ACORDAO DO TRIBUNAL DE 28 DE MARCO DE 1995. - THE QUEEN CONTRA SECRETARY OF STATE FOR HOME DEPARTMENT, EX PARTE EVANS MEDICAL LTD E MACFARLAN SMITH LTD. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: HIGH COURT OF JUSTICE, QUEEN'S BENCH DIVISION - REINO UNIDO. - LIVRE CIRCULACAO DE MERCADORIAS - IMPORTACAO DE UM ESTUPEFACIENTE (DIACETILMORFINA). - PROCESSO C-324/93.
Colectânea da Jurisprudência 1995 página I-00563
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
++++
1. Livre circulação de mercadorias ° Restrições quantitativas ° Medidas de efeito equivalente ° Artigo 30. do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Proibição de importar os estupefacientes referidos pela convenção única de 1961 e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta ° Inclusão ° Manutenção da medida nos termos do artigo 234. do Tratado ° Irrelevância
(Tratado CEE, artigos 30. e 234. )
2. Livre circulação de mercadorias ° Restrições quantitativas ° Medidas de efeito equivalente ° Artigo 30. do Tratado ° Efeito directo ° Dever do juiz nacional em presença de obrigações relativas a Estados terceiros, resultantes de acordos anteriores ao Tratado CEE, inconciliáveis com as decorrentes do artigo 30. ° Aplicação da princípio da preeminência do artigo 234.
(Tratado CEE, artigos 30. e 234. )
3. Livre circulação de mercadorias ° Derrogações ° Artigo 36. do Tratado ° Alcance °Medida destinada a assegurar a sobrevivência de uma empresa ° Exclusão ° Protecção da saúde pública ° Medida destinada, apesar da proibição das importações, a garantir a segurança dos abastecimentos em estupefacientes para fins médicos através do recurso à produção nacional ° Admissibilidade ° Condições
(Tratado CEE, artigo 36. )
4. Aproximação das legislações ° Processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público ° Directiva 77/62 ° Adjudicação dos contratos ° Proposta economicamente mais vantajosa ° Critérios ° Segurança de abastecimento ° Admissibilidade ° Condições
(Directiva 77/62 do Conselho, artigo 25. )
1. O artigo 30. do Tratado é aplicável a uma prática nacional que proíbe a importação de estupefacientes abrangidos pela convenção e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta.
Com efeito, os referidos estupefacientes, enquanto objectos transportados para além de uma fronteira para transacções comerciais, estão sujeitos ao artigo 30. , qualquer que seja a natureza dessas transacções. Por outro lado, o facto de a proibição de importação poder resultar de uma convenção internacional anterior ao Tratado ou à adesão de um Estado-Membro e de o Estado-Membro manter essa medida por força do artigo 234. , não obstante o facto de constituir um entrave, não tem por efeito subtraí-la do âmbito de aplicação do artigo 30. , porque o artigo 234. só se aplica se a convenção impuser a um Estado-Membro uma obrigação incompatível com o Tratado.
2. O artigo 30. do Tratado deve ser interpretado no sentido de que um Estado-Membro deve assegurar a plena eficácia dessa disposição, deixando de aplicar uma prática nacional contrária, salvo se essa prática for necessária para assegurar o cumprimento pelo Estado-Membro em causa de obrigações em relação a Estados terceiros resultantes de uma convenção concluída antes da entrada em vigor do Tratado ou da adesão desse Estado-Membro.
Todavia, não é ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo prejudicial, mas ao juiz nacional que compete verificar quais são as obrigações que incumbem, por força de uma convenção internacional anterior, ao Estado-Membro em causa, e traçar os seus limites de forma a determinar em que medida essas obrigações impedem a aplicação dos artigos 30. e 36. do Tratado. A este respeito, quando uma convenção internacional permite a um Estado-Membro adoptar uma medida contrária ao direito comunitário, sem todavia a isso obrigar, o Estado-Membro deve-se abster de adoptar tal medida.
3. Uma prática nacional que consiste em recusar uma licença para a importação de estupefacientes provenientes de outro Estado-Membro não beneficia da derrogação do artigo 36. do Tratado quando for justificada pela necessidade de assegurar a sobrevivência de uma empresa, mas pode, em contrapartida, beneficiar dessa derrogação quando a protecção da saúde e da vida das pessoas exigir que seja garantido um abastecimento estável de estupefacientes para fins médicos essenciais e esse objectivo não possa ser atingido de forma igualmente eficaz por medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias que não seja a exclusividade de abastecimento instituída a favor da produção nacional.
