essa empresa [ponto 13, alínea c), da decisão litigiosa].

13 Tendo referido, por um lado, que o valor monetário das trocas de cereais, no que respeita a Portugal, elevou-se em 1996 a cerca de 5,8 milhões de ecus para as exportações e 310 milhões de ecus para as importações e, por outro, que a EPAC era um operador activo tanto no comércio intracomunitário como extracomunitário de cereais, a Comissão deduziu que a garantia concedida podia afectar as trocas entre os Estados-Membros e que falseava ou ameaçava falsear a concorrência (n._ 11 da decisão litigiosa).

14 Seguidamente, considerou que as derrogações previstas no n._ 2 do artigo 92._ do Tratado não eram manifestamente aplicáveis no caso em apreço e que não existia qualquer justificação que permitisse estabelecer que os auxílios em causa preenchiam as condições exigidas para a aplicação de uma das derrogações previstas no n._ 3 do artigo 92._ do Tratado (n._ 12 da decisão litigiosa).

15 A Comissão considerou, em especial, que a garantia não satisfazia os critérios definidos nas orientações comunitárias relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação de empresas em dificuldade (JO 1994, C 368, p. 12), uma vez que «as taxas de juro dos empréstimos obtidos pela EPAC são bonificadas por força da garantia», que «a duração prevista para a operação de crédito é de sete anos (ultrapassando muito largamente a regra geral estabelecida de seis meses)», que, «Além disso, é difícil justificar que uma garantia de Estado de tal dimensão financeira corresponda ao montante estritamente necessário para a exploração corrente da empresa» e que, «Por último, nenhuma justificação social premente em favor da manutenção da actividade da empresa foi invocada pelo Governo português para a concessão do auxílio ou detectada pela Comissão» [ponto 13, alínea b)].

16 É com base nestas condições que os artigos 1._, 2._ e 3._ da decisão dispõem:

«Artigo 1._

Os auxílios concedidos pelo Governo português em favor da EPAC são ilegais, uma vez que foram postos em aplicação em violação das regras de procedimento a que se refere o n._ 3 do artigo 93._ do Tratado. Além disso, são incompatíveis com o mercado comum nos termos do n._ 1 do artigo 92._ do Tratado e não satisfazem as condições para as derrogações previstas nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo.

Artigo 2._

1. Portugal fica obrigado a, no prazo de 15 dias a contar da data da notificação da presente decisão, suprimir os auxílios referidos no artigo 1._

2. Portugal fica obrigado a, no prazo de dois meses a contar da data da notificação da presente decisão, tomar as medidas necessárias para recuperar os auxílios referidos no artigo 1._

3. A recuperação será efectuada em conformidade com os procedimentos previstos na legislação portuguesa, devendo os juros ser calculados a partir da data em que os auxílios foram pagos. A taxa de juro a aplicar é a taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente-subvenção no quadro dos auxílios com finalidade regional.

Artigo 3._

1. Portugal manterá a Comissão constantemente informada das medidas adoptadas para se conformar com a presente decisão. A primeira comunicação será enviada, o mais tardar, um mês após a notificação da presente decisão.

2. O mais tardar dois meses após o termo do prazo previsto no n._ 2 do artigo 2._, Portugal enviará à Comissão as informações que permitam a esta verificar, sem investigação suplementar, que a obrigação de recuperação foi cumprida.»

17 A República Portuguesa e a EPAC, por petições apresentadas, respectivamente, na Secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de Setembro de 1997 (C-330/97) e na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 14 de Outubro de 1997 (T-270/97), interpuseram dois recursos de anulação da decisão litigiosa.

18 Por dois despachos de 15 de Dezembro de 1998, o Tribunal de Justiça decidiu suspender a instância nos processos C-246/97 e C-330/97 até que o Tribunal de Primeira Instância profira acórdão nos processos T-204/97 e T-270/97.

19 Considerando que, apesar de decorridos os prazos fixados, a República Portuguesa continua a não dar cumprimento à decisão litigiosa e não invocou a absoluta impossibilidade do seu cumprimento nem quaisquer outras dificuldades relativas à sua execução, a Comissão intentou a presente acção.

