61997J0230

Acórdão do Tribunal (Segunda Secção) de 29 de Outubro de 1998. - Processo-crime contra Ibiyinka Awoyemi. - Pedido de decisão prejudicial: Hof van Cassatie - Bélgica. - Carta de condução - Interpretação da Directiva 80/1263/CEE - Inobservância da obrigação de trocar a carta de condução emitida por um Estado-Membro para um nacional de um país terceiro por uma carta de condução do Estado-Membro da sua nova residência - Sanções penais - Incidência da Directiva 91/439/CEE. - Processo C-230/97.

Colectânea da Jurisprudência 1998 página I-06781


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1 Livre circulação de pessoas - Liberdade de estabelecimento - Carta de condução - Nacional dum país terceiro titular duma carta de modelo comunitário - Inobservância da obrigação de trocar a carta emitida pelo Estado-Membro de origem por uma carta do Estado-Membro de acolhimento - Equiparação a condução sem carta - Sanções penais - Admissibilidade

(Tratado CE, artigos 48._ e 52._; Directiva 80/1263 do Conselho, artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo)

2 Livre circulação de pessoas - Liberdade de estabelecimento - Carta de condução - Nacional dum país terceiro titular duma carta de modelo comunitário - Inobservância da obrigação de trocar a carta prevista na Directiva 80/1263 - Sanções penais - Directiva 91/439 - Efeito directo dos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1 - Alcance - Princípio de direito nacional da retroactividade da lei penal mais favorável - Incidência

(Directivas do Conselho 80/1263, artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, e 91/439, artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1)

Sumário


1 Sendo certo que os Estados-Membros não podem prever, em caso de violação da obrigação de trocar a carta de condução prevista no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Primeira Directiva 80/1263, relativa à criação de uma carta de condução comunitária, uma sanção penal desproporcionada à gravidade da infracção que crie um entrave à livre circulação de pessoas, tendo em conta a incidência que o direito de conduzir um veículo automóvel tem no exercício efectivo duma profissão independente ou assalariada, designadamente para o acesso a determinadas actividades ou funções, o fundamento desta limitação introduzida quanto à competência dos Estados-Membros, para preverem sanções penais na matéria, é a liberdade de circulação de pessoas instituída pelo Tratado. Ora, um nacional dum país terceiro não pode utilmente invocar as normas em matéria de livre circulação de pessoas que só se aplicam aos nacionais dum Estado-Membro da Comunidade que pretendam estabelecer-se no território de outro Estado-Membro ou aos nacionais desse mesmo Estado que se encontram numa situação que apresente um factor de conexão com uma das situações previstas pelo direito comunitário.

Assim, nem as disposições da Primeira Directiva 80/1263 nem as do Tratado constituem obstáculo a que a condução de um veículo a motor por um nacional de um país terceiro, que é titular de uma carta de condução de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro e que, tendo transferido a sua residência para outro Estado-Membro, teria podido aí obter em troca uma carta emitida pelo Estado de acolhimento, mas que não procedeu a esta formalidade no prazo de um ano que lhe é imposto, seja equiparada neste último Estado a condução sem carta e, por este facto, seja punida com pena de prisão ou multa.

2 As disposições dos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439, relativa à carta de condução, impõem aos Estados-Membros obrigações claras e precisas, que consistem respectivamente no reconhecimento mútuo das cartas de condução de modelo comunitário e na proibição de exigir a troca das cartas de condução emitidas por um outro Estado-Membro, sem consideração da nacionalidade do titular, não dispondo os Estados destinatários de qualquer margem de apreciação quanto às medidas a adoptar para se conformarem com estas exigências. O efeito directo que deve, portanto, ser reconhecido a estas disposições implica que os particulares têm o direito de as invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

Daqui resulta que um nacional dum país terceiro titular de uma carta de condução de modelo comunitário válida emitida por um Estado-Membro, que estabeleceu residência habitual noutro Estado-Membro, mas que não procedeu neste à troca da sua carta de condução no prazo de um ano previsto no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, tem o direito de invocar directamente os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 para se opor à aplicação, no Estado-Membro em que estabeleceu a sua nova residência, de uma pena de prisão ou multa por condução sem carta. O direito comunitário não se opõe a que, em razão do princípio, reconhecido pelo direito nacional de vários Estados-Membros, da retroactividade da lei penal mais favorável, um órgão jurisdicional de tal Estado-Membro aplique as disposições da Directiva 91/439, mesmo quando a infracção teve lugar antes da data prevista para o início de aplicação desta directiva.