4. A Directiva 77/62, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público, conforme alterada pela Directiva 88/295, deve ser interpretada no sentido de que autoriza as entidades aí referidas, que desejem adquirir diacetilmorfina, a atribuir o contrato tendo em consideração a capacidade das empresas proponentes de assegurar de modo fiável e constante o abastecimento do Estado-Membro em causa.
Com efeito, a segurança dos abastecimentos, uma vez que seja claramente referida como critério para atribuição do contrato, pode fazer parte dos critérios a ter em consideração, nos termos do artigo 25. da directiva, para determinar a proposta economicamente mais vantajosa no âmbito de um contrato destinado ao fornecimento, às autoridades em questão, de um produto como o que está em causa no processo principal.
No processo C-324/93,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, pela High Court of Justice (Queen' s Bench Division) e destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre
The Queen
e
Secretary of State for the Home Department,
ex parte: Evans Medical Ltd e Macfarlan Smith Ltd,
interveniente:
Generics (UK) Ltd,
uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação, por um lado, dos artigos 30. , 36. e 234. do Tratado CEE e, por outro, da Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público (JO 1977, L 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29), conforme alterada pela Directiva 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988 (JO L 127, p. 1),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, F. A. Schockweiler e P. J. G. Kapteyn, presidentes de secção, G. F. Mancini, C. N. Kakouris, J. L. Murray (juiz-relator) e D. A. O. Edward, juízes,
advogado-geral: C. O. Lenz
secretário: L. Hewlett, administradora
vistas as observações escritas apresentadas:
° em representação da Macfarlan Smith Ltd, por Mark Barnes, QC,
° em representação da Generics (UK) Ltd, por Michael Burton, QC, e Nicholas Green, barrister,
° em representação do Governo do Reino Unido, por S. Lucinda Hudson, do Treasury Solicitor' s Department, e Richard Plender, QC, na qualidade de agentes,
° em representação do Governo francês, por Catherine de Salins, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Hélène Duchène, secretária dos negócios estrangeiros na mesma direcção, na qualidade de agentes,
° em representação do Governo irlandês, por Michael A. Buckley, Chief State Solicitor, na qualidade de agente, e James Hamilton, barrister-at-law,
° em representação do Governo português, por Luís Fernandes, director do Serviço Jurídico da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Maria Luísa Duarte, consultora jurídica no mesmo ministério, na qualidade de agentes,
° em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Richard Wainwright, consultor jurídico, e Virginia Melgar, funcionária nacional destacada no Serviço Jurídico da Comissão, na qualidade de agentes,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações da Macfarlan Smith Ltd, representada por Mark Barnes, QC, e Alan Griffiths, barrister, da Generics (UK) Ltd, representada por Stephen Kon e Michael Rose, solicitors, do Governo do Reino Unido e da Comissão na audiência de 5 de Julho de 1994,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 4 de Outubro de 1994,
profere o presente
Acórdão
1 Por decisão de 23 de Junho de 1993, que deu entrada no Tribunal de Justiça no dia 25 do mesmo mês, a High Court of Justice (Queen' s Bench Division) submeteu, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação, por um lado, dos artigos 30. , 36. e 234. do Tratado CEE e, por outro, da Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público (JO 1977, L 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29), conforme alterada pela Directiva 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988 (JO L 127, p. 1, a seguir "directiva").
2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe as sociedades Evans Medical Ltd (a seguir "Evans") e Macfarlan Smith Ltd (a seguir "Macfarlan") ao Secretary of State for the Home Department (a seguir "Secretary of State"), apoiado pela Generics (UK) Ltd (a seguir "Generics"), devido à importação para o Reino Unido por esta última sociedade de um lote de diacetilmorfina originária dos Países Baixos.
3 Segundo o Misuse of Drugs Act 1971 (lei britânica de 1971 sobre o abuso de droga), a importação da diacetilmorfina é proibida, salvo autorização do Secretary of State nos termos do artigo 3. , n. 2, alínea b).
