61996C0085

Conclusões do advogado-geral La Pergola apresentadas em 1 de Julho de 1997. - María Martínez Sala contra Freistaat Bayern. - Pedido de decisão prejudicial: Bayerisches Landessozialgericht - Alemanha. - Artigos 8.-A, 48. e 51. do Tratado CE - Conceito de 'trabalhador' - Artigo 4., do Regulamento (CEE) n. 1408/71 - Subsídio para criação dos filhos - Conceito de 'prestação familiar' - Artigo 7., n. 2, do Regulamento (CEE) n. 1612/68 - Conceito de 'vantagem social' - Exigência de posse de um cartão ou de um título de residência. - Processo C-85/96.

Colectânea da Jurisprudência 1998 página I-02691


Conclusões do Advogado-Geral


I - Introdução

1 No presente litígio, o Tribunal de Justiça é chamado, em primeiro lugar, a definir o conceito de trabalhador na acepção do direito comunitário, quer na perspectiva da livre circulação quer na perspectiva da segurança social. Pede-se, além disso, que determine se o subsídio para criação dos filhos previsto na legislação alemã constitui uma prestação familiar na acepção do Regulamento (CEE) n._ 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 F1 p. 98), ou uma vantagem social na acepção do Regulamento (CEE) n._ 1612/68. Coloca-se ainda a questão de saber se a legislação nacional que sujeita a concessão desse subsídio à posse de um título de residência, mesmo quando o interessado é cidadão de outro Estado-Membro e tem autorização para residir na Alemanha, é conforme com o direito comunitário.

II - Matéria de facto

2 María Martínez Sala, de nacionalidade espanhola, recorrente no processo principal, reside desde os 12 anos (com excepção do período compreendido entre Junho de 1972 e Agosto de 1974) na República Federal da Alemanha. Entre 1976 e 1986 exerceu, com várias interrupções, e posteriormente de 12 de Setembro a 24 de Outubro de 1989, uma actividade assalariada nesse país. A partir desta última data, beneficiou de uma ajuda social prestada pela cidade de Nuremberga e pelo Landratsamt Nürnberger Land.

3 Além disso, até 19 de Maio de 1984, foram-lhe concedidos títulos de residência sem interrupções relevantes. A partir dessa data, recebeu apenas documentos comprovativos do pedido de prorrogação do seu título de residência. Em 19 de Abril de 1994, as autoridades competentes concederam-lhe novamente um título de residência válido por um ano, posteriormente renovado pelo mesmo período.

4 Em 9 de Janeiro de 1993, M. Martínez Sala teve uma segunda filha, Jessica, para a qual pediu, nesse mesmo mês, o subsídio para criação dos filhos, em aplicação da lei alemã sobre a matéria (BErzGG). Em 21 de Janeiro de 1993, o serviço competente do estado da Baviera indeferiram o seu pedido, com o fundamento de que a recorrente não tinha a nacionalidade alemã nem possuía um título ou outra autorização de residência concedida por razões sanitárias ou políticas. O juiz de reenvio referiu, a este propósito, que a recorrente não podia ser expulsa do território alemão em virtude da Convenção Europeia de Assistência Social e Médica, de 11 de Dezembro de 1953 (artigos 1._ e 7._).

5 A recorrente reclamou da decisão que indeferiu o seu pedido, mas a reclamação foi igualmente indeferida pela administração recorrida, em 23 de Junho de 1993. M. Martínez Sala recorreu desta decisão para o Sozialgericht Nürnberg. Também este recurso foi julgado improcedente, com o mesmo fundamento de falta de título de residência. Segundo este órgão jurisdicional, as disposições comunitárias aplicáveis no caso vertente em nada alteram esta conclusão. A interessada recorreu da decisão da primeira instância para o Landessozialgericht da Baviera.

6 Este último, tendo em conta as questões de direito comunitário que o litígio suscitava, decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Uma cidadã espanhola residente na Alemanha que, com diversas interrupções, exerceu um trabalho assalariado até 1986 e, seguidamente, abstraindo de uma curta ocupação em 1989, recebeu auxílio social nos termos da Bundessozialhilfegesetz (lei federal sobre o auxílio social), ainda era, em 1993, trabalhadora na acepção do artigo 7._ do Regulamento (CEE) n._ 1612/68 ou trabalhadora assalariada na acepção do artigo 2._, em conjugação com o artigo 1._, do Regulamento (CEE) n._ 1408/71?

2) O subsídio para criação dos filhos previsto na lei sobre a concessão do subsídio e da licença para criação de filhos (BErzGG) constitui uma prestação familiar na acepção do n._ 1, alínea h), do artigo 4._ do Regulamento n._ 1408/71, à qual têm direito nacionais espanhóis residentes na República Federal da Alemanha nas mesmas condições que os nacionais alemães, nos termos do n._ 1 do artigo 3._ do mesmo regulamento?

3) O subsídio para criação de filhos atribuído nos termos da BErzGG constitui uma vantagem social, na acepção do n._ 2 do artigo 7._ do Regulamento n._ 1612/68?

4) É compatível com o direito da União Europeia o facto de a BErzGG exigir, para a concessão do subsídio para criação de filhos a nacionais de outros Estados-Membros, a posse de um cartão de residência em boa e devida forma, ainda que aqueles se encontrem autorizados a residir na Alemanha?»

