61993C0392

Conclusões do advogado-geral Tesauro apresentadas em 28 de Novembro de 1995. - The Queen contra H. M. Treasury, ex parte British Telecommunications plc. - Pedido de decisão prejudicial: High Court of Justice, Queen's Bench Division - Reino Unido. - Pedido prejudicial - Interpretação da Directiva 90/531/CEE - Telecomunicações - Transposição para o direito nacional - Obrigação de indemnização em caso de errada transposição. - Processo C-392/93.

Colectânea da Jurisprudência 1996 página I-01631


Conclusões do Advogado-Geral


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1 As questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça pela High Court of Justice, Queen's Bench Division, Divisional Court, têm por objecto a interpretação do n._ 1 do artigo 8._ da Directiva 90/531/CEE do Conselho, de 17 de Setembro de 1990, relativa aos procedimentos de celebração dos contratos de direito público nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (1)(a seguir «directiva»).

Em especial, o órgão jurisdicional nacional pergunta qual a correcta interpretação da disposição em causa e se, na hipótese de errada transposição por parte do legislador nacional, estão reunidas as condições para que as empresas que tenham sofrido prejuízos possam solicitar uma indemnização do Estado (2).

Enquadramento legislativo comunitário e nacional

2 De acordo com o décimo terceiro considerando, a directiva não deve ser aplicável «às actividades destas entidades que não digam respeito aos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, ou que, ainda que deles fazendo parte, se encontrem directamente sujeitas ao jogo da concorrência em mercados cujo acesso não seja limitado».

A disposição que o Tribunal de Justiça é convidado a interpretar, o n._ 1 do artigo 8._, constitui precisamente uma derrogação às disposições da directiva, que retira do seu âmbito de aplicação os contratos de direito público tendo por objecto aquisições destinadas a garantir serviços de telecomunicação, na medida em que exista concorrência no sector em causa. Mais precisamente, o artigo 8._ estabelece o seguinte:

«1. A presente directiva não é aplicável aos contratos que as entidades adjudicantes que exerçam uma das actividades referidas no n._ 2, alínea d) do artigo 2._ celebrem para as suas aquisições exclusivamente destinadas a permitir-lhes garantir um ou mais serviços de telecomunicações, sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas.

2. As entidades adjudicantes comunicarão à Comissão, a pedido desta, os serviços que considerem excluídos por força do n._ 1. A Comissão pode publicar periodicamente no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, a título de informação, a lista dos serviços que considera excluídos por força do n._ 1. Para o efeito, a Comissão deve respeitar o carácter comercial sensível, susceptível de ser alegado pelas entidades adjudicantes aquando da comunicação destas informações.»

3 A referida alínea d) do n._ 2 do artigo 2._ inclui nas actividades a que a directiva se aplica «a colocação à disposição ou a exploração de redes públicas de telecomunicações ou a prestação de um ou mais serviços públicos de telecomunicações». Na acepção da alínea b) do n._ 1 do artigo 2._, a directiva é também aplicável às entidades adjudicantes «que, no caso de não serem poderes públicos ou empresas públicas, incluam entre as suas actividades uma das actividades mencionadas no n._ 2, ou várias dessas actividades e beneficiem de direitos especiais ou exclusivos concedidos por uma autoridade competente de um Estado-Membro». A alínea a) do n._ 3 do mesmo artigo 2._ precisa, além disso, que, para efeitos da aplicação da alínea b) do n._ 1, uma entidade adjudicante beneficia de direitos especiais ou exclusivos, designadamente quando «para a construção das redes ou a criação das instalações a que se refere o n._ 2, esta entidade pode recorrer a um processo de expropriação pública ou de colocação ao serviço, ou utilizar o solo, o subsolo e o espaço sobre a via pública para instalar os equipamentos de redes». De acordo com o n._ 6 do artigo 2._, «as entidades adjudicantes referidas nos anexos I a X devem preencher os critérios acima referidos». O anexo X, que diz precisamente respeito às «entidades adjudicantes no sector das telecomunicações», refere, designadamente, no caso do Reino Unido, as entidades British Telecommunications plc (a seguir «demandante»), Mercury Communications Ltd (a seguir «Mercury») e City of Kingston upon Hull (a seguir «Hull plc»).

Recorde-se, por último, que, nos termos da alínea d) do n._ 1 do artigo 33._, as entidades adjudicantes conservarão as informações adequadas relativas a cada contrato de direito público que lhes permitam justificar posteriormente as decisões relativas, designadamente, à não aplicação das disposições dos títulos II, III e IV (disposições relativas aos critérios e procedimentos a serem adoptados na adjudicação dos trabalhos) por força das derrogações previstas no título I, das quais faz parte, no que aqui nos interessa, a constante do n._ 1 do artigo 8._

4 O Reino Unido deu execução à directiva adoptando as «Utilities Supply and Works Contracts Regulations 1992». Em especial, as disposições da directiva que, como previsto no décimo terceiro considerando, limitam a respectiva aplicação aos casos em que os contratos de direito público celebrados se destinem exclusivamente a permitir que a entidade adjudicante exerça uma das actividades referidas na directiva, são objecto dos artigos 5._ e 6._, alínea a), da regulamentação em causa.

O n._ 1 do artigo 7._ da mesma regulamentação, que visa dar execução ao n._ 1 do artigo 8._ da directiva, tem, pelo contrário, por objecto as exclusões especificamente relativas ao sector dass telecomunicações, constituindo, assim, a disposição impugnada pela demandante. Nela se dispõe que «tais regulamentos não são aplicáveis aos concursos que visam a celebração de contratos por uma das entidades referidas no anexo 2 exclusivamente destinados a permitir-lhes garantir um ou vários dos serviços de telecomunicações especificados na parte do anexo 2 em que tal entidade é mencionada».

O referido anexo 2 é composto por duas partes. A parte A abrange todos os concessionários de serviços públicos de telecomunicações com exclusão da demandante e da Hull plc. Relativamente a tais operadores, os serviços excluídos do âmbito de aplicação da regulamentação são expressamente «todos os serviços públicos de telecomunicações». Pelo contrário, a parte B diz exclusivamente respeito à demandante e à Hull plc, relativamente às quais os serviços em causa são «todos os serviços públicos de telecomunicações, com excepção dos adiante mencionados, quando prestados numa área geográfica relativamente à qual o fornecedor goze de uma licença na qualidade de operador público de telecomunicações: os serviços de base de telefonia vocal, os serviços de base de transmissão de dados, o fornecimento de circuitos privados em regime de aluguer e os serviços marítimos».