4 A diacetilmorfina, produto derivado do ópio, é por vezes utilizada como analgésico em tratamentos médicos e especialmente no Reino Unido uma vez que, segundo os dados fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, dos 241 kg de diacetilmorfina consumidos em 1991 para fins médicos em todo o mundo, 238 kg foram consumidos nesse Estado.
5 Esse produto é abrangido pela convenção única de 1961 sobre os estupefacientes (Recueil des traités des Nations unies, 520, p. 204, a seguir "convenção") que entrou em vigor no Reino Unido em 1964 e que é também aplicável nos outros Estados-Membros.
6 Essa convenção prevê nomeadamente que os Estados contratantes:
° "tomarão as medidas legislativas e administrativas que possam ser necessárias... para limitar a fins exclusivamente médicos e científicos a produção, o fabrico, a exportação, a importação, a distribuição, o comércio, o emprego e a detenção de estupefacientes" [artigo 4. , alínea c)],
° "exigirão que o comércio e a distribuição de estupefacientes se efectuem sob licença, salvo se esse comércio ou distribuição forem efectuados por uma ou mais empresas estatais" [artigo 30. , n. 1, alínea a)], e
° "fiscalizarão por meio de uma licença a importação e a exportação de estupefacientes, salvo nos casos em que essa importação ou exportação seja efectuada por um organismo estatal" [artigo 31. , n. 3, alínea a)].
7 Até 1992, de acordo com a política seguida nessa altura no Reino Unido, o Secretary of State proibia a importação desse produto e concedia, por um lado, à Macfarlan, a exclusividade do fabrico do produto em pó à base de concentrado de palha de papoila importada de países terceiros e, por outro, concedia à Evans a exclusividade da transformação (congelação, desidratação e embalagem) do produto tendo em vista o seu uso médico e a sua comercialização no Reino Unido.
8 Segundo o Secretary of State, essa prática era justificada pela necessidade de evitar o risco de desvio da diacetilmorfina para o comércio ilegal e de garantir a segurança dos abastecimentos no Reino Unido.
9 Em Setembro de 1990, o Secretary of State indeferiu um pedido da Generics destinado a obter uma licença de importação de um lote de diacetilmorfina proveniente dos Países Baixos. Essa sociedade interpôs, depois de ter sido autorizada, um recurso judicial da decisão de indeferimento a fim de obter a declaração de que ela era contrária ao artigo 30. do Tratado e não podia ser justificada pelo artigo 36. No decurso do processo, o Secretary of State reconheceu que a recusa de conceder uma licença à Generics não era justificada e referiu que a sua decisão era objecto de nova apreciação.
10 Através de duas cartas de 17 de Agosto de 1992, o Secretary of State informou a Evans e a Macfarlan de que autorizava a Generics a importar o lote de diacetilmorfina na medida em que considerava que a política então em vigor impedia as trocas intracomunitárias e que a segurança dos abastecimentos podia ser preservada de modo satisfatório, e em toda a conformidade com o direito comunitário, pela criação de um sistema de adjudicação.
11 As recorrentes no processo principal interpuseram então um recurso no órgão jurisdicional de reenvio a fim de obter a declaração de que o raciocínio jurídico contido nessas cartas em apoio da concessão da autorização e, desse modo, do abandono da política anterior, estava viciado de um erro de direito, susceptível de provocar a anulação das decisões.
12 As recorrentes consideram que as exigências da convenção são incompatíveis com o disposto nos artigos 30. e 36. do Tratado. Consequentemente, alegaram, em primeiro lugar, que, nos termos do artigo 234. do Tratado, esses artigos não eram aplicáveis ao comércio dos estupefacientes, uma vez que a convenção foi concluída antes da adesão do Reino Unido às Comunidades e que, segundo o artigo 234. , "as disposições do presente Tratado não prejudicam os direitos e obrigações decorrentes de convenções concluídas antes da entrada em vigor do presente Tratado, entre um ou mais Estados-Membros, por um lado, e um ou mais Estados terceiros, por outro". Deste modo, segundo as recorrentes, a convenção impõe que a regulamentação anterior seja mantida.
13 Em segundo lugar, as recorrentes consideram que, mesmo que o artigo 30. do Tratado fosse aplicável, o Secretary of State, por um lado, poderia justificar pelo artigo 36. a recusa de conceder uma licença de importação à Generics e, por outro, deveria ter previamente assegurado que o sistema de adjudicação podia ser criado, era compatível com a convenção e permitia assegurar o abastecimento contínuo do serviço nacional de saúde em diacetilmorfina.