III - As normas comunitárias relevantes

7 Nos termos do artigo 1._, alínea a), i), do Regulamento n._ 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, na versão do Regulamento (CEE) n._ 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983 (1), o termo «trabalhador» designa, para efeitos da aplicação do regulamento:

«qualquer pessoa que estiver abrangida por um seguro obrigatório ou facultativo continuado contra uma ou mais eventualidades correspondentes aos ramos de um regime de segurança social aplicável aos trabalhadores assalariados ou não assalariados».

Nos termos do artigo 1._, alínea u), i), deste regulamento, a expressão «prestações familiares» designa:

«quaisquer prestações em espécie ou pecuniárias destinadas a compensar os encargos familiares no âmbito de uma das legislações previstas no n._ 1, alínea h), do artigo 4._, excluindo os subsídios especiais de nascimento mencionados no Anexo II».

O artigo 2._ do regulamento aplica-se:

«aos trabalhadores assalariados ou não assalariados que estão ou estiveram sujeitos à legislação de um ou mais Estados-Membros...»

Nos termos do n._ 1 do artigo 3._,

«As pessoas que residem no território de um dos Estados-Membros e às quais se aplicam as disposições do presente regulamento estão sujeitas às obrigações e beneficiam da legislação de qualquer Estado-Membro nas mesmas condições que os nacionais deste Estado, sem prejuízo das disposições especiais constantes do presente regulamento.»

8 Nos termos do n._ 2 do artigo 7._ do Regulamento n._ 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (2), o trabalhador nacional de um Estado-Membro beneficia, no território de outros Estados-Membros, das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais.

IV - A legislação alemã em causa

9 O subsídio para criação dos filhos é uma prestação de natureza não contributiva que faz parte de um conjunto de medidas de política familiar e é concedida em aplicação da Bundeserziehungsgeldgesetz de 6 de Dezembro de 1985 (lei relativa à concessão do subsídio para criação dos filhos e da licença para criação dos filhos, BGBl. I, p. 2154, a seguir «BErzGG»).

A BErzGG, na versão de 25 de Julho de 1989 (BGBl. I, p. 1550), alterada pela lei de 17 de Dezembro de 1990 (BGBl. I, p. 2823), determina, no n._ 1 do artigo 1._, que tem direito ao subsídio para criação dos filhos quem: 1) tenha domicílio ou residência habitual no território ao qual a lei se aplica, 2) tenha no seu agregado familiar um filho a cargo, 3) se ocupe ele próprio da guarda e criação desse filho e 4) não exerça uma actividade remunerada ou não a exerça a tempo inteiro.

Nos termos do n._ 1, alínea a):

«o estrangeiro que pretenda beneficiar do subsídio deve possuir uma autorização de residência ou um título de residência».

Segundo jurisprudência constante do Bundessozialgericht, o requisito da «posse» de um título ou de uma autorização de residência concedidos por razões sanitárias ou políticas só está preenchido mediante a apresentação de um documento emitido pelo serviço de estrangeiros que comprove, em boa e devida forma, o direito de residência desde o início do período de prestação. Para preencher este requisito, no entanto, a simples prova de que foi apresentado o pedido de título de residência, e que esta foi portanto autorizada, não é suficiente.

V - Análise do litígio

10 Na primeira questão, o juiz nacional pede ao Tribunal de Justiça que determine se M. Martínez Sala tinha, no período controvertido, a qualidade de «trabalhadora» na acepção do direito comunitário. Mais precisamente, trata-se de determinar se, no caso vertente, devem ser aplicadas as disposições do Regulamento n._ 1612/68 ou as do Regulamento n._ 1408/71, uma vez que a recorrente tinha exercido anteriormente uma actividade assalariada, embora com algumas interrupções, e tinha posteriormente recebido prestações nos termos da legislação nacional em matéria de ajuda social (Bundessozialhilfegesetz).

11 Começarei por analisar a noção de trabalhador na acepção do direito comunitário no quadro da eventual aplicação ao nosso caso das disposições relativas à livre circulação dos trabalhadores, especialmente as do artigo 48._ do Tratado e as respectivas disposições de aplicação, previstas no Regulamento n._ 1612/68. Esta noção está definida na jurisprudência. Segundo o Tribunal de Justiça, deve tratar-se de uma pessoa que realiza «durante certo tempo, em benefício de outra e sob sua direcção, as prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração» (3).