O n._ 2 do artigo 7._ da mesma regulamentação prevê, além disso, que todos os operadores referidos no anexo 2 deverão remeter ao ministro, a pedido deste e para posterior transmissão à Comissão, um relatório descrevendo os serviços públicos de telecomunicações que prestam e que entendam estar integrados nos serviços referidos na parte do anexo 2 que os abranja. Esta disposição dá, pois, execução ao n._ 2 do artigo 8._ da directiva.

Recorde-se, por último, que, em execução do artigo 33._ da directiva, o n._ 1 do artigo 25._ da regulamentação nacional em causa determina que a entidade adjudicante, caso decida não aplicar as disposições relativas às actividades excluídas, que são designadamente enunciadas no artigo 7._ da referida lei, terá de fornecer as informações adequadas e suficientes para justificar tal decisão, na hipótese de contratos de direito público celebrados segundo modalidades diversas das previstas no regime de contratos de direito público.

Os factos e as questões prejudiciais

5 A demandante é uma sociedade por acções de responsabilidade limitada constituída em 1 de Abril de 1984 nos termos do British Telecommunications Act de 1984 (lei de 1984 relativa às telecomunicações). Para ela foi transferida a propriedade, bem como todos os direitos e obrigações, da antiga sociedade de direito público, também ela designada British Telecommunications, a qual, por sua vez, nos termos do British Communications Act de 1981, sucedera ao Post Office, tendo este detido até essa data o monopólio exclusivo da gestão dos sistemas de telecomunicações.

A lei de 1984 relativa às telecomunicações determina que quem pretenda gerir um sistema de telecomunicações no Reino Unido, na sequência da abolição do monopólio, terá de obter uma licença que deverá prever de forma exaustiva as actividades cujo exercício simultâneo é autorizado. Nos termos desta disposição, o Secretary of State for Trade and Industry concedeu à recorrente, em Junho de 1984, uma licença válida por 25 anos. Esta licença, nos termos da qual a demandante é designada «concessionária de serviços públicos de telecomunicações», autoriza-a a gerir esses sistemas públicos de telecomunicações em todo o território do Reino Unido, sem prejuízo das limitações geográficas relativas à zona em que a Hull plc é concessionária. Em especial, terá de prestar serviços de telefonia vocal a quem o solicite, independentemente de a insuficiência da procura lhe permitir ou não cobrir os custos. A isto acresce que a demandante é a única titular de licença a estar sujeita a um regime relativo às variações das suas tarifas («price cap»). Precise-se, por último, que o Estado foi progressivamente cedendo, antes de Julho de 1993, o conjunto de acções que detinha no capital da recorrente.

6 A importante abertura do mercado tornada possível pela lei de 1984 relativa às telecomunicações deu origem à concessão de mais de 600 licenças relativas a diversas actividades no sector e à aprovação de cerca de 110 «concessionários de serviços públicos de telecomunicações». Contudo, o conteúdo das licenças varia consideravelmente. Com efeito, no sector dos serviços de telecomunicações de sinais através de ligações fixas (entre os quais consta a telefonia vocal com terminais fixos), o Governo do Reino Unido apenas concedera as necessárias licenças à demandante a à Mercury, tendo esta última sido autorizada, em especial, a conectar-se aos sistemas de telecomunicações da demandante. Foi assim instaurada uma situação de duopólio no sector específico das ligações fixas.

A política de duopólio foi em seguida abandonada, também neste sector, no início dos anos 90, em benefício, desta vez, de uma política abertamente concorrencial. Assim, todos os pedidos de licença apresentados por empresas privadas que preencham critérios objectivos e transparentes gozam de uma presunção geral de aprovação, com excepção dos casos em que a sua rejeição se possa justificar com base em «razões específicas». A lei de 1984 atendeu à necessidade de garantir o funcionamento de um sistema particularmente complexo, em que intervém uma multiplicidade de operadores aprovados, obrigando os «concessionários de serviços públicos de telecomunicações» a autorizar a conexão às suas redes dos sistemas de outros concessionários que o solicitem. Em consequência, os clientes de um operador podem ter acesso às redes geridas por outros concessionários e, em última análise, comunicar assim com os utilizadores que beneficiem dos serviços prestados por estes últimos.

7 Como já referimos, a regulamentação nacional de execução da directiva exclui da obrigação de com ela se conformarem quase todos os operadores do sector, incluindo a Mercury, que consta, contudo, do anexo X da directiva, no que se refere aos contratos exclusivamente destinados a permitir o fornecimento de serviços de telecomunicações. Pelo contrário, só a demandante e a Hull plc permanecem submetidas às disposições da directiva, ainda que de forma limitada aos serviços de base de telefonia (vocal), aos serviços de base de transmissão de dados, ao fornecimento de circuitos privados em regime de aluguer e aos serviços marítimos.

Foram precisamente estas disposições de transposição da directiva que a demandante impugnou perante o órgão jurisdicional nacional. Com efeito, a demandante sustenta que o Reino Unido não podia ter determinado, por si, os serviços e operadores subtraídos à aplicação da directiva, visto tal missão incumbir, de acordo com o n._ 1 do artigo 8._ da directiva, às próprias entidades adjudicantes. Nas suas conclusões, a demandante solicita também a indemnização dos prejuízos que pretende ter sofrido em consequência da incorrecta transposição da disposição em causa.

8 Para decidir o litígio que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional nacional considerou, pois, oportuno, submeter a questão ao Tribunal de Justiça. Pergunta:

«1) Numa correcta interpretação da Directiva 90/531 do Conselho, cabe no âmbito da discricionariedade concedida a um Estado-Membro pelo artigo 189._ do Tratado CEE, ao dar cumprimento ao artigo 8._, n._ 1, da directiva, definir ele próprio os serviços de telecomunicações, prestados por cada entidade adjudicante, relativamente aos quais a exclusão contida nesse artigo se aplica ou não?

2) a) A frase `sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas' contida no artigo 8._, n._ 1, abrange apenas a `possibilidade' e as `condições' de natureza legal ou regulamentar?

b) Em caso de resposta negativa à questão 2.a):

i) a que outros aspectos se refere a frase; e

ii) a posição que uma entidade adjudicante ocupa no mercado de um determinado serviço de telecomunicações é relevante para esses aspectos; e

iii) no caso de a sua posição ser relevante, qual a sua importância e, em especial, em que circunstâncias pode ser decisiva?

c) As respostas às questões ii) e iii) da alínea b) são afectadas pelo facto de essa entidade estar sujeita a obrigações regulamentares e, em caso afirmativo, em que aspectos são afectadas?

3) Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a) Em caso de litígio entre uma entidade adjudicante e as autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8._, n._ 1, como pode o tribunal nacional chamado a conhecer do litígio certificar-se de que os critérios de aplicação da exclusão contida no artigo 8._, n._ 1, são correctamente aplicados e, designadamente, deverá substituir pela sua própria apreciação da aplicação da exclusão contida no artigo 8._, n._ 1, a apreciação das autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8._, n._ 1?

b) Se o tribunal nacional considerar que as definições de determinados serviços de telecomunicações adoptadas pelas autoridades nacionais encarregadas da aplicação do artigo 8._, n._ 1, com vista a determinar se um determinado serviço é ou não abrangido pela exclusão, são de molde a tornar impossível à entidade adjudicante determinar se um determinado serviço está ou não abrangido, houve violação da Directiva 90/531/CEE, ou de qualquer outro princípio geral do direito comunitário, designadamente a exigência de segurança jurídica?

c) Ao definir determinados serviços de telecomunicações, um Estado-Membro tem o direito de adoptar definições baseadas em descrições dos meios técnicos de prestação do serviço, e não na descrição do próprio serviço?

4) Se um Estado-Membro tiver aplicado erradamente o artigo 8._, n._ 1, da Directiva 90/531/CEE do Conselho, fica, nos termos do direito comunitário, obrigado a indemnizar uma entidade adjudicante pelos prejuízos por esta sofridos devido a esse erro e, em caso afirmativo, quais os pressupostos dessa responsabilidade?»

Primeira questão

9 Na primeira questão, o Tribunal de Justiça é, pois, convidado a declarar se, atendendo ao poder de apreciação de que gozam nos termos do artigo 189._ do Tratado, os Estados-Membros podem, ao transpor uma directiva para a sua ordem nacional, definir e identificar os serviços de telecomunicações que o n._ 1 do artigo 8._ da directiva autoriza sejam excluídos quando preenchidas determinadas condições, ou se tal determinação incumbe às próprias entidades adjudicantes.

Para este efeito, cabe fazer referência ao sentido literal da disposição em causa, ao contexto em que se inscreve, bem como à sua ratio.

10 O sentido literal do n._ 1 do artigo 8._ da directiva não fornece qualquer elemento susceptível de confirmar a tese de que os Estados-Membros têm a faculdade de determinar por si próprios quais os serviços e operadores excluídos do âmbito de aplicação da directiva. Com efeito, a disposição em causa limita-se a excluir do âmbito de aplicação da directiva os contratos de direito público que as entidades adjudicantes celebrem para aquisições exclusivamente destinadas a permitir-lhes garantir um ou mais serviços de telecomunicações, sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços em condições idênticas. A ausência de qualquer referência aos Estados-Membros parece, pois, corroborar a tese de que cabe às próprias entidades adjudicantes, únicas mencionadas na disposição, proceder à determinação dos contratos excluídos. Pelo menos à primeira vista, esta conclusão é corroborada pelo facto de outras disposições da directiva, também integradas no título I e consequentemente relativas às derrogações autorizadas, preverem explicitamente e de forma precisa qual o papel confiado aos Estados-Membros na definição dos contratos que beneficiam das derrogações em causa (3).

11 A isto acresce que, nos termos do n._ 2 do mesmo artigo 8._, é às entidades adjudicantes que incumbe comunicar à Comissão, a pedido desta, os serviços que «considerem excluídos por força do n._ 1». É à Comissão que cabe, em seguida, publicar no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, série C, a lista dos serviços que «considera excluídos», ainda que a mero título de informação.

Ora, se competisse aos Estados-Membros, como sustenta o Governo do Reino Unido, decidir quais os serviços que devem ser considerados excluídos do âmbito de aplicação da directiva, por força do n._ 1 do artigo 8._, não é fácil de entender por que razão o n._ 2 do artigo 8._ obriga as entidades adjudicantes, e não os Estados-Membros, a comunicar os serviços que considerem excluídos. A menos que se pretenda concluir tratar-se de uma disposição desprovida de qualquer utilidade, forçoso é reconhecer, com efeito, que o n._ 2 do artigo 8._ tem razão de ser na medida em que sejam as próprias entidades adjudicantes a decidir quais, de entre os serviços que fornecem, são susceptíveis de beneficiar da exclusão a que se refere o n._ 1 do artigo 8._

12 Este ponto de vista é igualmente confirmado pelo artigo 33._ da directiva, nos termos do qual, recorde-se, as entidades adjudicantes conservarão relativamente a cada contrato «as informações... que lhes permitam justificar posteriormente as decisões relativas... d) à não aplicação das disposições dos títulos II, III e IV por força das derrogações previstas no título I».

A disposição que acabámos de citar revela à saciedade que, por via das disposições nacionais, o legislador comunitário pretendeu dirigir-se directamente às entidades adjudicantes, confiando-lhes a responsabilidade das decisões de exclusão tomadas em execução do n._ 1 do artigo 8._ da directiva, bem como o ónus de demonstrar estarem preenchidas as respectivas condições.

13 Atendendo ao conjunto destes elementos, recorde-se, ademais, que nos termos de uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça nesta matéria, a liberdade de escolher a forma e meios de assegurar a execução da directiva, tal como atribuída aos Estados-Membros pelo terceiro parágrafo do artigo 189._ do Tratado, «mantém, contudo, intacta a obrigação de cada Estado destinatário adoptar, no quadro da sua ordem jurídica nacional, todas as medidas necessárias para assegurar o pleno efeito da directiva, de acordo com o objectivo que esta prossegue» (4). Isto significa que os Estados-Membros têm a obrigação de adoptar todas as medidas necessárias para assegurar o pleno efeito das disposições da directiva, garantindo, dessa forma, o resultado que visam obter. Acrescente-se, aliás, que, como o próprio Tribunal de Justiça precisou, a execução das disposições de uma directiva deve ser feita «com carácter obrigatório incontestável... precisão e clareza necessárias... para satisfazer a exigência de segurança jurídica» (5).

De forma evidente, tais afirmações implicam, por um lado, que o poder discricionário de que os Estados-Membros gozam no âmbito da transposição de uma directiva para a sua ordem jurídica nacional não pode, contudo, ser utilizado de forma a comprometer o objectivo prosseguido pela directiva em causa e, por outro, que o importante é precisamente esse resultado, pelo que se deve considerar correcta a transposição de uma directiva sempre que a regulamentação nacional de execução, apesar de não tomar à letra as suas disposições (6), permita, contudo, atingir o objectivo prosseguido pela directiva.