Partes


No processo C-230/97,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE, pelo Hof van Cassatie (Bélgica), destinado a obter, no processo penal instaurado contra

Ibiyinka Awoyemi,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 8._, n._ 1, da Primeira Directiva 80/1263/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980, relativa à criação de uma carta de condução comunitária (JO L 375, p. 1; EE 07 F2 p. 259), assim como dos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, relativa à carta de condução (JO L 237, p. 1),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(Segunda Secção),

composto por: G. Hirsch, presidente de secção, G. F. Mancini e R. Schintgen (relator), juízes,

advogado-geral: P. Léger,

secretário: R. Grass,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação do Governo do Reino Unido, por S. Ridley, do Treasury Solicitor's Department, na qualidade de agente, assistida por R. Thompson, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por B. J. Drijber e L. Pignataro, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 16 de Julho de 1998,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por acórdão de 17 de Junho de 1997, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de Junho seguinte, o Hof van Cassatie colocou, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE, três questões prejudiciais sobre a interpretação do artigo 8._, n._ 1, da Primeira Directiva 80/1263/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980, relativa à criação de uma carta de condução comunitária (JO L 375, p. 1; EE 07 F2 p. 259), assim como dos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, relativa à carta de condução (JO L 237, p. 1).

2 Estas questões foram suscitadas no quadro de um processo penal instaurado pelo Ministério Público contra I. Awoyemi, acusado de ter conduzido um veículo a motor na via pública na Bélgica sem ser titular de uma carta de condução válida.

As directivas relativas à carta de condução

3 As cartas de condução foram objecto de uma primeira harmonização através da adopção da Directiva 80/1263 que, como refere o seu primeiro considerando, tem em vista contribuir para a melhoria da segurança do trânsito rodoviário e para facilitar a circulação das pessoas que se estabelecem num Estado-Membro que não aquele em que fizeram o exame de condução ou que se deslocam na Comunidade.

4 Para este fim, a Directiva 80/1263 aproximou as normas nacionais na matéria, nomeadamente no que se refere aos sistemas nacionais de emissão das cartas de condução, às categorias de veículos e às condições de validade das referidas cartas. Estabeleceu igualmente um modelo comunitário de carta e instituiu um sistema de reconhecimento das cartas de condução pelos Estados-Membros, assim como de troca destas últimas quando os titulares transferem a sua residência ou o seu local de trabalho de um Estado-Membro para outro.

5 Em conformidade com o artigo 6._, n._ 1, desta directiva, a emissão da carta de condução depende, por um lado, da aprovação num exame prático e teórico bem como do preenchimento de normas médicas e, por outro, da existência de uma residência habitual no território do Estado-Membro que emite a carta se a regulamentação do Estado-Membro em causa o previr.

6 Nos termos do artigo 8._, n._ 1, da referida directiva:

«Os Estados-Membros estabelecerão que, se o titular de uma carta de condução nacional ou de uma carta de modelo comunitário válida, emitida por um Estado-Membro, adoptar residência habitual num outro Estado-Membro, a respectiva carta permanecerá válida pelo período máximo de uma ano a contar da data de adopção de residência. Durante este período, a pedido do titular e contra a entrega da sua carta, o Estado em que o titular adoptou residência habitual emitirá uma carta de condução (modelo comunitário) da ou das categorias correspondentes sem lhe impor as condições previstas no artigo 6._ No entanto, este Estado-Membro pode recusar a troca da carta nos casos em que a sua regulamentação nacional, incluindo as normas médicas, obste à emissão da carta.

A troca deve ser precedida da apresentação de uma declaração por parte do requerente que ateste da validade da sua carta de condução. Compete ao Estado-Membro que procede à troca verificar, se necessário, da autenticidade dessa declaração. O Estado-Membro que procede à troca devolverá a antiga carta às autoridades do Estado-Membro que a emitiu.»