20 A Comissão indica, em primeiro lugar, que, mesmo considerando a República Portuguesa a decisão ilegal e tendo desta interposto recurso, estava obrigada a cumpri-la nos prazos fixados. Com efeito, nos termos do artigo 189._, quarto parágrafo, do Tratado CE (actual artigo 249._, quarto parágrafo, CE), uma decisão da Comissão continua a ser obrigatória em todos os seus elementos para o Estado destinatário até decisão contrária do Tribunal de Justiça.

21 Considera, seguidamente, que o único argumento que um Estado-Membro pode apresentar para justificar a não execução de uma decisão da Comissão que ordena a supressão e a recuperação de auxílios estatais declarados incompatíveis com o Tratado é a impossibilidade absoluta de execução. Ora, a República Portuguesa não terá, no caso em apreço, invocado qualquer impossibilidade deste tipo.

22 Em resposta ao argumento suscitado pelo Governo português referente à necessidade de uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo que declare a nulidade do Despacho n._ 430/96-XIII, já referido, a Comissão sublinha ainda que constitui jurisprudência assente que um Estado-Membro não pode invocar regras, práticas ou situações do seu ordenamento jurídico nacional para justificar o incumprimento das obrigações e dos prazos fixados pelo direito comunitário (acórdão de 21 de Fevereiro de 1990, Comissão/Bélgica, C-74/89, Colect., p. I-491, publicação sumária).

23 Recorda ainda que, em caso de dificuldades imprevistas, ela própria e o Estado-Membro em causa devem, em conformidade com o dever de cooperação leal consagrado no artigo 5._ do Tratado CE (actual artigo 10._ CE), colaborar de boa fé para ultrapassar as dificuldades encontradas. Ora, no caso em apreço e segundo a Comissão, a República Portuguesa não tentou dar execução à decisão litigiosa, nem tentou demonstrar a existência de dificuldades imprevistas ou imprevisíveis relacionadas com a sua execução, nem discutiu as modalidades da sua execução, mas contentou-se em interpor dois recursos de anulação da Decisão 97/433 e da decisão litigiosa.

24 O Governo português sublinha, em primeiro lugar, que, tendo em conta as condições em que foi concedida a garantia aos credores da EPAC, esta não podia constituir um auxílio estatal na acepção do artigo 92._ do Tratado.

25 Embora admita que, quando esteja pendente um recurso contra uma decisão impugnada, o não cumprimento desta última possa constituir uma violação do direito comunitário, sustenta que no caso em apreço tal não ocorre, pois que se encontrava na impossibilidade absoluta de executar a decisão litigiosa.

26 A este respeito, afirma, em primeiro lugar, que a decisão litigiosa contém certas contradições que tornam a sua execução materialmente impossível.

27 O Governo português começa por referir que, ao passo que, na fundamentação da decisão litigiosa, a Comissão se refere a uma única medida constitutiva de um auxílio de Estado, ou seja, a garantia dada pela República Portuguesa aos credores da EPAC, os seus artigos 1._ e 2._ fazem referência a auxílios, utilizando o plural.

28 Seguidamente, alega que o alcance das injunções da Comissão, formuladas no artigo 2._ da decisão litigiosa, de suprimir e recuperar os auxílios, é incompreensível, tendo em conta a fundamentação desta decisão e o facto de que a Comissão admite que a garantia concedida em favor da EPAC não implicava qualquer pagamento nem qualquer transferência directa ou indirecta de recursos do Estado para a EPAC. Portanto, a República Portuguesa afirma não compreender em que poderá consistir a recuperação da garantia.

29 Em segundo lugar, o Governo português sustenta que a execução da decisão litigiosa também é juridicamente impossível.

30 A este respeito, começa por sublinhar que não pode unilateralmente suprimir um aval que foi concedido por via contratual. Com efeito, a supressão unilateral desta garantia conduzirá a que os bancos credores não apenas exijam o pagamento imediato pela EPAC da totalidade da sua dívida, o que implicará a falência da EPAC, mas ponham ainda em causa a responsabilidade do Estado.