14 No caso vertente, isto significa que, apesar de o sentido literal da disposição em causa e o contexto em que se inscreve conduzirem à conclusão de que as entidades adjudicantes devem, elas próprias, identificar, de entre os serviços que fornecem, aqueles que devem ser considerados excluídos do âmbito de aplicação da directiva, será, contudo, necessário verificar se as medidas de execução adoptadas pelo Reino Unido são, em qualquer caso, susceptíveis de garantir o resultado prosseguido pela directiva, em particular pelo n._ 1 do artigo 8._

Consideramos que a resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa. A prévia definição dos serviços «excluídos», nos termos acima recordados, é, com efeito, de tal ordem que, em nossa opinião, se opõe à própria ratio da disposição em causa. Isto, essencialmente, porque tal determinação a priori, representando a situação existente num Estado-Membro em determinado momento, não atende à evolução susceptível de se verificar no sector em causa, nem ao facto de, para um mesmo operador, poderem variar os serviços excluídos. Ao mesmo tempo, tal forma de proceder impede a Comissão de exercer o controlo que a directiva lhe atribui nesta matéria.

15 Com efeito, embora seja certo que as entidades adjudicantes comunicarão à Comissão, a pedido desta, os contratos que consideram excluídos e que a Comissão assegura a respectiva publicação a título de informação, não deixa, por isso, de ser verdade que a lista assim publicada apenas abrange os serviços que a própria Comissão «considera excluídos». Daqui resulta que incumbe a esta instituição verificar se os serviços comunicados pelas entidades adjudicantes preenchem efectivamente os critérios estabelecidos no n._ 1 do artigo 8._ para beneficiar da exclusão.

Ora, é por demasiado evidente que a transposição efectuada pelo Reino Unido impede que a Comissão proceda a essa verificação, visto as listas que lhe são comunicadas pelas entidades adjudicantes por intermédio das autoridades nacionais competentes (7) não poderem deixar de coincidir com aquelas a que se refere o anexo 2 da regulamentação nacional em causa. O papel de fiscalização atribuído à Comissão pelo n._ 2 do artigo 8._ da directiva é, assim, posto em causa no que concerne aos operadores e serviços relativos ao Reino Unido.

16 Ao defender a forma por que pretendeu dar execução à directiva na sua ordem interna, o Governo do Reino Unido sustentou, contudo, que não teria sido oportuno atribuir às entidades adjudicantes competência para identificar os contratos beneficiários da exclusão na medida em que, muito provavelmente, tal teria dado lugar a apreciações divergentes em situações similares, afectando irremediavelmente as exigências de segurança jurídica.

Limitamo-nos a observar, a este respeito, que o funcionamento do sistema instaurado pela directiva, tal como interpretado nas presentes conclusões, goza de suficientes garantias graças à actividade de fiscalização confiada pela directiva à Comissão, mesmo que, e sobretudo, quanto aos eventuais abusos a que se refere o Governo do Reino Unido. Acrescente-se que, na medida em que a decisão de exclusão é tomada pelas entidades adjudicantes e não pelos Estados-Membros, eventuais impugnações podem ser suscitadas nos termos das disposições nacionais adoptadas para dar execução à directiva 92/13/CEE (8), relativa aos meios de recurso. Com efeito, na acepção do artigo 1._, esta directiva aplica-se às «decisões das entidades adjudicantes».

17 Por último, não podemos deixar de observar que a interpretação que até ao momento demos do n._ 1 do artigo 8._ da directiva revela à saciedade tratar-se de uma disposição que atribui aos particulares, no caso vertente às entidades adjudicantes, direitos que podem fazer valer directamente perante o órgão jurisdicional nacional, tratando-se, pois, de uma disposição que beneficia do efeito directo. Dentro desta óptica, cabe reconhecer que uma definição prévia e pormenorizada dos serviços excluídos, tal como a praticada pelo legislador nacional, contrasta necessariamente com o objectivo prosseguido pela directiva.

Em definitivo, entendemos que o artigo 189._ do Tratado obriga os Estados-Membros a darem execução ao n._ 1 do artigo 8._ da directiva de forma tal que as entidades adjudicantes tenham a possibilidade de aplicar a si próprias os critérios definidos naquela disposição e determinar, assim, quais os serviços, de entre os serviços de telecomunicações que prestam, que devem ser excluídos do âmbito de aplicação da directiva.

Segunda questão

18 Pela segunda questão, alínea a), o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça que precise se a frase «sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas», constante do n._ 1 do artigo 8._, deve ser interpretada no sentido de que a liberdade de que devem gozar as entidades adjudicantes e as condições em causa são de natureza legislativa ou administrativa.

No essencial, há, pois, que determinar se, para poder beneficiar da exclusão a que se refere o n._ 1 do artigo 8._ da directiva, necessário é que o facto de se poderem oferecer os mesmos serviços na mesma «área geográfica» e a existência de «condições substancialmente idênticas» se verifiquem exclusivamente no plano jurídico, como sustenta a demandante, ou também no plano dos factos.

19 É quase supérfluo observar que, no primeiro caso, seria suficiente que as disposições legislativas ou regulamentares garantissem a possibilidade da livre concorrência no sector em causa. Dito por outras palavras será, pois, necessário suprimir, quando existam, as disposições que impeçam a livre concorrência, quer pela atribuição de direitos especiais ou exclusivos, quer tornando impossível ou difícil, seja por que forma for, o acesso ao mercado.

Esta é a tese da recorrente, em apoio da qual argumenta que a directiva tem também por destinatárias, para além das autoridades públicas e empresas públicas que exercem actividades nos sectores abrangidos pela directiva, as entidades que gozam, no exercício das suas actividades, de direitos especiais ou exclusivos conferidos pelas autoridades competentes dos Estados-Membros. A ratio de tal extensão funda-se precisamente, na opinião da recorrente, na hipótese de que a concessão de tais direitos tem por efeito fechar o mercado à concorrência, transformando-o num mercado «reservado». Tal tem por consequência que, quando um acto normativo interno tiver sido adoptado para revogar tais direitos especiais ou exclusivos, como se verificou no sistema britânico com o Britsh Telecommunications Act de 1984, a directiva deixa de ter razão de se aplicar, por força da exclusão contida no n._ 1 do seu artigo 8._ Com efeito, o mercado em causa não é um mercado «reservado», na acepção do n._ 3 do artigo 2._ da directiva, mas um mercado liberalizado, ou seja, aberto à concorrência de uma multiplicidade de operadores.