7 A directiva 91/439, por um lado, realizou uma nova etapa na harmonização das disposições nacionais, nomeadamente no que se refere às condições de emissão das cartas de condução e às categorias de veículos; por outro lado, suprimiu a obrigação de trocar a carta de condução em caso de transferência de residência habitual para um outro Estado-Membro, obrigação que, de acordo com o seu nono considerando, constitui um obstáculo à livre circulação de pessoas e não pode ser admitido, tendo em conta os progressos obtido no âmbito da integração europeia.

8 O artigo 1._, n._ 2, desta directiva dispõe:

«As cartas de condução emitidas pelos Estados-Membros são mutuamente reconhecidas.»

9 Nos termos do artigo 8._, n._ 1, desta directiva:

«No caso de o titular de uma carta de condução válida emitida por um Estado-Membro ter adquirido residência habitual noutro Estado-Membro, pode solicitar a troca da sua carta de condução por outra carta equivalente; compete ao Estado-Membro que procede à troca verificar, se necessário, se a carta apresentada permanece efectivamente válida.»

10 Em conformidade com o n._ 6 do mesmo artigo:

«Sempre que um Estado-Membro trocar uma carta emitida por um país terceiro por uma carta de condução de modelo comunitário, esta troca deve vir mencionada na nova carta, bem como em qualquer revalidação ou substituição posterior.

Esta troca só pode ser efectuada se a carta emitida pelo país terceiro tiver sido entregue às autoridades competentes do Estado-Membro que procede à troca. Em caso de mudança de residência habitual do titular dessa carta para outro Estado-Membro, este último poderá não aplicar o n._ 2 do artigo 1._»

11 O artigo 12._, n._ 1, da Directiva 91/439 prevê:

«Os Estados-Membros adoptarão, após consulta à Comissão, antes de 1 de Julho de 1994, as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas necessárias para darem cumprimento à presente directiva a partir de 1 de Julho de 1996.»

12 Quanto ao artigo 13._ da mesma directiva, dispõe:

«É revogada, a partir de 1 de Julho de 1996, a Directiva 80/1263/CEE.»

A regulamentação nacional

13 Na Bélgica, o artigo 2._ do decreto real de 6 de Maio de 1988 (Moniteur belge de 28 de Setembro de 1988, p. 13631) dispõe:

«1. Podem obter uma carta de condução belga:

1._ as pessoas que estão inscritas no registo da população ou no registo dos estrangeiros numa comuna belga e são titulares de um dos documentos seguintes, emitido na Bélgica:

a) o bilhete de identidade de belga ou de estrangeiro;

b) o certificado de inscrição no registo dos estrangeiros;

c) o cartão de residência de nacional de um Estado-Membro da Comunidade Económica Europeia;

d) a certidão de matrícula;

2._ as pessoas que são titulares de um dos documentos seguintes, emitido na Bélgica:

a) o cartão de identidade para os membros do corpo diplomático;

b) o cartão de identidade para os membros do corpo consular;

c) a autorização de residência especial.

2. As pessoas referidas no n._ 1, 1._, só podem conduzir um veículo a motor com uma carta de condução belga; podem todavia conduzir com uma carta de condução nacional estrangeira válida, emitida por um dos Estados-Membros da Comunidade Económica Europeia, durante o prazo de um ano a contar da sua inscrição no registo da população ou dos estrangeiros de uma comuna belga. Os outros condutores de veículos a motor devem ser titulares e portadores de uma carta de condução belga ou de uma carta de condução estrangeira, quer nacional, quer internacional, nas condições fixadas nas disposições aplicáveis em matéria de circulação internacional.

...»

O litígio na causa principal

14 I. Awoyemi, cidadão da Nigéria, residiu durante um certo tempo no Reino Unido, onde era titular de uma carta de condução de modelo comunitário válida de 11 de Abril de 1990 a 26 de Janeiro de 2003.

15 Desde 17 de Dezembro de 1990, reside regularmente na Bélgica.

16 Em 27 de Julho de 1993, I. Awoyemi foi objecto de um controlo da polícia em Ostende (Bélgica) no qual foi verificado que conduzia um veículo a motor sem estar na posse de uma carta de condução belga.