Das disposições do Tratado e do direito derivado resulta, portanto, que o estatuto de «trabalhador» comunitário não é configurado como uma situação subjectiva permanente. Em princípio, o indivíduo perde essa qualidade quando deixam de estar preenchidas as condições que determinam a sua aquisição. O direito comunitário só afasta esta regra em circunstâncias especiais e com efeitos determinados. O Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar em casos, por vezes marcantes, deste tipo (4). Todavia, no caso em análise, a actividade anteriormente exercida pela interessada, de resto há bastante tempo, e a situação em que se encontrava no período para o qual pediu o subsídio em questão não parecem ligadas por qualquer nexo actual ou de alguma forma relevante para o caso em análise. O despacho de reenvio não oferece, aliás, dados ou elementos de apreciação que permitam considerar M. Martínez Sala trabalhadora comunitária na acepção do Regulamento n._ 1612/68. Em especial, o facto de a recorrente ter beneficiado anteriormente de uma ajuda social não basta para que nos inclinemos nesse sentido. Cabe, naturalmente, ao juiz a quo determinar se existem outros elementos de facto susceptíveis de justificar a conclusão oposta. Em todo o caso, essa análise deverá ser conduzida com base nos critérios enunciados nesta matéria pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (5). Limitar-me-ei a recordar um: importa averiguar se existe um vínculo efectivo entre a actividade anterior e a situação posterior do trabalhador interessado. De qualquer forma, é claro que teria um resultado útil para o presente caso que o juiz a quo pudesse considerar a recorrente trabalhadora na acepção do Regulamento n._ 1612/68. Ser-lhe-ia reconhecido o direito de invocar o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, tendo em conta as condições impostas para poder beneficiar da prestação familiar solicitada. Mais adiante esclarecerei (no n._ 22), a propósito de outro aspecto do litígio, se tais condições, fixadas pela legislação nacional, configuram uma desigualdade de tratamento injustificada.

12 Problemas idênticos se colocam quanto à possibilidade de qualificar a recorrente como trabalhadora com base no Regulamento n._ 1408/71, invocado no despacho de reenvio, que, também sobre este ponto, fornece poucas indicações úteis. O juiz a quo não esclarece se M. Martínez Sala se encontra realmente segurada ao abrigo de um regime de segurança social. Também não indica se a recorrente pode invocar algum vínculo com a sua família de origem, igualmente residente no território alemão, o que lhe permitiria, na qualidade de membro da família e de pessoa a cargo de um trabalhador segurado, ser abrangida pelo regulamento em questão. Dito isto, subsiste o facto de a recorrente, apesar de não ter exercido no período em questão qualquer actividade laboral, ter beneficiado de uma ajuda social. Ora, a Comissão não exclui a possibilidade de tal facto ter implicado ope legis o seguro da recorrente e das suas filhas contra o risco de doença. Trata-se de uma possibilidade relevante para a solução do litígio e que, portanto, merece ser tida em conta. Se estivesse segurada na Alemanha, mesmo que apenas contra um único risco - neste caso, o risco de doença -, a interessada seria, há que afirmá-lo, trabalhadora na acepção do referido regulamento [artigo 1._, alínea a), i)].

Uma vez mais, cabe ao juiz nacional apurar se a legislação nacional prevê este tipo de seguro em resultado da concessão de uma ajuda social. Com efeito, o direito alemão pode ter previsto esse seguro, aspecto que, de qualquer forma, deve ser esclarecido, mesmo tendo em conta o acórdão recentemente proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Stöber e Piosa Pereira (6). A restrição contida no anexo I, ponto I, letra C (Alemanha) do Regulamento n._ 1408/71, que o Tribunal analisou naquele processo, refere-se, com efeito, às derrogações previstas pelo legislador comunitário quanto às prestações familiares que podem ser reclamadas na Alemanha pelos trabalhadores assalariados e não assalariados. O Tribunal de Justiça declarou essas restrições inteiramente legítimas. Afirmou que o Regulamento n._ 1408/71 se limita a coordenar os regimes nacionais de segurança social, continuando os Estados-Membros a ser competentes para definir as condições que determinam o acesso às prestações sociais. No domínio reservado ao legislador alemão, interessa-nos apenas o aspecto que se refere à situação de M. Martínez Sala e que se prende com a questão de saber se a ajuda social que lhe é prestada implica ipso facto, sempre segundo a legislação nacional, o seguro contra o risco de doença. Estaríamos, neste caso, face a um tratamento, pode dizer-se, semelhante ao previsto para o trabalhador assalariado desempregado que, a esse título, recebe prestações do organismo social competente. Na perspectiva da regulamentação comunitária, que, de forma prudente, valoriza os objectivos e as motivações sociais do regime de segurança social, o desempregado é incapaz de fazer face às necessidades mais essenciais, incluindo no domínio da saúde. O trabalhador está segurado contra o risco de doença. Quem estiver automaticamente segurado contra esse risco, ao abrigo da legislação nacional, pelo facto de se encontrar em estado de grande necessidade, seja ele qual for, é igualmente considerado trabalhador, mesmo que não exerça qualquer actividade profissional. Esta é a lógica do sistema: é considerado trabalhador quem estiver protegido pelas disposições em vigor em matéria de segurança social nos mesmos termos que um trabalhador. Se, no caso presente, o direito alemão acolher o princípio do segurado ope legis, a derrogação prevista no Anexo I não se aplicará, portanto, a M. Martínez Sala. Esta será considerada trabalhadora na acepção do direito comunitário, em aplicação do disposto no artigo 2._, conjugado com o artigo 1._, alínea a) e i), do Regulamento n._ 1408/71. O benefício que daí decorrerá para a interessada é o mesmo que atrás referi a propósito do outro regulamento. A qualidade de trabalhadora comporta o direito de invocar o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, e, portanto, o direito de pedir o subsídio para criação dos filhos sem necessidade de apresentação do título de residência já caduco. Como já afirmei, no n._ 22 esclarecerei se o princípio da não discriminação pode aplicar-se ao caso em análise.

