61992J0275

ACORDAO DO TRIBUNAL DE 24 DE MARCO DE 1994. - HER MAJESTY'S CUSTOMS AND EXCISE CONTRA GERHART SCHINDLER E JOERG SCHINDLER. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: HIGH COURT OF JUSTICE, QUEEN'S BENCH DIVISION - REINO UNIDO. - LOTARIAS. - PROCESSO C-275/92.

Colectânea da Jurisprudência 1994 página I-01039
Edição especial sueca página 00119
Edição especial finlandesa página I-00079


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

1. Livre prestação de serviços - Disposições do Tratado - Âmbito de aplicação - Importação de documentos publicitários e de bilhetes de lotaria destinados a permitir a participação dos habitantes dum Estado-membro numa lotaria organizada noutro Estado-membro - Inclusão

(Tratado CEE, artigos 59. e 60. )

2. Livre prestação de serviços - Restrições - Legislação nacional que proíbe as actividades de lotaria - Justificação - Protecção dos consumidores e da ordem social

(Tratado CEE, artigo 59. )

Sumário


1. A importação de documentos publicitários e de bilhetes de lotaria num Estado-membro, para fazer participar os habitantes desse Estado-membro numa lotaria organizada num outro Estado-membro, constitui uma actividade de "serviços", na acepção do artigo 60. do Tratado, abrangida, portanto, pelo âmbito de aplicação do artigo 59. do Tratado.

Com efeito, por um lado, as actividades de lotaria, como prestações normalmente fornecidas mediante uma remuneração constituída pelo preço do bilhete, não estão abrangidas, mesmo no que se refere ao envio e difusão transfronteiriça de objectos materiais necessários à sua organização ou ao seu funcionamento, pelas normas relativas à livre circulação de mercadorias. Também não estão abrangidas pelas normas relativas à livre circulação de pessoas, que apenas visam os movimentos de pessoas, ou as relativas à livre circulação de capitais, que visam os movimentos de capitais propriamente ditos e não o conjunto das transferências monetárias necessárias às actividades económicas.

Por outro lado, a sua qualificação como serviços não é afectada pelo facto de as actividades de lotaria serem objecto de uma regulamentação particularmente rígida e de um controlo estreito por parte das autoridades públicas nos diferentes Estados-membros da Comunidade, pois não podem ser consideradas como actividades cuja nocividade conduza à sua proibição em todos os Estados-membros e cuja situação, face ao direito comunitário, possa ser comparada com a das actividades respeitantes a produtos ilícitos.

Finalmente, nem o carácter aleatório do prémio, como contrapartida de remuneração recebida pelo organizador, nem o facto de, caso a organização da lotaria prossiga um fim lucrativo, a participação na mesma poder revestir um carácter lúdico, nem mesmo o facto de os lucros gerados por uma lotaria só poderem, genericamente, ser afectados a fins de interesse geral, são susceptíveis de retirar às actividades da lotaria o seu carácter de actividade económica.

2. Uma legislação nacional que proíbe, salvo excepções que ela própria determina, a actividade de lotarias no território de um Estado-membro e que impede, assim, de forma absoluta, os organizadores de lotarias dos outros Estados-membros de promoverem as suas lotarias e de venderem os bilhetes destas, quer directamente quer por intermédio de agentes independentes, no território do Estado-membro que adoptou essa legislação constitui, mesmo que seja indistintamente aplicável, um entrave à livre prestação de serviços.

Todavia, este entrave, na medida em que a legislação em causa não comporte qualquer discriminação em razão da nacionalidade, pode ser justificado por objectivos de protecção dos consumidores e da ordem social.

Com efeito, as particularidades das lotarias justificam que as autoridades nacionais disponham de um poder de apreciação bastante para determinarem as exigências inerentes à protecção dos jogadores e, mais genericamente, tendo em conta as particularidades socioculturais de cada Estado-membro, à protecção da ordem social, tanto ao que se refere às formas de organização das lotarias e ao volume das apostas como à afectação dos lucros daí derivados, e para decidirem restringi-las ou proibi-las.