17 Não obstante ter invocado a posse da carta de modelo comunitário válida na altura dos factos, I. Awoyemi foi condenado, em 4 de Janeiro de 1995, pelo correctionele rechtbank te Brugge (Bélgica) numa multa de 2 000 BFR por ter conduzido um veículo na via pública na Bélgica sem ser titular de uma carta de condução válida, em conformidade com o disposto no artigo 2._ do decreto real de 6 de Maio de 1988, já referido. Segundo este órgão jurisdicional, por um lado, o interessado residia na Bélgica sem ser titular de uma carta de condução belga e, por outro, no momento dos factos já tinha decorrido o prazo de um ano a contar da sua inscrição no registo dos estrangeiros na Bélgica, durante o qual tinha o direito de conduzir com uma carta de condução válida emitida por um dos Estados-Membros da Comunidade Europeia.

18 I. Awoyemi interpôs recurso desta decisão.

19 Resulta dos fundamentos da decisão de reenvio que o Hof van Cassatie considera, antes de mais, que o decreto real de 6 de Maio de 1988, já referido, foi adoptado nomeadamente com vista a transpor o artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263. Refere-se depois ao acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, Skanavi e Chryssanthakopoulos (C-193/94, Colect., p. I-929), realçando que este foi proferido no quadro de um processo respeitante a nacionais de um Estado-Membro da Comunidade Europeia, ao passo que o caso presente é relativo a um nacional de um país terceiro, titular de uma carta de condução emitida por um Estado-Membro que não é o Estado-Membro de acolhimento do interessado. Observa finalmente que a Directiva 80/1263 foi revogada, a partir de 1 de Julho de 1996, pela Directiva 91/439 cujo artigo 1._, n._ 2, impõe o reconhecimento mútuo das cartas de condução emitidas pelos Estados-Membros e o artigo 8._, n._ 1, transforma em mera faculdade a obrigação de troca, no prazo de um ano, da carta de condução válida emitida por um Estado-Membro, quando o seu titular estabelece a sua residência habitual noutro Estado-Membro. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, essas disposições parecem ter efeito directo, mas a Directiva 91/439 não esclarece com precisão se é susceptível de ser aplicada a infracções cometidas na vigência da Directiva 80/1263.

20 Considerando que a solução do litígio dependia, portanto, da interpretação do direito comunitário, o Hof van Cassatie suspendeu a instância para submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes três questões prejudiciais:

«1) As disposições da Primeira Directiva 80/1263/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980, relativa à criação de uma carta de condução comunitária, em especial o seu artigo 8._, opõem-se a que a condução de um veículo a motor por uma pessoa que não tem a qualidade de cidadão da União Europeia, mas que é titular de uma carta de condução nacional ou de uma carta de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro, e que em troca da sua carta de condução teria podido obter uma carta de condução do Estado de acolhimento, mas que não procedeu a esta troca no prazo fixado, seja assimilada a condução sem carta e seja, por esta razão, alvo de sanções penais, tais como uma pena de prisão ou uma multa?

2) O artigo 1._, n._ 2, da Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, relativa à carta de condução, por força do qual as cartas de condução emitidas pelos Estados-Membros são mutuamente reconhecidas, e o direito de troca previsto no artigo 8._, n._ 1, desta directiva têm por efeito que, mesmo na ausência de regulamentação nacional na matéria, uma pessoa que não tem a qualidade de cidadão da União Europeia, mas que é titular de uma carta de condução nacional ou de uma carta de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro, e que adopte uma residência habitual noutro Estado-Membro, pode, a partir de 1 de Julho de 1996, invocar em juízo a aplicação destas disposições?

3) Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, relativa à carta de condução, têm efeito retroactivo no sentido de que se opõem a que a condução de um veículo a motor por uma pessoa que não tem a qualidade de cidadão da União Europeia, mas que é titular de uma carta de condução nacional ou de uma carta de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro e que em troca da sua carta de condução teria podido obter uma carta de condução do Estado de acolhimento, mas que, em 27 de Julho de 1993, não tinha procedido a esta troca no prazo fixado, seja assimilada a condução sem carta e seja, por esta razão, alvo de sanções penais, tais como uma pena de prisão ou uma multa?»