14 Foi neste contexto que o órgão jurisdicional nacional submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
"1) Os artigos 30. , 36. e 234. do Tratado CEE devem ser interpretados no sentido de que um Estado-Membro tem o direito de recusar uma licença, exigida pela sua legislação, para importar de outro Estado-Membro estupefacientes dele originários ou aí colocados em livre prática, com o fundamento de que
a) o disposto nos artigos 30. a 36. não é aplicável aos estupefacientes, na acepção ou no âmbito da Convenção Única sobre os Estupefacientes, concluída em Nova Iorque em 30 de Março de 1961; e/ou
b) o respeito da convenção exigiria, na prática, a atribuição arbitrária de quotas entre importadores e produtores nacionais; e/ou o sistema de controlo previsto pela convenção seria, de outro modo, menos eficaz; e/ou
c) (dado que a Comunidade não adoptou qualquer directiva ou outra regulamentação sobre o comércio de estupefacientes que lhe permitisse declarar-se 'um só território' , nos termos do artigo 43. da Convenção Única, e de vários Estados-Membros produtores de estupefacientes proibirem a respectiva importação), a importação de estupefacientes de outro Estado-Membro poria em risco a viabilidade do único produtor autorizado no Estado-Membro em causa e a segurança do abastecimento de tais drogas para fins médicos essenciais nesse Estado-Membro?
2) A Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976 (JO 1977, L 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29), conforme alterada, deve ser interpretada no sentido de que uma entidade pública responsável pela aquisição de drogas analgésicas destinadas a utilização médica, ao celebrar contratos de fornecimento de tais drogas, pode ter em conta a necessidade de garantir a segurança e a regularidade do abastecimento?"
Quanto à pertinência das questões apresentadas
15 A título liminar, a Comissão considera que não há que responder às questões apresentadas na medida em que, por um lado, a primeira é relativa à compatibilidade com o direito comunitário de uma prática hoje abandonada e que consistia em proibir as importações de diacetilmorfina proveniente de outros Estados-Membros e, por outro, a segunda se destina a obter do Tribunal de Justiça uma interpretação do direito comunitário relativamente a uma situação puramente hipotética, isto é, a existência de um processo destinado a adquirir a diacetilmorfina no âmbito da directiva.
16 A este respeito, basta assinalar que o Secretary of State considerou que a prática nacional que consiste em proibir a importação de diacetilmorfina era contrária ao direito comunitário na medida em que a segurança do abastecimento do mercado britânico podia ser assegurada em conformidade com o direito comunitário, no âmbito da directiva. Assim, as questões apresentadas têm por objectivo permitir ao órgão jurisdicional nacional assegurar que a alteração da prática nacional se impunha efectivamente para ser compatível com o direito comunitário. Com base nas respostas dadas, a High Court of Justice deverá determinar se, segundo o seu direito interno, as decisões do Secretary of State devem ser anuladas por erro de direito.
17 Deste modo, há que responder às questões apresentadas pelo órgão jurisdicional nacional.
Quanto à questão 1a)
18 Através desta questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se o artigo 30. do Tratado se aplica a uma prática nacional que proíbe a importação de estupefacientes abrangidos pela convenção e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta última.
19 Há que salientar que, como referiu o Tribunal de Justiça nos acórdãos de 26 de Outubro de 1982, Wolf (221/81, Recueil, p. 3681), e Einberger (240/81, Recueil, p. 3699), os estupefacientes abrangidos pela convenção são objecto em todos os Estados-Membros de diversas medidas destinadas a regulamentar estritamente a sua importação e a sua comercialização, a fim de garantir que estes produtos só sejam comercializados nesses Estados-Membros para fins farmacêuticos ou médicos, em conformidade com a convenção.
20 Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, os objectos que são transportados para além de uma fronteira para transacções comerciais são sujeitos ao artigo 30. do Tratado, qualquer que seja a natureza dessas transacções (v. acórdão de 9 de Julho de 1992, Comissão/Bélgica, C-2/90, Colect., p. I-4431, n. 26). Tendo essas características, os estupefacientes abrangidos pela convenção e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta estão sujeitos a essa disposição.