31 Este governo considera também que a supressão unilateral pretendida pela Comissão constituirá uma violação do princípio da proporcionalidade, pois que a supressão da garantia atentará gravemente contra a concorrência, eliminando do mercado o principal operador português, que detém cerca de 30% da quota de mercado.

32 Afirma ainda que a supressão da garantia só pode resultar ou de um acordo negociado com os bancos credores da EPAC, o que estará manifestamente excluído pois que estes não consentirão, na falta de garantia suficiente, na supressão de um aval que foi determinante da sua vontade de contratar, ou de uma decisão judicial que anule o acto de concessão do aval do Estado. A República Portuguesa indica a este respeito que interpôs recurso no Supremo Tribunal Administrativo para anulação da Decisão n._ 430/96-XIII, já referida. Salienta que, se esse tribunal ainda não decidiu, foi devido à existência do recurso de anulação pendente no Tribunal de Justiça no processo C-330/97.

33 Por último, o Governo português alega ter tentado encontrar com a Comissão uma solução aceitável para ambas as partes e isto em conformidade com a obrigação de cooperação leal que a ambas incumbe nos termos do artigo 5._ do Tratado. Indica, designadamente, ter informado a Comissão, por carta de 10 de Dezembro de 1997, que a EPAC deixava de participar nos concursos comunitários para a importação de cereais.

34 Há, liminarmente, que recordar que o sistema de vias processuais estabelecido pelo Tratado distingue as acções previstas nos artigos 169._ e 170._ do Tratado CE (actuais artigos 226._ CE e 227._ CE), que têm como objecto a declaração de que um Estado-Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem, e os recursos visados nos artigos 173._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230._ CE) e 175._ do Tratado CE (actual artigo 232._ CE), que visam controlar a legalidade dos actos ou omissões das instituições comunitárias. Essas vias processuais têm em vista objectivos distintos e estão sujeitas a regras diferentes. Um Estado-Membro não poderá por isso utilmente, na ausência de uma disposição do Tratado que expressamente lho autorize, invocar a ilegalidade de uma decisão de que é destinatário como meio de defesa contra uma acção por incumprimento fundada na falta de execução dessa decisão (acórdãos de 30 de Junho de 1988, Comissão/Grécia, 226/87, Colect., p. 3611, n._ 14, e de 27 de Outubro de 1992, Comissão/Alemanha, C-74/91, Colect., p. I-5437, n._ 10).

35 Só poderia acontecer de forma diferente caso o acto em causa estivesse afectado de vícios particularmente graves e evidentes, a ponto de poder ser qualificado de acto inexistente (acórdãos de 30 de Junho de 1988, Comissão/Grécia, já referido, n._ 16, e de 27 de Outubro de 1992, Comissão/Alemanha, já referido, n._ 11).

36 Esta conclusão também se impõe no âmbito de uma acção por incumprimento com base no artigo 93._, n._ 2, segundo parágrafo, do Tratado.

37 A este respeito, é forçoso considerar que, embora o Governo português tenha contestado a qualificação de auxílio da garantia concedida à EPAC fundando-se num certo número de dados factuais, não invocou em contrapartida qualquer vício de natureza a pôr em causa a própria existência do acto.

38 Há, seguidamente, que recordar que resulta de uma jurisprudência constante que a supressão de um auxílio ilegal através da sua recuperação é a consequência lógica da declaração da sua ilegalidade e que essa consequência não depende da forma como o auxílio foi concedido (v., designadamente, acórdão de 10 de Junho de 1993, Comissão/Grécia, C-183/91, Colect., p. I-3131, n._ 16).

39 O Tribunal de Justiça também já decidiu que o único fundamento de defesa susceptível de ser invocado por um Estado-Membro numa acção por incumprimento intentada pela Comissão com base no artigo 93._, n._ 2, do Tratado consiste na impossibilidade absoluta de executar correctamente a decisão (acórdão de 4 de Abril de 1995, Comissão/Itália C-348/93, Colect., p. I-673, n._ 16).

