61993J0392

Acórdão do Tribunal de 26 de Março de 1996. - The Queen contra H. M. Treasury, ex parte British Telecommunications plc. - Pedido de decisão prejudicial: High Court of Justice, Queen's Bench Division - Reino Unido. - Pedido prejudicial - Interpretação da Directiva 90/531/CEE - Telecomunicações - Transposição para o direito nacional - Obrigação de indemnização em caso de errada transposição. - Processo C-392/93.

Colectânea da Jurisprudência 1996 página I-01631


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


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1. Aproximação das legislações ° Procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações ° Directiva 90/531 ° Determinação dos serviços de telecomunicações excluídos do seu âmbito de aplicação ° Prerrogativa que pertence às entidades adjudicantes ° Transposição incorrecta por um Estado-Membro ° Obrigação de o Estado indemnizar os prejuízos sofridos por uma entidade adjudicante ° Inexistência

(Directiva 90/531 do Conselho, artigo 8. , n. 1)

2. Aproximação das legislações ° Procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações ° Directiva 90/531 ° Âmbito de aplicação ° Exclusão dos contratos celebrados por entidades que oferecem os seus serviços em condições de concorrência ° Verificação em termos de facto e de direito ° Critérios

(Directiva 90/531 do Conselho, artigo 8. , n. 1)

3. Direito comunitário ° Violação por um Estado-Membro ° Execução duma directiva ° Obrigação de reparar o prejuízo causado aos particulares ° Condições

Sumário


1. Um Estado-Membro não pode, ao proceder à transposição da Directiva 90/531, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, determinar os serviços de telecomunicações excluídos do âmbito de aplicação desta directiva nos termos do seu artigo 8. , n. 1, prerrogativa essa de que gozam as entidades adjudicantes.

Sendo assim, o direito comunitário não obriga um Estado-Membro que, ao transpor essa directiva para o seu direito nacional, tenha ele próprio determinado os serviços de uma entidade adjudicante dela excluídos nos termos do artigo 8. , a indemnizar essa entidade pelos prejuízos por ela eventualmente sofridos em consequência do erro assim cometido.

Com efeito, não estão reunidas neste caso concreto todas as condições necessárias para que a violação do direito comunitário cometida por um Estado-Membro no exercício da actividade normativa de transposição de uma directiva, que comporta uma margem de apreciação, faça nascer a obrigação de este reparar o prejuízo causado aos particulares. Não se verifica a violação suficientemente caracterizada do direito comunitário, uma vez que o n. 1 do artigo 8. , incorrectamente transposto, é pouco preciso e a interpretação que dele foi feita de boa fé pelo Estado-Membro em questão, ainda que errada, não era manifestamente contrária à letra da directiva nem ao objectivo por ela prosseguido.

2. À luz da sua letra e do seu objectivo, a condição constante do artigo 8. , n. 1, da Directiva 90/531, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, para que sejam excluídos do seu âmbito de aplicação certos contratos celebrados por entidades que fornecem serviços nos domínios considerados e que consiste em que "outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas", deve ser preenchida tanto no plano jurídico como no dos factos, tomando designadamente em consideração todas as características dos serviços em causa, a existência de serviços de substituição, as condições de preço, a posição dominante no mercado da entidade adjudicante, bem como eventuais condicionalismos legais.

3. Quando uma violação do direito comunitário é imputável a um Estado-Membro que age num sector em que dispõe de ampla margem de apreciação para proceder a opções normativas, o direito comunitário reconhece o direito de indemnização a favor dos particulares lesados, desde que estejam reunidas três condições, a saber: que a norma jurídica violada vise atribuir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que exista um nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas.

Estas condições são aplicáveis no caso de um Estado-Membro transpor incorrectamente uma directiva comunitária para o seu direito nacional. Com efeito, justificam-se neste caso condições restritivas da responsabilidade do Estado-Membro pelos fundamentos já acolhidos para justificar as condições restritivas de responsabilidade extracontratual das instituições ou dos Estados-Membros no exercício da sua actividade normativa em sectores abrangidos pelo direito comunitário em que gozam de amplo poder de apreciação, designadamente pela preocupação de que o exercício dessa actividade normativa não seja entravado pela perspectiva de acções de indemnização sempre que o interesse geral exija que tais instituições ou Estados-Membros adoptem medidas susceptíveis de lesar os interesses de particulares.

