61996J0351

Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 19 de Maio de 1998. - Drouot assurances SA contra Consolidated metallurgical industries (CMI industrial sites), Protea assurance e Groupement d'intérêt économique (GIE) Réunion européenne. - Pedido de decisão prejudicial: Cour de cassation - França. - Convenção de Bruxelas - Interpretação do artigo 21. - Lis alibi pendens - Conceito de "mesmas partes" - Empresa seguradora e segurado. - Processo C-351/96.

Colectânea da Jurisprudência 1998 página I-03075


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões - Litispendência - Acções entre as «mesmas partes» - Conceito - Equiparação da seguradora ao seu segurado - Condição - Litígios que incidem sobre a obrigação do proprietário da carga dum barco de contribuir para as avarias comuns resultantes do naufrágio do barco

(Convenção de 27 de Setembro de 1968, artigo 21._)

Sumário


Para efeitos de aplicação do conceito de «mesmas partes» que figura no artigo 21._ da convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, uma seguradora e o seu segurado devem ser considerados como uma única e mesma parte quando os seus interesses são a tal ponto idênticos que uma decisão proferida contra um tenha força de caso julgado em relação ao outro. Em contrapartida, a aplicação do referido artigo não poderá ter como consequência privar a seguradora e o seu segurado, no caso de os seus interesses serem divergentes, da possibilidade de fazerem valer em justiça, relativamente a outras partes interessadas, os seus interesses respectivos.

Assim, o artigo 21._ da convenção não é aplicável no caso de duas acções em que se pede a contribuição para as avarias comuns, uma opondo a seguradora do casco de um barco que naufragou ao proprietário da carga que se encontra a bordo no momento do naufrágio e à sua seguradora, e outra opondo estes dois últimos ao proprietário do barco e ao seu fretador, a menos que se prove que, relativamente ao objecto dos dois litígios, os interesses da seguradora do casco do barco, por um lado, e os dos seus segurados, o proprietário e fretador do mesmo barco, por outro, são idênticos e indissociáveis.

Partes


No processo C-351/96,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pela Cour de cassation francesa, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Drouot assurances SA

e

Consolidated metallurgical industries (CMI industrial sites),

Protea assurance,

Groupement d'intérêt économique (GIE) Réunion européenne,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 21._ da convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida (JO 1972, L 299, p. 32; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 24), com a redacção que lhe foi dada pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e - texto modificado - p. 77; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41) e pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(Quinta Secção),

composto por: C. Gulmann, presidente de secção, M. Wathelet, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward (relator) e L. Sevón, juízes,

advogado-geral: N. Fennelly,

secretário: L. Hewlett, administradora,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação da Drouot assurances SA, por Vincent Delaporte, advogado no foro de Paris,

- em representação do Groupement d'intérêt économique (GIE) Réunion européenne, por Didier Le Prado, advogado no foro de Paris,

- em representação do Governo francês, por Catherine de Salins, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Jean-Marc Belorgey, encarregado de missão na mesma direcção, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo alemão, por Jörg Pirrung, Ministerialrat no Ministério Federal da Justiça, na qualidade de agente,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Xavier Lewis, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Drouot assurances SA, representada pelo advogado Vincent Delaporte, da Consolidated metallurgical industries (CMI industrial sites) e da Protea assurance, representadas por Jean-Christophe Balat, advogado no foro de Paris, do Governo francês, representado por Jean-Marc Belorgey, e da Comissão representada por Xavier Lewis, na audiência de 13 de Novembro de 1997,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 15 de Janeiro de 1998,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por acórdão de 8 de Outubro de 1996, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de Outubro seguinte, a Cour de cassation francesa submeteu, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, uma questão prejudicial relativa à interpretação do artigo 21._ da convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida (JO 1972, L 299, p. 32; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 24), com a redacção que lhe foi dada pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e - texto modificado - p. 77; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41) e pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; versão portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54, a seguir «convenção»).

2 Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio que opõe a Drouot assurances (a seguir «Drouot»), sociedade de direito francês, à Consolidated metallurgical industries (CMI industrial sites, a seguir «CMI») e à Protea assurance (a seguir «Protea»), sociedades de direito sul-africano, assim como ao groupement d'intérêt économique (GIE) Réunion européenne (a seguir «GIE Réunion») relativamente às despesas de reflutuação do barco denominado «Sequana» que naufragou nas águas interiores dos Países Baixos em 4 de Agosto de 1989.

3 O artigo 21._ da convenção dispõe:

«Quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir penderem entre as mesmas partes perante órgãos juridicionais de distintos Estados contratantes, o órgão jurisdicional demandado em segundo lugar deve, mesmo oficiosamente, declarar-se não competente em favor do tribunal primeiramente demandado.

O órgão jurisdiciconal que deveria declarar-se não competente pode sobrestar na decisão se for suscitada a incompetência do outro órgão jurisdicional.»

4 Durante o ano de 1989, a CMI encarregou o Sr. Velghe de transportar a bordo do Sequana um carregamento de ferrocrómio que lhe pertencia do porto neerlandês de Roterdão para o porto francês de Garlinghem-Aire-la-Lys, situado no Reno. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, na altura dos factos objecto do litígio, o Sequana pertencia ao Sr. Walbrecq e era fretado pelo Sr. Velghe.