13 Nas segunda e terceira questões prejudiciais, o juiz nacional pergunta, no essencial, se o subsídio para criação dos filhos deve considerar-se uma prestação familiar na acepção do Regulamento n._ 1498/71 e uma vantagem social na acepção do Regulamento n._ 1612/68.

Posteriormente à apresentação do presente pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente, no acórdão Hoever e Zachow (7), à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional, reconhecendo precisamente que o subsídio para criação dos filhos em litígio constitui uma prestação familiar na acepção do Regulamento n._ 1498/71. Quanto à terceira questão, parece-me pouco provável que M. Martínez Sala possa considerar-se trabalhadora na acepção do Regulamento n._ 1612/68. Mas se o juiz nacional chegar a uma conclusão diferente, parece-me, perfilhando as conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs (8) e as observações apresentadas pela Comissão ao longo do processo, que a prestação em causa constitui igualmente uma vantagem social na acepção do Regulamento n._ 1612/68. Com efeito, a noção de vantagem social, como foi definida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, tem um sentido lato e pode, certamente, incluir prestações como a que está aqui em causa, independentemente de o subsídio para criação dos filhos constituir, simultaneamente, uma prestação familiar na acepção do Regulamento n._ 1408/71.

14 Se se concluir que a interessada não tem a qualidade de trabalhadora na acepção de qualquer dos regulamentos acima referidos, terá que se descobrir como resolver a quarta questão submetida ao Tribunal de Justiça. O problema, nos termos em que é colocado, refere-se, expressa e directamente, à disposição da lei alemã que sujeita a concessão do subsídio para criação dos filhos aos nacionais dos outros Estados-Membros à apresentação de autorização, isto é, de um título de residência preciso, de que deve estar igualmente munido quem, de qualquer outra forma, estiver autorizado a residir na Alemanha. Esta disposição derroga o regime geral da mesma lei, segundo a qual o subsídio em questão pode ser concedido a qualquer pessoa que tenha no território da República Federal da Alemanha o seu domicílio ou lugar de residência habitual (e, além disso, preencha as restantes condições, sobre as quais o Tribunal de Justiça não tem que se pronunciar aqui e que consistem em ter um menor a cargo e não exercer qualquer actividade profissional). A legislação alemã cria, desta forma, uma desigualdade de tratamento em razão da nacionalidade dos possíveis beneficiários do subsídio em questão. O juiz nacional pergunta se tais disposições são compatíveis com o direito comunitário. No seu exame, o Tribunal de Justiça apenas pode tomar por referência o princípio da não discriminação enunciado no Tratado. Supondo que a demandante não tem a qualidade de trabalhadora, a questão então em causa coloca-se de forma residual: que outro título é oferecido pela ordem jurídica da União para que o cidadão comunitário residente na Alemanha não seja, nas circunstâncias e para os efeitos do caso em análise, discriminado em relação aos cidadãos alemães?

15 A Comissão invoca como parâmetro de apreciação ao dispor do Tribunal de Justiça o artigo 8._-A, introduzido no Tratado por efeito dos acordos de Maastricht, cuja redacção é a seguinte: «Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas no presente Tratado e nas disposições adoptadas em sua aplicação.» O n._ 2 acrescenta que o Conselho pode, segundo as modalidades processuais previstas, adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos direitos a que se refere o n._ 1. No entender da Comissão, o direito de circular e de residir livremente no território da União resulta directamente do Tratado. As limitações e condições a que o artigo 8._-A se refere prendem-se, pois, com o simples exercício desse direito, consagrado na fonte primária como uma liberdade do cidadão. Quais as consequências deste ponto de vista para a resolução do presente litígio? M. Martínez Sala teria, pelo facto de se ter deslocado para a Alemanha e de aí ter residido, exercido uma liberdade que lhe é garantida pelo Tratado. Se, e enquanto, o Estado de acolhimento não invocasse a faculdade de aplicar em relação à interessada as limitações que, segundo o artigo 8._-A, se aplicam ao gozo concreto desse direito, a liberdade de residência manter-se-ia intacta, com a consequência que aqui nos interessa: o direito de poder obter nas mesmas condições que os nacionais alemães o subsídio para criação dos filhos. Por seu lado, o Governo alemão responde à Comissão que o direito à livre circulação e à livre residência se encontra expressamente reconhecido no artigo 8._-A dentro dos limites resultantes do Tratado e do direito derivado. O caso de M. Martínez Sala, segundo a defesa do Estado de acolhimento, é regulado pelo disposto na Directiva 90/364/CEE (JO 1990, L 180, p. 26); uma vez que a interessada não preenche as condições aí previstas (seguro completo de doença e recursos suficientes para não depender da ajuda social do país de residência) não pode invocar qualquer direito de permanência na acepção do direito comunitário. A sua permanência na Alemanha só é autorizada, segundo o juiz nacional, em virtude das disposições internas adoptadas em aplicação de um acordo internacional que impede a República Federal da Alemanha de a repatriar para o seu país. A situação do residente nacional de outro Estado-Membro, conclui o Governo alemão, não é, no caso em análise, regulada pelo direito comunitário e, consequentemente, não pode justificar a afirmação de que a exigência da autorização de residência viola um princípio consagrado no Tratado, isto é, a proibição de discriminação em razão da nacionalidade. Os representantes dos Governos do Reino Unido e da França retomaram na audiência os argumentos apresentados pela República Federal da Alemanha a propósito da interpretação do artigo 8._-A do Tratado. Defendem que esta disposição se limita a recordar o direito de circular e de permanecer livremente já reconhecido às diferentes categorias de interessados, reunindo-os numa única disposição de direito primário - como os fragmentos de um mosaico, observou o Governo francês - sem, no entanto, alterar os limites a esses direitos, previstos, segundo os casos, no Tratado ou na legislação derivada. Por outras palavras, o artigo 8._-A não confere à liberdade de circulação um conteúdo novo e mais lato do que a ordem jurídica anterior.