20 Em nossa opinião, esta tese não pode ser partilhada. Antes de mais, a redacção literal da disposição em causa não refere limitar-se aos obstáculos colocados por disposições legislativas ou regulamentares. A liberdade de as demais entidades adjudicantes oferecerem os mesmos serviços em condições substancialmente idênticas é, com efeito, objecto de uma afirmação feita em termos gerais, e de outro modo não poderia ser, se se atender à ratio da disposição em causa e do sistema considerado na sua globalidade. Além disso, o décimo terceiro considerando da directiva, já referido por diversas vezes, afirma explicitamente que a exclusão do âmbito de aplicação da directiva está subordinada à condição de que as actividades das entidades em causa «se encontrem directamente sujeitas ao jogo da concorrência em mercados cujo acesso não seja limitado» (9).

Em suma, não basta seguramente que o acesso ao mercado não seja proibido por lei, necessário é também que a concorrência seja efectiva. Há, pois, que interpretar os critérios referidos no n._ 1 do artigo 8._ da directiva no sentido de que têm de ser respeitados, não apenas no plano jurídico, mas também no de facto. A primeira condição é respeitada quando outras entidades, distintas da entidade adjudicante em causa, estejam autorizadas a operar no mercado dos serviços em questão, cujo acesso não seja limitado por lei. Pelo contrário, pode entender-se estar preenchida a segunda condição quando as entidades em causa estejam, não apenas autorizadas formalmente, mas também em condições de efectivamente fornecer os serviços em questão, nas mesmas condições da entidade adjudicante.

21 Em definitivo, a expressão que examinamos deve ser interpretada no sentido de que se refere a um conjunto de elementos de natureza técnica e económica, e não apenas jurídica. Importa, pois, que a «possibilidade» de oferecer os serviços seja real, e não apenas potencial, quer dizer, apenas possível em termos abstractos. Com efeito, neste último caso, a entidade adjudicante seria sempre o único operador a actuar efectivamente no mercado em causa.

Incumbe, pois, à entidade adjudicante, quando entenda dever estar isenta da aplicação das disposições da directiva, provar, com base nos artigos 8._ e 33._, que outros operadores têm a possibilidade de exercer as mesmas actividades em «condições substancialmente idênticas».

22 Na segunda questão, alíneas b) e c), o órgão jurisdicional pergunta além disso ao Tribunal de Justiça quais os elementos a que se deve atender para apreciar se a situação do mercado das telecomunicações é efectivamente concorrencial no que se refere a determinado serviço. Mais especificamente pergunta, caso seja necessário apreciar a situação do mercado com base em elementos de facto, se a eventual posição dominante de que a entidade adjudicante em causa beneficia no mercado de determinado serviço de telecomunicações é relevante para esse efeito; em que termos se deve traduzir essa posição dominante para ser decisiva no sentido que aqui nos interessa; e, por último, se assume relevância o facto de a entidade adjudicante estar sujeita a condicionalismos administrativos específicos.

23 A demandante nega, antes de mais, ter uma posição dominante no mercado (10), apresentando um conjunto de dados que confirmariam o facto de a concorrência ser efectiva em diversas actividades do sector. Em segundo lugar, rejeita, por um lado, a tese de que o mero facto de deter uma posição dominante é relevante para efeitos da directiva relativa aos contratos de direito público; por outro, nega que a existência de tal posição apenas possa ser provada pela análise das partes de mercado.

Em sua opinião, outros elementos que não este podem ser tomados em consideração para apreciar a sua posição no mercado; em especial, há que atender aos condicionalismos normativos a que está sujeita (11), contrariamente ao que sucede com a maior parte dos demais titulares de licenças.

24 Entendemos que, neste contexto, o Tribunal de Justiça não dispõe de competência, nem de instrumentos, que lhe permitam avaliar a efectiva existência, no caso de que nos ocupamos, da totalidade dos elementos de facto ou de direito susceptíveis de garantir a plena execução da derrogação prevista no n._ 1 do artigo 8._ da directiva. Trata-se, com efeito, de uma tarefa que incumbe ao órgão jurisdicional nacional e, na generalidade dos casos, corresponde, em termos exactos, à verificação que a disposição em causa atribui às autoridades adjudicantes e, em última análise, à actividade de fiscalização da Comissão.

Suficiente é, pois, observar que a decisão destinada a reconhecer ou não a determinados serviços a possibilidade de beneficiarem da exclusão, no cumprimento das condições (de facto e de direito) estabelecidas no n._ 1 do artigo 8._ da directiva apenas pode ser tomada caso a caso. Haverá designadamente que atender, para esse efeito, ao conjunto de características dos serviços interessados, à existência de serviços de substituição, às condições de preços, às posições dos concorrentes no mercado, à existência de condicionalismos normativos do tipo dos acima descritos, bem como a qualquer outra condição que se revele pertinente em concreto.

Terceira questão

25 Pela terceira questão, por sua vez dividida em três pontos diferentes, o Tribunal é convidado a pronunciar-se, no essencial, sobre o papel do órgão jurisdicional nacional quando chamado a verificar a correcta aplicação, pelas autoridades nacionais, dos critérios referidos no n._ 1 do artigo 8._ da directiva, em particular no caso de litígio entre uma entidade adjudicante e as autoridades nacionais quanto à correcta aplicação dos critérios de exclusão enunciados na disposição em causa, bem como na hipótese de o órgão jurisdicional nacional chegar à conclusão de que os referidos critérios são estabelecidos de forma tal que privam a entidade adjudicante da possibilidade de estabelecer se determinado serviço está ou não abrangido pela exclusão.

Obviamente, tal questão é colocada pelo órgão jurisdicional nacional para a hipótese de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente à primeira questão, ou seja, para o caso de o Tribunal reconhecer que os Estados-Membros têm a faculdade de eles próprios designarem os serviços que devem ser considerados excluídos do âmbito de aplicação da directiva, por força do n._ 1 do respectivo artigo 8._ Considerando a conclusão a que este respeito chegámos, entendemos ser desnecessário responder a esta questão.

Quarta questão

26 A quarta questão submete de novo ao Tribunal de Justiça a questão da responsabilidade e da obrigação de o Estado indemnizar os particulares que tenham sofrido prejuízos decorrentes da violação do direito comunitário, questão esta que constitui o cerne dos processos Brasserie du pêcheur e Factortame (12), bem como Dillenkofer e o. (13), em que hoje mesmo apresentamos conclusões. No primeiro processo, recorde-se, a violação de que o Estado é acusado reside no facto de ter aplicado normas nacionais contrárias às disposições do Tratado; no segundo, trata-se, pelo contrário, como no processo Francovich (14), da não transposição de uma directiva no prazo previsto.