5 Contudo, na audiência, o Tribunal de Justiça foi informado que, segundo a CMI e a Protea, na sequência do falecimento do Sr. Walbrecq em 1981, o Sr. Velghe passou a ser proprietário do Sequana e que, na altura dos factos objecto do litígio, o barco estava fretado por uma outra sociedade. A Drouot esclareceu que não disponha de qualquer informação sobre estas questões, mas explicou que, segundo os usos no Reno, o capitão é o mandatário legal do proprietário e garante a navegabilidade do barco. Finalmente, segundo a CMI, a Protea e a Drouot, o Sr. Velghe era o capitão do Sequana na época dos factos controvertidos.

6 Em 4 de Agosto de 1989, o Sequana naufragou nas águas interiores dos Países Baixos. A Drouot, seguradora do casco do barco, pô-lo a flutuar a expensas suas, permitindo assim o salvamento da carga da CMI.

7 Em 11 e 13 de Dezembro de 1990, a Drouot accionou, no tribunal de commerce de Paris, a CMI, a Protea, seguradora da carga, e o GIE Réunion, mandatário da Protea quando da peritagem das despesas de salvamento, pedindo o pagamento da soma de 99 485,53 HFL fixada pelo repartidor como montante da contribuição da CMI e da Protea para as avarias comuns.

8 No órgão jurisdicional francês, a CMI e a Protea suscitaram todavia uma excepção de litispendência com base numa acção que tinham proposto, em 30 de Agosto de 1980, contra os Srs. Walbrecq e Velghe no Arrondissementsrechtbank te Rotterdam com vista, nomeadamente, a obter a declaração de que não estavam obrigadas a contribuir para as avarias comuns.

9 Em 11 de Março de 1992, o tribunal de commerce de Paris julgou improcedente a excepção de litispendência com o fundamento em que, como a Drouot não era parte na acção neerlandesa e os Srs. Walbrecq e Velghe não eram partes na acção francesa, as partes nas duas acções não eram as mesmas. Além disso, este tribunal considerou que os pedidos nas duas acções não tinham o mesmo objecto.

10 A CMI a Protea e GIE Réunion recorreram então para a cour d'appel de Paris. Neste órgão jurisdicional, a CMI e a Protea sustentaram que a única razão pela qual a Drouot não era parte na acção neerlandesa era o facto de as regras processuais do Reino dos Países Baixos não permitirem a intervenção das seguradoras. Alegaram, além disso, que, uma vez que o objecto do litígio no órgão jurisdicional neerlandês englobava o do litígio pendente no órgão jurisdicional francês, os dois litígios tinham o mesmo objecto.

11 Em acórdão de 29 de Abril de 1994, a cour d'appel de Paris declarou, em primeiro lugar, que não era contestado que as regras processuais neerlandesas restringem a possibilidade de uma seguradora intervir numa acção em que é parte o seu segurado. Considerou depois que a Drouot intervinha de facto na acção neerlandesa «por interposto segurado». Decidiu finalmente que, à luz dos fundamentos apresentados pela CMI e pela Protea, os dois litígios tinham o mesmo objecto. Em consequência, julgou procedente a excepção de litispendência.

12 Nestas condições, a Drouot recorreu deste acórdão para a Cour de cassation, alegando que os dois litígios não opõem as mesmas partes.

13 Considerando que o recurso que lhe foi submetido suscita uma dificuldade de interpretação do artigo 21._ da convenção, a Cour de cassation decidiu suspender a instância para perguntar ao Tribunal de Justiça:

«nomeadamente face ao conceito autónomo de `mesmas partes' utilizado pelo artigo 21._ da convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, se existe uma situação de litispendência internacional, na acepção desse diploma, quando o tribunal de um Estado contratante a que foi submetida uma acção, proposta pelo segurador do navio que naufragou, destinada a obter do proprietário e do segurador da carga que se encontrava a bordo o reembolso parcial, a título de contribuição para as avarias comuns, das despesas de pôr o navio de novo a flutuar, quando outra acção foi proposta anteriormente num tribunal de outro Estado contratante, por esse proprietário e segurador, contra o proprietário e o fretador do navio, destinada a que fosse declarado que não deviam contribuir para a avaria comum, uma vez que o tribunal demandado em segundo lugar, para se declarar incompetente apesar da falta de identidade formal das partes nas duas instâncias, salienta que a lei processual aplicável pelo órgão jurisdicional demandado em primeiro lugar `restringe a possibilidade de um segurador estar presente no processo em que está implicado o seu segurado' e que daí resultaria que o segurador do navio estaria de facto igualmente presente através de interposto(s) segurado(s) na acção proposta em primeiro lugar».

14 Com esta questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta essencialmente se o artigo 21._ da convenção é aplicável no caso de duas acções em que é pedida a contribuição para as avarias comuns, uma opondo a seguradora do casco de um barco que naufragou ao proprietário da carga que se encontrava a bordo no momento do naufrágio e a sua seguradora, e a outra opondo estas duas últimas ao proprietário do barco e ao seu fretador.

