Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 20 de Junho de 1996. - Roger Tremblay, Harry Kestenberg e Syndicat des exploitants de lieux de loisirs (SELL) contra Comissão das Comunidades Europeias. - Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Concorrência - Rejeição de uma denúncia - Inexistência de interesse comunitário. - Processo C-91/95 P.
Colectânea da Jurisprudência 1996 página I-05547
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1 Nos presentes autos, o Tribunal de Justiça deve decidir de um recurso interposto do acórdão do Tribunal de Primeira Instância proferido no processo T-5/93, Roger Tremblay e o./Comissão. (1) Em litígio está a decisão da Comissão de não acolher uma série de denúncias apresentadas contra a Société des Auteurs, Compositeurs et Editeurs de Musique («SACEM»), a sociedade que gere os direitos de autor e os direitos dos executantes em matéria musical na França.
2 O que parece constituir a principal questão suscitada pelo presente recurso é a alegada incorrecta aplicação do que é referido como (talvez de um modo um pouco confuso) o princípio da subsidiariedade: significando neste contexto que o Tribunal de Primeira Instância decidiu incorrectamente ao ter (parcialmente) confirmado a decisão da Comissão de não acolher as denúncias pela razão por esta avançada de que estas poderiam ser tratadas mais adequadamente ao nível das autoridades nacionais.
O contexto factual
3 As denúncias foram apresentadas à Comissão já em 1979. Entre 1979 e 1988 a Comissão recebeu numerosas denúncias, apresentadas nos termos do n._ 2 do artigo 3._ do Regulamento n._ 17 do Conselho (Primeiro Regulamento de execução dos artigos 85._ e 86._ do Tratado) (2), de que a SACEM tinha violado os artigos 85._ e 86._ do Tratado CEE. As denúncias foram apresentadas por agrupamentos de empresários de discotecas, incluindo o Bureau Européen des Médias de l'Industrie Musicale, e por empresários individuais, entre os quais os três recorrentes no processo T-5/93: Roger Tremblay, François Lucazeau e Harry Kestenberg.
4 As denúncias apresentadas à Comissão continham essencialmente as seguintes alegações:
1) que as sociedades de gestão dos direitos de autor dos diferentes Estados-Membros repartem entre si o mercado, através da celebração de contratos de representação recíproca por força dos quais está vedado às associações de gestão negociar directamente com os utilizadores estabelecidos no território de outro Estado-Membro;
2) que a taxa de direitos de autor de 8,25% do volume de negócios, imposta pela SACEM, é excessiva, quando comparada com as taxas dos direitos de autor pagas pelas discotecas nos outros Estados-Membros; e que esta taxa não se destina a remunerar as sociedades de gestão representadas, designadamente as sociedades estrangeiras, mas reverte exclusivamente a favor da SACEM, que paga aos seus representados importâncias irrisórias;
3) que a SACEM obriga todos os utilizadores a adquirir a totalidade do seu reportório, tanto francês como estrangeiro, e recusa conceder a utilização unicamente do seu reportório estrangeiro; e
4) que a SACEM aplica taxas de direitos de autor de um modo discriminatório a favor das discotecas que são membros de certas associações patronais.
5 O inquérito sobre o comportamento da SACEM iniciado pela Comissão foi suspenso devido ao facto de terem sido submetidos ao Tribunal de Justiça entre Dezembro de 1987 e Agosto de 1988 pedidos de decisão prejudicial pela cour d'appel d'Aix-en-Provence e pela cour d'appel de Poitiers e pelo tribunal de grande instance de Poitiers, que estão na origem, respectivamente, do processo 395/87, processo-crime contra Tournier (3) e dos processos apensos Lucazeau e o./SACEM e o. (4). As questões submetidas nesses processos pretendiam essencialmente esclarecer se o comportamento que era objecto das denúncias anteriormente referidas constituía uma violação dos artigos 85._ e/ou 86._ Nos acórdãos, ambos de 13 de Julho de 1989, proferidos nesses processos, o Tribunal respondeu, declarando que:
«O artigo 85._ do Tratado deve ser interpretado no sentido de que proíbe qualquer prática concertada entre sociedades nacionais de gestão de direitos de autor dos Estados-Membros que tenha por objecto ou por efeito que cada sociedade recuse o acesso directo ao seu reportório aos utilizadores estabelecidos noutro Estado-Membro. Cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar se uma concertação para esse efeito teve efectivamente lugar entre essas sociedades de gestão.
O artigo 86._ do Tratado CEE deve ser interpretado no sentido de que uma sociedade nacional de gestão de direitos de autor, em posição dominante numa parte substancial do mercado comum, impõe condições de transacção não equitativas quando os direitos que aplica às discotecas são sensivelmente mais elevados que os praticados nos outros Estados-Membros, desde que a comparação dos níveis das tabelas tenha sido efectuada numa base homogénea. Não será assim se a sociedade de direitos de autor em questão conseguir justificar tal diferença baseando-se em divergências objectivas e pertinentes entre a gestão dos direitos de autor no Estado-Membro em causa e nos outros Estados-Membros.»
O Tribunal declarou ainda no acórdão Tournier que:
«O facto de uma sociedade nacional de gestão de direitos de autor em matéria musical recusar que os utilizadores de música gravada tenham acesso exclusivamente ao reportório estrangeiro que representa só terá por objecto ou por efeito restringir a concorrência no mercado comum caso o acesso a uma parte do reportório protegido possa inteiramente salvaguardar os interesses dos autores, compositores e editores de música sem com isso aumentar as despesas de gestão dos contratos e de vigilância da utilização das obras musicais protegidas.»
6 Na sequência dos acórdãos proferidos nesses processos, a Comissão retomou o seu inquérito sobre as práticas da SACEM, principalmente devido aos pedidos de assistência dos tribunais e autoridades franceses. Embora o Tribunal de Justiça tenha confiado às autoridades e aos tribunais nacionais a decisão da questão de saber se os direitos de autor cobrados pela SACEM eram sensivelmente mais elevados que os praticados noutros Estados-Membros, a Comissão considerou que seria difícil para essas autoridades nacionais procederem elas próprias a essa comparação, pois que não tinham competência para investigar essa matéria no estrangeiro. Os resultados da instrução a que a Comissão procedeu foram consignados num relatório com data de 7 de Novembro de 1991. O relatório versava sobre o nível das tabelas nos diferentes Estados-Membros e a alegada discriminação a favor das discotecas membros de determinadas organizações patronais.