16 O aspecto fundamental da questão debatida na audiência é, portanto, o de saber se, e de que forma, a situação do nacional de outro Estado-Membro que reside na Alemanha nas circunstâncias descritas no caso em análise é regulada pelas disposições do direito comunitário. Segundo a Comissão, o caso sub judice é regulado pelo artigo 8._-A do Tratado. O Governo alemão é de opinião contrária. Convém, em todo o caso, não perder de vista que o Tribunal de Justiça é chamado a decidir não se a interessada pode residir na Alemanha em aplicação do direito comunitário, mas, mais exactamente, se pode, enquanto residente neste país, obter o subsídio reclamado nas mesmas condições que os nacionais alemães. Parece-me, assim, que o caso sub judice deve ser apreciado à luz do artigo 8._-A sob o ângulo específico que se refere à resposta a dar a este último problema.

17 A matéria de facto já foi descrita. Não sabemos porque razão a autorização de residência, exigida pela legislação nacional para conceder o subsídio para criação dos filhos, é agora negada à interessada pelo Estado de acolhimento quando já lhe tinha sido concedida por períodos determinados no decurso da sua longa permanência na Alemanha. Também ignoramos se esse título de residência especial - o único, finalmente, relevante para o caso vertente - pode ser, e é efectivamente, concedido aos estrangeiros, mesmo não estando preenchidas as condições previstas na Directiva comunitária 90/364 no que respeita ao designado «cartão» e ao direito de permanência correspondente. É o juiz nacional que declara que se trata de uma cidadã comunitária autorizada a residir na Alemanha. Isto, no entanto, acrescenta o Governo alemão, exclusivamente em aplicação das disposições nacionais. A interessada não preenche, segundo o Governo alemão, as condições exigidas para poder beneficiar do direito de residência previsto na directiva.

18 Dito isto, trata-se, no nosso caso, de definir a situação do residente comunitário. A este propósito, a meu ver, uma reflexão prévia se impõe. Depois da entrada em vigor do artigo 8._-A do Tratado, deixou de poder considerar-se que o direito de permanência é criado pela directiva: é, por assim dizer, «concedido» pelos Estados-Membros aos cidadãos interessados de outros Estados-Membros, nos termos das disposições que nele figuram. Este texto foi adoptado pelo Conselho para os casos em que os cidadãos não dispunham de liberdade de permanência por aplicação de outras disposições do direito comunitário. Hoje, porém, dispomos do artigo 8._-A do Tratado. O direito de circular e de residir livremente em toda União é consagrado de forma geral numa norma primária e a sua existência ou desaparecimento não são limitados por outras disposições comunitárias, mesmo de direito derivado. As limitações previstas no artigo 8._-A referem-se ao exercício concreto do direito e não à sua existência. A Directiva 90/364 continua, eventualmente, a regular as condições relativas ao gozo da liberdade estabelecida pelo Tratado. Este argumento foi apresentado pela Comissão com base no regime, a meu ver indiscutível, da liberdade de circulação já previsto no Tratado. Permitam-me recordar, por minha parte, a sistematização do artigo 8._-A no contexto dos acordos de Maastricht. Vendo bem, a novidade deste preceito não reside no facto de ter consagrado directamente no Tratado a liberdade de circulação das pessoas. Essa liberdade encontrava-se reconhecida, juntamente com as liberdades de circulação de bens, serviços e capitais, noutra fonte de direito primário, o Acto Único, na disposição que define o mercado interno como um espaço sem fronteiras. O artigo 8._-A extraiu do núcleo das restantes liberdades de circulação esta liberdade, a partir de agora configurada como um direito, não só de circular, mas também de residir em qualquer Estado-Membro: um direito primário, com efeito, no sentido de que constitui o primeiro dos direitos subjacentes à cidadania da União. É desta forma que a liberdade de residência é concebida e organizada no Tratado. Trata-se de um direito não só derivado mas inseparável da cidadania da União, ao mesmo título que os restantes direitos, expressamente concebidos como corolários necessários deste novo estatuto (v. os artigos 8._-B, 8._-C e 8._-D) indistintamente comum a todos os nacionais dos Estados-Membros. A cidadania da União é, através da norma primária, atribuída directamente ao indivíduo, doravante formalmente considerado um sujeito de direito que adquire e perde essa cidadania simultaneamente com a cidadania do Estado nacional a que pertence e de nenhuma outra forma. Esta é a situação jurídica de base, digamos, garantida ao cidadão de qualquer Estado-Membro pela ordem jurídica da Comunidade e hoje da União. É o que resulta inequivocamente da redacção dos dois números do artigo 8._ do Tratado.