15 Dado que as partes nas duas acções não se apresentam como sendo as mesmas, importa examinar se, num caso como o do processo principal, a seguradora do casco do barco deve ser equiparada ao seu segurado para efeitos da aplicação do conceito de «mesmas partes» que figura no artigo 21._ da convenção.

16 Segundo jurisprudência constante, os conceitos utilizados no artigo 21._ da convenção para determinar uma situação de litispendência devem ser considerados autónomos (acórdão de 6 de Dezembro de 1994, Tatry, C-406/92, Colect. p. I-5439, n._ 30).

17 No acórdão Tatry, já referido, n._ 32, o Tribunal de Justiça sublinhou além disso que o artigo 21._ da convenção faz parte, juntamente com o artigo 22._ relativo à conexão, da secção 8 do título II da convenção, secção que visa, no interesse de uma boa administração da justiça na Comunidade, evitar que em tribunais de diversos Estados contratantes estejam pendentes processos paralelos, bem como a disparidade de decisões que daí possa advir. Assim, esta regulamentação visa excluir à partida, na medida do possível, uma situação como a contemplada no n._ 3 do artigo 27._, ou seja, o não reconhecimento de uma decisão com fundamento na sua incompatibilidade com uma decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado requerido.

18 No mesmo acórdão, n._ 33, o Tribunal de Justiça considerou que face à letra do artigo 21._ da convenção e ao objectivo acima referido, este artigo deve ser interpretado no sentido de que exige, como condição da obrigação para o segundo foro demandado de se declarar incompetente, que as partes nos dois processos sejam idênticas.

19 É sem dúvida verdade que, relativamente ao objecto de dois litígios, os interesses de uma seguradora e do seu segurado podem ser a tal ponto idênticos que uma decisão proferida contra um tenha força de caso julgado em relação ao outro. Tal será normalmente o caso quando uma seguradora, em virtude do seu direito de sub-rogação, propõe ou contesta uma acção em nome do seu segurado sem que este último tenha possibilidade de influir sobre o desenvolvimento do processo. Em tal situação, a seguradora e o segurado devem ser considerados como uma única e mesma parte para efeitos de aplicação do artigo 21._ da convenção.

20 Em contrapartida, a aplicação do artigo 21._ da convenção não poderá ter como consequência privar a seguradora e o seu segurado, no caso de os seus interesses serem divergentes, da possibilidade de fazerem valer em justiça, relativamente a outras partes interessadas, os seus interesses respectivos.

21 No caso em apreço, a CMI e a Protea esclareceram na audiência que, no litígio neerlandês, pretendem que o Sr. Velghe seja reconhecido inteiramente responsável do naufrágio do Sequana. Dado que apenas é seguradora do casco do barco, a Drouot considera todavia que não poderá ser responsabilizada pelo facto ilícito imputado aos seus segurados. A Drouot não tem portanto qualquer interesse no litígio neerlandês.

22 Além disso, verifica-se que, na acção francesa, a Drouot agiu não na qualidade de representante dos seus segurados mas na qualidade de participante directo na reflutuação do Sequana.

23 No caso em apreço, não parece, portanto, que os interesses da seguradora do casco do barco, por um lado, e os dos seus segurados, o proprietário e o fretador do mesmo barco, por outro lado, possam ser considerados idênticos e indissociáveis. Compete, todavia, ao órgão jurisdicional nacional verificar se é esse efectivamente o caso.

24 Nestas condições, a existência eventual duma regra processual nacional como a mencionada na questão prejudicial não tem pertinência para a resolução do litígio.

25 Deve, pois, responder-se à questão colocada que o artigo 21._ da convenção não é aplicável no caso de duas acções em que se pede a contribuição para as avarias comuns, uma opondo a seguradora do casco de um barco que naufragou ao proprietário da carga que se encontra a bordo no momento do naufrágio e à sua seguradora, e outra opondo estes dois últimos ao proprietário do barco e ao seu fretador, a menos que se prove que, relativamente ao objecto dos dois litígios, os interesses da seguradora do casco do barco, por um lado, e os dos seus segurados, o proprietário e fretador do mesmo barco, por outro, são idênticos e indissociáveis.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

26 As despesas efectuadas pelos Governos francês e alemão, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(Quinta Secção),

pronunciando-se sobre a questão que lhe foi submetida pela Cour de cassation francesa, por acórdão de 8 de Outubro de 1996, declara:

O artigo 21._ da convenção de 27 de Dezembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, na redacção que lhe foi dada pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido e da Irlanda do Norte e pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, não é aplicável no caso de duas acções em que se pede a contribuição para as avarias comuns, uma opondo a seguradora do casco de um barco que naufragou ao proprietário da carga que se encontra a bordo no momento do naufrágio e à sua seguradora, e outra opondo estes dois últimos ao proprietário do barco e ao seu fretador, a menos que se prove que, relativamente ao objecto dos dois litígios, os interesses da seguradora do casco do barco, por um lado, e os dos seus segurados, o proprietário e fretador do mesmo barco, por outro, são idênticos e indissociáveis.