O caso em apreço coloca de novo o mesmo problema, num contexto diferente: o da incorrecta transposição, mas não tardia, das disposições de uma directiva para a ordem jurídica nacional (15). Com efeito, a demandante solicita a indemnização dos prejuízos que pretende ter sofrido em consequência da incorrecta transposição do n._ 1 do artigo 8._ da directiva. Identifica esses prejuízos como sendo os custos suplementares suportados para se conformar com a legislação nacional (incorrecta) de execução da directiva, legislação que, aliás, a terá impedido de concluir operações rentáveis, bem como as desvantagens sofridas no plano comercial e da concorrência em virtude da obrigação, a que, pelo contrário, os demais operadores do sector não estão submetidos, de publicar no Jornal Oficial os seus projectos em matéria de contratos de direito público e de contratos de fornecimento (16).

27 Mesmo nesta hipótese, como nas recordadas no número precedente, o ponto de partida não pode ser constituído pelo acórdão Francovich e o. em que o Tribunal de Justiça, quase nem é necessário lembrá-lo, afirmou a obrigação de indemnização por parte do Estado em virtude da não transposição de uma directiva, precisando as condições suficientes, em tal caso, para que os particulares gozem do direito de reparação.

No presente processo, trata-se, pois, de determinar: a) se o princípio da responsabilidade patrimonial do Estado deve ser alargado à hipótese de a transposição de uma directiva ser, não tardia, mas incorrecta; b) se as condições enunciadas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Francovich são suficientes para estabelecer a obrigação de reparação a cargo do Estado-Membro, mesmo na hipótese em análise no caso em apreço, ou se terão de estar reunidos outros factores; c) se as condições estão preenchidas no caso vertente.

28 Sendo que desenvolvemos já amplamente alguns dos aspectos que acabámos de evocar nas referidas conclusões relativas aos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III, entendemos adequado remeter para tais conclusões, para os devidos aprofundamentos. Limitar-nos-emos, pois, no caso presente, a breves e essenciais observações de natureza geral, apenas nos detendo de forma pontual sobre os aspectos específicos da hipótese em apreço.

29 Observe-se, em primeiro lugar, que a obrigação de reparar os prejuízos não pode ser limitada ao caso de não transposição de directivas, devendo, pelo contrário, ser alargada à hipótese, verificada no caso vertente, em que o prejuízo sofrido pelo particular decorre da aplicação de uma disposição nacional de execução da directiva que se revela incorrecta, de tal forma que, enquanto tal, pode ser directamente impugnada no órgão jurisdicional nacional. Dito por outras palavras, o facto de o particular poder, em tal hipótese, obter a protecção do direito invocado perante o órgão jurisdicional nacional não é, por si só, susceptível de excluir a possibilidade de protecção patrimonial (17).

A este respeito, recorde-se, em especial, que, no acórdão Francovich e o. (18), o Tribunal de Justiça, após referir as características fundamentais do sistema comunitário, chegou à conclusão de que «o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema do Tratado» (n._ 35). Trata-se, obviamente, de uma afirmação de natureza geral e de princípio, válida, pois, para qualquer caso de violação do direito comunitário, e não apenas para a não transposição de directivas (19). No que se refere a essa última hipótese, o Tribunal de Justiça limitou-se a precisar que o direito de indemnização se revela «particularmente indispensável» precisamente porque, de outra forma, o particular ficaria desprovido de protecção, apesar dos direitos que lhe são conferidos pela directiva. Esta precisão não exclui, contudo, a reparação de prejuízos decorrentes de outro tipo de violações, tanto mais que o próprio Tribunal de Justiça salientou, em seguida, que as condições do direito de indemnização dependem da natureza da violação do direito comunitário que está na origem do prejuízo causado (n._ 38).

30 Ademais, como sublinhámos nas conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III, anular o acto ilegal ou não aplicar a lei incompatível com um parâmetro superior de legalidade pode, em certos casos, revelar-se insuficiente. Para tornar a protecção real e eficaz, pode, com efeito, revelar-se necessário restabelecer também o conteúdo patrimonial do direito lesado, assegurando, assim, a reparação do prejuízo. O princípio da responsabilidade do Estado no plano patrimonial deve ser aplicado tanto como solução alternativa, quanto complementar, relativamente à protecção no plano substantivo; deve, em consequência, ser aplicado quando exista violação tanto de disposições não directamente aplicáveis, no sentido de que os sujeitos de direito as não podem invocar directamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais, como de disposições que, pelo contrário, conferem tal possibilidade (20). O mesmo se dirá, como é óbvio, da hipótese em causa no caso vertente de transposição incorrecta de uma directiva.

31 Passando agora às condições que determinam a responsabilidade patrimonial do Estado, recorde-se que, como observámos nas conclusões já por várias vezes referidas, se torna indispensável, para assegurar uma protecção patrimonial em todos os Estados-Membros se não uniforme pelo menos homogénea, que seja o próprio direito comunitário a estabelecer as condições mínimas que determinam o direito de reparação e, designadamente, os critérios à luz dos quais tais condições devem considerar-se verificadas, bem como os limites «comunitários» às condições «nacionais» relativas à reparação, tanto de natureza processual como outra.

Aliás, é esta a solução adoptada pelo Tribunal de Justiça, embora com alguns aspectos específicos decorrentes da situação em apreço, no acórdão Francovich e o. Não existe qualquer espécie de razão para se entender que esta solução apenas deve ser aplicada à hipótese de não transposição da directiva, e não também à de violação de disposições directamente aplicáveis, ou ao caso de incorrecta transposição de uma directiva.

32 Recorde-se que, no acórdão Francovich e o., o Tribunal de Justiça reconheceu a responsabilidade do Estado na medida em que estivessem preenchidas as seguintes três condições: «a primeira é que a directiva tenha como objectivo atribuir direitos a particulares. Seguidamente, o conteúdo desses direitos deve poder ser identificado com base nas disposições da directiva. Deve existir, finalmente, um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o dano sofrido» (21). Aliás, o Tribunal de Justiça precisou que essas condições são «suficientes para instituir a favor dos particulares um direito a obter reparação, que se funda directamente no direito comunitário» (22). O Estado-Membro responsável pela não transposição de uma directiva está, pois, obrigado a reparar, em todos os casos, o prejuízo sofrido pelos particulares, na medida em que estejam preenchidas as condições estabelecidas pelo Tribunal de Justiça.

Será que tal conclusão se impõe também no caso em apreço, em que não estamos em presença da não transposição de uma directiva no prazo previsto, mas de uma «incorrecta transposição»? Dito por outras palavras, as condições suficientes para que exista obrigação de reparação do Estado-Membro faltoso são as mesmas ou, pelo contrário, serão diversas nos dois casos em análise?