19 Vejamos, mais de perto, de que forma as considerações precedentes são úteis para a solução do nosso problema. A Directiva 90/364 pretende reconhecer o direito de residência às pessoas que cessaram a actividade profissional, inspirando-se no critério segundo o qual os beneficiários desse direito não devem constituir um encargo excessivo para as finanças públicas do Estado de acolhimento. Os Estados-Membros só podem restringir o direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública (aplicando-se, nesse caso, a Directiva 64/221/CEE (9)). Embora cada Estado-Membro se deva abster de alargar ou agravar os limites dentro dos quais o cidadão comunitário pode exercer esse direito, tem a liberdade de alargar o quadro dentro do qual o indivíduo beneficia da liberdade de permanência: e isto, ousaríamos afirmar, por maioria de razão hoje, em virtude do estatuto da cidadania comum e da liberdade de residência que, segundo o Tratado, lhe está subjacente. De resto, o Conselho pode, em aplicação do n._ 2 do artigo 8._-A, adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício da liberdade de circulação e de permanência. Tais disposições podem ser adoptadas por um Estado-Membro, se este assim decidir, de forma unilateral e, obviamente, dentro dos limites das suas fronteiras territoriais. É precisamente o caso da Alemanha, afirmam o juiz nacional e o Governo alemão, a propósito do caso em análise: M. Martínez Sala tem autorização de residência neste país, mesmo independentemente e para além das condições fixadas na directiva. Isto não significa, no entanto, que, como a defesa do Estado de acolhimento pretende, a situação subjectiva invocada pela demandante para reivindicar o mesmo tratamento que os cidadãos alemães seja regulada pelo direito interno e que, por essa única razão, se revele sem apoio no direito comunitário. A situação subjectiva relevante para efeitos do presente processo é, convém dizê-lo, a situação inerente à liberdade de permanência que a interessada tem autorização de exercer na Alemanha. É precisamente, como já referi, a situação jurídica de base, a de cidadão da União, que devemos ter em conta para determinar se, no caso vertente, o residente comunitário pode invocar o direito de não ser discriminado relativamente aos nacionais alemães. Em minha opinião, esse direito pode ser-lhe reconhecido pelas razões que a seguir apresento.

20 A proibição de qualquer discriminação assente na nacionalidade encontra-se prevista no Tratado e é considerada pelo Tribunal de Justiça como um princípio geral. Trata-se de um princípio que se estende potencialmente a qualquer campo de aplicação do Tratado, embora opere «sem prejuízo», e, por essa razão, também por intermédio de disposições especiais adoptadas tendo em vista a sua aplicação a um ou outro sector da ordem jurídica como, por exemplo, à livre circulação de trabalhadores e à livre prestação de serviços ou ao direito de estabelecimento. Ora, não se pode negar que o instituto da cidadania da União tem incidência no âmbito de aplicação do Tratado, e isto sob um duplo aspecto. Em primeiro lugar, foi atribuído ao indivíduo um novo estatuto, uma qualidade subjectiva suplementar, relativamente às já previstas, para que possa operar em relação a ele a irrelevância, ou melhor a proibição, do elemento discriminatório da nacionalidade. Em segundo lugar, o artigo 8._-A do Tratado liga à qualidade subjectiva de cidadão da União o direito de circular e de residir em qualquer Estado-Membro. Se a tese apresentada pelos governos presentes na audiência devesse ser seguida, esta última disposição, não obstante o seu teor literal, não ofereceria ao cidadão da União qualquer título de mobilidade ou direito de residência novos. No caso em análise, no entanto, não é necessário verificar o fundamento desta conclusão. Se o cidadão - como no nosso caso - tem, por qualquer razão, autorização para residir num Estado-Membro diferente daquele de que é nacional, o seu direito de não ser discriminado relativamente aos nacionais do Estado de acolhimento permanece inalterado enquanto aí residir: esse direito decorre, mesmo não podendo o interessado beneficiar do disposto na directiva relativa ao direito de residência, imediatamente e por via autónoma da regra primária do artigo 8._, relevante na aplicação do Tratado para lhe reconhecer o estatuto de cidadão da União. Esta situação subjectiva mantém-se sempre e em qualquer caso na titularidade do nacional de qualquer Estado-Membro e, por isso, para o caso em análise, é indiferente que seja a directiva ou a legislação do Estado de acolhimento a autorizá-lo a residir neste último (10).