7 Todavia, após ter apresentado esse relatório, a Comissão decidiu invocar o artigo 6._ do Regulamento n._ 99/63 da Comissão (5), relativo às audições referidas nos n.os 1 e 2 do artigo 19._ do Regulamento n._ 17 do Conselho. O artigo 6._ estabelece que «quando a Comissão tiver recebido um pedido nos termos do n._ 2 do artigo 3._ do Regulamento n._ 17 e considerar que, face aos elementos ao seu dispor, não se justifica dar seguimento ao pedido, informará os requerentes das suas razões e fixar-lhes-á um prazo para apresentarem, por escrito, eventuais observações». Por carta de 20 de Janeiro de 1992, a Comissão escreveu ao Bureau Européen des Médias de l'Industrie Musicale («BEMIM»), ao abrigo do artigo 6._, informando-lhe que não tinha a intenção de acolher a sua denúncia e dando-lhe uma oportunidade para apresentar as suas observações antes de tomar uma decisão final. (A Comissão considera que os recorrentes no processo T-5/93 tiveram conhecimento dessa carta, quer na qualidade de membros do BEMIM, quer por intermédio do respectivo advogado, que representava igualmente o BEMIM, pelo que considerou não ser necessário enviar-lhes comunicações individuais). Após ter tomado em consideração as observações que lhe foram apresentadas em resposta à sua carta, a Comissão notificou aos advogados que representavam tanto o BEMIM como as discotecas através de uma nova carta (datada de 12 de Novembro de 1992) que as suas denúncias tinham sido definitivamente rejeitadas. Em resposta a um pedido para que fosse esclarecido o significado dessa rejeição, a Comissão escreveu uma terceira carta (datada de 17 de Dezembro de 1992) aos mesmos advogados, na qual confirmava que a sua intenção era a de confiar as denúncias que lhe foram apresentadas aos tribunais nacionais, tanto no que toca ao nível das tabelas aplicadas como à alegada discriminação entre discotecas. Passo agora a analisar o teor das duas primeiras cartas com um certo detalhe, pois que constitui uma parte essencial do principal fundamento do recurso das recorrentes a alegação de que o Tribunal de Primeira Instância fez uma incorrecta interpretação das razões pelas quais a Comissão chegou à sua decisão.
8 A Comissão afirmava na sua carta de 20 de Janeiro de 1992 que tinha levado a comparação o mais longe possível, tendo em conta os recursos disponíveis, e que levar ainda mais longe a investigação para ter em consideração elementos regionais ou locais envolveria a utilização de consideráveis recursos administrativos sem a garantia de que o resultado justificasse os esforços despendidos. A Comissão também afirmava nessa carta que a investigação não tinha revelado elementos em apoio da conclusão de que as condições de aplicação do artigo 86._ estavam preenchidas no que toca ao nível das tabelas aplicadas pela SACEM à época. Considerou que devido a isto e devido, especificamente, ao facto de os efeitos do abuso alegado serem principalmente sentidos apenas num Estado-Membro, e realmente apenas numa parte desse Estado, era do interesse comunitário que a matéria fosse tratada, não pela Comissão, mas, se necessário, pelas autoridades francesas, nos termos dos princípios da subsidiariedade e da descentralização.
9 Na última página da carta, sob a epígrafe «conclusões», a Comissão declarava, nos termos do artigo 6._ do Regulamento n._ 99/63 da Comissão, que não podia dar às suas denúncias um seguimento favorável, tendo em conta os princípios da subsidiariedade e da descentralização e os factos de que, sendo as práticas denunciadas essencialmente nacionais, não estava em causa um interesse comunitário e a questão estava já submetida à apreciação de vários tribunais franceses.
10 Na sua segunda carta, a Comissão explicava que não tencionava dar seguimento às denúncias pelas razões já expostas na sua carta de 20 de Janeiro de 1992 e que não tinha a intenção de repetir estas razões, mas apenas de responder aos principais argumentos aduzidos pelos recorrentes nas suas observações. Em resumo, as novas observações da Comissão eram as seguintes:
1) As observações dos recorrentes não alteravam a sua conclusão de que o centro de gravidade da alegada violação se encontrava em França e que os seus efeitos noutros Estados-Membros apenas podiam ser muito limitados; e que, portanto, o caso não tinha importância especial para o funcionamento do mercado comum; assim, o interesse comunitário ditava que as questões suscitadas nas denúncias deviam ser resolvidas pelas autoridades e tribunais nacionais e não pela Comissão. A este respeito, invocava o acórdão do Tribunal de Primeira Instância proferido em 18 de Setembro de 1992 (ou seja, posterior à sua primeira carta) no processo Automec/Comissão («Automec II») (6).
2) O acórdão do Tribunal de Primeira Instância «Automec II» tinha, no n._ 88, declarado que a Comissão podia rejeitar uma denúncia com fundamento em os tribunais nacionais já terem sido chamados a conhecer dessa matéria.
3) A aplicação do princípio da «subsidiariedade» não envolvia o abandono de toda e qualquer acção das autoridades públicas, mas apenas uma decisão quanto à questão de saber, de entre as autoridades envolvidas na matéria, quais as que melhor podiam resolver as questões em causa. Uma vez que o centro de gravidade das violações alegadas se situava na França e que havia uma autoridade nacional competente em matéria da concorrência, na posse, em resultado do trabalho da Comissão, das necessárias informações para proceder à comparação a que fazia referência o Tribunal de Justiça, era da competência da autoridade nacional prosseguir com o processo, caso o entendesse necessário. Ao que acrescia que muitos tribunais franceses deviam já conhecer das denúncias e que apenas os tribunais nacionais têm competência para atribuir indemnizações. Portanto, estaríamos perante um caso de aplicação clássica do princípio da subsidiariedade, que tomava a forma, não de uma qualquer abstenção das autoridades comunitárias, mas de uma simples transferência de competências para o nível nacional.
4) A utilização do relatório da Comissão não estava limitada pelo segredo profissional nos termos do artigo 20._ do Regulamento n._ 17 porque o relatório respeitava, não ao nível das tabelas em vigor aplicadas, que, em todo o caso, eram já do domínio público, mas à comparação do resultado prático da aplicação dessas tabelas a cinco tipos de discotecas.
5) Os tribunais nacionais não estavam obrigados a seguir as apreciações jurídicas da Comunidade ou das autoridades administrativas nacionais.
6) A Comissão não estava obrigada a examinar se existiram no passado eventuais infracções às regras da concorrência quando a principal finalidade deste exame seria a de facilitar a atribuição de indemnizações.
7) As comparações a que procedeu a Comissão bastavam para permitir que fosse tomada uma decisão quanto à questão de saber se os direitos fixados pela SACEM correspondiam a uma imposição de condições de transacção não equitativas, na acepção dos acórdãos do Tribunal de Justiça.