40 Todavia, um Estado-Membro que, quando da execução de uma decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado, depara com dificuldades imprevistas e imprevisíveis ou toma consciência de consequências que não foram tidas em consideração pela Comissão, deve submeter estes problemas à apreciação desta última, propondo modificações apropriadas à decisão em causa. Nestes casos, a Comissão e o Estado-Membro devem, por força do princípio que impõe, aos Estados-Membros e às instituições comunitárias, deveres recíprocos de cooperação leal e que inspira, nomeadamente, o artigo 5._ do Tratado, colaborar de boa fé com vista a superar as dificuldades, respeitando plenamente as disposições do Tratado, nomeadamente, as relativas aos auxílios (v., nomeadamente, acórdão de 2 de Fevereiro de 1989, Comissão/Alemanha, 94/87, Colect., p. 175, n._ 9).

41 No que respeita à pretensa impossibilidade material de execução da decisão em razão da ininteligibilidade do seu dispositivo, alegada pelo Governo português, há que recordar que o dispositivo de um acto é indissociável da sua fundamentação, de modo que deve ser interpretado, se necessário, tendo em conta os motivos que levaram à sua adopção (acórdão de 15 de Maio de 1997, TWD/Comissão, C-355/95 P, Colect., p. I-2549, n._ 21).

42 Há, pois, em primeiro lugar, que verificar se, como alega o Governo português, a utilização do plural em vez do singular no dispositivo da decisão litigiosa era, tendo em conta a fundamentação avançada, incompreensível e, portanto, de natureza a tornar impossível a execução da referida decisão.

43 A este respeito, há que referir que a decisão litigiosa versa efectivamente sobre a garantia concedida pela República Portuguesa através do Despacho n._ 430/96-XIII, já referido. É certo que o dispositivo da decisão litigiosa faz referência aos auxílios concedidos à EPAC; todavia, esta imprecisão terminológica não é de natureza a tornar a decisão litigiosa incompreensível e a impedir a sua execução, uma vez que a medida nacional contestada é claramente identificada na referida decisão. De resto, o Governo português tinha sempre a possibilidade, se tal se mostrasse necessário, de interrogar a Comissão a esse respeito uma vez recebida a decisão litigiosa.

44 No que respeita ao carácter pretensamente incompreensível das injunções do artigo 2._ da decisão litigiosa por não ter havido transferência de recursos, há, em primeiro lugar, que recordar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o conceito de auxílio abrange não só prestações positivas como as subvenções, mas também intervenções que, sob formas diversas, aliviam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, não sendo subvenções na acepção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos (v., neste sentido, acórdãos de 15 de Março de 1994, Banco Exterior de España, C-387/92, Colect., p. I-877, n._ 13, e de 19 de Maio de 1999, Itália/Comissão, C-6/97, Colect., p. I-2981, n._ 16).

45 Donde resulta que, sem decidir já da legalidade do auxílio que será examinada no âmbito do recurso de anulação, basta recordar que, para que uma medida constitua um auxílio na acepção do n._ 1 do artigo 92._ do Tratado, não é necessário que se tenha verificado uma transferência de recursos da parte do Estado para o beneficiário.

46 Ao que acresce, como o Tribunal de Justiça recordou no n._ 38 do presente acórdão, que a obrigação de supressão de um auxílio ilegal através da sua recuperação não depende da forma como o auxílio foi concedido.

47 Há, seguidamente, que referir que a fundamentação da decisão litigiosa permite identificar com precisão os auxílios considerados ilegais e que devem ser suprimidos, ou seja, a garantia do Estado concedida através do Despacho n._ 430/96-XIII, já referido.

48 A vantagem financeira que deve ser recuperada está definida no n._ 15, quinto parágrafo, da decisão como sendo «representada pela diferença entre o custo financeiro do mercado de empréstimos bancários (representado pela taxa de referência) e o custo financeiro efectivamente suportado pela EPAC no quadro da operação financeira (tendo em consideração o custo da garantia)», calculado com uma periodicidade semestral.

49 A decisão litigiosa precisa ainda, no seu n._ 15, sexto parágrafo, que os juros devem ser contados a partir da data de concessão dos auxílios ilegais em causa e que a taxa de juro a aplicar é a taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente-subvenção no quadro dos auxílios com finalidade regional.

