Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 17 de Septembro de 1998. - República Italiana contra Comissão das Comunidades Europeias. - Auxílio de Estado - Conceito - Crédito fiscal - Recuperação - Impossibilidade absoluta. - Processo C-6/97.
Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-02981
1 A República Italiana impugna no presente recurso a decisão de 22 de Outubro de 1996 na qual a Comissão declarou ilegal e incompatível com o mercado comum o crédito fiscal que a Itália instituíra para os exercícios de 1993 e 1994 no sector do transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem. Este regime era, na prática, uma prorrogação do que a República Italiana já tinha instituído para o exercício de 1992 e que a Comissão proibira na decisão de 9 de Junho de 1993. A República Italiana já tinha sido condenada pelo Tribunal de Justiça por acórdão de 29 de Janeiro de 1998, por não ter dado cumprimento às disposições dessa decisão.
O regime inicial
2 No início dos anos noventa, os impostos especiais sobre os combustíveis aplicados em Itália eram dos mais elevados da Comunidade. Em resposta ao mal-estar do sector do transporte rodoviário de mercadorias, que culminou numa greve que perturbou gravemente a vida económica e social do país, o Governo italiano comprometeu-se, em Abril de 1990, a reduzir os custos que dificultavam a competitividade do sector e, em especial, concedeu um crédito fiscal aos transportadores com o objectivo de reduzir o preço real do gasóleo.
3 Por decreto ministerial de 28 de Janeiro de 1992 (1), o Governo italiano, sem informar previamente a Comissão, instituiu um crédito fiscal especial, para o exercício de 1992, em favor das empresas nacionais de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem. O referido crédito apresentava-se sob a forma de uma bonificação que os beneficiários podiam deduzir, à escolha, das quantias que deviam a título do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ou colectivas, do imposto local sobre o rendimento, do imposto sobre o valor acrescentado ou das retenções que tinham que efectuar sobre a remuneração dos seus trabalhadores. O montante da bonificação, sujeito a certos limites máximos, era calculado com base na diferença entre o preço médio do gasóleo adquirido em território italiano pelas empresas beneficiárias e o preço médio praticado nos outros Estados-Membros. Observe-se que o montante por veículo aumentava de maneira mais do que proporcional à dimensão do camião, o que favorecia os veículos de tonelagem mais elevada. A data e a frequência da bonificação variavam segundo a fórmula fiscal escolhida.
4 Por carta de 15 de Abril de 1992, a Comissão solicitou ao Governo italiano informações detalhadas sobre a nova regulamentação, referindo ao mesmo tempo que as medidas nela previstas podiam constituir uma violação do artigo 92._, n._ 1, do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (a seguir «Tratado»). O Governo italiano respondeu que a bonificação especial não devia ser considerada um auxílio na acepção do artigo 92._ do Tratado, mas sim uma medida de natureza puramente fiscal destinada a compensar os efeitos dos impostos, especialmente elevados, sobre o combustível e os lubrificantes para as empresas de transportes, sem gerar qualquer distorção da concorrência. Por carta de 26 de Outubro de 1992, a Comissão comunicou ao Governo italiano que tencionava iniciar o procedimento previsto pelo artigo 93._, n._ 2, do Tratado.
A decisão de 9 de Junho de 1993
5 No termo do referido procedimento, em 9 de Junho de 1993, a Comissão adoptou a Decisão 93/496/CEE (2), na qual:
a) declarou que o regime de crédito fiscal era ilegal porque constituía um auxílio de Estado adoptado sem notificação prévia à Comissão - em violação do disposto no artigo 93._, n._ 3, do Tratado -, e, além disso, era incompatível com o mercado comum dado não satisfazer nenhuma das condições necessárias para poder beneficiar das excepções previstas nos n.os 2 e 3 do artigo 92._ do Tratado, nem as previstas no Regulamento (CEE) n._ 1107/70 (3), e
b) ordenou à República Italiana que suprimisse o auxílio referido, e que, no prazo de dois meses, recuperasse os montantes deduzidos até essa altura, bem como os respectivos juros, e, finalmente, que informasse a Comissão das medidas adoptadas para dar cumprimento à decisão.
6 A exposição de motivos da decisão contém a passagem seguinte (4):
«... o efeito do regime é um aumento directo do `cash flow' líquido a favor das empresas de um único sector económico específico.
