61995J0120

Acórdão do Tribunal de 28 de Abril de 1998. - Nicolas Decker contra Caisse de maladie des employés privés. - Pedido de decisão prejudicial: Conseil arbitral des assurances sociales - Grão-Ducado do Luxemburgo. - Livre circulação de mercadorias - Artigos 30. e 36 do Tratado CE - Reembolso de despesas médicas efectuadas noutro Estado-Membro - Autorização prévia da caixa competente - Compra de óculos. - Processo C-120/95.

Colectânea da Jurisprudência 1998 página I-01831


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1 Segurança social dos trabalhadores migrantes - Competência dos Estados-Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social - Limites - Respeito do direito comunitário - Regras do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias

(Tratado CE, artigo 30._)

2 Segurança social dos trabalhadores migrantes - Seguro de doença - Prestações fornecidas noutro Estado-Membro - Artigo 22._ do Regulamento n._ 1408/71 - Alcance - Reembolso pelos Estados-Membros, segundo as tarifas em vigor no Estado competente, de produtos médicos comprados noutro Estado-Membro - Exclusão

(Regulamento n._ 1408/71 do Conselho, artigo 22._)

3 Livre circulação de mercadorias - Restrições quantitativas - Medidas de efeito equivalente - Legislação nacional relativa ao reembolso de despesas médicas efectuadas noutro Estado-Membro - Compra de produtos médicos - Óculos - Exigência de autorização prévia do organismo de segurança social do Estado de filiação - Inadmissibilidade - Justificação - Controlo das despesas de saúde - Protecção da saúde pública - Inexistência

(Tratado CE, artigos 30._ e 36._)

Sumário


4 O facto de uma legislação nacional se aplicar no domínio da segurança social não é susceptível de excluir a aplicação do artigo 30._ do Tratado.

Com efeito, se o direito comunitário não prejudica a competência dos Estados-Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social, os Estados-Membros devem, porém, no exercício dessa competência, respeitar o direito comunitário.

5 O artigo 22._ do Regulamento n._ 1408/71, que visa permitir ao segurado, autorizado pela instituição competente a deslocar-se a outro Estado-Membro para aí receber cuidados adequados ao seu estado, beneficiar das prestações de doença em espécie, por conta da instituição competente mas segundo as disposições da legislação do Estado em que as prestações são efectuadas, designadamente no caso de a transferência se ter tornado necessária em virtude do estado de saúde do interessado, e isto, sem incorrer em despesas adicionais, não tem como objectivo regulamentar - e, portanto, não impede em nenhum caso - o reembolso pelos Estados-Membros, segundo as tarifas em vigor no Estado competente, das despesas com produtos médicos comprados noutro Estado-Membro, mesmo sem autorização prévia.

6 Os artigos 30._ e 36._ do Tratado opõem-se a uma legislação nacional por força da qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro recusa a um beneficiário o reembolso de um montante fixo para óculos com lentes de correcção comprados num oculista estabelecido noutro Estado-Membro, com fundamento no facto de que a compra de qualquer produto médico no estrangeiro deve ser previamente autorizada.

Uma legislação desse tipo tem que ser qualificada como um entrave à livre circulação de mercadorias, dado que incita os beneficiários da segurança social a adquirirem esses produtos no território nacional em vez de o fazerem noutros Estados-Membros e é, por isso, susceptível de entravar a importação.

Essa legislação também não se justifica por um risco grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social, visto que o reembolso de um montante fixo por óculos e lentes de correcção adquiridos noutros Estados-Membros não teria qualquer incidência no financiamento ou no equilíbrio do sistema de segurança social, nem por razões de saúde pública a fim de garantir a qualidade dos produtos médicos fornecidos aos segurados noutros Estados-Membros, porque, tendo as condições de acesso e de exercício das profissões regulamentadas sido objecto de directivas comunitárias, a compra de óculos, com receita de um oftalmologista, num oculista estabelecido noutro Estado-Membro apresenta garantias equivalentes às oferecidas pela venda de óculos por um oculista estabelecido no território nacional.