21 Definitivamente, a qualidade de cidadão da União decorre portanto do Tratado. Cabe, naturalmente, ao Tribunal de Justiça, enquanto intérprete do Tratado e garante da sua aplicação correcta, determinar, caso a caso, de que forma a qualidade de cidadão da União pode ser invocada por quem denuncia uma desigualdade de tratamento relativamente aos nacionais de outros Estados-Membros. A cidadania da União é abrangida pelo âmbito de aplicação do Tratado e pela proibição geral de qualquer tratamento discriminatório em razão da nacionalidade, mas só quando não se sobrepõe indevidamente ao estatuto de cidadão nacional. A pretensão do residente, nacional de outro Estado-Membro, relativamente aos nacionais do Estado de acolhimento será, portanto, infundada se se referir a direitos que são reservados a estes últimos precisamente em razão da sua qualidade de nacionais. Trata-se indiscutivelmente de um limite de ordem geral e isso decorre das normas inerentes à definição do âmbito de aplicação do Tratado. Com efeito, as disposições especiais em matéria de proibição de discriminação previstas no Tratado relativamente ao direito de voto e à elegibilidade dos cidadãos da União nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais derrogam expressamente disposições que são, evidentemente, da competência da ordem jurídica e, provavelmente, da Constituição de cada Estado-Membro.

22 Dito isto, passamos a analisar o caso dos autos. A interessada reside na Alemanha e tem a qualidade de cidadã da União. Segundo a lei nacional, o subsídio para criação dos filhos é destinado às pessoas que se radicam no país e aí fixam a sua residência. Esta é a regra geral. A norma que derroga a regra geral e que impõe o requisito suplementar da autorização de permanência unicamente ao nacional de outro Estado-Membro é discriminatória. Esta diferença de regime é ilegal: o tratamento do cidadão comunitário residente na Alemanha seja a que título for está sujeito a condições mais restritivas do que aquelas a que está sujeito o cidadão alemão, sem que existam razões ou justificações objectivas para a adopção pelo direito interno deste critério discriminatório. As condições menos restritivas impostas aos seus próprios nacionais pelo legislador alemão para a concessão do subsídio em questão podem, com efeito, ser utilmente alargadas aos cidadãos comunitários, garantindo, em qualquer caso, o Estado-Membro contra eventuais abusos. De resto, o Tribunal de Justiça já esclareceu no acórdão Royer (11) que a autorização de permanência deve considerar-se «não como um acto constitutivo de direitos, mas como um acto de um Estado-Membro destinado a confirmar a situação individual de um nacional de outro Estado-Membro à luz das disposições do direito comunitário». Trata-se de um acto que atesta uma situação que, como a Comissão justamente salientou, é de natureza exclusivamente declarativa e não constitutiva de direitos. O direito ao subsídio resulta do próprio facto de o Estado-Membro autorizar o nacional comunitário a permanecer ou a residir no seu território e não do facto de ter concedido a autorização de permanência que a lei alemã exige para se poder beneficiar das prestações; e não se justifica que o gozo do direito, como configurado no direito nacional, esteja, no caso sub judice, sujeito a uma condição, e consequentemente a um limite, não prevista para os nacionais do Estado de acolhimento. A conclusão é clara: o Estado de acolhimento não pode fazer qualquer discriminação entre o cidadão da União que é seu nacional e o cidadão de outro Estado-Membro cuja residência autoriza no seu território.

23 A conclusão a que chegámos coincide, no essencial, com a solução proposta pela Comissão, embora partindo de um ângulo diferente. O que justifica a aplicação da proibição geral de discriminação no caso vertente não é o argumento apresentado pela Comissão, segundo o qual a demandante é titular de um direito de permanência que decorre do Tratado e permanece inalterado até que o Estado de acolhimento use a faculdade de limitar o seu exercício nos termos da directiva. O que justifica a igualdade de tratamento é, pelo contrário, como já afirmei, a situação jurídica do cidadão da União, com a garantia facultada pelo seu estatuto pessoal, nos termos em que este se encontra actualmente regulado no artigo 8._ do Tratado, que acompanha o cidadão em qualquer e de qualquer Estado-Membro. A União, nos termos em que é concebida no Tratado de Maastricht, exige, por outras palavras, que se inclua no princípio da não discriminação o domínio reservado ao novo instituto da cidadania comum. O caso sub judice constitui, portanto, um test case para um certo número de problemas que poderão vir a ser apresentados ao Tribunal de Justiça. Queria, ao mesmo tempo, observar que a solução que proponho constitui um desenvolvimento coerente da jurisprudência, que já acolheu uma acepção lata e avançada do princípio da não discriminação. No processo Cowan (12), o Tribunal de Justiça reconheceu como verdadeiro corolário da livre circulação garantida às pessoas singulares o direito de qualquer pessoa, que se encontre noutro Estado-Membro na qualidade de simples destinatário (e não de prestador) de serviços, não ser discriminada relativamente aos nacionais residentes nesse Estado, no que respeita à protecção contra os riscos de agressão física e à concessão da indemnização prevista, nessa eventualidade, pelo direito nacional. O Tribunal declarou discriminatória a legislação francesa que, nesse caso, reservou o benefício da indemnização ao titular de um cartão de residência no território nacional. Desta forma, este acórdão coloca sob a protecção do princípio da não discriminação igualmente o turista, ou qualquer outro destinatário de serviços, que se encontre no território do Estado de acolhimento, independentemente do período de permanência. O presente litígio pode ser examinado à luz do precedente jurisprudencial que acabei de recordar. No caso sub judice, a condição discriminatória refere-se à autorização de residência, que não é imposta aos residentes nacionais, mas que o é ao cidadão comunitário que veio residir para a Alemanha (de resto, desde há muito tempo), com a consequência inevitável de aí ter usufruído, sob vários aspectos, da situação de destinatário de serviços, como é qualificada pela jurisprudência. No processo Cowan estava em causa uma indemnização por violação da integridade física do indivíduo, que é reconhecida sem discriminação ao residente e ao não residente em qualquer Estado-Membro. Aqui, o subsídio em questão tem, é certo, uma natureza diferente, mas a disparidade das condições impostas ao cidadão nacional e ao residente comunitário que solicitem o subsídio consubstancia um tratamento discriminatório proibido pelo direito comunitário. Assim, a decisão, a ratio decidendi, no processo Cowan é pontualmente válida para o caso em análise. Pergunto-me, porém, se, uma vez reconhecido o direito à não discriminação do beneficiário de serviços relativamente à série abstracta e indiscriminada dos serviços que podem ser prestados em qualquer Estado de acolhimento, o Tribunal de Justiça não deve, dentro de um espírito de coerência, dar o passo em frente que, em minha opinião, a resolução da questão que ora lhe é submetida exige, isto é, considerar que este destinatário potencial de serviços pode, doravante, basear-se igualmente na qualidade de cidadão da União para poder invocar a proibição de discriminação em qualquer domínio em que a jurisprudência a aplicar.