Partes


No processo C-392/93,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, pela High Court of Justice, Queen' s Bench Division, Divisional Court, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

The Queen

e

H. M. Treasury,

ex parte: British Telecommunications plc,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do n. 1 do artigo 8. da Directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 297, p. 1),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. N. Kakouris, D. A. O. Edward e J.-P. Puissochet, presidentes de secção, G. F. Mancini, F. A. Schockweiler, J. C. Moitinho de Almeida (relator), C. Gulmann e J. L. Murray, juízes,

advogado-geral: G. Tesauro,

secretário: L. Hewlett, administradora,

vistas as observações escritas apresentadas:

° em representação da British Telecommunications plc, por G. Barling, QC, T. Sharpe e H. Davies, barristers, mandato por C. Green, solicitor e Chief Legal adviser,

° em representação do Governo do Reino Unido, por J. Collins, Assistant Treasury Solicitor, na qualidade de agente, e J. Beloff, QC,

° em representação do Governo francês, por H. Duchène, secretária dos Negócios Estrangeiros no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e C. de Salins, consultora dos Negócios Estrangeiros no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

° em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. van Lier, consultor jurídico, e D. McIntyre, funcionário nacional destacado junto do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da British Telecommunications plc, representada por G. Barling, T. Sharpe e H. Davies, do Governo do Reino Unido, representado por J. Collins, K. P. E. Lasok, QC, e S. Richards, barrister, do Governo alemão, representado por E. Roeder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, na qualidade de agente, do Governo italiano, representado por I. Braguglia, avvocato dello Stato, bem como da Comissão, representada por H. van Lier e D. McIntyre, na audiência de 26 de Outubro de 1994,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 28 de Novembro de 1995,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão de 28 de Julho de 1993, entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de Agosto seguinte, a High Court of Justice, Queen' s Bench Division, Divisional Court (a seguir "Divisional Court"), submeteu, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, quatro questões relativas à interpretação do n. 1 do artigo 8. da Directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 297, p. 1; a seguir "directiva").

2 Essas questões foram suscitadas no âmbito de um recurso interposto pela British Telecommunications plc (a seguir "BT") contra o Governo do Reino Unido, visando a anulação do anexo 2 das "Utilities Supply and Works Contracts Regulations 1992" (a seguir "regulamentos de 1992"), que deram execução ao n. 1 do artigo 8. da directiva.

3 De acordo com a alínea d) do n. 2 do artigo 2. da directiva, as actividades abrangidas no seu âmbito de aplicação são, designadamente, "... a colocação à disposição ou a exploração de redes públicas de telecomunicações ou a prestação de um ou mais serviços públicos de telecomunicações".

4 Nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 2. , a directiva é aplicável às entidades adjudicantes "que, no caso de não serem poderes públicos ou empresas públicas, incluam entre as suas actividades uma das actividades mencionadas no n. 2, ou várias dessas actividades e beneficiem de direitos especiais ou exclusivos concedidos por uma autoridade competente de um Estado-Membro". A alínea a) do n. 3 do artigo 2. precisa ainda que, para efeitos da aplicação da alínea b) do n. 1, uma entidade adjudicante beneficia de direitos especiais ou exclusivos, nomeadamente quando, "para a construção das redes ou a criação das instalações a que se refere o n. 2, esta entidade pode recorrer a um processo de expropriação pública ou de colocação ao serviço, ou utilizar o solo, o subsolo e o espaço sobre a via pública para instalar os equipamentos de redes".

5 De acordo com o n. 6 do artigo 2. , "as entidades adjudicantes referidas nos Anexos I a X devem preencher os critérios acima definidos". O Anexo X, precisamente relativo às "entidades adjudicantes do sector das telecomunicações", menciona designadamente, quanto ao Reino Unido, a BT, a Mercury Communications Ltd (a seguir "Mercury") e a City of Kingston upon Hull (a seguir "Hull").