Partes


No processo C-120/95,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE, pelo conseil arbitral des assurances sociales (Luxemburgo), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Nicolas Decker

e

Caisse de maladie des employés privés,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30._ e 36._ do Tratado CE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. Gulmann e H. Ragnemalm (relator), presidentes de secção, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida, P. J. G. Kapteyn, J. L. Murray, D. A. O. Edward, J.-P. Puissochet, G. Hirsch e P. Jann, juízes,

advogado-geral: G. Tesauro,

secretário: D. Louterman-Hubeau, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação de N. Decker, por Andrée Braun e Serge Wagner, advogados no foro do Luxemburgo,

- em representação do Governo luxemburguês, por Claude Ewen, inspector de primeira classe da segurança social no Ministério da Segurança Social, na qualidade de agente,

- em representação do Governo belga, por Jan Devadder, director de administração no Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente,

- em representação do Governo alemão, por Ernst Röder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, e Gereon Thiele, assessor no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo espanhol, por Alberto Navarro González, director-geral da Coordenação Jurídica e Institucional Comunitária, e Gloria Calvo Díaz, abogado del Estado, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo francês, por Catherine de Salins, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Philippe Martinet, secretário dos Negócios Estrangeiros na mesma direcção, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo neerlandês, por Adriaan Bos, consultor jurídico, na qualidade de agente,

- em representação do Governo do Reino Unido, por Lindsey Nicoll, do Treasury Solicitor's Department, na qualidade de agente, assistida por Philippa Watson, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Hendrick van Lier, consultor jurídico, e Jean-Francis Pasquier, funcionário nacional destacado no Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,$

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de N. Decker, representado por Serge Wagner, da Caisse de maladie des employés privés, representada por Albert Rodesch, advogado no foro do Luxemburgo, do Governo luxemburguês, representado por Claude Ewen, do Governo alemão, representado por Ernst Röder, do Governo espanhol, representado por Gloria Calvo Díaz, do Governo francês, representado por Philippe Martinet, do Governo do Reino Unido, representado por Philippa Watson e da Comissão, representada por Jean-Francis Pasquier, na audiência de 2 de Julho de 1996,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 16 de Setembro de 1997,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão de 5 de Abril de 1995, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 do mesmo mês, o conseil arbitral des assurances sociales submeteu, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE, uma questão prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30._ e 36._ do Tratado CE.

2 A questão foi suscitada no quadro de um litígio entre N. Decker, nacional luxemburguês, e a Caisse de maladie des employés privés (a seguir «Caixa») a propósito de um pedido de reembolso de óculos com lentes de correcção comprados num oculista em Arlon (Bélgica), com uma receita de um oftalmologista estabelecido no Luxemburgo.

3 Por carta de 14 de Setembro de 1992, a Caixa informou N. Decker da sua recusa de reembolso dos óculos, pelo facto de terem sido comprados no estrangeiro sem a sua autorização prévia.

4 N. Decker contestou esta decisão, invocando designadamente as regras do Tratado respeitantes à livre circulação de mercadorias. A Caixa, para a qual N. Decker recorreu, manteve a sua posição por decisão da sua direcção de 22 de Outubro de 1992, indeferindo assim o pedido de N. Decker.

5 Este interpôs, pois, recurso para o conseil arbitral des assurances sociales que, por despacho de 24 de Agosto de 1993, lhe negou provimento.

6 Em 8 de Setembro de 1993, N. Decker impugnou este despacho junto do conseil arbitral des assurances sociales, tendo o seu pedido sido rejeitado por decisão de 20 de Outubro de 1993, designadamente com fundamento no facto de o processo não ter qualquer relação com a livre circulação de mercadorias, mas sim com o direito da segurança social, isto é, com o Regulamento (CEE) n._ 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade [v. a versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CEE) n._ 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1)].

7 N. Decker recorreu desta decisão. Por acórdão de 12 de Janeiro de 1995, a decisão do conseil arbitral des assurances sociales foi anulada, de modo que o processo baixou novamente ao conseil arbitral des assurances sociales que, por decisão de 5 de Abril de 1995, declarou aplicáveis ao litígio os artigos 60._ do Código da Segurança Social e 58._ dos estatutos da Union des caisses de maladie des salariés.

8 O artigo 60._ do Código da Segurança Social Luxemburguês, na versão em vigor na altura dos factos que interessam à decisão da causa no processo principal, previa designadamente:

«Os beneficiários têm o direito de recorrer ao médico, médico dentista, farmacêutico, ou auxiliar médico da sua escolha.