Efectivamente, é conveniente referir também que somente os operadores do mercado dos transportes rodoviários de mercadorias registados em Itália podem beneficiar desta medida. Esses operadores encontram-se em concorrência com os operadores que actuam a nível dos restantes modos de transporte e com os de outros Estados-Membros. O `cash flow' que resulta da medida, por conseguinte, conduz claramente a um falseamento da concorrência a favor dos beneficiários da medida...»
7 A República Italiana não contestou a decisão nem procedeu à recuperação dos auxílios atribuídos sob a forma de crédito fiscal. Mais, prorrogou o regime para o exercício fiscal de 1993 e alargou-o às empresas rodoviárias dos outros Estados-Membros concedendo-lhes um auxílio calculado em função das quantidades de gasóleo que consumiam em território italiano (5). O montante e as regras de concessão desse auxílio estavam dependentes da aprovação de uma regulamentação de execução que nunca foi adoptada.
8 Por carta de 26 de Agosto de 1993, o Governo italiano comunicou à Comissão que, com o alargamento do benefício do regime controvertido às empresas dos outros Estados-Membros, dava por sanada a acusação principal que lhe era feita na decisão. Acrescentou que seria tecnicamente muito difícil e oneroso para a administração fiscal recuperar os créditos fiscais já atribuídos porque os mesmos tinham sido deduzidos de numerosos adiantamentos e saldos de diversos impostos.
9 Na sua resposta de 24 de Novembro de 1993, a Comissão recordou que do teor da decisão resultava que não só se teve em conta que o regime de bonificação fiscal tratava mais favoravelmente as empresas italianas do que as dos outros Estados-Membros, mas também que este era contrário ao mercado comum, na medida em que instituía em favor de um sector determinado - o sector do transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem - benefícios que falseavam a concorrência porque não eram concedidos de maneira geral. A Comissão concluiu que a prorrogação do regime de crédito de imposto e a não recuperação das bonificações já atribuídas constituíam um incumprimento da decisão.
10 Apesar da reacção da Comissão, o Governo italiano prorrogou o regime para o exercício fiscal de 1994 (6), embora limitando-o, no segundo semestre do mesmo ano, aos cem primeiros veículos de cada empresa.
A acção por incumprimento
11 Depois de nova troca de correspondência, a Comissão, em 18 de Agosto de 1995, intentou uma acção, nos termos do artigo 93._, n._ 2, do Tratado, destinada a obter a declaração de que a República Italiana não cumprira as obrigações impostas pela Decisão 93/496, em especial a obrigação de recuperar, a partir do exercício fiscal de 1992, o auxílio que fora instituído pela primeira vez pelo decreto ministerial de Janeiro de 1992.
12 No decurso da instância, o Governo italiano não contestou a validade da decisão, por não a ter impugnado dentro do prazo, e concentrou a sua defesa nas dificuldades que implicava a recuperação das bonificações. Como este fundamento não foi acolhido, a República Italiana foi condenada pelo acórdão de 29 de Janeiro de 1998 (7), por incumprimento da Decisão 93/496.
O regime modificado
13 Entretanto, em 4 de Dezembro de 1995, a Comissão comunicara às autoridades italianas a sua intenção de iniciar um novo procedimento nos termos do artigo 93._, n._ 2, do Tratado, desta vez contra o regime de bonificação fiscal tal como fora aplicado para os exercícios de 1993 e 1994. Este novo regime distinguia-se do regime instituído pelo decreto ministerial de 1992 na medida em que previa uma compensação em favor dos transportadores rodoviários dos outros Estados-Membros («regime de compensação»). Depois de adoptada a regulamentação de execução, o montante da compensação devia ser equivalente ao que resultava da aplicação do regime de bonificação. Na mesma ocasião, a Comissão solicitava ao Governo italiano que lhe prestasse informações suplementares e que suspendesse imediatamente esse regime de auxílios.
14 Por carta de 26 de Outubro de 1996, a República Italiana comunicou à Comissão que ainda não promulgara a regulamentação relativa ao montante e às normas de execução do regime de compensação.