6 O artigo 8. da directiva estabelece:

"1. A presente directiva não é aplicável aos contratos que as entidades adjudicantes... celebrem para as suas aquisições exclusivamente destinadas a permitir-lhes garantir um ou mais serviços de telecomunicações, sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas.

2. As entidades adjudicantes comunicarão à Comissão, a pedido desta, os serviços que considerem excluídos por força do n. 1. A Comissão pode publicar periodicamente no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, a título de informação, a lista dos serviços que considera excluídos por força do n. 1. Para o efeito, a Comissão deve respeitar o carácter comercial sensível, susceptível de ser alegado pelas entidades adjudicantes aquando da comunicação destas informações."

7 Por último, a alínea d) do n. 1 do artigo 33. prevê:

"1. As entidades adjudicantes conservarão as informações adequadas relativas a cada processo de atribuição de um contrato que lhes permitam justificar posteriormente as decisões relativas:

...

d) à não aplicação das disposições dos títulos II, III e IV por força das derrogações previstas no título I."

8 No Reino Unido, a transposição do n. 1 do artigo 8. da directiva foi feita pelo n. 1 do artigo 7. dos regulamentos de 1992, nos termos do qual

"Estes regulamentos não são aplicáveis aos concursos que visam a celebração de contratos por uma das entidades referidas no anexo 2 exclusivamente destinados a permitir-lhe garantir um ou vários dos serviços de telecomunicações especificados na parte do anexo 2 em que tal entidade é mencionada."

9 A parte B do referido anexo 2 está redigida da seguinte forma:

"British Telecommunications plc

Kingston Communications (Hull) plc

2. Todos os serviços públicos de telecomunicações, com excepção dos adiante mencionados, quando prestados numa área geográfica relativamente à qual o fornecedor goze de uma licença na qualidade de operador público de telecomunicações: os serviços de base de telefonia vocal, os serviços de base de transmissão de dados, o fornecimento de circuitos privados em regime de

aluguer e os serviços marítimos."

10 O n. 2 do artigo 7. acrescenta:

"Cada serviço público referido no anexo 2 deverá remeter ao ministro, para posterior transmissão à Comissão, um relatório descrevendo os serviços de telecomunicações públicas que fornece e considera serem serviços do tipo previsto na parte do anexo 2 em que esse serviço público é mencionado."

11 A BT é uma sociedade por acções de responsabilidade limitada, constituída em 1 de Abril de 1984 nos termos do British Telecommunications Act de 1984 (lei de 1984 relativa às telecomunicações). Para ela foi transferida a propriedade, bem como todos os direitos e obrigações, da antiga sociedade de direito público, também ela designada British Telecommunications, a qual, por sua vez, nos termos do British Communications Act de 1981, sucedera ao Post Office, tendo este detido até essa data o monopólio da gestão dos sistemas de telecomunicações em quase todo o território.

12 No sector dos serviços de telecomunicação de sinais através de ligações fixas (de que faz parte a telefonia vocal com terminais fixos), o Governo do Reino Unido concedeu, na sequência da lei de 1984 relativa às telecomunicações, as necessárias licenças à BT e à Mercury. No intuito de garantir uma mais ampla concorrência, a interconexão das duas redes foi imposta pela lei de 1984 relativa às telecomunicações. A BT e a Mercury obtiveram, assim, o exclusivo da exploração dos serviços de telecomunicações via ligações fixas até 1990 (período de duopólio).

13 A política de duopólio foi abandonada neste sector no início dos anos 90. Numerosas licenças foram concedidas pelo Governo do Reino Unido. Contudo, a BT controlava ainda, em 1992, 90% da actividade telefónica, sendo que a Mercury controlava 7% e os novos fornecedores apenas 3%. De 1984 a Julho de 1993, o governo cedeu progressivamente as acções que ainda detinha no capital da BT.

14 A licença concedida à BT pelo prazo de 25 anos obriga-a a fornecer serviços de telefonia vocal a quem lho solicite no conjunto do Reino Unido, salvo algumas excepções, mesmo que a procura seja insuficiente para cobrir os custos suportados (obrigação de serviço universal). A BT é o único titular de licença sujeito a uma regulamentação relativa à variação das suas tarifas ("price cap").