Só podem prestar cuidados e serviços no território do Grão-Ducado:

1._ os médicos, médicos dentistas, farmacêuticos, hospitais, parteiras ou auxiliares médicos autorizados a exercer a profissão na totalidade ou em parte do território do Grão-Ducado.

2._ os médicos estrangeiros chamados para consulta no Grão-Ducado com o acordo do médico assistente e do médico assessor da segurança social, sem prejuízo de acordos internacionais mais latos.

Porém, os beneficiários só podem tratar-se no estrangeiro com autorização da respectiva caixa de segurança social, salvo em caso de primeiros socorros por acidente ou doença ocorridos no estrangeiro.

A autorização da caixa de segurança social não pode ser recusada se o tratamento no estrangeiro for recomendado pelo médico assistente do beneficiário ou por um médico assessor da segurança social ou se o tratamento necessário não for possível no Grão-Ducado.»

9 O reembolso das despesas de aquisição de armações de óculos e de lentes de correcção regia-se, aquando dos factos que interessam à decisão da causa no processo principal, pelo artigo 78._ dos estatutos da Union des caisses de maladie e pela convenção colectiva de 30 de Junho de 1975, celebrada ao abrigo do artigo 308._-A do Código da Segurança Social entre a Union des caisses de maladie e a associação profissional representativa dos oculistas.

10 O artigo 78._ dos estatutos da Union des caisses de maladie prevê:

«As despesas de aquisição de óculos e outros auxiliares da visão serão suportadas pela caixa de segurança social segundo as tarifas e as modalidades fixadas pelas convenções ou decisões judiciais na matéria, nos termos do disposto no artigo 308._-A do Código da Segurança Social.»

11 O artigo 2._ da convenção colectiva de 30 de Junho de 1975 prevê que, sem prejuízo das disposições comunitárias e internacionais relativas à segurança social dos trabalhadores migrantes e equiparados, o fornecimento de óculos aos beneficiários, quando se trate de pessoas domiciliadas ou residentes no Luxemburgo, seja efectuado pelos oculistas inscritos no registo da Câmara dos Artesãos e Trabalhadores Independentes do Luxemburgo e estabelecidos no Grão-Ducado.

12 Em aplicação do disposto nestes artigos, o reembolso das despesas era efectuado com base em montantes fixos e sujeito a limites máximos que, no caso das armações de óculos, era de 1 600 LFR.

13 Relativamente às despesas de aquisição de lentes de correcção, as tarifas de reembolso constavam do anexo A à convenção colectiva de 30 de Junho de 1975. Nos termos do artigo 12._ desta convenção colectiva, a adaptação, quer no sentido do aumento quer no sentido da redução dos montantes reembolsáveis das lentes de correcção fixados no anexo A efectuava-se por referência unicamente às listas de preços das firmas Zeiss e American Optical.

14 O Código da Segurança Social e os estatutos da Union des caisses de maladie foram objecto de modificações substanciais em 1992. Porém, o princípio expresso no anterior artigo 60._ do Código da Segurança Social respeitante à necessidade de autorização prévia da caixa de segurança social para qualquer tratamento médico efectuado no estrangeiro foi retomado no novo artigo 20._ deste código.

15 Quanto ao Regulamento n._ 1408/71, o artigo 22._ estabelece:

«1. O trabalhador assalariado ou não assalariado que preencha as condições exigidas pela legislação do Estado competente para ter direito às prestações, tendo em conta, quando necessário, o disposto no artigo 18._, e:

...

c) Que seja autorizado pela instituição competente a deslocar-se ao território de outro Estado-Membro a fim de nele receber tratamentos adequados ao seu estado, terá direito:

i) Às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada ou de residência, nos termos da legislação aplicada por esta instituição, como se nela estivesse inscrito, sendo, no entanto, o período de concessão das prestações regulado pela legislação do Estado competente;

ii) Às prestações pecuniárias concedidas pela instituição competente, nos termos da legislação por ela aplicada. Todavia, por acordo entre a instituição competente e a instituição do lugar de estada ou de residência, essas prestações podem ser concedidas pela última instituição, por conta da primeira, em conformidade com as disposições da legislação do Estado competente.

2. ...