A decisão de 22 de Outubro de 1996
15 Em 22 de Outubro de 1996, a Comissão adoptou a Decisão 97/270/CE (8), que foi notificada ao Governo italiano por carta de 4 de Novembro de 1996. Os artigos 1._ a 3._ do dispositivo têm a seguinte redacção:
«Artigo 1._
O regime de auxílio instituído pela Itália a favor do sector do transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem sob forma de crédito fiscal, segundo as modalidades definidas nas Leis n._ 162, de 27 de Maio de 1993 (GURI n._ 123, de 28.5.1993) e n._ 84, de 22 de Março de 1995 (GURI n._ 68 de 22.3.1995), e no Decreto-Lei n._ 402, de 26 de Setembro de 1995 (GURI n._ 226 de 27.9.1995), é ilegal, na medida em que foi introduzido em violação das regras de procedimento previstas no n._ 3 do artigo 92._ O referido regime é, além disso, incompatível com o mercado comum, nos termos do n._ 1 do artigo 92._ do Tratado, na medida em que não preenche nenhuma das condições exigidas para a aplicação das derrogações previstas nos n.os 2 e 3 do artigo 92._, nem as condições do Regulamento (CEE) n._ 1107/70.
Artigo 2._
A Itália suprimirá o auxílio a que se refere o artigo 1._, abster-se-á de adoptar novos actos legislativos e regulamentares com vista à introdução de novos auxílios sob a forma descrita no artigo 1._ e recuperará os montantes já pagos. O auxílio será reembolsado de acordo com as regras de procedimento e de aplicação da legislação italiana e será acrescido dos juros correspondentes, calculados com base na taxa de referência utilizada na avaliação dos regimes regionais de auxílio e contados a partir da data do pagamento do auxílio até à data do seu reembolso efectivo.
Artigo 3._
A Itália informará a Comissão das medidas adoptadas para o cumprimento da presente decisão num prazo de dois meses a contar da data da sua notificação.»
16 Em 10 de Janeiro de 1997, o Governo italiano interpôs o presente recurso.
17 O regime objecto do presente recurso não foi prorrogado além do exercício fiscal de 1994.
O fundamento de nulidade invocado
18 A República Italiana considera que ao adoptar a Decisão 97/270 a Comissão violou e aplicou erradamente os artigos 92._ e 93._ do Tratado. Este fundamento único subdivide-se em duas partes, uma principal e outra subsidiária.
A parte principal
19 A recorrente considera que o duplo regime de bonificação e de compensação instaurado para os exercícios fiscais de 1993 e 1994 não constitui um sistema de auxílios de Estado incompatível com o mercado comum porque não comporta qualquer atribuição - directa ou indirecta - de recursos de Estado que falseie ou ameace falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou produções e afectando as trocas. No âmbito desta parte principal, a recorrente desenvolve, essencialmente, três teses, que se podem resumir dizendo que as medidas de bonificação fiscal e de compensação que foram declaradas ilegais e incompatíveis com o mercado comum pela segunda decisão negativa:
a) não constituem um regime de auxílios de Estado;
b) não provocam, em caso algum, qualquer distorção da concorrência e
c) não deram origem a qualquer discriminação entre as empresas italianas e as empresas de outros Estados-Membros.
Analisarei, em seguida, estas três afirmações, mas procederei segundo a ordem que me parece mais clara, isto é, apreciarei em primeiro lugar a qualificação do regime de bonificação fiscal controvertido, a fim de verificar se o mesmo constitui ou não um auxílio de Estado na acepção do artigo 92._ do Tratado, e abordarei depois a compatibilidade desta medida com o mercado comum, especificando se a mesma afecta as trocas entre os Estados-Membros e se afecta a livre concorrência favorecendo um sector da indústria dos transportes em razão da sua nacionalidade.
a) A qualificação do regime de bonificação
20 Segundo o Governo italiano, as medidas que consistem em atribuir a uma determinada categoria de empresas de transporte uma bonificação calculada em função do seu consumo de combustível e de lubrificantes têm carácter puramente fiscal. Em apoio da sua tese, afirma que se podia obter o mesmo resultado reduzindo, de maneira geral, o imposto sobre os combustíveis, tendo esta solução sido recusada porque teria provocado uma diminuição inaceitável das receitas fiscais. O regime de bonificação permitiu individualizar a carga fiscal por categorias de contribuintes, reduzindo a contribuição dos que, na ausência dessa medida, se teriam encontrado numa situação claramente desfavorável relativamente aos seus concorrentes estrangeiros. Tendo em conta a grande diferença do preço do combustível em Itália e nos países limítrofes, especialmente em França, e dada a autonomia dos veículos modernos, os transportadores europeus podiam penetrar no território italiano com os depósitos cheios e efectuar trabalhos de cabotagem em condições substancialmente mais vantajosas do que as empresas italianas, se estas não tivessem podido beneficiar das medidas de bonificação. Consequentemente, o Governo italiano considera que a intervenção em causa não é um regime de auxílio financeiro, mas sim um reembolso indirecto de uma parte do imposto especial sobre os combustíveis.