Partes


No processo C-275/92,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, pela High Court of Justice of England and Wales (Queen' s Bench Division), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Her Majesty' s Customs and Excise

e

Gerhardt Schindler,

Joerg Schindler,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30. , 36. , 56. e 59. do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: O. Due, presidente, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida e M. Díez de Velasco, presidentes de secção, C. N. Kakouris, F. A. Schockweiler, G. C. Rodríguez Iglesias, F. Grévisse (relator), M. Zuleeg, P. J. G. Kapteyn e J. L. Murray, juízes,

advogado-geral: C. Gulmann

secretário: L. Hewlett, administradora

vistas as observações escritas apresentadas:

- em representação de Gerhardt e Joerg Schindler, por Mark Brealey, barrister,

- em representação do Governo belga, por Jan Devadder, directeur d' administration no Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente e Ph. Vlaemminck, advogado no foro de Gand,

- em representação do Governo dinamarquês, por Joergen Molde, consultor jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo alemão, por Ernst Roeder, Ministerialrat no Ministério federal dos Assuntos Económicos, na qualidade de agente,

- em representação do Governo helénico, por Vassileios Kontolaimos, consultor jurídico adjunto, e Ioannis Chalkias, mandatário judicial no Conselho Jurídico do Estado, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo espanhol, por Alberto Navarro González, director-geral da coordenação jurídica e institucional comunitária e Miguel Bravo-Ferrer Delgado, abogado del Estado, do serviço do contencioso comunitário, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo francês, por Philippe Pouzoulet, subdirector na direcção dos assuntos jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Hélène Duchène, secretária dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo luxemburguês, por Charles Elsen, Premier Conseiller do Governo, na qualidade de agente, assistido por René Diederich, advogado no foro do Luxemburgo,

- em representação do Governo neerlandês, por A. Bos, consultor jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

- em representação do Governo do Reino Unido, por Sue Cochrane, do Treasury Solicitor' s Department, na qualidade de agente, assistida por David Pannick, QC, inscrito no foro de Inglaterra e do País de Gales,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Richard Wainwright, consultor jurídico, e Arnold Ridout, funcionário britânico destacado junto do Serviço Jurídico da Comissão, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações dos demandados no processo principal, do Governo belga, do Governo alemão, do Governo helénico, do Governo espanhol, do Governo francês, do Governo irlandês representado por Mary Finlay, Senior Counsel, na qualidade de agente, do Governo luxemburguês, do Governo neerlandês representado por J. W. de Zwaan, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo português representado por Luís Fernandes, director do Serviço Jurídico da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Rogério Leitão, professor no Instituto de Estudos Europeus da Universidade Lusíada, na qualidade de agentes, do Governo do Reino Unido representado por John E. Collins, Assistant Treasury Solicitor, na qualidade de agente, e Stephen Richards, barrister, e da Comissão das Comunidades Europeias, na audiência de 22 de Setembro de 1993,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 16 de Dezembro de 1993,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 3 de Abril de 1992, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de Junho seguinte, a High Court of Justice of England and Wales (Queen' s Bench Division) colocou, ao abrigo do artigo 177. do Tratado CEE, seis questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 30. , 36. , 56. e 59. do mesmo Tratado para apreciar a compatibilidade, com estas disposições, de uma legislação nacional que proíbe certas lotarias no território de um Estado-membro.

2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe os Commissioners of Customs and Excise (a seguir "Commissioners"), demandantes no processo principal, a Gerhardt e Joerg Schindler relativo ao envio, a cidadãos britânicos, de documentos publicitários e de formulários de adesão de uma lotaria organizada na República Federal da Alemanha.

3 Gerhart e Joerg Schindler exercem a actividade independente de agentes da "Sueddeutsche Klassenlotterie" (a seguir "SKL"), organismo público responsável pela organização de lotarias ditas "por fracções", por conta de quatro Laender da República Federal da Alemanha. Esta actividade consiste em promover as lotarias da SKL e, evidentemente, em vender os bilhetes dessas lotarias.