33 As respostas dadas nesta matéria no decurso do presente processo são amplamente divergentes. Para a maior parte dos governos que intervieram, as condições enunciadas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Francovich e o. não são suficientes para determinar a responsabilidade do Estado. Seria, pelo contrário, necessário estarem preenchidas condições idênticas às aplicadas em matéria de responsabilidade extracontratual das instituições comunitárias (23), ou seria necessário estabelecer a conexão entre a responsabilidade do Estado e a necessidade da existência de falta.

A Comissão é de diferente opinião, tendo sustentado que as condições referidas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Francovich e o. são suficientes, visto que o artigo 189._ do Tratado não estabelece qualquer distinção entre a não transposição e a incorrecta transposição de uma directiva. Dito de outra forma, na opinião desta instituição o que releva em ambos os casos é o incumprimento por parte do Estado-Membro da obrigação de resultado estabelecida na directiva.

34 Diga-se, de imediato, que não partilhamos esta opinião. Ademais, não nos parece ser ela coerente com a defendida pela mesma instituição nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III. Nestes últimos processos, recorde-se, a Comissão sugeriu, com efeito, a aplicação, como regra mínima, de condições restritivas idênticas às estabelecidas pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência relativa ao artigo 215._

Ora, embora seja verdade que a directiva impõe uma obrigação de resultado, apenas conferindo um poder discricionário aos Estados-Membros quanto à forma e meios de garantir a sua execução, não deixa de ser menos verdade, em nossa opinião, que tal hipótese constitui característica comum de diversas disposições comunitárias, constantes ou não do Tratado. Não nos parece, por exemplo, que se possa legitimamente negar que o artigo 30._ do Tratado impõe aos Estados-Membros uma obrigação de resultado; contudo, a posição da Comissão a este respeito vai no sentido de que, para o Estado ser obrigado a indemnizar, não basta que exista violação, mas também que essa violação seja grave e manifesta.

35 O problema não pode, pois, ser resolvido com base exclusivamente no tipo de obrigação estabelecida, em especial consoante se trate ou não de uma obrigação de resultado. Em nossa opinião, é pelo contrário necessário admitir que o elemento decisivo para determinar os limites da possibilidade de transformar a ilegalidade em responsabilidade reside, para além do poder discricionário de que os Estados gozam eventualmente no sector em causa, no maior ou menor rigor da obrigação imposta, e, em definitivo, na possibilidade de identificar com rigor suficiente o conteúdo do direito invocado pelo particular em determinada situação. São estes os elementos que, como salientámos amplamente nas conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III (24), qualificam uma violação como manifesta e grave. A falta, entendida como componente subjectiva do comportamento ilegal de que o Estado-Membro é acusado, não assume, pelo contrário, qualquer relevância para determinar a situação de responsabilidade do Estado-Membro faltoso (25).

Nesta perspectiva, o facto de não se poder encontrar no acórdão Francovich e o. qualquer precisão quanto aos critérios de definição da ilegalidade do comportamento do autor do prejuízo de forma alguma implica que qualquer violação do direito comunitário que afecte a esfera patrimonial de um sujeito titular de uma situação jurídica baseada na disposição comunitário violada comportará, em si mesma e de forma automática, um direito a reparação (26). De forma bem mais simples, estava-se, pelo contrário, na presença efectiva, no caso em apreço, de uma violação manifesta e grave.

36 De forma mais genérica, como precisámos já nas conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III (27), pode-se falar de violação manifesta e grave quando:

a) houver violação de obrigações cujo conteúdo seja claro e sem ambiguidade em todos os seus elementos;

b) a jurisprudência do Tribunal de Justiça tiver suficientemente qualificado, quer através de uma interpretação a título prejudicial, quer por um acórdão proferido nos termos do artigo 169._ do Tratado, situações jurídicas pouco transparentes que sejam idênticas ou, pelo menos, análogas às situações em análise;

c) seja manifestamente errada a interpretação das disposições comunitárias em causa, tal como operada pelas autoridades nacionais no exercício da sua acção (ou omissão) normativa.

37 Ora, no que se refere ao caso em apreço, não cabem dúvidas, em nossa opinião, atendendo à interpretação dada do n._ 1 do artigo 8._ da directiva, que a execução na ordem jurídica nacional pelo Estado-Membro interessado não pode ser qualificada de manifestamente errada. O facto de o Reino Unido ter ele próprio determinado os serviços excluídos do âmbito de aplicação da directiva por força de uma disposição (o n._ 1 do artigo 8._) cujo conteúdo está longe de poder ser considerado claro e sem ambiguidades conduz-nos, em consequência, à conclusão de que, no caso vertente, não existe violação manifesta e grave.

Deste ponto de vista, o caso Francovich é sem dúvida diferente. O Estado-Membro em causa nada tinha feito para transpor a directiva em causa no prazo prescrito, prazo esse relativamente ao qual não dispunha de qualquer poder discricionário; é precisamente este o aspecto que torna essa violação, em si mesma, grave e manifesta (28).

38 Quanto ao facto, também sublinhado no decurso do presente processo, de que se acabaria, nesta perspectiva, por «promover transposições feitas, é certo, dentro do prazo, mas totalmente incorrectas, basta observar que a solução que sugerimos é de molde a evitar abusos, que devem aliás ser considerados improváveis, por parte dos Estados-Membros. Com efeito, em caso de transposição manifestamente errada ou, se se preferir, de disposições claras e sem ambiguidade transpostas de forma incorrecta, não deixa por isso de se concluir estar-se em presença de uma violação manifesta e grave, susceptível, pois, de implicar responsabilidade patrimonial do Estado-Membro em causa.

Sob reserva das apreciações que cabem ao órgão jurisdicional nacional com base nos critérios que precisámos, entendemos, em suma, que a violação do n._ 1 do artigo 8._ da directiva, nos termos anteriormente referidos, não constitui violação manifesta e grave, não sendo, pois, susceptível de gerar responsabilidade patrimonial do Estado-Membro para com a entidade adjudicante por prejuízos por esta eventualmente sofridos em consequência da incorrecta execução da disposição em causa.

Conclusão

39 À luz das considerações precedentes, propomos, em consequência, que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio:

»1) O n._ 1 do artigo 8._ da Directiva 90/531/CEE deve ser interpretado no sentido de que a determinação dos serviços de telecomunicação fornecidos por cada entidade adjudicante a que é ou não aplicável a exclusão nele prevista deve ser efectuada pelas próprias entidades adjudicantes.

2) A expressão `sempre que outras entidades tenham a possibilidade de oferecer os mesmos serviços na mesma área geográfica em condições substancialmente idênticas', constante do n._ 1 do artigo 8._ da Directiva 90/531/CEE, deve ser interpretada no sentido de que as referidas entidades devem estar, não apenas formalmente autorizadas a operar no mercado dos serviços em causa, cujo acesso não seja limitado por lei, mas também em condições efectivas de fornecer os mesmos serviços em condições idênticas às da entidade adjudicante.