11 Por último, nos dois últimos parágrafos da sua segunda carta, a Comissão referia:
1) no que toca ao alegado acordo ou prática concertada entre a SACEM e as sociedades de outros Estados-Membros: que não conseguiu obter qualquer indício sério da existência de semelhante acordo ou prática concertada e que, mesmo a existir semelhante acordo ou prática concertada, não se verificava que tivesse produzido quaisquer efeitos precisos sobre o nível das tabelas; mas que estava preparada para tomar em consideração qualquer prova formal da existência e dos efeitos do alegado acordo;
2) no que respeita à existência de um acordo entre a SACEM e determinados agrupamentos de empresários de discotecas: que os efeitos de semelhante acordo só poderiam ser sentidos no interior da França, em benefício de certas discotecas e em detrimento de outras, e que, tendo em conta os princípios da cooperação e da repartição das funções entre a Comissão e os Estados-Membros, deviam ser as autoridades nacionais a decidir da matéria, especialmente tendo em conta que, embora a Comissão e as autoridades nacionais tivessem ambas competência para a aplicação das regras comunitárias da concorrência, só as autoridades nacionais tinham competência para atribuir indemnizações; além disso, a posição da Comissão sobre o acordo não seria vinculativa para os tribunais nacionais.
O acórdão do Tribunal de Primeira Instância
12 O Tribunal de Primeira Instância, com o seu acórdão de 24 de Janeiro de 1995 (7), anulou a decisão da Comissão, na medida em que rejeitava a acusação dos recorrentes baseada na compartimentação do mercado resultante da existência de um alegado acordo entre a SACEM e as sociedades de gestão de direitos de autor dos outros Estados-Membros. Todavia, e quanto ao mais, negou provimento ao recurso, deixando, assim, em vigor a parte da decisão da Comissão que se refere à não continuação do inquérito sobre os acordos entre a SACEM e as discotecas às quais esta cobra os direitos de autor referentes às obras musicais dos seus membros.
Questões preliminares
13 Antes de examinar a substância dos fundamentos de recurso invocados no Tribunal de Justiça, é necessário ter em conta duas questões preliminares que foram suscitadas pela Comissão e respeitantes à admissibilidade do recurso.
A natureza do objecto do pedido
14 Os recorrentes pedem que o Tribunal anule o acórdão do Tribunal de Primeira Instância, na medida em que negou provimento ao pedido de anulação da parte da decisão da Comissão que se refere à não continuação do inquérito sobre os acordos entre a SACEM e os proprietários de discotecas e que, nos termos do artigo 54._ do Estatuto do Tribunal de Justiça, anule essa parte da própria decisão da Comissão. Todavia, vão também mais longe e pedem que o Tribunal de Justiça decrete que a Comissão deve reabrir o processo e dirigir à SACEM uma comunicação de acusações. Tem razão a Comissão ao considerar que este último pedido é inadmissível. Constitui jurisprudência constante que não compete aos órgãos jurisdicionais comunitários dar ordens às instituições e que, por força do disposto no artigo 176._ do Tratado, incumbe à instituição em causa tomar as medidas que implica a execução de um acórdão proferido em recurso de anulação (8).
Irregularidades processuais identificadas pela Comissão
15 A Comissão refere a existência de irregularidades processuais na petição dos recorrentes:
1) não identificação das outras partes perante o Tribunal de Primeira Instância, em violação da alínea b) do n._ 1 do artigo 112._ do Regulamento de Processo; e
2) não indicação da data em que a decisão impugnada foi notificada aos recorrentes, em violação do n._ 2 do artigo 112._ do Regulamento de Processo.
16 Todavia, estas irregularidades não são suficientes para determinar a inadmissibilidade do recurso: não foi alegado que as outras partes no processo perante o Tribunal de Primeira Instância tivessem sido prejudicadas pelo facto de não terem sido identificadas no documento; e o recurso foi interposto dentro do prazo, mesmo quando seja contado a partir da data da prolação do acórdão.
Fundamentos do recurso
17 Passo agora a analisar sucessivamente os vários fundamentos do recurso.
18 Em primeiro lugar, vou-me debruçar sobre o que parece constituir, como sugeri, a principal questão suscitada no recurso: terá a Comissão agido incorrectamente ao confiar a decisão do litígio às autoridades nacionais ou, mais precisamente, foi incorrectamente que o Tribunal de Primeira Instância decidiu como o fez, na medida em que confirmou essa decisão? A questão é discutida pelos recorrentes no seio de vários fundamentos diferentes, mas é conveniente analisá-la de uma só vez e à luz dos diferentes argumentos. Em primeiro lugar, afirmam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao não se pronunciar quanto à referência feita pela Comissão ao princípio da subsidiariedade. Em segundo, contestam, por várias razões, a análise feita pelo Tribunal de Primeira Instância ao mérito da decisão da Comissão. Uma terceira série de argumentos parte da premissa de que o Tribunal de Justiça anulará a decisão do Tribunal de Primeira Instância e, nos termos do artigo 54._ do Estatuto, julgará ele próprio definitivamente o litígio: com base nessa premissa, os recorrentes avançam vários argumentos no sentido de que a decisão da Comissão tem por base uma errada aplicação do princípio da subsidiariedade. Os argumentos desta última parte do recurso são, estritamente falando e como defenderei, inadmissíveis, mas uma vez que não é fácil desentranhá-los dos vários argumentos relativos à «subsidiariedade», não procederei a uma distinção nesse sentido quando analisar esse problema.
19 Antes de analisar individualmente os vários argumentos, penso que é necessário fazer certas observações prévias. As funções respectivas da Comissão, por um lado, e das autoridades nacionais, por outro, no que toca à aplicação das regras da concorrência do Tratado suscitam questões que recentemente foram amplamente debatidas. Uma obra recente fornece um conveniente sumário do seu enquadramento (9):
«A Comissão é a autoridade responsável pela definição da política da concorrência da Comunidade, uma missão que deve desempenhar no interesse público. Por razões históricas, a Comissão tem também sido a principal autoridade responsável pela vigilância do respeito dos artigos 85._ e 86._ do Tratado CE na Comunidade Europeia.
Nos primeiros anos das Comunidades Europeias, havia uma tendência para centralizar a aplicação das regras da concorrência nas mãos da Comissão. De um modo geral, considerava-se que a aplicação do direito da concorrência comunitário era principalmente uma missão que incumbia à Comissão, embora, em termos legais, também pudesse ser aplicado pelas autoridades judiciais e de concorrência nacionais. Devido aos problemas encontrados pela Comissão para assegurar o reconhecimento das suas competências nos Estados-Membros e estes não disporem de meios adequados de aplicação dos artigos 85._ e 86._, a Comissão aceitou de bom grado um quase monopólio de facto para a aplicação da política da concorrência. Isto permitiu-lhe também criar um quadro homogéneo de precedentes para as suas decisões e prática administrativa, sujeito à fiscalização do Tribunal Europeu e, mais recentemente, do Tribunal de Primeira Instância.