A autorização exigida nos termos da alínea c) do n._ 1 não pode ser recusada quando os tratamentos em causa figurarem entre as prestações previstas pela legislação do Estado-Membro em cujo território reside o interessado e se os mesmos tratamentos não puderem, tendo em conta o seu estado actual de saúde e a evolução provável da doença, ser-lhe dispensados no prazo normalmente necessário para obter o tratamento em causa no Estado-Membro de residência.

3. As disposições dos n.os 1 e 2 são aplicáveis, por analogia, aos membros da família de um trabalhador assalariado ou não assalariado.

...»

16 Tendo dúvidas sobre a compatibilidade das disposições em causa com o direito comunitário, mais precisamente com os artigos 30._ e 36._ do Tratado, o conseil arbitral des assurances sociales decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 60._ do Código da Segurança Social luxemburguês, com base no qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro A recusa a um beneficiário, cidadão desse mesmo Estado-Membro A, o reembolso de óculos com lentes de correcção receitados por um médico com consultório no mesmo Estado, mas comprados num oculista com estabelecimento num Estado-Membro B, com o fundamento de que qualquer tratamento médico no estrangeiro deve ser previamente autorizado pelo referido organismo de segurança social, é compatível com os artigos 30._ e 36._ do Tratado CEE na medida em que penaliza, em geral, a importação por particulares de medicamentos ou, como no caso em apreço, de óculos, provenientes de outros Estados-Membros?»

17 N. Decker e a Comissão sustentam que uma legislação nacional, cuja aplicação implica a recusa de reembolso das despesas a um beneficiário que adquiriu produtos normalmente reembolsados mediante autorização prévia do organismo de segurança social desse mesmo beneficiário, constitui um entrave injustificado à livre circulação de mercadorias.

18 Em contrapartida, os Governos luxemburguês, belga, francês e do Reino Unido defendem, a título principal, que legislação como a que está em causa no processo principal não se enquadra no âmbito dos artigos 30._ e 36._ do Tratado, uma vez que diz respeito à segurança social. Alegam, a título subsidiário, que os artigos em causa não obstam, de qualquer modo, à manutenção dessa legislação. Os Governos alemão, espanhol e neerlandês concordam com esta última análise.

19 Tendo em conta o teor das observações apresentadas, analisar-se-ão, a seguir, as questões relativas, em primeiro lugar, à aplicação do princípio da livre circulação no domínio da segurança social, depois, à incidência do Regulamento n._ 1408/71 e, finalmente, à aplicação das disposições respeitantes à livre circulação de mercadorias.

Quanto à aplicação do princípio fundamental da livre circulação no domínio da segurança social

20 Os Governos luxemburguês, belga, francês e do Reino Unido sustentam, a título principal, que a legislação em causa no processo principal respeitante ao reembolso de despesas com cuidados médicos não está abrangida pelo disposto no artigo 30._ do Tratado, porque diz respeito a um sector específico da segurança social.

21 Deve sublinhar-se liminarmente que, segundo jurisprudência constante, o direito comunitário não prejudica a competência dos Estados-Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1984, Duphar e o., 238/82, Recueil, p. 523, n._ 16), e de 17 de Junho de 1997, Sodemare e o., C-70/95, Colect., p. I-3395, n._ 27).

22 Por conseguinte, na falta de harmonização a nível comunitário, compete à legislação de cada Estado-Membro determinar, por um lado, as condições do direito ou da obrigação de inscrição num regime de segurança social (acórdãos de 24 de Abril de 1980, Coonan, 110/79, Recueil, p. 1445, n._ 12, e de 4 de Outubro de 1991, Paraschi, C-349/87, Colect., p. I-4501, n._ 15) e, por outro, as condições que dão direito a prestações (acórdão de 30 de Janeiro de 1997, Stöber e Piosa Pereira, C-4/95 e C-5/95, Colect., p. I-511, n._ 36).

23 Porém, como o salientou o advogado-geral nos n.os 17 a 25 das suas conclusões, no exercício das suas competências, os Estados-Membros devem respeitar o direito comunitário.

24 Ora, o Tribunal já declarou que as medidas tomadas pelos Estados-Membros em matéria de segurança social, que podem ter incidência na comercialização de produtos médicos e influenciar indirectamente as possibilidades de importação destes produtos, estão sujeitas às regras do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias (v. acórdão Duphar e o., já referido, n._ 18).

25 Em consequência, o facto de a legislação nacional em causa no processo principal se aplicar no domínio da segurança social, não é susceptível de excluir a aplicação do artigo 30._ do Tratado.