Quanto à primeira questão

21 Resulta dos fundamentos da decisão de reenvio que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta em substância ao Tribunal de Justiça se as disposições da Directiva 80/1263 ou as do Tratado constituem obstáculo a que a condução de um veículo a motor por um nacional de um país terceiro, que é titular de uma carta de condução de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro e que, tendo transferido a sua residência para um outro Estado-Membro, teria podido aí obter em troca uma carta emitida pelo Estado de acolhimento, mas que não procedeu a essa formalidade no prazo de um ano que lhe era imposto, seja equiparada neste último Estado a condução sem carta e, por este facto, seja punida com uma pena de prisão ou multa.

22 A título liminar importa referir que, como foi salientado pelo advogado-geral no n._ 21 das suas conclusões, a Directiva 80/1263 não se aplica só aos nacionais dos Estados-Membros, mas também aos titulares de uma carta de condução emitida por um Estado-Membro, sem consideração de nacionalidade.

23 Daqui resulta que uma pessoa que se encontre na situação de I. Awoyemi, que é titular de uma carta de condução de modelo comunitário emitida pelas autoridades competentes do Reino Unido e válida no momento dos factos controvertidos, está abrangida pelo âmbito de aplicação pessoal desta directiva.

24 Todavia, a referida directiva não contém qualquer disposição relativa às sanções a aplicar em caso de violação da obrigação de troca da carta de condução que foi prevista no seu artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo.

25 Assim, na ausência de regulamentação comunitária na matéria, os Estados-Membros continuam, em princípio, a serem competentes para punir a violação de tal obrigação (v. acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n._ 36).

26 É certo que resulta de jurisprudência constante que os Estados-Membros não podem, nesta matéria, prever uma sanção penal desproporcionada à gravidade da infracção que crie um entrave à livre circulação de pessoas, tendo em conta a incidência que o direito de conduzir um veículo automóvel tem no exercício efectivo de uma profissão independente ou assalariada, designadamente para o acesso a certas actividades ou funções (v. acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n.os 36 e 38).

27 Contudo, uma pessoa na situação de I. Awoyemi não pode invocar esta jurisprudência.

28 Com efeito, decorre dos fundamentos do acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n.os 36 a 39, que o fundamento da limitação introduzida quanto à competência dos Estados-Membros, para preverem sanções penais em caso de violação da obrigação de trocar a carta de condução, é a liberdade de circulação de pessoas instituída pelo Tratado.

29 Ora, um nacional de um país terceiro, que se encontre numa situação como a de I. Awoyemi, não pode utilmente invocar as normas em matéria de livre circulação de pessoas que, em conformidade com uma jurisprudência constante, só se aplicam aos nacionais de um Estado-Membro da Comunidade que pretendam estabelecer-se no território de outro Estado-Membro ou aos nacionais desse mesmo Estado que se encontram numa situação que apresente um factor de conexão com uma das situações previstas pelo direito comunitário (v., por exemplo, acórdão de 25 de Junho de 1992, Ferrer Laderer, C-147/91, Colect., p. I-4097, n._ 7).

30 Nestas condições, a situação jurídica dessa pessoa, nacional de um país terceiro, perante as sanções que são susceptíveis de ser aplicadas em caso de desrespeito da obrigação de trocar a carta de condução prevista no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263 não é abrangida pelas disposições desta directiva nem pelas do Tratado relativas à livre circulação de pessoas.

31 Importa, portanto, responder à primeira questão colocada que nem as disposições da Directiva 80/1263 nem as do Tratado constituem obstáculo a que a condução de um veículo a motor por um nacional de um país terceiro, que é titular de uma carta de condução de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro e que, tendo transferido a sua residência para outro Estado-Membro, teria podido aí obter em troca uma carta emitida pelo Estado de acolhimento, mas que não procedeu a esta formalidade no prazo de um ano que lhe é imposto, seja equiparada neste último Estado a condução sem carta e, por este facto, seja punida com pena de prisão ou multa.