Com a passagem dos anos, as situações da Comissão e dos Estados-Membros evoluíram. A Comissão é hoje em dia reconhecida como a força impulsionadora da política da concorrência da Comunidade, ao passo que os Estados-Membros são geralmente considerados como estando melhor equipados para aplicar tanto o seu direito interno da concorrência como o da Comunidade. Este desenvolvimento facilitará, no futuro, uma clara definição das missões respectivas da administração comunitária e das autoridades nacionais neste domínio do direito comunitário.
O debate sobre a subsidiariedade acelerou a tendência actual para rever a prática administrativa da Comissão, de modo a garantir uma mais activa participação das autoridades nacionais, judiciais ou não, na vigilância do respeito pelas empresas dos artigos 85._ e 86._ do Tratado.»
20 Dever-se-ia, talvez, proceder a uma distinção entre o termo «subsidiariedade» como é usado neste debate e o princípio da subsidiariedade enunciado no artigo 3._-B do Tratado. Em todo o caso, quando o direito comunitário da concorrência é aplicado pelas autoridades nacionais não estamos, claramente, perante um caso de subsidiariedade, no sentido de que as autoridades nacionais estão a fazer aplicação do direito nacional. Seria mais apropriado falar de descentralização que de subsidiariedade: a ideia é a de uma aplicação descentralizada do direito comunitário, pelas autoridades nacionais e não pela Comissão. Na prática, todavia, a distinção pode ser menos clara, pois que se pode tratar de um caso em que as autoridades nacionais aplicam tanto as regras de concorrência comunitárias como as nacionais.
21 Portanto, a questão que se suscita é a de saber em que condições pode a Comissão decidir não avançar com a investigação de uma denúncia em circunstâncias em que o denunciante tem um interesse legítimo, mas a Comissão considera que não existe um interesse comunitário suficiente.
22 No seu acórdão no processo «Automec II», o Tribunal de Primeira Instância declarou que a Comissão podia legitimamente decidir abster-se de proceder a uma instrução da denúncia devido à falta de interesse comunitário (10). A este respeito, a Comissão é uma autoridade diferente de um tribunal cível, cuja vocação é a de salvaguardar os direitos subjectivos das pessoas privadas nas suas relações recíprocas. Todavia, o Tribunal de Primeira Instância considera que a Comissão não pode referir o interesse comunitário apenas em abstracto, mas deve indicar as considerações de direito e de facto que a levaram a concluir que não existia um interesse comunitário suficiente nos termos do artigo 190._ do Tratado. Ao que acresce que a Comissão deve tomar em conta o alcance da protecção que os tribunais nacionais podem assegurar aos direitos dos denunciantes ao abrigo do Tratado (11).
23 A Comissão pode decidir o arquivamento de uma denúncia por inexistência de interesse comunitário, não só antes de ter dado início à instrução, mas também depois de ter efectuado diligências de instrução, se for nesta fase do processo que chegou a essa conclusão (12).
24 Após ter sido proferido o acórdão no processo «Automec II», a Comissão plasmou a sua posição na sua «Comunicação sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais nacionais no que diz respeito à aplicação dos artigos 85._ e 86._ do Tratado CEE» (13).
25 Por seu lado, o Tribunal de Justiça declarou que, embora a Comissão «não seja obrigada a adoptar uma decisão em que dê como provada a existência de uma infracção às regras da concorrência nem a proceder à instrução da denúncia quando é chamada a intervir nos termos do Regulamento n._ 17, tem, no entanto, a obrigação de analisar atentamente os fundamentos de facto e de direito suscitados pelo autor da denúncia para verificar a existência de um comportamento anticoncorrencial. Além disso, em caso de arquivamento, a Comissão é obrigada a fundamentar a sua decisão, a fim de permitir ao Tribunal de Primeira Instância verificar se cometeu erros de facto ou de direito ou se incorreu em desvio de poder» (14).
26 À luz do que precede, vou agora analisar os argumentos dos recorrentes em matéria de «subsidiariedade».
O alegado erro de direito cometido pelo Tribunal de Primeira Instância ao não se pronunciar quanto à referência feita pela Comissão à subsidiariedade
27 Os recorrentes alegam que, ao ter considerado que a subsidiariedade não constituía um motivo que tivesse informado a decisão da Comissão, o Tribunal de Primeira Instância interpretou incorrectamente a fundamentação da decisão da Comissão. O Tribunal de Primeira Instância considerou que «decorre dos n.os 6 a 8 da decisão impugnada que a Comissão baseou a rejeição das denúncias dos recorrentes não no princípio da subsidiariedade, mas unicamente na inexistência de interesse comunitário suficiente». Contudo, os recorrentes alegam que a subsidiariedade foi um dos factores que entraram no raciocínio da Comissão e que esse princípio foi por ela incorrectamente aplicado.
28 A Comissão afirma que baseou a sua rejeição das denúncias apenas na falta de interesse comunitário suficiente. Acrescenta que considerou que a falta de interesse comunitário resultava tanto do impacto essencialmente nacional das alegadas violações como do facto de que estavam submetidos à apreciação de vários tribunais franceses e da autoridade francesa em matéria da concorrência casos análogos. A Comissão refere que, embora não tenha explicado nas suas cartas exactamente o que entendia por «subsidiariedade», o seu significado resultava claro do seu vigésimo-segundo relatório sobre a política da concorrência de 1992. Nesse relatório, explicava que, ao defender o recurso à subsidiariedade, pretendia simplesmente significar que era a favor de confiar às autoridades nacionais os casos que tinham um impacto essencialmente nacional. A Comissão contesta que, ao referir-se à subsidiariedade na decisão impugnada, estivesse a pretender aplicar um princípio jurídico geral e autónomo que deve ser respeitado pelas autoridades comunitárias.
29 É certo que a Comissão se referiu à «subsidiariedade» nas suas duas cartas: fê-lo nas conclusões da sua carta de 20 de Janeiro de 1992 (v. n.os 8 e 9 supra) e na sua carta de 12 de Novembro de 1992 reiterava essas conclusões e acrescentava os novos comentários sobre a subsidiariedade citados no n._ 10 (3), supra (15). Todavia, resulta em meu entender claro dos extractos das cartas da Comissão supra referidos que esta não pretendia invocar a subsidiariedade como um motivo autónomo para não dar seguimento às denúncias. Utilizou esse termo apenas para expressar a ideia de que a denúncia poderia ser mais adequadamente analisada pelas autoridades nacionais. Como adiante se verá, este constitui um dos factores a ter em consideração para a avaliação do interesse comunitário. Donde resulta que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro de direito ao não ter analisado autonomamente esta matéria.