21 Por outro lado, resulta de jurisprudência constante que qualquer medida susceptível de afectar, directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, as trocas comunitárias constitui um entrave às trocas comerciais (acórdão de 11 de Abril de 1974, Dassonville, 8/74, p. 837).
22 Em aplicação desta jurisprudência, uma prática nacional que consiste em proibir as importações de estupefacientes é abrangida pelo artigo 30. do Tratado, dado que afecta as trocas da forma acima descrita.
23 O facto de tal medida poder resultar de uma convenção internacional anterior ao Tratado ou à adesão de um Estado-Membro e de o Estado-Membro manter essa medida por força do artigo 234. , não obstante o facto de constituir um entrave, não tem por efeito subtraí-la do âmbito de aplicação do artigo 30. , porque o artigo 234. só se aplica se a convenção impuser a um Estado-Membro uma obrigação incompatível com o Tratado.
24 Assim, há que responder a esta questão no sentido de que o artigo 30. do Tratado é aplicável a uma prática nacional que proíbe a importação de estupefacientes abrangidos pela convenção e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta.
Quanto à questão 1b)
25 Através desta questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se o artigo 30. do Tratado deve ser interpretado no sentido que um Estado-Membro deve assegurar a plena eficácia dessa disposição, deixando de aplicar uma prática nacional que consiste em proibir a importação de diacetilmorfina, quando a prática incompatível com a norma comunitária se destinar a executar uma convenção que, como a Convenção sobre os Estupefacientes, foi concluída pelo Estado-Membro em causa com outros Estados-Membros e Estados terceiros antes da entrada em vigor do Tratado ou da adesão desse Estado-Membro, e cujo cumprimento exige a atribuição de quotas entre empresas interessadas e a adopção de um sistema de fiscalização eficaz.
26 A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, o disposto no artigo 30. do Tratado prevalece sobre qualquer medida nacional contrária.
27 Todavia, como resulta do acórdão de 2 de Agosto de 1993, Levy (C-158/91, Colect., p. I-4287), o artigo 234. , primeiro parágrafo, do Tratado, tem como objectivo precisar, em conformidade com os princípios do direito internacional, que a aplicação do Tratado não prejudica o compromisso do Estado-Membro em causa de respeitar os direitos dos Estados terceiros resultantes de uma convenção anterior, e de cumprir as respectivas obrigações.
28 Por conseguinte, para determinar se uma norma comunitária pode ser posta em causa por uma convenção internacional anterior, importa examinar se esta impõe ao Estado-Membro em causa obrigações cujo cumprimento pode ainda ser exigido pelos Estados terceiros que são partes na convenção (acórdão Levy, já referido, n. 13).
29 Todavia, não é ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um processo prejudicial, mas ao juiz nacional que compete verificar quais são as obrigações que incumbem, por força de uma convenção internacional anterior, ao Estado-Membro em causa, e traçar os seus limites de forma a determinar em que medida essas obrigações impedem a aplicação dos artigos 30. e 36. do Tratado (acórdão Levy, já referido, n. 21).
30 Assim, o órgão jurisdicional nacional deve examinar se o cumprimento da convenção em relação a Estados terceiros exige a atribuição de quotas entre as empresas interessadas e se o facto de autorizar as importações tornaria impossível o exercício, pelo Estado-Membro, do grau de fiscalização exigido pela convenção.
31 No decurso do processo, o Governo do Reino Unido invocou que a convenção permitia aos Estados signatários proibir a importação de estupefacientes no seu território, mas que não lhes impunha que adoptassem essa medida.
32 A este respeito, há que salientar que, quando uma convenção internacional permite a um Estado-Membro adoptar uma medida contrária ao direito comunitário, sem todavia a isso o obrigar, o Estado-Membro deve-se abster de adoptar tal medida.
33 Assim, há que responder a essa questão que o artigo 30. do Tratado deve ser interpretado no sentido de que um Estado-Membro deve assegurar a plena eficácia dessa disposição, deixando de aplicar uma prática nacional contrária, salvo se essa prática for necessária para assegurar o cumprimento pelo Estado-Membro em causa de obrigações em relação a Estados terceiros resultantes de uma convenção concluída antes da entrada em vigor do Tratado ou da adesão desse Estado-Membro.