Quanto às segunda e terceira questões

32 Nas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta em substância se um nacional de um país terceiro titular de uma carta de condução de modelo comunitário válida emitida por um Estado-Membro, que estabeleceu residência habitual noutro Estado-Membro, mas que não procedeu neste à troca da sua carta de condução no prazo de um ano previsto no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, tem o direito de invocar directamente os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 para se opor à aplicação, no Estado-Membro onde estabeleceu a sua nova residência, de uma pena de prisão ou multa por condução sem carta, quando esta infracção teve lugar antes da data prevista para o início da aplicação da Directiva 91/439.

33 Importa recordar a título liminar que, em conformidade com os artigos 12._ e 13._ da Directiva 91/439, o prazo de transposição desta última terminou a 1 de Julho de 1994 e a referida directiva só devia passar a ser aplicável nos Estados-Membros a partir de 1 de Julho de 1996, data em que a Directiva 80/1263 foi revogada.

34 Em consequência, a obrigação de proceder à troca da carta de condução, prevista no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, impunha-se até 1 de Julho de 1996, uma vez que as disposições da Directiva 91/439 não têm efeito retroactivo (v., neste sentido, acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n._ 28).

35 Como os factos na causa principal ocorreram em 27 de Julho de 1993, o Governo do Reino Unido e a Comissão levantaram dúvidas quanto à utilidade da interpretação da Directiva 91/439 para a resolução do litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

36 Resulta, todavia, da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional nacional considerou necessário interrogar o Tribunal de Justiça sobre a interpretação dos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 com o fundamento de que encarava a hipótese de, eventualmente, aplicar o princípio, reconhecido pelo seu direito nacional, da retroactividade da lei penal mais favorável, afastando as disposições nacionais na vigência das quais foram cometidas as infracções em causa, se o direito interno viesse a revelar-se incompatível com o direito comunitário e se as disposições pertinentes deste último pudessem ser invocadas directamente por um particular.

37 Assim, deve responder-se às questões submetidas, uma vez que compete ao juiz nacional apreciar tanto a necessidade de um pedido prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdãos de 23 de Fevereiro de 1995, Bordessa e o., C-358/93 e C-416/93, Colect., p. I-361, n._ 10; de 14 de Dezembro de 1995, Sanz de Lera e o., C-163/94, C-165/94 e C-250/94, Colect., p. I-4821, n._ 15; de 26 de Setembro de 1996, Allain, C-341/94, Colect., p. I-4631, n._ 13, e acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n._ 18).

38 Com efeito, o direito comunitário não se opõe a que o órgão jurisdicional de reenvio tenha em conta, em conformidade com um princípio do seu direito penal, as disposições mais favoráveis da Directiva 91/439 para as exigências de aplicação do direito interno, mesmo que, como a Comissão salientou nas suas observações escritas, o direito comunitário não comporte qualquer obrigação nesse sentido.

39 Para determinar se as disposições supramencionadas da Directiva 91/439 produzem efeito directo, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, sempre que as disposições de uma directiva se revelem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá-las contra o Estado, seja quando este se abstenha de transpor, no prazo determinado, a directiva para o direito nacional, seja quando proceda a uma transposição incorrecta da mesma (v., por exemplo, acórdão de 8 de Outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen, 80/86, Colect., p. 3969, n._ 7).

40 Neste contexto, resulta, antes de mais, da própria redacção da segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 não foram transpostos no prazo fixado para a ordem jurídica interna em causa e não passaram a ser aplicáveis na mesma, a partir de 1 de Julho de 1996, como exigia o artigo 12._ dessa directiva.

41 No que se refere depois à questão de saber se estas disposições da referida directiva são suficientemente precisas e incondicionais para que um particular possa invocá-las perante um órgão jurisdicional nacional, importa salientar, por um lado, que o artigo 1._, n._ 2, prevê o reconhecimento mútuo, sem qualquer formalidade, das cartas de condução emitidas pelos Estados-Membros (v. acórdão Skanavi e Chryssanthakopoulos, já referido, n._ 26) e, por outro, que o artigo 8._, n._ 1, substitui por uma mera faculdade, para o titular de uma carta de condução válida emitida num Estado-Membro quando o interessado estabeleceu a sua residência habitual noutro Estado-Membro, a obrigação de troca da carta de condução no prazo de um ano que figura no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, uma vez que esta obrigação é qualificada de obstáculo à livre circulação das pessoas pelo nono considerando da Directiva 91/439.