30 Os recorrentes também alegam que a «desvirtuação» da decisão da Comissão a que procedeu o Tribunal de Primeira Instância ao não tomar em consideração a referência à subsidiariedade conduziu a uma violação dos seus direitos de defesa, uma vez que isto significou que a questão de saber se seria ou não apropriado proceder à aplicação do princípio da subsidiariedade não foi examinada. Todavia e uma vez que entendo que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro ao não tomar em consideração a referência à subsidiariedade, considero que, por conseguinte, não se verificou uma violação dos direitos de defesa dos recorrentes.
O interesse da Comunidade e a questão das prioridades
31 Os recorrentes argumentam que, nos termos do acórdão «Automec II» (16), a Comissão tem o direito de tomar em conta o interesse da Comunidade que revele determinada denúncia, mas apenas para decidir da prioridade a ser dada a essa denúncia e não como uma justificação para a decisão de lhe dar ou não seguimento. No n._ 60 do seu acórdão ora recorrido, o Tribunal de Primeira Instância rejeitou esse entendimento. A sua abordagem é conforme ao que decidiu no acórdão «Automec II», para o qual remetem os recorrentes. Embora nesse processo o Tribunal de Primeira Instância não se tenha referido às «prioridades», o seu acórdão tinha por contexto a rejeição da denúncia pela Comissão. E realmente, no n._ 76 do seu acórdão neste último processo, o Tribunal de Primeira Instância considerou que, não tendo a Comissão a obrigação de se pronunciar sobre a existência ou não de uma infracção ao direito comunitário num caso específico (17), é forçoso concluir que não pode ser obrigada a efectuar uma instrução. A referência feita no acórdão às «prioridades» pode e deve ser entendida como significando que a Comissão pode legitimamente decidir dar seguimento a certas denúncias e não a outras.
32 Devem, claro está, ser adequadamente salvaguardados os direitos dos denunciantes e o interesse comunitário. O Tribunal de Primeira Instância reconheceu no acórdão «Automec II» que, embora a Comissão não possa ser obrigada a efectuar uma instrução, as garantias processuais previstas no artigo 3._ do Regulamento n._ 17 e no artigo 6._ do Regulamento n._ 99/63 obrigam-na, não obstante, a examinar atentamente os elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelo denunciante, a fim de apreciar se os referidos elementos deixam transparecer um comportamento de natureza a falsear o jogo da concorrência no interior do mercado comum e a afectar o comércio entre os Estados-Membros (18). Foi ainda salientado que a decisão final da Comissão de arquivar a denúncia deve ser suficientemente fundamentada (19). Ao que acresce que o Tribunal de Primeira Instância mostrou-se disposto a proceder à fiscalização jurisdicional da fundamentação da Comissão referente à avaliação do interesse comunitário no arquivamento do processo (20). Por conseguinte, existem suficientes salvaguardas que garantem uma completa análise das denúncias por parte da Comissão. Portanto, entendo que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro ao decidir que, tendo em consideração o facto de que a Comissão não tem uma obrigação geral de tomar uma decisão final quanto à questão de saber se o direito comunitário foi ou não violado num caso específico, tem o direito, em certas circunstâncias e uma vez analisada cuidadosamente a informação na sua posse, de encerrar o inquérito referente a uma denúncia.
A questão de saber se as práticas em causa tinham apenas impacto nacional
33 Os recorrentes sustentam que a Comissão cometeu um erro ao concluir que as práticas criticadas como constituindo uma violação do artigo 86._ tinham essencialmente um impacto apenas nacional. Esta conclusão foi aceite pelo Tribunal de Primeira Instância. Contudo e uma vez que a questão de saber se as práticas criticadas tinham essencialmente um impacto apenas nacional é uma questão de facto, o recurso interposto com este fundamento no Tribunal de Justiça é inadmissível.
Os factores a ter em conta pela Comissão para decidir se deve ou não dar seguimento a uma denúncia
34 Os outros argumentos dos recorrentes respeitam aos demais factores a serem tidos em conta para apreciar se é do interesse comunitário que a Comissão proceda a um inquérito. Estas questões constituem questões de direito admissíveis, para as quais o acórdão «Automec II» do Tribunal de Primeira Instância fornece uma valiosa orientação (21). No seu acórdão «Automec II», o Tribunal de Primeira Instância considerou que, para apreciar o interesse comunitário que existe em prosseguir o exame de um processo, a Comissão deve ter em conta as circunstâncias do caso concreto e, nomeadamente, os elementos de facto e de direito que lhe são apresentados na denúncia que lhe foi submetida; cabe-lhe, ao fazê-lo, ponderar a importância da infracção alegada para o funcionamento do mercado comum, a probabilidade de poder comprovar a sua existência e a extensão das diligências de investigação necessárias para desempenhar, nas melhores condições, a sua missão de vigilância do respeito dos artigos 85._ e 86._ (22).
35 No acórdão ora recorrido, o Tribunal de Primeira Instância considerou que «quando os efeitos das infracções apontadas numa denúncia só são sentidos, essencialmente, no território de um Estado-Membro e quando os tribunais e autoridades administrativas competentes desse Estado-Membro tenham sido chamados a pronunciar-se em litígios que opõem o denunciante e a entidade visada na denúncia, a Comissão pode rejeitar a denúncia por inexistência de interesse comunitário suficiente no prosseguimento do exame do processo, na condição, porém, de os direitos do denunciante poderem ser salvaguardados de modo satisfatório, nomeadamente pelos órgãos jurisdicionais nacionais» (23).
36 Os recorrentes alegam, contudo, que a Comissão estava em melhor posição que os tribunais nacionais para conhecer desta matéria. Argumentam com a possibilidade de decisões divergentes dos tribunais nacionais e com a necessidade de garantir a certeza jurídica. Sustentam ainda que foi incorrectamente que a Comissão se remeteu ao acórdão «Automec II» para fundamentar a sua decisão de arquivar o processo relativo à sua denúncia, porque, contrariamente ao que ocorre no presente caso, havia apenas um caso pendente nos tribunais nacionais sobre os factos em discussão no processo «Automec II».
37 Passo agora a analisar se o Tribunal de Primeira Instância cometeu qualquer erro de direito pelas razões acima referidas.