21 Na verdade, estes argumentos permitem desde já rejeitar a parte principal do fundamento único do recurso do Governo italiano. O regime de bonificação cuja legalidade o referido governo procura defender no âmbito do presente processo tem manifestamente por objecto melhorar a situação de um sector da indústria nacional dos transportes na sua concorrência com os transportadores rodoviários dos outros Estados-Membros. Ora, é justamente este tipo de comportamento que a regulamentação comunitária relativa aos auxílios de Estado pretende eliminar.
Conhecendo o objectivo deste regime, é fácil explicar as suas características. Assim, se o montante da bonificação aumentava mais do que proporcionalmente em relação à dimensão do veículo beneficiário, era para favorecer os veículos de grande tonelagem, isto é, os que melhor podem competir no mercado internacional. Compreende-se também o carácter temporário do mecanismo: como a disparidade entre preços do combustível em Itália e os praticados nos países limítrofes desapareceu em 1995 - e, assim, a desvantagem relativa das empresas italianas -, o auxílio perdeu a sua razão de ser e não foi prorrogado para além do exercício fiscal de 1994 (v., supra, o n._ 17). O agente do Governo italiano confirmou manifestamente este último ponto na audiência.
Prosseguirei, no entanto, a minha apreciação da parte principal do fundamento, quanto mais não seja por razões de exaustividade.
22 Em primeiro lugar, não consigo compreender o interesse que pode ter o Governo italiano em qualificar a medida controvertida de instrumento de natureza puramente fiscal. Desde 1961 que o Tribunal de Justiça interpreta o conceito de auxílio exclusivamente em função dos seus efeitos (9): o elemento decisivo não é a forma que a intervenção assume nem, em caso algum, a sua natureza jurídica ou o fim que prossegue (10), mas o resultado a que conduz (11). Qualquer intervenção que implique um benefício económico, seja acompanhada por uma correlativa diminuição dos recursos do Estado e beneficie uma determinada empresa ou sector de produção é, em princípio, um auxílio de Estado na acepção do artigo 92._ do Tratado. Basta, pois, que estejam reunidos estes três elementos.
23 Qualquer bonificação de carácter fiscal - o que é, portanto, o caso da medida controvertida - produz indiscutivelmente um benefício em favor dos seus beneficiários e uma correlativa diminuição das receitas do Estado. Não se pode dizer que o regime em causa se aplica de maneira uniforme a toda a economia, sem favorecer certas empresas ou sectores (12). Muito pelo contrário, tem como objectivo declarado beneficiar exclusivamente os transportadores rodoviários de mercadorias por conta de outrem, ou seja, um sector de produção suficientemente individualizado. É por isso que cai, em princípio, no âmbito de aplicação do artigo 92._, n._ 1.
24 No entanto, há pelo menos três hipóteses em que, ainda que estes elementos estejam reunidos, a intervenção não é, em rigor, um auxílio de Estado. São as seguintes:
a) quando o Estado actua como um operador comercial privado (13);
b) quando o Estado cumpre obrigações de carácter civil, como a obrigação de reparar danos e prejuízos ou a obrigação de restituição do indevido (14), e
c) quando a medida excepcional se inscreve no âmbito de um regime geral - fiscal ou de segurança social, por exemplo - e é justificada pela natureza ou economia do sistema (15).
25 A Comissão procura demonstrar que a primeira hipótese não é aqui aplicável (16). Não vejo, nem mesmo vagamente, como pode o comportamento do Estado, ao conceder as bonificações em causa, ser equiparado ao de um investidor privado que opera nas condições normais de uma economia de mercado.
Também não parece imaginável que o crédito fiscal seja concedido em razão de obrigações de carácter civil pertencentes ao Estado, o que exclui a aplicação da segunda hipótese prevista.
26 Em contrapartida, parece-me que há que dar maior atenção à afirmação do Governo italiano segundo a qual o regime objecto da decisão controvertida se inscreve na lógica da sua política industrial, assemelhando-se, pelos seus efeitos, aos sistemas de tributação diferenciada da energia - em função do uso doméstico ou industrial que dela é feito - que existem em diversos Estados-Membros. Se esta afirmação fosse correcta, as consequências desfavoráveis deste regime para a concorrência na Comunidade só podiam ser resolvidas através da aproximação das legislações prevista no artigo 100._ e seguintes do Tratado.