Quanto à incidência do Regulamento n._ 1408/71

26 O Governo luxemburguês considera que o artigo 22._ do Regulamento n._ 1408/71 estabelece como princípio a exigência de uma autorização prévia a qualquer tratamento noutro Estado-Membro. Segundo este governo, a contestação das disposições nacionais respeitantes à tomada a cargo das prestações efectuadas no estrangeiro equivaleria a pôr em causa a validade da disposição análoga constante do Regulamento n._ 1408/71.

27 A este respeito, deve declarar-se que o facto de uma medida nacional poder ser eventualmente conforme a uma disposição de direito derivado, neste caso o artigo 22._ do Regulamento n._ 1408/71, não tem por efeito fazer escapar essa medida ao disposto no Tratado.

28 Além disso, como o salientou o advogado-geral nos n.os 55 e 57 das suas conclusões, o artigo 22._, n._ 1, do Regulamento n._ 1408/71 visa permitir ao segurado, autorizado pela instituição competente a deslocar-se a outro Estado-Membro para aí receber cuidados adequados ao seu estado, beneficiar das prestações de doença em espécie, por conta da instituição competente mas segundo as disposições da legislação do Estado em que as prestações são efectuadas, designadamente no caso de a transferência se ter tornado necessária em virtude do estado de saúde do interessado, e isto, sem incorrer em despesas adicionais.

29 Porém, o artigo 22._ do Regulamento n._ 1408/71, interpretado à luz da sua finalidade, não tem como objectivo regulamentar - e, portanto, não impede em nenhum caso - o reembolso pelos Estados-Membros, segundo as tarifas em vigor no Estado competente, das despesas com produtos médicos comprados noutro Estado-Membro, mesmo sem autorização prévia.

30 Em consequência, terá que se analisar a compatibilidade de uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias.

Quanto à aplicação das disposições relativas à livre circulação de mercadorias

31 Terá que se analisar se uma legislação como a que está em causa no processo principal é susceptível de entravar directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário (acórdão de 11 de Julho de 1974, Dassonville, 8/74, Recueil, p. 837, n._ 5, Colect., p. 423).

32 N. Decker e a Comissão sustentam que a existência de um sistema que subordina a tomada a cargo das despesas com produtos médicos, segundo os critérios do Estado de filiação, a autorização prévia da instituição competente desse Estado quando os produtos são fornecidas noutro Estado-Membro, constitui uma restrição à livre circulação de mercadorias, na acepção do artigo 30._ do Tratado.

33 Os Estados-Membros que apresentaram observações alegam, no essencial, que uma legislação como a que está em causa no processo principal não tem nem como objectivo nem como efeito restringir os fluxos comerciais, limitando-se a estabelecer os critérios a que está sujeito o reembolso de despesas médicas. Uma legislação deste tipo não comportaria uma proibição de importação de óculos e também não teria incidência directa sobre a possibilidade de os adquirir fora do território nacional. Finalmente, não proibiria os oculistas luxemburgueses de importar óculos e lentes de correcção provenientes de outros Estados-Membros, de os transformar e de os vender.

34 Quanto a este aspecto, faz-se notar que a legislação em causa no processo principal incita os beneficiários do regime luxemburguês de segurança social a adquirirem e a mandarem montar os óculos nos oculistas estabelecidos no Grão-Ducado em vez de o fazerem noutros Estados-Membros.

35 Se é certo que a legislação nacional em causa no processo principal não priva os beneficiários da possibilidade de adquirirem produtos médicos noutro Estado-Membro, não é menos certo que faz depender de autorização prévia o reembolso das despesas efectuadas nesse Estado e que recusa esse reembolso aos beneficiários que não estejam munidos dessa autorização. Porém, as despesas efectuadas no Estado de filiação não estão sujeitas a essa autorização.

36 Uma legislação desse tipo tem que ser qualificada como um entrave à livre circulação de mercadorias uma vez que incita os beneficiários da segurança social a adquirirem esses produtos no Grão-Ducado em vez de o fazerem noutros Estados-Membros e que é, por isso, susceptível de entravar a importação de óculos montados nestes Estados (v. acórdão de 7 de Maio de 1985, Comissão/França, 18/84, Recueil, p. 1339, n._ 16).