38 O Tribunal de Primeira Instância salientou, no n._ 59 do seu acórdão, que os recorrentes não tinham qualquer direito a uma decisão final da Comissão. Observou que constitui jurisprudência assente que o artigo 3._ do Regulamento n._ 17 não confere ao autor de um pedido apresentado ao abrigo desse mesmo artigo direito a uma decisão da Comissão, na acepção do artigo 189._ do Tratado, quanto à existência ou não de uma infracção ao artigo 85._ e/ou do artigo 86._ do Tratado; e que só assim não é quando o objecto da denúncia depende da competência exclusiva da Comissão, como a revogação de uma isenção concedida ao abrigo do artigo 85._, n._ 3, do Tratado. Portanto, o Tribunal de Primeira Instância não acolheu as alegações dos recorrentes, na medida em que se traduziam em defender que a Comissão tinha a obrigação de tomar uma decisão final quanto à questão de saber se o direito comunitário foi ou não violado. É claro que não se pode afirmar que o Tribunal de Primeira Instância tenha cometido um erro de direito ao ter decidido como decidiu, na medida em que se pode correctamente afirmar que a Comissão não tem uma qualquer obrigação geral de tomar uma decisão final. Este entendimento é conforme aos acórdãos do Tribunal de Justiça nos processos GEMA (24) e Delimitis (25), bem como à sua própria jurisprudência, como resulta dos acórdãos «Automec II» e subsequentes (26).
39 No que toca à questão de saber se a Comissão deveria ter prosseguido o seu inquérito, o Tribunal de Primeira Instância considerou (no n._ 68 do seu acórdão) que «os direitos de um denunciante não podem considerar-se suficientemente protegidos perante o juiz nacional se, tendo em conta a complexidade do processo, esse juiz não estiver razoavelmente em condições de reunir os elementos de facto necessários para determinar se as práticas denunciadas constituem uma infracção aos artigos 85._ e/ou 86._ do Tratado». Todavia, considerou que, no caso em apreço, o relatório da Comissão fornecia informação suficiente no que toca ao nível das tabelas e à questão da discriminação entre discotecas. Além disso e, no que toca à alegação de que a SACEM recusava conceder às discotecas francesas a utilização unicamente do reportório estrangeiro, considerou que os recorrentes não apresentaram nenhum argumento concreto susceptível de pôr em causa a competência dos tribunais franceses para reunir os elementos de facto necessários para determinar se essa prática da SACEM (empresa francesa com sede em França) constitui uma infracção ao artigo 86._ do Tratado. É importante notar em relação a estas duas considerações do Tribunal que os recorrentes não parecem pôr em causa a suficiência das informações disponíveis. Portanto, entendo que o Tribunal de Primeira Instância não cometeu um erro ao seguir a abordagem referida. Concordo que, para que se justifique a recusa da Comissão em prosseguir o exame do processo, é essencial que em cada caso concreto os tribunais nacionais (ou as autoridades nacionais) sejam eles próprios competentes para conhecer do processo. Entendo que, quando os tribunais nacionais tenham essa competência, a questão de saber que tribunal ou que autoridade individual poderá mais facilmente prosseguir com a investigação em questão pode ser relevante, mas que o facto de que poderá ser mais fácil para a Comissão prosseguir o inquérito não deverá constituir, por si só, razão para a obrigar a fazê-lo. Entendo que a questão do interesse comunitário vai mais longe do que uma simples análise de qual será o tribunal ou a autoridade para o qual será mais fácil prosseguir com a investigação. Como considerou o Tribunal de Primeira Instância no acórdão «Automec II», outros factores podem ser relevantes, como a importância da alegada violação para o funcionamento do mercado comum.
40 Em resposta aos argumentos dos recorrentes sobre a alegada possibilidade de decisões divergentes dos tribunais nacionais e a necessidade de garantir uma correcta e uniforme aplicação das normas do Tratado em matéria de concorrência, o Tribunal de Primeira Instância considerou que o facto de os tribunais nacionais poderem encontrar dificuldades na interpretação dos artigos 85._ ou 86._ do Tratado não era, tendo em consideração a faculdade conferida pelo artigo 177._ do Tratado, um elemento que a Comissão devesse tomar em consideração para apreciar o interesse comunitário no prosseguimento do exame de um processo (n._ 67). Como foi anteriormente referido, o Tribunal de Primeira Instância considerou que os tribunais nacionais tinham competência para e eram capazes de colher informações suficientes que lhes permitissem tomar uma decisão quanto às alegadas violações. Como anteriormente observei, esta consideração não é atacada pelos recorrentes, pelo que creio que o raciocínio do Tribunal de Primeira Instância é absolutamente convincente. Foi, em meu entender, também correctamente que o Tribunal de Primeira Instância decidiu que «contrariamente ao que afirmam os recorrentes, a faculdade de ter em conta o facto de se ter recorrido aos tribunais nacionais, como critério pertinente para avaliar o interesse comunitário em prosseguir o exame de um processo, não se restringe ao caso de existir um processo nacional único que oponha o denunciante à parte posta em causa na denúncia» (n._ 62). Não é possível sustentar que quando existam várias acções pendentes a Comissão estará impedida de confiar a decisão do processo aos tribunais nacionais.
41 Os recorrentes alegam ainda que dois factores que são referidos nas cartas da Comissão não deviam ser por esta tomados em consideração na sua apreciação da questão de saber se existia interesse comunitário no prosseguimento do exame das denúncias: o facto de apenas os tribunais nacionais serem competentes para atribuir indemnizações e o facto de os tribunais nacionais não estarem vinculados por uma «decisão» da Comissão. (Na sua carta de 12 de Novembro de 1992, não parece que a Comissão se tenha referido ao efeito que produzirá uma decisão formal da Comissão relativamente aos tribunais nacionais, mas sim ao efeito da apreciação jurídica que tenha efectuado (27)). Uma vez que os recorrentes não identificaram um qualquer pretenso erro de direito na decisão do Tribunal de Primeira Instância quanto a esta matéria, esta parte do recurso pode ser considerada como inadmissível.
42 Em todo o caso, eu creio, contudo, que ambos os factores podem ser adequadamente tidos em conta. Apesar de o facto de apenas os tribunais nacionais poderem atribuir indemnizações não justificar, por si só e em meu entender, a rejeição de uma denúncia por parte da Comissão, creio que, para decidir da existência ou não do «interesse comunitário» em que o assunto seja por ela tratado, pode em certos casos ser apropriado tomar em conta o facto de que, dada a natureza de certo caso específico, deverá em todo o caso ser iniciado um processo a nível nacional de modo a se poderem obter indemnizações.