27 Reconheço que a linha de demarcação entre as medidas que podem constituir subvenções públicas, por um lado, e as que caem no âmbito do sistema fiscal de um Estado, por outro, pode ser, por vezes, difícil de traçar. Qualquer sistema de bonificação fiscal tem por efeito a isenção de um conjunto ou categoria de sujeitos passivos do sistema fiscal geralmente aplicável. Estas isenções (17) inspiram-se frequentemente em objectivos distintos do que cabe considerar como exigências fiscais primárias (18). Prosseguem-se assim fins de carácter social, de fomento industrial ou regional, ou outros semelhantes. Do ponto de vista da sua função, assemelham-se assim aos auxílios directos concedidos pelos Estados que, para efeitos do artigo 92._ do Tratado, devem, em princípio, ser tratados como tais. Em semelhante hipótese, é ao Estado que as institui que incumbe demonstrar que, pelo contrário, são de considerar «medidas de carácter geral», e que, enquanto tais, não caem no âmbito de aplicação deste artigo 92._ Para o efeito, o Estado deve estabelecer a que lógica interna do sistema obedecem as referidas medidas, lógica que, evidentemente, deve ser alheia a qualquer intenção de melhorar as condições de um sector relativamente aos seus concorrentes estrangeiros. É, no entanto, essa a única justificação da regulamentação em causa. Trata-se pura e simplesmente de conceder um auxílio financeiro que permita reduzir a desvantagem relativa que as empresas de transportes italianas sofrem devido ao custo elevado do combustível e dos lubrificantes em Itália. Ou seja, trata-se de melhorar a competitividade das empresas italianas. Essa é a única razão de «política industrial» susceptível de ser invocada.
28 Nestas circunstâncias, cabe concluir que o regime condenado pela decisão constitui indiscutivelmente um auxílio de Estado na acepção do artigo 92._ do Tratado.
b) A compatibilidade da medida com o mercado comum
29 Embora a função do regime de bonificação me permita distingui-lo, sem grande dificuldade, das medidas adoptadas por um Estado-Membro no quadro geral do seu sistema fiscal, devo agora examinar os efeitos que o referido regime produz, para analisar a sua eventual compatibilidade com o mercado comum. A este propósito, o artigo 92._ proíbe qualquer forma de auxílio de Estado que reúna as duas condições seguintes: falseie ou ameace falsear a concorrência e afecte as trocas comerciais entre os Estados-Membros.
30 Segundo os dados que os Estados-Membros facultaram à Comissão - retomados no décimo oitavo considerando da parte IV da decisão impugnada -, em 1992 cerca de 16% da actividade dos transportadores rodoviários por conta de outrem italianos corresponde ao transporte internacional. Entre 1990 e 1993, 14% da cabotagem rodoviária comunitária foi efectuada em Itália. Se se considerar o impacte suplementar que teve a liberalização progressiva dos transportes rodoviários de mercadorias desde Janeiro de 1993 (19), não há qualquer dúvida de que o auxílio afecta as trocas intracomunitárias, facto que o governo recorrente, aliás, não contesta. Preenchida a segunda das condições antes referida, resta apenas verificar se o regime controvertido afecta, actual ou potencialmente, a livre concorrência.
31 Na sua decisão, a Comissão afirma que o regime de auxílios às empresas italianas de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem provoca uma distorção da concorrência tanto no que respeita aos transportadores comunitários não italianos como relativamente aos transportadores italianos por conta própria. Na sua contestação, a Comissão refere igualmente que o limite máximo de cem veículos por empresa, introduzido para o segundo semestre do exercício fiscal de 1994, para o acesso às bonificações, falseava igualmente a concorrência entre grandes e pequenas empresas de transportes.
Examinarei agora cada uma das três hipóteses, terminando com uma apreciação global.
- A distorção da concorrência face às empresas comunitárias não italianas
32 O governo recorrente sustenta que as empresas de transportes comunitárias em situação análoga à das empresas italianas beneficiárias das medidas em causa podiam beneficiar do regime de compensação estabelecido pelo decreto-lei de 26 de Janeiro de 1993 (20), por força de cujo artigo 14._, n._ 4, as primeiras podiam pedir um auxílio ao consumo de gasóleo para os trajectos efectuados em território italiano, sendo o seu montante e as condições da sua atribuição estabelecidos em regulamentação de execução a adoptar. Esta nunca foi adoptada, não tendo sido, pois, atribuída qualquer compensação a este título.