15 Da forma como transpuseram o artigo 8. da directiva, os regulamentos de 1992 excluíram quase todos os operadores do sector, incluindo a Mercury, da obrigação de o aplicarem nos mercados relativamente aos contratos de fornecimento de serviços de telecomunicações. Só a BT (e a Hull na zona abrangida pela sua concessão) permanecem sujeitas às disposições da directiva, mas apenas quanto aos serviços de base de telefonia vocal, aos serviços de base de transmissão de dados, ao fornecimento de circuitos privados em regime de aluguer e aos serviços marítimos.

16 No recurso interposto na Divisional Court, a BT solicita a anulação do anexo 2 dos regulamentos de 1992 com o fundamento de o n. 1 do artigo 7. e tal anexo constituírem execução errada do artigo 8. da directiva. Com efeito, a BT entende que o Governo do Reino Unido devia ter transposto os critérios constantes do n. 1 do artigo 8. da directiva, em vez de proceder à sua aplicação. Ao determinar, para cada entidade adjudicante, quais os serviços fornecidos susceptíveis de preencher tais critérios, o Governo do Reino Unido privou a BT do poder de decisão que a directiva lhe concede.

17 A BT reclama também indemnização do prejuízo que diz ter sofrido em consequência da transposição errada da directiva, a saber, os custos suplementares que suportou para se conformar com os regulamentos de 1992. Além disso, tais regulamentos impediram-na de efectuar operações rentáveis e causaram prejuízos no plano comercial e da concorrência decorrentes da obrigação, a que não estão submetidos os demais operadores do sector, de publicar no Jornal Oficial os seus projectos em matéria de contratos de direito público e contratos de fornecimento.

18 No âmbito do recurso interposto pela BT, a Divisional Court decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

"1) Numa correcta interpretação da Directiva 90/531 do Conselho, cabe no âmbito da discricionariedade concedida a um Estado-Membro pelo artigo 189. do Tratado CEE, ao dar cumprimento ao artigo 8. , n. 1, da directiva, definir ele próprio os serviços de telecomunicações, prestados por cada entidade adjudicante, relativamente aos quais a exclusão contida nesse artigo se aplica ou não?

2) a) A frase 'sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas' contida no artigo 8. , n. 1, abrange apenas a 'possibilidade' e as 'condições' de natureza legal ou regulamentar?

b) Em caso de resposta negativa à questão 2 a):

i) a que outros aspectos se refere a frase; e

ii) a posição que uma entidade adjudicante ocupa no mercado de um determinado serviço de telecomunicações é relevante para esses aspectos; e

iii) no caso de a sua posição ser relevante, qual a sua importância e, em especial, em que circunstâncias pode ser decisiva?

c) As respostas às questões ii) e iii) da alínea b) são afectadas pelo facto de essa entidade estar sujeita a obrigações regulamentares e, em caso afirmativo, em que aspectos são afectadas?

3) Em caso de resposta afirmativa à questão 1:

a) Em caso de litígio entre uma entidade adjudicante e as autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8. , n. 1, como pode o tribunal nacional chamado a conhecer do litígio certificar-se de que os critérios de aplicação da exclusão contida no artigo 8. , n. 1, são correctamente aplicados e, designadamente, deverá substituir pela sua própria apreciação da aplicação da exclusão contida no artigo 8. , n. 1, a apreciação das autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8. , n. 1?

b) Se o tribunal nacional considerar que as definições de determinados serviços de telecomunicações adoptadas pelas autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8. , n. 1, com vista a determinar se um determinado serviço é ou não abrangido pela exclusão, são de molde a tornar impossível à entidade adjudicante determinar se um determinado serviço está ou não abrangido, houve violação da Directiva 90/531/CEE, ou de qualquer outro princípio geral do direito comunitário, designadamente da exigência de segurança jurídica?

c) Ao definir determinados serviços de telecomunicações, um Estado-Membro tem o direito de adoptar definições baseadas em descrições dos meios técnicos de prestação do serviço, e não na descrição do próprio serviço?