42 Como foi sublinhado pelo advogado-geral nos n.os 37 a 41 das suas conclusões, estas disposições impõem, portanto, aos Estados-Membros obrigações claras e precisas, que consistem respectivamente no reconhecimento mútuo das cartas de condução de modelo comunitário e na proibição de exigir a troca das cartas de condução emitidas por um outro Estado-Membro, sem consideração da nacionalidade do titular, não dispondo os Estados destinatários de qualquer margem de apreciação quanto às medidas a adoptar para se conformarem com estas exigências.

43 O efeito directo que deve, portanto, ser reconhecido aos artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 implica que os particulares têm o direito de os invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

44 Só assim não sucederia se o interessado tivesse obtido a carta de condução no primeiro Estado em troca de uma carta emitida por um país terceiro. Com efeito, resulta do artigo 8._, n._ 6, da Directiva 91/439 que os Estados-Membros não são obrigados a reconhecer tal carta de condução e que, portanto, em tal hipótese, a referida directiva não impõe uma obrigação incondicional. Todavia, os autos não contêm qualquer indicação quanto à forma como I. Awoyemi obteve a carta de condução de modelo comunitário no Reino Unido.

45 Perante as considerações que antecedem, deve responder-se às segunda e terceira questões prejudiciais que um nacional de um país terceiro titular de uma carta de condução de modelo comunitário válida emitida por um Estado-Membro, que estabeleceu residência habitual noutro Estado-Membro, mas que não procedeu neste à troca da sua carta de condução no prazo de um ano previsto no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, tem o direito de invocar directamente os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439 para se opor à aplicação, no Estado-Membro em que estabeleceu a sua nova residência, de uma pena de prisão ou multa por condução sem carta. O direito comunitário não se opõe a que, em razão do princípio, reconhecido pelo direito nacional de vários Estados-Membros, da retroactividade da lei penal mais favorável, um órgão jurisdicional de tal Estado-Membro aplique as disposições da Directiva 91/439, mesmo quando a infracção teve lugar antes da data prevista para o início de aplicação desta directiva.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

46 As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações no Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(Segunda Secção),

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hof van Cassatie, por acórdão de 17 de Junho de 1997, declara:

47 Nem as disposições da Primeira Directiva 80/1263/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980, relativa à criação de uma carta de condução comunitária, nem as do Tratado CE constituem obstáculo a que a condução de um veículo a motor por um nacional de um país terceiro, que é titular de uma carta de condução de modelo comunitário emitida por um Estado-Membro e que, tendo transferido a sua residência para outro Estado-Membro, teria podido aí obter em troca uma carta emitida pelo Estado de acolhimento, mas que não procedeu a esta formalidade no prazo de um ano que lhe é imposto, seja equiparada neste último Estado a condução sem carta e, por este facto, seja punida com pena de prisão ou multa.

48 Um nacional de um país terceiro titular de uma carta de condução de modelo comunitário válida emitida por um Estado-Membro, que estabeleceu residência habitual noutro Estado-Membro, mas que não procedeu neste à troca da sua carta de condução no prazo de um ano previsto no artigo 8._, n._ 1, primeiro parágrafo, da Directiva 80/1263, tem o direito de invocar directamente os artigos 1._, n._ 2, e 8._, n._ 1, da Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, relativa à carta de condução, para se opor à aplicação, no Estado-Membro em que estabeleceu a sua nova residência, de uma pena de prisão ou multa por condução sem carta. O direito comunitário não se opõe a que, em razão do princípio, reconhecido pelo direito nacional de vários Estados-Membros, da retroactividade da lei penal mais favorável, um órgão jurisdicional de tal Estado-Membro aplique as disposições da Directiva 91/439, mesmo quando a infracção teve lugar antes da data prevista para o início de aplicação desta directiva.