VI - Conclusão

Com base nas considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma às questões prejudiciais colocadas pelo Bayerisches Landessozialgericht:

«1) Uma cidadã espanhola, residente na Alemanha, que se encontre na situação da recorrente no processo principal pode ser considerada trabalhadora na acepção do Regulamento (CEE) n._ 1612/68, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores no interior da Comunidade, na medida em que exista um vínculo directo entre a actividade profissional anteriormente exercida e a situação em que a recorrente se encontrava durante o período controvertido. A recorrente pode ser considerada trabalhadora na acepção do Regulamento (CEE) n._ 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros das suas famílias que se deslocam no interior da Comunidade, desde que a ajuda social que lhe é facultada pelas autoridades competentes implique o seguro obrigatório contra o risco de doença ou que a recorrente esteja segurada, através da sua família de origem ou de outra forma equivalente, em aplicação do mesmo regulamento.

Cabe ao juiz nacional verificar se as condições que permitem atribuir à recorrente a qualidade de trabalhadora se encontram preenchidas.

2) O subsídio para criação dos filhos constitui uma prestação familiar, na acepção do Regulamento n._ 1408/71, devida aos cidadãos comunitários nas mesmas condições que aos nacionais alemães.

3) O referido subsídio constitui igualmente uma vantagem social na acepção do Regulamento n._ 1612/68.

4) O cidadão comunitário de qualquer modo autorizado ou admitido a residir ou a permanecer no território de um Estado-Membro, concretamente na Alemanha, tem direito ao subsídio para criação dos filhos previsto na BErzGG, independentemente da posse de um título de residência válido, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado.»

(1) - JO L 230, p. 6; EE 05 F3 p. 53.

(2) - JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77.

(3) - Acórdão de 3 de Julho de 1986, Lawrie-Blum (66/85, Colect., p. 2121, n._ 16).

(4) - Acórdãos Lawrie-Blum, já referido, e de 31 de Maio de 1989, Bettray (344/87, Colect., p. 1621).

(5) - Acórdãos de 21 de Junho de 1988, Lair (39/86, Colect., p. 3161), e Bettray e Lawrie-Blum, já referidos.

(6) - Acórdão de 30 de Janeiro de 1997 (C-4/95 e C-5/95, Colect., p. I-511).

(7) - Acórdão de 10 de Outubro de 1996 (C-245/94 e C-312/94, Colect., p. I-4895).

(8) - Conclusões de 2 de Maio de 1996 no processo Hoever e Zachow, já referido (Colect., p. I-4898, n.os 87 a 90).

(9) - Directiva do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1964, para a coordenação de medidas especiais relativas aos estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública (JO 56 p. 850; EE 05 F1 p. 36).

(10) - O direito comunitário, como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça, reconhece a relevância - por exemplo, no domínio da segurança social - de acordos internacionais que atribuem aos nacionais de determinado Estado-Membro direitos mais amplos do que aqueles que resultam das disposições comunitárias, e entre elas do Regulamento n._ 1408/71. Não se pode recusar ao interessado o benefício dos direitos previstos nas disposições mais favoráveis desses acordos internacionais (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1991, Rönfeldt, C-227/89, Colect., p. I-323, e de 9 de Novembro de 1995, Thévenon, C-475/93, Colect., p. I-3813). No caso em análise, trata-se da Convenção Europeia de Assistência Social e Médica, assinada em Paris em 11 de Dezembro de 1953, de que a República Federal da Alemanha é parte. O direito de não se ser expulso, nos termos em que aí figura, implica necessariamente a permanência no Estado de acolhimento; isso constituiria, portanto, um título legitimador da presença, mesmo para efeitos comunitários, da demandante na Alemanha.

(11) - Acórdão de 8 de Abril de 1976, 48/75 (Colect., p. 221, n.os 31 a 33).

(12) - Acórdão de 2 de Fevereiro de 1989 (186/87, Colect., p. 195).