4) Se um Estado-Membro tiver aplicado erradamente o artigo 8. , n. 1, da Directiva 90/531/CEE do Conselho, fica, nos termos do direito comunitário, obrigado a indemnizar uma entidade adjudicante pelos prejuízos por esta sofridos devido a esse erro e, em caso afirmativo, quais os pressupostos dessa responsabilidade?"

Quanto à primeira questão

19 Pela primeira questão, a Divisional Court pergunta, no essencial, se um Estado-Membro pode, ao transpor a directiva, determinar os serviços de telecomunicações excluídos do âmbito de aplicação da directiva por força do n. 1 do artigo 8. , ou se essa determinação incumbe às próprias entidades adjudicantes.

20 Os Governos alemão, francês, italiano e do Reino Unido entendem que a directiva não impede os Estados-Membros de designarem os serviços de telecomunicações fornecidos por cada entidade adjudicante a que é aplicável a exclusão prevista no n. 1 do artigo 8. Ao procederem dessa forma, precisam o conteúdo dessa disposição e possibilitam um controlo jurisdicional, inexistente em caso contrário.

21 Os Governos alemão e do Reino Unido entendem, além disso, poder revelar-se particularmente necessária tal execução do n. 1 do artigo 8. quando existam divergências entre o Estado-Membro e uma entidade adjudicante quanto à definição do âmbito de aplicação da exclusão, o que, aliás, sucede no caso em apreço. O Governo alemão acrescenta que os Estados-Membros estão numa posição bem mais favorável do que a Comissão para apreciar se a situação do mercado das telecomunicações é concorrencial no que se refere a determinado serviço e que, assim sendo, a concretização feita por esses Estados do n. 1 do artigo 8. possibilita um controlo bem mais eficaz do que o efectuado pela Comissão com base nas informações obtidas nos termos do n. 2 do mesmo artigo.

22 Finalmente, este último governo sublinha, em particular, que o n. 2 do artigo 8. e a alínea d) do n. 1 do artigo 33. não autorizam a conclusão de que só as entidades adjudicantes podem determinar os serviços que devem ser considerados excluídos. Com efeito, não é o facto de tais entidades estarem obrigadas, nos termos dessas disposições, a fornecer informações à Comissão sobre os serviços excluídos, bem como a conservar as informações adequadas relativas a cada processo de atribuição de um contrato que lhes permitam justificar posteriormente a não aplicação dos títulos II, III e IV da directiva, que impede de poder entender-se que os Estados-Membros têm a faculdade de eles próprios determinarem o âmbito da exclusão prevista no n. 1 do artigo 8.

23 Esta argumentação não pode ser acolhida.

24 Com efeito, o n. 2 do artigo 8. da directiva, como aliás o n. 3 do artigo 6. e o n. 2 do artigo 7. , determina que as entidades adjudicantes comunicarão à Comissão, a pedido desta, os serviços que considerem excluídos por força dos referidos artigos. Se competisse aos Estados-Membros determinar os serviços em causa, os serviços assim excluídos da aplicação da directiva deviam ser também comunicados por esses Estados à Comissão, para esta poder cumprir a missão que lhe incumbe por força das referidas disposições.

25 Uma vez que a directiva não previu, a exemplo do disposto no n. 4 do artigo 3. , tal obrigação dos Estados-Membros, a decisão de determinar os serviços excluídos nos termos do n. 1 do artigo 8. compete exclusivamente às entidades adjudicantes.

26 Esta interpretação é confortada pelo objectivo prosseguido pela Directiva 92/13/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 76, p. 14, a seguir "Directiva 92/13"), que é o de garantir protecção jurídica adequada dos fornecedores ou empreiteiros em caso de violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público (v., neste sentido, o quinto considerando da Directiva 92/13).

27 Com efeito, se competisse aos Estados-Membros decidir quanto à exclusão de determinados serviços do âmbito de aplicação da directiva, os operadores económicos não poderiam beneficiar dos instrumentos jurídicos previstos na Directiva 92/13 em caso de violação pelas entidades adjudicantes das normas comunitárias em matéria de contratos públicos, e, designadamente, do direito à reparação dos prejuízos e às medidas compulsórias previstas no n. 1 do artigo 2. para prevenir ou fazer cessar toda e qualquer infracção.