O Governo italiano explica, por um lado, que a notificação da decisão impugnada paralisou o processo de adopção da regulamentação de execução e, por outro, que a falta desta não impedia os transportadores comunitários de apresentarem os pedidos previstos pelo artigo 14._ do decreto-lei. O facto de não ter sido apresentado nenhum pedido explica-se pela falta de interesse económico dos transportadores não italianos, que preferiram o expediente mais cómodo de entrar no território italiano com os depósitos cheios de combustível.
33 Estes argumentos não me parecem pertinentes e considero-os mesmo altamente capciosos. Quanto ao primeiro, observo, como a Comissão, que o Governo italiano teria podido mostrar a mesma diligência quanto ao regime de bonificação, já desde a sua primeira versão, declarada pela Comissão contrária ao Tratado em 1993. Por que razão o Governo italiano não suspendeu então o crédito fiscal, tendo-o feito quanto ao regime de compensação? Quanto ao segundo argumento, face ao teor do artigo 14._, teria sido surpreendente que, na ausência de toda e qualquer regulamentação de execução e, portanto, de qualquer indicação concreta quanto ao montante e às regras de atribuição da compensação (21), uma empresa tivesse efectivamente apresentado tal pedido.
34 O Governo italiano considera que, longe de provocar uma distorção da concorrência, o regime controvertido colocava as empresas nacionais em situação de igualdade com os seus concorrentes comunitários ao reduzir carga fiscal mais pesada que as onerava. Responderei a este argumento, parafraseando o acórdão de 2 de Julho de 1974 (Itália/Comissão, já referido na nota 2), no sentido de que se deve necessariamente partir da situação de concorrência existente no mercado comum antes da adopção da medida controvertida. Esta situação é o resultado de numerosos elementos que têm incidência diferente sobre os custos de produção em cada um dos Estados-Membros. A modificação unilateral de um destes elementos num sector económico de um determinado Estado-Membro é susceptível de perturbar o equilíbrio existente.
35 É portanto pacífico que, durante os exercícios fiscais de 1993 e 1994, um determinado sector dos transportes italianos beneficiou de um auxílio económico de que os concorrentes comunitários não italianos foram excluídos, o que, em meu entender, constitui uma violação do artigo 7._ do Tratado. Isto, por si só, bastaria para demonstrar que a decisão adoptada é conforme ao n._ 2 do artigo 93._, do Tratado, o que bastaria para negar provimento ao presente recurso (v., supra, n._ 21). Não deixarei de prosseguir a minha análise, uma vez mais, apenas para que as coisas sejam claras.
- A distorção da concorrência face às empresas de transportes por conta própria
36 O Governo italiano não contesta a realidade desta distorção, limitando-se a argumentar que a desvantagem económica que os operadores que actuam por conta própria sofrem por não terem acesso ao regime de bonificação teria apenas uma incidência marginal nos seus custos de produção.
37 Esta argumentação parece-me desprovida de fundamento e, de qualquer modo, não é pertinente. Se - como antes o Governo italiano afirmava - o regime de auxílios às empresas de transportes por conta própria servia para as colocar em pé de igualdade com as suas concorrentes comunitárias, o próprio governo não pode negar ao mesmo tempo a incidência deste regime sobre a possibilidade que as empresas têm de efectuar os transportes com o seu próprio material circulante ou utilizando os serviços dos transportadores. De qualquer modo, o que é decisivo não é o montante da bonificação (22). Importa é que o regime de bonificação tornava o transporte por conta de outrem relativamente mais atractivo do que o transporte por conta própria, o que é incompatível com os princípios da livre concorrência.
- A distorção da concorrência face às empresas com mais de cem veículos
38 Segundo o Governo italiano, as grandes empresas de transportes suportam melhor a sua exclusão do regime de auxílios, na medida em que as economias de escala que realizam servem para amortizar o prejuízo económico resultante dessa exclusão.
39 Limitar-me-ei a recordar que o impacte da bonificação não é um critério decisivo. Quanto ao resto, é especialmente contrário aos objectivos da livre concorrência suprimir ou reduzir, por meio de auxílios públicos, as vantagens económicas obtidas graças a uma organização adequada dos meios de produção.