37 O Governo luxemburguês sustenta, porém, que a liberdade de circulação de mercadorias não é absoluta e que a legislação em causa no processo principal, que teria como objectivo o controlo das despesas de saúde que têm necessariamente que ser tomadas em consideração, seria, a esta luz, justificada.

38 N. Decker alega, por seu lado, que, se as suas despesas fossem reembolsadas, os encargos financeiros para o orçamento da Caixa seriam os mesmos, visto que esta só reembolsa um montante fixo tanto em relação à armação como em relação às lentes de correcção vendidas por um oculista. Sendo este montante fixado independentemente das despesas reais efectuadas, não haveria qualquer razão objectiva para a Caixa recusar o reembolso quando a compra é efectuada num oculista estabelecido noutro Estado-Membro. A legislação em causa no processo principal não poderia, portanto, justificar-se pela necessidade de controlar as despesas de saúde.

39 Há que salientar a este respeito que objectivos de natureza puramente económica não podem justificar um entrave ao princípio fundamental da livre circulação de mercadorias. Não pode excluir-se, no entanto, que um risco grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social possa constituir uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar esse entrave.

40 Porém, como o reconheceu aliás o Governo luxemburguês em resposta a uma pergunta que lhe foi colocada pelo Tribunal, é forçoso reconhecer que o reembolso de um montante fixo pelos óculos e lentes de correcção adquiridos noutros Estados-Membros não teria qualquer incidência no financiamento ou no equilíbrio do sistema de segurança social.

41 Os Governos belga, alemão e neerlandês alegaram igualmente que o direito dos beneficiários de terem acesso a tratamentos de qualidade constituía uma justificação da legislação em causa no processo principal decorrente da protecção da saúde pública, prevista pelo artigo 36._ do Tratado. O Governo belga acrescenta que o fornecimento de óculos deve ser efectuado por pessoas legalmente autorizadas a exercer a profissão. Quando as prestações são efectuadas noutro Estado-Membro, o controlo da sua boa execução fica fortemente comprometido, ou é mesmo impossível.

42 Deve sublinhar-se a este propósito que as condições de acesso e de exercício das profissões regulamentadas foram objecto das Directivas 92/51/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa a um segundo sistema geral de reconhecimento das formações profissionais, que completa a Directiva 89/48/CEE (JO L 209, p. 25), e 95/43/CEE da Comissão, de 20 de Julho de 1995, que altera os anexos C e D da Directiva 92/51 (JO L 184, p. 21).

43 De onde se conclui que a compra de óculos num oculista estabelecido noutro Estado-Membro apresenta garantias equivalentes às oferecidas pela venda de óculos por um oculista estabelecido no território nacional (v., no que se refere à aquisição de medicamentos noutro Estado-Membro, acórdãos de 7 de Março de 1989, Schumacher, 215/87, Colect., p. 617, n._ 20, e de 8 de Abril de 1992, Comissão/Alemanha, C-62/90, Colect., p. I-2575, n._ 18).

44 Note-se além disso que, no processo principal, a aquisição dos óculos foi efectuada por receita de um oftalmologista, o que garante a protecção da saúde pública.

45 De onde se conclui que uma legislação como a aplicável no processo principal não pode ser justificada por razões de saúde pública ligadas à protecção da qualidade dos produtos médicos fornecidos noutros Estados-Membros.

46 Nestas condições, deve responder-se que os artigos 30._ e 36._ do Tratado se opõem a uma legislação nacional por força da qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro recusa a um beneficiário o reembolso de um montante fixo para óculos com lentes de correcção comprados num oculista estabelecido noutro Estado-Membro, com fundamento no facto de que a compra de qualquer produto médico no estrangeiro deve ser previamente autorizada.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

47 As despesas efectuadas pelos Governos luxemburguês, belga, alemão, espanhol, francês, neerlandês e do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo conseil arbitral des assurances sociales, por decisão de 5 de Abril de 1995, declara:

Os artigos 30._ e 36._ do Tratado opõem-se a uma legislação nacional por força da qual um organismo de segurança social de um Estado-Membro recusa a um beneficiário o reembolso de um montante fixo para óculos com lentes de correcção comprados num oculista estabelecido noutro Estado-Membro, com fundamento no facto de que a compra de qualquer produto médico no estrangeiro deve ser previamente autorizada.