28 Por último, a interpretação acolhida permite garantir uma igualdade de tratamento entre as entidades adjudicantes e os seus fornecedores, todos eles sujeitos às mesmas regras.

29 Cabe, pois, responder à primeira questão que um Estado-Membro não pode, ao proceder à transposição da directiva, determinar os serviços de telecomunicações excluídos do âmbito de aplicação da directiva por força do n. 1 do artigo 8. , prerrogativa essa de que gozam as entidades adjudicantes.

Quanto à segunda questão

30 Pela segunda questão, a Divisional Court pergunta se a condição estabelecida no n. 1 do artigo 8. , ou seja, "sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas", terá de ser apenas preenchida em termos jurídicos ou também de facto. Para esta última hipótese, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta quais os elementos a atender para apreciar se a situação do mercado das telecomunicações é efectivamente concorrencial relativamente a determinado serviço.

31 A BT sustenta que a condição instituída no n. 1 do artigo 8. se encontra preenchida desde que disposições legislativas ou regulamentares garantam juridicamente a livre concorrência no sector em causa, sem que seja necessário verificar se essa concorrência existe efectivamente.

32 Observe-se, a este respeito, que a redacção do n. 1 do artigo 8. , bem como o objectivo prosseguido por esta disposição, se opõem a esta interpretação. A condição de outras entidades adjudicantes terem a possibilidade de oferecer os mesmos serviços em condições substancialmente idênticas é, com efeito, formulada em termos genéricos pelo n. 1 do artigo 8. Além disso, o décimo terceiro considerando da directiva afirma que, para poderem ser excluídas do âmbito de aplicação da directiva, as actividades das entidades adjudicantes devem estar "directamente sujeitas ao jogo da concorrência em mercados cujo acesso não seja limitado".

33 A condição exigida no n. 1 do artigo 8. deve, pois, ser interpretada no sentido de que as outras entidades adjudicantes devem não só estar autorizadas a operar no mercado dos serviços em causa, cujo acesso não é limitado por lei, mas também estarem em condições de fornecer efectivamente os serviços em causa em condições idênticas às da entidade adjudicante.

34 Assim sendo, a decisão de excluir determinados serviços do âmbito de aplicação da directiva deve ser adoptada caso a caso, tomando designadamente em consideração todas as suas características, a existência de serviços de substituição, as condições de preço, a posição dominante da entidade adjudicante no mercado, bem como a existência de eventuais condicionalismos legais.

35 Deve, pois, responder-se à segunda questão que a condição, instituída no n. 1 do artigo 8. da directiva, de que "outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas", deve ser preenchida tanto no plano jurídico como no dos factos, tomando designadamente em consideração todas as características dos serviços em causa, a existência de serviços de substituição, as condições de preço, a posição dominante no mercado da entidade adjudicante, bem como eventuais condicionalismos legais.

Quanto à terceira questão

36 Considerando a resposta dada à primeira questão, não é necessário responder à terceira questão.

Quanto à quarta questão

37 Pela quarta questão, a Divisional Court pretende saber se o direito comunitário obriga o Estado-Membro que tenha ele próprio determinado, quando da transposição da directiva para direito nacional, os serviços de uma entidade adjudicante excluídos nos termos do artigo 8. , a indemnizar essa empresa dos prejuízos sofridos em consequência do erro assim cometido.

38 Recorde-se a a título liminar que o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema do Tratado (acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o., C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357, n. 35, e de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colect., p. I-0000, n. 31). Daqui resulta que tal princípio é válido para qualquer caso de violação do direito comunitário por um Estado-Membro (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n. 32).

39 Cabe recordar que, no último acórdão referido, o Tribunal de Justiça julgou também, a propósito de uma violação do direito comunitário imputável a um Estado-Membro que agia num sector em que dispunha de ampla margem de apreciação para proceder a opções normativas, que o direito comunitário reconhece o direito de indemnização desde que estejam reunidas três condições, a saber: que a norma jurídica violada vise atribuir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que exista nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas (n.os 50 e 51).