Quanto à questão 1c)
34 Através desta questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta se um Estado-Membro tem o direito de recusar uma licença para a importação de estupefacientes provenientes de outro Estado-Membro pelo facto de tal importação pôr em risco a viabilidade do único fabricante autorizado nesse Estado e a segurança do abastecimento em diacetilmorfina para fins médicos.
35 Há que recordar que o artigo 36. do Tratado permite a um Estado-Membro manter ou adoptar medidas que proíbam ou restrinjam as trocas quando, por um lado, essas medidas forem justificadas por razões de moralidade pública, de ordem pública, segurança pública ou de protecção da saúde e da vida das pessoas e, por outro, não constituam um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada ao comércio intracomunitário.
36 Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que essa disposição visa medidas de natureza não económica (v. acórdão de 7 de Fevereiro de 1984, Duphar, 238/82, Recueil, p. 523). Uma medida restritiva das trocas intracomunitárias não pode ser justificada pela preocupação que tenha um Estado-Membro de assegurar a sobrevivência de uma empresa.
37 Em contrapartida, a necessidade de assegurar o abastecimento estável do país para fins médicos essenciais é susceptível de justificar, nos termos do artigo 36. do Tratado, um entrave às trocas intracomunitárias, na medida em que esse objectivo releva da protecção da saúde e da vida das pessoas.
38 No entanto, importa salientar que uma regulamentação ou prática nacional não beneficia da derrogação do artigo 36. quando a saúde e a vida das pessoas possam ser protegidas de forma igualmente eficaz por medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias (v., designadamente, o acórdão de 20 de Maio de 1976, De Peijper, 104/75, Recueil, p. 613, n. 17).
39 Assim, há que responder a esta questão no sentido de que uma prática nacional que consiste em recusar uma licença para a importação de estupefacientes provenientes de outro Estado-Membro não beneficia da derrogação do artigo 36. do Tratado quando for justificada pela necessidade de assegurar a sobrevivência de uma empresa mas pode, em contrapartida, beneficiar dessa derrogação quando a protecção da saúde e da vida das pessoas exigir que seja garantido um abastecimento estável de estupefacientes para fins médicos essenciais e esse objectivo não possa ser atingido de forma igualmente eficaz por medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias.
Quanto à segunda questão
40 Através desta questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se as entidades referidas pela regulamentação comunitária aplicável em matéria de contratos de direito público, em especial a Directiva 77/62, podem, quando desejarem adquirir diacetilmorfina, atribuir o contrato tendo em consideração a capacidade das empresas proponentes em assegurar de modo fiável e constante o abastecimento do país.
41 Nos termos do artigo 25. , n. 1, da directiva,
"Os critérios sobre os quais a entidade adjudicante se funda para atribuir os contratos são:
a) ...
b) ... quando a adjudicação se faz à proposta economicamente mais vantajosa, diversos critérios variáveis segundo o contrato em questão: por exemplo, o preço, o prazo da entrega, o custo de utilização, a rentabilidade, a qualidade, o carácter estético e funcional, o valor técnico, o serviço após venda e a assistência técnica."
42 Nos termos do acórdão de 20 de Setembro de 1988, Beentjes (31/87, Colect., p. 4635), a escolha da proposta economicamente mais vantajosa deixa às entidades adjudicantes a escolha dos critérios de adjudicação do contrato que entendam fixar, apenas podendo essa escolha, no entanto, fazer-se entre critérios para a identificação da proposta economicamente mais vantajosa.
43 Esta jurisprudência, que é relativa às empreitadas de obras públicas, aplica-se também aos contratos de fornecimento de direito público, na medida em que não existem, quanto a este aspecto, diferenças entre estes dois tipos de contratos.
44 Daqui resulta que a segurança dos abastecimentos pode fazer parte dos critérios a ter em consideração, nos termos do artigo 25. da directiva, para determinar a proposta economicamente mais vantajosa no âmbito de um contrato destinado ao fornecimento, às autoridades em questão, de um produto como o que está em causa no processo principal.
45 Todavia, nesse caso, será necessário que a segurança dos abastecimentos seja claramente referida como critério para a atribuição dos contratos, em conformidade com o artigo 25. , n. 2, da directiva, que prevê que:
"... as entidades ajudicantes mencionam, nos cadernos de encargos ou nos anúncios de contrato, todos os critérios de atribuição cuja aplicação prevejam, se possível, pela ordem decrescente de importância que lhes é dada".