- Apreciação
40 Compreende-se a preocupação do Governo italiano face à grande disparidade das taxas do imposto sobre os combustíveis nos diversos Estados-Membros. Dadas as características técnicas dos transportes rodoviários modernos, não é de excluir que - como o próprio governo afirma - esta disparidade dê lugar a distorções da concorrência que devem ser eliminadas. Porém, o meio adequado para corrigir essas distorções é a aproximação das legislações, prevista pelos artigos 100._ e seguintes do Tratado, e não o estabelecimento unilateral de auxílios de Estado que, além de serem discriminatórios, falseiam as condições da concorrência na Comunidade.
A parte subsidiária
41 A título subsidiário, na sua petição, o Governo italiano solicita ao Tribunal de Justiça a anulação do disposto na decisão de 22 de Outubro de 1996, pela qual lhe era imposta a obrigação de recuperar os montantes atribuídos em conformidade com o regime de auxílios que foi declarado ilegal e incompatível com o mercado comum (v., supra, n._ 15). O governo alega a absoluta impossibilidade de recuperar as bonificações autorizadas com base nas dificuldades técnicas e no mal-estar social que qualquer tentativa de recuperação provocaria.
42 Entretanto, o Tribunal de Justiça, em 29 de Janeiro de 1998, pronunciou-se no âmbito do processo Comissão/Itália (v. n._ 12, supra) no qual era precisamente solicitado que se declarasse que a República Italiana não cumprira a obrigação que lhe incumbia de recuperar os auxílios concedidos nos termos do regime estabelecido em 1992. Como já disse, o regime de bonificação objecto do presente recurso é uma prorrogação do regime instituído em 1992, ao qual se acrescentou um regime de compensação, nunca aplicado, em favor dos transportadores comunitários não italianos. A introdução deste regime de compensação não afecta, em caso algum, a obrigação de recuperar as bonificações. A impossibilidade absoluta que o Governo italiano invoca, a título subsidiário, já fora invocada antes como excepção, mas o Tribunal de Justiça não a acolheu. Cabe, por isso, retomar o raciocínio adoptado no referido acórdão e rejeitar o fundamento assente na impossibilidade absoluta. O Governo italiano parece, aliás, tê-lo compreendido ao não invocar este fundamento subsidiário na audiência.
Despesas
43 Se, como proponho, o Tribunal de Justiça negar provimento ao recurso na sua globalidade, deve, em conformidade com o artigo 69._, n._ 2, do Regulamento de Processo, condenar a República Italiana nas despesas.
Conclusão
44 Pelos motivos expostos, proponho que o Tribunal de Justiça:
«- negue provimento ao presente recurso, no qual a República Italiana solicitou a anulação da Decisão 97/270/CE da Comissão, de 22 de Outubro de 1996, relativa ao regime de crédito fiscal instituído pela Itália no sector do transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem (C 45/95 ex NN 48/95), e
- condene a República Italiana nas despesas».
(1) - GURI n._ 25, de 31 de Janeiro de 1992.
(2) - Decisão relativa ao auxílio estatal C 32/92 (ex NN 67/92) - Itália (crédito fiscal aos transportadores rodoviários profissionais de mercadorias) (JO L 233, p. 10).
(3) - Regulamento do Conselho, de 4 de Julho de 1970, relativo aos auxílios concedidos no domínio dos transportes ferroviários, rodoviários e por via navegável (JO L 130, p. 1; EE 08 F1 p. 164), diversas vezes alterado. Este diploma permitia que, sob certas condições, se atribuíssem, a título excepcional e temporário, auxílios que tinham por objecto a reabsorção, no âmbito de um plano de saneamento, dos excedentes de capacidade que provocavam graves dificuldades estruturais.
(4) - Último período do décimo sexto considerando e início do décimo sétimo considerando da parte III.
(5) - Decreto-Lei n._ 82, de 29 de Março de 1993 (GURI n._ 134, de 10 de Junho de 1993), alterado e ratificado pela Lei n._ 162, de 27 de Maio de 1993 (GURI n._ 123, de 28 de Maio de 1993), e Decreto-Lei n._ 309, de 23 de Maio de 1994 (GURI n._ 119, de 24 de Maio de 1994), alterado e ratificado pela Lei n._ 459, de 22 de Julho de 1994 (GURI n._ 171, de 23 de Julho de 1994).