40 Cabe aplicar tais condições à hipótese submetida ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio, a saber, a de um Estado-Membro transpor incorrectamente uma directiva comunitária para direito nacional. Com efeito, justificam-se, neste caso, condições restritivas da responsabilidade do Estado-Membro pelos fundamentos já acolhidos pelo Tribunal de Justiça para justificar as condições restritivas de responsabilidade extracontratual das instituições ou dos Estados-Membros no exercício da sua actividade normativa em sectores abrangidos pelo direito comunitário em que gozam de amplo poder de apreciação, designadamente pela preocupação de que o exercício dessa actividade normativa não seja entravado pela perspectiva de acções de indemnização sempre que o interesse geral exija que tais instituições ou Estados-Membros adoptem medidas susceptíveis de lesar os interesses de particulares (v., designadamente, acórdãos de 25 de Maio de 1978, HNL e o./Conselho e Comissão, 83/76, 94/76, 4/77, 15/77 e 40/77, Recueil, p. 1209, n.os 5 e 6, e Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n. 45).

41 Embora seja, em princípio, da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se estão reunidas as condições da responsabilidade dos Estados decorrente da violação do direito comunitário, cabe constatar que, no presente processo, o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos necessários para apreciar se os factos em apreço devem ser qualificados como violação suficientemente caracterizada do direito comunitário.

42 Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma violação é suficientemente caracterizada quando uma instituição ou um Estado-Membro viole de forma manifesta e grave, no exercício da sua competência normativa, os limites impostos ao exercício dessa competência (acórdãos HNL e o./Conselho e Comissão, já referido, n. 6, e Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n. 55). A este respeito, o grau de clareza e de precisão da norma violada é, designadamente, um dos elementos que a jurisdição competente pode ser conduzida a tomar em consideração (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, n. 56).

43 No caso vertente, cabe declarar que o n. 1 do artigo 8. é pouco preciso, admitindo razoavelmente, para além da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça no presente acórdão, a interpretação que dele foi feita de boa fé pelo Reino Unido com base em argumentos não destituídos de toda e qualquer pertinência (v. supra, n.os 20 a 22). Esta interpretação, também partilhada por outros Estados-Membros, não é manifestamente contrária à letra da directiva, nem ao objectivo por ela prosseguido.

44 Além disso, é de salientar, em especial, que o Reino Unido não dispunha de nenhuma indicação decorrente da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a interpretação da disposição em causa, sobre a qual a Comissão também não se pronunciara aquando da adopção dos regulamentos de 1992.

45 Nestas condições, o facto de, ao transpor a directiva, um Estado-Membro ter considerado necessário determinar por si próprio os serviços excluídos do seu âmbito de aplicação nos termos do artigo 8. , em violação desta disposição, não pode ser considerado como violação suficientemente caracterizada do direito comunitário, na acepção do acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido.

46 Cabe, pois, responder à quarta questão que o direito comunitário não obriga o Estado-Membro, que, ao transpor a directiva para o direito nacional, tenha ele próprio determinado os serviços de uma entidade adjudicante dela excluídos nos termos do artigo 8. , a indemnizar essa entidade pelos prejuízos por ela eventualmente sofridos em consequência do erro assim cometido.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

47 As despesas efectuadas pelos Governos alemão, francês e italiano, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pela High Court of Justice, Queen' s Bench Division, Divisional Court, por decisão de 28 de Julho de 1993, declara:

1) Um Estado-Membro não pode, ao proceder à transposição da directiva, determinar os serviços de telecomunicações excluídos do âmbito de aplicação da Directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, por força do n. 1 do artigo 8. , prerrogativa essa de que gozam as entidades adjudicantes.

2) A condição instituída no n. 1 do artigo 8. da Directiva 90/531, de que "outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas", deve ser preenchida tanto no plano jurídico como no dos factos, tomando designadamente em consideração todas as características dos serviços em causa, a existência de serviços de substituição, as condições de preço, a posição dominante no mercado da entidade adjudicante, bem como eventuais condicionalismos legais.

3) O direito comunitário não obriga o Estado-Membro, que, ao transpor a Directiva 90/531 para o direito nacional, tenha ele próprio determinado os serviços de uma entidade adjudicante dela excluídos nos termos do artigo 8. , a indemnizar essa entidade pelos prejuízos por ela eventualmente sofridos em consequência do erro assim cometido.