43 Ao referir o facto de que os tribunais nacionais não estão vinculados pelas suas apreciações jurídicas, o que a Comissão tinha em mente era, presumivelmente, que, dada a apresentação do seu relatório, prosseguir com a análise da denúncia significaria, a não ser tomada uma decisão final, a tomada de uma posição informal quanto à questão de saber se se verificou ou não uma violação e que isso pouco propósito teria, pois que os tribunais nacionais não ficariam vinculados por semelhante apreciação (28). Entendo que esta razão pode adequadamente ser tida em conta para apreciar se há ou não interesse comunitário no prosseguimento do exame do processo.
44 Para terminar com esta parte do recurso, devo, talvez, salientar que não se deve pensar que nunca existirão circunstâncias, mesmo em casos em que a sua competência não é exclusiva, nas quais a Comissão esteja obrigada a prosseguir com um inquérito e, caso considere que há uma violação, a tomar uma decisão final nesse sentido. Pelo contrário, resulta claro do que acaba de ser discutido que assim o poderá exigir, em certos casos, o interesse comunitário. Mas os recorrentes não demonstraram estarmos perante esse caso.
45 As demais questões suscitadas pelo presente recurso podem ser analisadas mais brevemente.
Alegação de que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito quanto ao tempo tomado pela Comissão para a análise da denúncia
46 Os recorrentes alegam que se verificou um erro de direito, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância considerou que a investigação decorreu apenas durante seis anos e não quatorze (desde 1979). Todavia, o recurso ao Tribunal de Justiça é, como já referi, limitado a questões de direito. Portanto, este fundamento do recurso é inadmissível, pois que a questão de saber o tempo que a investigação durou é uma questão de facto e não de direito. Em todo o caso, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância começa, no n._ 1, por referir que a Comissão recebeu várias denúncias a partir de 1979.
Alegação de que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro ao considerar que as questões de direito eram novas
47 Os recorrentes também alegam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao decidir que as questões suscitadas na denúncia de 1986 constituíam novas questões de direito. Avançam com elementos de prova de que as questões tinham sido suscitadas perante a Comissão antes de 1986. Isto também constitui matéria de facto. Portanto, este fundamento do recurso é também inadmissível.
Alegação de que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao não identificar os erros de direito da Comissão
48 Os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao não identificar os erros de direito da Comissão. A Comissão sustenta que a falta de razões avançadas pelos recorrentes nesta parte da petição que trata deste fundamento do recurso deve conduzir a que esta parte do recurso seja julgada inadmissível. O argumento da Comissão tem muito peso. Constitui jurisprudência assente que o recorrente deve alegar os erros de direito cometidos pelo Tribunal de Primeira Instância para que o seu recurso seja julgado admissível (29). É certo que os recorrentes também tratam da questão dos alegados erros da Comissão na parte separada da sua petição na qual requerem ao Tribunal que anule a própria decisão da Comissão e não remeta apenas o processo ao Tribunal de Primeira Instância e que os argumentos dos recorrentes poderiam ser esclarecidos por referência a essa parte. Todavia, como adiante saliento, essa parte do recurso é, em todo o caso, manifestamente inadmissível.
Alegação de que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao avançar uma fundamentação contraditória
49 Os recorrentes sustentam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao avançar uma fundamentação contraditória. Por um lado, anulou a decisão da Comissão na parte em que esta decidiu não prosseguir o inquérito quanto aos alegados acordos entre as sociedades de gestão de direitos de autor e, todavia e por outro lado, confirmou a decisão da Comissão na parte em que esta decidiu confiar a questão da violação do artigo 86._ às autoridades nacionais. Os recorrentes sustentam que os dois aspectos não podem ser cindidos: alegam que os preços excessivos resultam da repartição do mercado. Todavia, ao anular a decisão da Comissão quanto ao primeiro aspecto, o Tribunal de Primeira Instância não afirmou que considerava que competia à Comissão e não aos tribunais nacionais tomar uma decisão quanto à alegada violação do artigo 85._ Anulou essa parte da decisão apenas com base na sua insuficiente fundamentação. Pode-se concluir que, caso a Comissão tivesse adequadamente fundamentado a sua decisão, poderia legitimamente ter confiado o prosseguimento do exame do processo aos tribunais nacionais. Por conseguinte, não existe qualquer contradição na decisão do Tribunal de Primeira Instância. Portanto, entendo que o Tribunal de Primeira Instância não avançou uma fundamentação contraditória.
Alegação de que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito na sua consideração referente à confidencialidade das investigações da Comissão
50 Os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao considerar que a confidencialidade do processo da Comissão não constituía um obstáculo à capacidade dos tribunais nacionais decidirem da questão do abuso da posição dominante. O Tribunal de Primeira Instância decidiu que a Comissão podia comunicar o seu relatório sobre a comparação das tabelas aos tribunais nacionais porque o nível destas constituía uma informação do domínio público.
51 Os argumentos dos recorrentes a este respeito não são isentos de ambiguidades. Especificamente, é difícil de concluir se estarão a argumentar que o relatório é confidencial. Todavia, mesmo que seja esse o seu argumento, a questão de saber se a informação constante do relatório era do domínio público constitui uma questão de facto; portanto, o recurso ao Tribunal de Justiça com base nessa matéria é inadmissível.
52 Os recorrentes também alegam que existiam outros elementos de prova no processo da Comissão que não podiam ser revelados aos tribunais nacionais. Todavia, esse argumento é irrelevante, porque, como anteriormente referi, os recorrentes não parecem estar a alegar que a documentação que a Comissão revelou aos tribunais nacionais é insuficiente para permitir a esses tribunais proferir uma decisão quanto à questão de saber se o artigo 86._ foi violado.
A alegada violação pela Comissão de princípios gerais de direito e o alegado desvio de poder cometido pela Comissão
53 Nas suas alegações finais, os recorrentes sustentam que a Comissão violou princípios gerais de direito e cometeu um desvio de poder. Todavia, estas alegações, em conjunção com certos argumentos sobre a subsidiariedade que anteriormente analisei, surgem numa parte separada da petição dos recorrentes que expressamente parte da premissa de que o Tribunal de Justiça anulará a decisão do Tribunal de Primeira Instância e, nos termos do artigo 54._ do Estatuto, julgará ele próprio definitivamente o litígio. Portanto e, com esta parte da petição dos recorrentes não se pretende invocar que o Tribunal de Primeira Instância tenha cometido erros de direito, mas fazem-se alegações a respeito da Comissão que são totalmente independentes das críticas avançadas contra esse acórdão. De facto em parte, apenas se repetem as alegações avançadas no Tribunal de Primeira Instância.