50 Resulta desta análise que os termos da decisão litigiosa são claros e facilmente compreensíveis, e que a República Portuguesa não podia equivocar-se nem quanto ao seu sentido nem quanto ao seu alcance.

51 No que respeita à pretensa impossibilidade jurídica de execução da decisão litigiosa, o Governo português afirmou, a respeito da supressão da garantia, que era impossível um acordo com os bancos credores da EPAC, pois que estes em tal não consentiriam, na falta de garantia, sem referir todavia uma qualquer tentativa de negociação com estes últimos.

52 Ora, resulta de jurisprudência constante que o receio de dificuldades internas, mesmo insuperáveis, não pode justificar que um Estado-Membro não respeite as obrigações que lhe incumbem por força do direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Dezembro de 1995, Comissão/França, C-52/95, Colect., p. I-4443, n._ 38; de 9 de Dezembro de 1997, Comissão/França, C-265/95, Colect., p. I-6959, n._ 55, e de 29 de Janeiro de 1998, Comissão/Itália, C-280/95, Colect., p. I-259, n._ 16).

53 Quanto às razões que tornariam impossível uma supressão unilateral da garantia, há que recordar que as dificuldades financeiras com que as empresas beneficiárias de um auxílio ilegal se poderão ver confrontadas após a sua supressão não constituem um caso de impossibilidade absoluta de execução da decisão da Comissão que declara a incompatibilidade deste auxílio com o mercado comum e que ordena a sua restituição (acórdão de 7 de Junho de 1988, Comissão/Grécia, 63/87, Colect., p. 2875, n._ 14). Esta conclusão também se impõe no que toca ao risco pretensamente incorrido pela República Portuguesa de ser posta em causa a sua responsabilidade, e isto pelas razões referidas no n._ 52 do presente acórdão.

54 Na medida em que põe em causa o próprio princípio da supressão da garantia ínsito na decisão litigiosa, o argumento baseado na violação do princípio da proporcionalidade deve igualmente ser rejeitado no âmbito da presente acção por incumprimento.

55 No que respeita à necessidade de aguardar uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo que anule o Despacho n._ 430/96-XIII, já referido, quando este órgão jurisdicional está ele próprio a aguardar pelo resultado do recurso de anulação pendente no Tribunal de Justiça contra a decisão litigiosa, há que recordar que, embora, na falta de disposições comunitárias sobre o processo de recuperação dos auxílios ilegalmente concedidos, esta recuperação deva ser efectuada, em princípio, de acordo com as disposições pertinentes do direito interno, estas disposições devem, todavia, ser aplicadas de forma a não tornar praticamente impossível a restituição exigida pelo direito comunitário e respeitando em toda a sua extensão o interesse da Comunidade (designadamente, o acórdão de 2 de Fevereiro de 1989, Comissão/Alemanha, já referido, n._ 12).

56 Em todo o caso, o Governo português reconheceu, em resposta às questões escritas que lhe foram colocadas, que um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que declare a nulidade do Despacho n._ 430/96-XIII, já referido, não era necessário para a recuperação da vantagem financeira a que se refere a decisão litigiosa.

57 Há, de resto, que recordar a este respeito que a decisão litigiosa goza da presunção de legalidade e que, apesar da existência de um recurso de anulação, continua a ser obrigatória em todos os seus elementos para a República Portuguesa.

58 Por último e no que respeita à abstenção de participação da EPAC nos concursos para importação de cereais, basta referir que a Comissão só foi informada em Dezembro de 1997, ou seja, após o termo dos prazos fixados no artigo 2._ da decisão litigiosa e após ter sido intentada a presente acção por incumprimento.

59 Vistas as precedentes considerações, há que declarar que, ao não ter dado cumprimento à decisão litigiosa, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

60 Por força do n._ 2 do artigo 69._ do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo-o a Comissão requerido e tendo a República Portuguesa sido vencida, há que condená-la nas despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

61 A República Portuguesa, ao não dar cumprimento à Decisão 97/762/CE da Comissão, de 9 de Julho de 1997, relativa às medidas tomadas por Portugal em favor da EPAC - Empresa Para a Agroalimentação e Cereais, SA, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.

62 A República Portuguesa é condenada nas despesas.