A decisão que tenha por objecto reconhecer ou não a determinados serviços a possibilidade de beneficiarem da exclusão, no respeito das condições de facto e de direito estabelecidas no n._ 1 do artigo 8._ da Directiva 90/531/CEE, deve atender a todas as características dos serviços em causa, à existência de serviços de substituição, às condições de preço, à posição dos concorrentes no mercado, bem como à existência de eventuais condicionalismos legais.

3) O Estado-Membro interessado não é obrigado a reparar os prejuízos eventualmente sofridos por uma entidade adjudicante pela incorrecta execução do n._ 1 do artigo 8._ da Directiva 90/531/CEE, dado que, no caso vertente, a violação não pode ser qualificada de manifesta e grave.»

(1) - JO L 297, p. 1.

(2) - No que se refere a este último aspecto, o presente processo relaciona-se, pois, com os processos Brasserie du pêcheur e Factortame (C-46/93 e C-48/93, em curso), bem como com os processos apensos Dillenkofer e o. (C-178/94, C-179/94, C-188/94, C-189/94 e C-190/94, em curso), cujas conclusões são apresentadas neste mesmo dia.

(3) - V., em especial, os artigos 3._ e 10._

(4) - Acórdão de 10 de Abril de 1984, Von Colsen e Kamann (14/83, Recueil, p. 1891, n._ 15).

(5) - Acórdão de 30 de Maio de 1991, Comissão/Alemanha (C-59/89, Colect., p. I-2607, n._ 24).

(6) - V., por exemplo, acórdão de 9 de Abril de 1987, Comissão/Itália (363/85, Colect., p. 1733).

(7) - V. n._ 2 do artigo 7._ da legislação nacional de transposição da directiva.

(8) - Directiva do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 76, p. 14).

(9) - Sublinhado nosso.

(10) - O Governo do Reino Unido é de parecer contrário. As observações apresentadas pelo Governo francês, que não foram objecto de contestação, salientam ainda que, no sector das ligações fixas, as partes de mercado estão assim repartidas: 90% para a demandante, 7% para a Mercury e 3% para os demais operadores.

(11) - Como bem precisa a decisão de reenvio, a demandante tem, com efeito, a obrigação de garantir a quem lho solicite a conexão com as suas próprias redes; tem, além disso, a obrigação de fornecer serviços universais, ou seja, serviços de telefonia em qualquer zona do Reino Unido, mesmo quando a procura não seja suficiente para cobrir os seus custos; por último, a demandante é a única, de entre os titulares de licenças, a ter de respeitar a regra do «price cap», nos termos da qual as tarifas que pratica apenas podem ser modificadas nos casos e limites estabelecidos na lei.

(12) - Já referidos na nota 2.

(13) - Já referido na nota 2.

(14) - Acórdão de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357).

(15) - Contrariamente ao processo Factortame (C-48/93, a seguir «Factortame III»), já recordado, em que a violação do direito comunitário é imputável ao legislador, as disposições de execução da directiva são, no caso vertente, um acto do executivo. As condições particularmente rigorosas estabelecidas pela jurisprudência inglesa para efeitos da responsabilidade patrimonial do Estado pela sua actividade normativa tornam, contudo, mesmo nessa hipótese, extremamente difícil o reconhecimento do direito a uma indemnização por parte dos particulares que tenham sofrido prejuízos em consequência da violação do direito comunitário. Para o conhecimento do essencial da jurisprudência nacional em matéria da responsabilidade do Estado por força da actividade normativa da administração pública, em especial no que se refere às diversas hipóteses em que a indemnização é admitida no sistema inglês, v. n._ 7 das minhas conclusões no processo acima referido.

(16) - A demandante solicitou também ao órgão jurisdicional nacional uma medida cautelar de suspensão da aplicação das disposições nacionais impugnadas, pedido esse que não foi deferido.

(17) - V., sobre estes aspectos, os n.os 23 a 34 das conclusões nos processos Brasserie du pêcheur e Factortame III.

(18) - No que se refere aos aspectos específicos do processo Francovich e o., bem como ao fundamento e alcance do princípio da responsabilidade e da obrigação de reparação do Estado-Membro faltoso, que se podem deduzir daquele acórdão, remetemos para as conclusões nos processos apensos Brasserie do pêcheur e Factortame III, em particular para os n.os 15 a 22.

(19) - V., em especial, os n.os 33, 35 e 37 do acórdão em causa.

(20) - Aliás, vai neste sentido o acórdão de 12 de Julho de 1990, Foster e o. (C-188/89, Colect., p. I-3313, n._ 22), em que o Tribunal de Justiça afirmou que o n._ 1 do artigo 5._ da Directiva 76/207/CEE, disposição que goza de efeito directo, «pode ser invocado para se obter uma indemnização da parte de um organismo» encarregado de prestar um serviço de interesse público.

(21) - As três condições em causa, enunciadas pelo Tribunal de Justiça no acórdão Francovich e o. (n._ 40), são aqui retomadas tal como reafirmadas e resumidas pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 14 de Julho de 1994, Faccini Dori (C-91/92, Colect., p. I-3325, n._ 27)). V., além disso, o acórdão de 16 de Dezembro de 1993, Wagner Miret (C-334/92, Colect., p. I-6911, n.os 22 e 23). Neste último caso, apesar de se tratar de uma directiva - a mesma do processo Francovich e o. - já transposta para a ordem jurídica nacional, o problema provinha de as disposições nacionais de que decorriam os direitos não terem atendido a determinada categoria de trabalhadores, pelo que, a seu respeito, não tinha sido dada execução à referida directiva.

(22) - Acórdão Francovich e o., já referido, n._ 41.

(23) - A jurisprudência em causa, ou, melhor, os critérios nela instituídos pelo Tribunal de Justiça, são tratados, no que interessa para o caso em apreço, nos n.os 61 a 69 das conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III.

(24) - V., em especial, os n.os 74 a 84 dessas conclusões.

(25) - V., a este respeito, os n.os 85 a 90 das mesmas conclusões.

(26) - V., em especial, os n.os 55 a 60 das conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III, bem como o n._ 28 das conclusões nos processos apensos Dillinkofer e o.

(27) - V., em especial, o n._ 84 dessas conclusões.

(28) - V., em especial, o n._ 81 das conclusões nos processos apensos Brasserie du pêcheur e Factortame III, bem como as conclusões nos processos apensos Dillenkofer e o., sendo que estes últimos processos correspondem, para o que aqui nos interessa, à hipótese do processo Francovich e o.