54 Ao optarem por esta abordagem, creio que os recorrentes se equivocaram quanto à natureza do processo de recurso. Os fundamentos do recurso devem ter por base elementos do acórdão do Tribunal de Primeira Instância que são impugnados (30). O Tribunal de Justiça só pode julgar ele próprio definitivamente o litígio caso as questões suscitadas possam ser resolvidas através da análise desse acórdão. Os recorrentes não podem avançar alegações que sejam independentes das críticas que tenham a fazer ao acórdão, nem podem simplesmente repetir os fundamentos já alegados no Tribunal de Primeira Instância (31).
55 Donde resulta que os fundamentos invocados pelos recorrentes nas suas alegações finais são manifestamente inadmissíveis.
Conclusão
56 Conclui-se, pois, que todos os fundamentos do recurso são ou inadmissíveis ou improcedentes.
57 Por conseguinte, o Tribunal deverá, em meu entender:
1) negar provimento ao recurso.
2) condenar os recorrentes nas despesas.
(1) - Acórdão de 24 de Janeiro de 1995, Colect., p. II-185.
(2) - JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22.
(3) - Colect. 1989, p. 2521.
(4) - 110/88, 241/88 e 242/88, Colect. 1989, p. 2811.
(5) - JO 1963, 127, p. 2268; EE 08 F1 p. 62.
(6) - V. processo T-24/90, Colect. 1992, p. II-2223.
(7) - Já referido na nota 1. O Tribunal de Primeira Instância proferiu no mesmo dia acórdão num processo afim, o processo T-114/92, BEMIM/Comissão, Colect. 1995, p. II-147.
(8) - V., por exemplo, processo 53/85, Akzo/Comissão, Colect. 1986, p. 1965, n._ 23; T-548/93, Ladbroke Racing/Comissão, acórdão de 18 de Setembro de 1995, Colect., p. II-2565, n._ 54; e T-575/93, Koelman/Comissão, acórdão de 9 de Janeiro de 1996, Colect., p. II-0000, n._ 29.
(9) - Luis Ortiz Blanco, EC Competition Procedure, Oxford, 1996, pp. 11 e 12 (notas de pé de página omitidas) V. também Editorial Comments, «Subsidarity in EC Competition Law enforcement», Commom Market Law Review, 1995, p. 1 e os artigos aí citados; P. Kamburoglou «EWG-Wettbewerbspolitik und Subsidiaritaet», Wirtschaft und Wettbewerb, 1993, p. 273; B. Rodgers, «Decentralisation and National Competition Authorities: Comparison with the Conflicts/Tensions under the Merger Regulation», European Competition Law Review, 1994, p. 251, e M. Van Der Woude, «National rechters en de EG Commissie: Subsidiariteit, decentralisatie of gewoon samenwerken», Nederlands Juristenblad, 1993, p. 585.
(10) - V. igualmente acórdãos de 29 de Junho de 1993, Asia Motor France e o./Comissão (T-7/92, Colect., p. II-669); de 18 de Maio de 1994, BEUC e NCC/Comissão, (T-37/92, Colect., p. II-285); BEMIM/Comissão, já referido na nota 7; Ladbroke Racing/Comissão, já referido na nota 8, e o acórdão de 24 de Janeiro de 1995, Ladbroke/Comissão (T-74/92, Colect., p. II-115).
(11) - V. n.os 71 a 98 do acórdão.
(12) - BEMIM/Comissão, já referido na nota 7, n._ 81.
(13) - JO 1993, C 39, p. 6; v., em especial, as Secções III e IV.
(14) - Acórdão de 19 de Outubro de 1995, Rendo e o./Comissão (C-19/93 P, Colect., p. I-3319, n._ 27).
(15) - V. n.os 8 a 10 supra.
(16) - Já referido na nota 6.
(17) - V. acórdão de 18 de Outubro de 1979, GEMA/Comissão (125/78, Recueil, p. 3173, n.os 17 e 18). V. também, por exemplo, acórdãos «Automec II», já referido na nota 6, n.os 75 e 76; de 18 de Novembro de 1992, Rendo e o./Comissão, (T-16/91, Colect. 1992, p. II-2417, n._ 98); de 19 de Outubro de 1995, Rendo e o./Comissão, já referido na nota 14, n._ 27, e, de data mais recente, Koelman/Comissão, já referido na nota 8, n._ 39.
(18) - V. n._ 79 do acórdão. V. os acórdãos de 11 de Outubro de 1993, Demo-Studio Schmidt/Comissão (210/81, Recueil, p. 3045, n._ 19); de 28 de Março de 1985, CICCE/Comissão (298/83, Recueil, p. 1105, n._ 18); de 17 de Novembro de 1987, BAT e Reynolds/Comissão (142/84 e 156/84, Colect. 1987, p. 4487, n._ 20), e de 19 de Outubro de 1995, Rendo e o./Comissão, já referido na nota 14, n._ 27.
(19) - V. n._ 85 do acórdão; v. acórdão de 19 de Novembro de 1995, Rendo e o./Comissão, já referido na nota 14, n._ 27. V. igualmente acórdão de 16 de Junho de 1994, SFEI e o./Comissão (C-39/93 P, Colect. 1994, p. I-2681, n.os 31 e 32, no qual o Tribunal considerou que a decisão final de arquivamento da denúncia pode ser sujeita a fiscalização jurisdicional nos termos do artigo 173._ do Tratado e isto quer essa decisão contenha ou não uma apreciação sobre a questão de saber se o Tratado foi violado.
(20) - Acórdão BEUC e NCC/Comissão, já referido na nota 10.
(21) - V. também as conclusões do juiz Edward, que assumiu as funções de advogado-geral nesse processo.
(22) - V. n._ 86 do acórdão.
(23) - V. n._ 65 do acórdão.
(24) - Referido na nota 17.
(25) - Acórdão de 28 de Fevereiro de 1991 (C-234/89, Colect. 1991, p. I-935, n.os 43 e segs.).
(26) - Referidos nas notas 6 e 17.
(27) - As expressões utilizadas foram «appréciation juridique» e «prise de position».
(28) - Acórdão de 10 de Julho de 1980, Giry e Guerlain e o. (253/78, 1/79, 2/79 e 3/79, Recueil 1980, p. 2327, n._ 13).
(29) - V. despacho de 24 de Abril de 1996, CNPAAP/Conselho (C-87/95 P, ainda não publicado na Colectânea, n._ 31).
(30) - V., por exemplo, despacho CNPAAP/Conselho, referido na nota 29, n.os 29 e 31.
(31) - V. despachos de 26 de Setembro de 1994, X/Comissão (C-26/94 P, Colect., p. I-4379, n._ 13; de 14 de Dezembro de 1995, Hogan/Tribunal de Justiça, (C-173/95 P, Colect., p. I-4905, n._ 20), e CNPAAP/Conselho, já referido na nota 29, n._ 30.