46 No entanto, o Governo português alega que a especificidade da diacetilmorfina, tendo em consideração, nomeadamente, as medidas de segurança que devem ser adoptadas para evitar qualquer desvio desse produto, permite celebrar o contrato por ajuste directo sem aplicar os processos de concurso público ou limitado. Baseia-se, a este respeito, no artigo 6. , n. 4, da directiva, conforme alterada, que prevê que:
"As entidades adjudicantes podem igualmente celebrar contratos de fornecimento por meio de procedimento por negociação, sem publicação prévia do aviso de concurso, nos seguintes casos:
...
c) quando se trate de produtos cujo fabrico ou entrega, devido à sua especificidade técnica... apenas possam ser confiados a um fornecedor determinado.
..."
47 O Governo francês chega à mesma conclusão, baseando a sua análise no artigo 6. , n. 1, alínea g), da directiva, na sua versão original, que prevê a celebração do contrato por ajuste directo
"quando os fornecimentos forem declarados secretos ou quando a sua execução deva ser acompanhada de medidas especiais de segurança, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas em vigor no Estado-Membro considerado, ou quando a protecção dos interesse essenciais da segurança desse Estado o exijam".
48 A este respeito, há que recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., em último lugar, acórdão de 3 de Maio de 1994, Comissão/Espanha, C-328/92, Colect., p. I-1569, n. 15), as disposições do artigo 6. da directiva, conforme alteradas, que permitem derrogações às regras que visam garantir a efectivação de direitos reconhecidos pelo Tratado no sector dos contratos públicos de fornecimento, devem ser objecto de interpretação estrita.
49 As informações comunicadas ao Tribunal de Justiça não permitem, nesta fase, considerar que a especificidade técnica da diacetilmorfina a as medidas de segurança a tomar para evitar qualquer desvio tornem impossível o recurso ao concurso público ou limitado. Pelo contrário, a capacidade do proponente para adoptar medidas adequadas de segurança poderá ser tomada em consideração como critério para a atribuição do contrato, em conformidade com o artigo 25. da directiva.
50 Tendo em conta estas considerações, há que responder à segunda questão prejudicial que a directiva deve ser interpretada no sentido de que autoriza as entidades aí referidas, que desejem adquirir diacetilmorfina, a atribuir o contrato tendo em consideração a capacidade das empresas proponentes de assegurar de modo fiável e constante o abastecimento do Estado-Membro em causa.
Quanto às despesas
51 As despesas efectuadas pelos Governos do Reino Unido, francês, irlandês e português e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
pronunciando-se sobre as questões submetidas pela High Court of Justice (Queen' s Bench Division), por decisão de 23 de Junho de 1993, declara:
1) O artigo 30. do Tratado CEE é aplicável a uma prática nacional que proíbe a importação de estupefacientes abrangidos pela Convenção Única sobre os Estupefacientes de 1961 e susceptíveis de ser comercializados nos termos desta.
2) O artigo 30. do Tratado CEE deve ser interpretado no sentido de que um Estado-Membro deve assegurar a plena eficácia dessa disposição, deixando de aplicar uma prática nacional contrária, salvo se essa prática for necessária para assegurar o cumprimento pelo Estado-Membro em causa de obrigações em relação a Estados terceiros resultantes de uma convenção concluída antes da entrada em vigor do Tratado CEE ou da adesão desse Estado-Membro.
3) Uma prática nacional que consiste em recusar uma licença para a importação de estupefacientes provenientes de outro Estado-Membro não beneficia da derrogação do artigo 36. do Tratado CEE quando for justificada pela necessidade de assegurar a sobrevivência de uma empresa mas pode, em contrapartida, beneficiar dessa derrogação quando a protecção da saúde e da vida das pessoas exigir que seja garantido um abastecimento estável de estupefacientes para fins médicos essenciais e esse objectivo não possa ser atingido de forma igualmente eficaz por medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias.
4) A Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público, conforme alterada pela Directiva 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988, deve ser interpretada no sentido de que autoriza as entidades aí referidas, que desejem adquirir diacetilmorfina, a atribuir o contrato tendo em consideração a capacidade das empresas proponentes de assegurar de modo fiável e constante o abastecimento do Estado-Membro em causa.