(6) - Decreto-Lei n._ 642, de 22 de Novembro de 1994 (GURI n._ 273, de 22 de Novembro de 1994), prorrogado pelo Decreto-Lei n._ 21, de 21 de Janeiro de 1995 (GURI n._ 17, de 21 de Janeiro de 1995), ratificado pela Lei n._ 84, de 22 de Março de 1995 (GURI n._ 68, de 22 de Março de 1995), e Decreto-Lei n._ 92, de 29 de Março de 1995 (GURI n._ 75, de 30 de Março de 1995), diversas vezes prorrogado, modificado e ratificado pela Lei n._ 11, de 5 de Janeiro de 1996 (GURI n._ 9, de 12 de Janeiro de 1996).
(7) - Acórdão Comissão/Itália (C-280/95, Colect., p. I-259).
(8) - Decisão relativa ao regime de crédito fiscal instituído pela Itália no sector do transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem (C 45/95 ex NN 48/95) (JO 1997, L 106, p. 22).
(9) - «Intervenções que, sob formas diversas, atenuam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa», acórdão de 23 de Fevereiro de 1961, De gezamenlijke Steenkolenmijnen in Limburg/Alta Autoridade da CECA (30/59, Colect. 1954-1961, p. 551, p. 560).
(10) - A menos que, como acontece no caso em apreço, este fim seja diametralmente oposto à ratio legis das disposições do Tratado.
(11) - «O artigo 92._ não distingue as intervenções em causa de acordo com as suas causas ou os seus objectivos, mas define-as em função dos seus efeitos», acórdão de 2 de Julho de 1974, Itália/Comissão (173/73, Colect., p. 357, n._ 27).
(12) - V. a definição do conceito de medidas gerais, proposta no Second Survey on State Aids in the EC in the manufacturing and certain other sectors, Comissão das Comunidades Europeias, Luxemburgo, 1991, pp. 4 e 5.
(13) - Este critério baseia-se nas possibilidades que a empresa beneficiária tem de obter as somas em causa no mercado de capitais ; v. acórdão de 14 de Fevereiro de 1990, França/Comissão (C-301/87, Colect., p. I-307, n._ 39).
(14) - V. acórdão de 27 de Março de 1980, Denkavit italiana (61/79, Recueil, p. 1205, n._ 31).
(15) - Acórdão Itália/Comissão, já referido na nota 11, n._ 33.
(16) - V. quarto considerando da parte IV da Decisão 97/270.
(17) - Decisiva não é a denominação formal da medida (isenção, redução, bonificação, dedução, isenção, crédito ou outra), mas antes o seu carácter de disposição fiscal que cria uma situação excepcional em benefício de um ou de vários sujeitos passivos.
(18) - Só então estas isenções são verdadeiras «bonificações»; as diversas deduções previstas no quadro dos diferentes mecanismos de tributação e que obedecem ao mesmo princípio contributivo destas, tecnicamente falando, não são bonificações, mas regras fiscais objectivas ao mesmo título que, por exemplo, as disposições que regem o cálculo da matéria colectável (a este respeito, v. Lang, J.: Systematisierung der Steuervergunstigungen, 1974, pp. 73 e segs., citado por Frick, Karl A.: Einkommensteuerliche Steuervergungstigungen und Beihilfeverbot nach dem EG-Vertrag, 1994, p. 28). Assim, as deduções por filho a cargo efectuadas no âmbito do imposto sobre o rendimento não são bonificações propriamente ditas dado que se inspiram no mesmo princípio de capacidade contributiva que o próprio imposto.
(19) - Liberalização resultante do Regulamento (CEE) n._ 881/92 do Conselho, de 26 de Março de 1992, relativo ao acesso ao mercado dos transportes rodoviários de mercadorias na Comunidade efectuados a partir do ou com destino ao território de um Estado-Membro ou que atravessem o território de um ou vários Estados-Membros (JO L 95, p. 1), e do Regulamento (CEE) n._ 3118/93 do Conselho, de 25 de Outubro de 1993, que fixa as condições de admissão de transportadores não residentes aos transportes nacionais rodoviários de mercadorias num Estado-Membro (JO L 279, p. 1).
(20) - GURI n._ 21, de 27 de Janeiro de 1993.
(21) - Na audiência, o agente do Governo italiano sugeriu que os referidos pedidos podiam ter sido apresentados para efeitos de protesto.
(22) - Segundo os dados fornecidos pela Comissão, a medida representou, durante os três exercícios em que esteve em vigor, entre 9,7% e 24,3% do custo efectivo do combustível e dos lubrificantes que um transportador rodoviário devia suportar. Estas percentagens não são negligenciáveis se se considerar a grande importância destes custos nas contas de exploração de uma empresa de transportes.