4 Os associados Schindler expediram, deste modo, a partir dos Países Baixos, envelopes destinados a cidadãos britânicos. Cada envelope continha uma carta convidando o destinatário a participar na 87.ª edição da SKL, formulários de adesão para participar nesta lotaria bem como um envelope de resposta pré-impresso.

5 Estes envelopes foram interceptados e confiscados pelos Commissioners do entreposto postal de Dover com o argumento de que tinham sido importados em violação das disposições conjugadas do artigo 1. , alínea ii) do Revenue Act 1898 (lei de 1898 relativa às alfândegas) e do artigo 2. do Lotteries and Amusements Act 1976 (lei de 1976 relativa às lotarias e divertimentos), com a redacção que tinham antes da National Lottery etc. Act 1993 (lei de 1993 relativa à lotaria nacional e outras).

6 Nos termos do artigo 1. do Revenue Act 1898, na sua redacção então em vigor:

"É proibida a importação dos seguintes artigos:

i) ...

ii) qualquer publicidade ou informação de, ou relacionada com, a extracção ou prevista extracção de qualquer lotaria que, na opinião dos Commissioners of Customs and Excise, seja importada com a intenção de distribuição no Reino Unido, em violação de qualquer lei relativa às lotarias".

7 O Lotteries and Amusements Act 1976 proíbe, no seu artigo 1. , as lotarias que não tenham um carácter de jogo, na acepção da legislação britânica relativa aos jogos (v., nomeadamente, o Gaming Act 1968 - lei de 1968 relativa aos jogos), isto é, a distribuição de prémios, em espécie ou pecuniários, feita com base no acaso ou na sorte e que pressuponha uma entrega de fundos por parte dos participantes. No entanto, a lei autoriza, como excepção a esta proibição, certas formas de lotaria, essencialmente lotarias pequenas e organizadas sem fins lucrativos.

8 Resulta do despacho de reenvio que a 87.ª edição da SKL era proibida por força destas disposições.

9 Nos termos do artigo 2. da lei de 1976, na sua redacção então em vigor:

"... qualquer pessoa que, relativamente a qualquer lotaria promovida ou com a intenção de ser promovida na Grã-Bretanha ou noutro lugar

...

d) traga ou convide qualquer pessoa a enviar para a Grã-Bretanha, para efeitos de venda ou distribuição, qualquer bilhete ou publicidade de lotaria;

ou

e) envie ou tente enviar para fora da Grã-Bretanha dinheiro ou valores recebidos relativamente à venda ou distribuição, ou qualquer documento dando conta da venda ou distribuição, ou da identidade do detentor de qualquer bilhete ou outra forma de participação na lotaria;

ou

g) provoque, proporcione ou tente proporcionar a qualquer pessoa a prática dos actos acima mencionados,

cometerá uma infracção."

10 Na acção intentada na High Court of Justice pelos Commissioners, destinada a validar a confiscação dos envelopes, Gerhart e Joerg Schindler, demandados no processo principal, alegaram que as disposições do artigo 1. , alínea ii) do Revenue Act 1898 e do artigo 2. do Lotteries and Amusements Act 1976 eram incompatíveis com o artigo 30. do Tratado ou, subsidiariamente, com o artigo 59. do mesmo Tratado, uma vez que proíbem a importação, num Estado-membro, de bilhetes, títulos e formulários de adesão relacionados com lotaria legalmente organizada noutro Estado-membro.

11 Os Commissioners contestaram alegando que os bilhetes emitidos no âmbito de uma lotaria e respectivo material publicitário não constituem "mercadorias", na acepção do Tratado, que nem o artigo 30. nem o artigo 59. do Tratado se aplicam à proibição de importação prevista pela legislação britânica dado que esta legislação se refere a todas as lotarias de grande dimensão, qualquer que seja a sua origem, que, em qualquer caso, esta proibição se justifica pela preocupação, demonstrada pelo Governo do Reino Unido, em limitar as lotarias por razões de política social e de prevenção da fraude.

12 Considerando que a solução do litígio no processo principal depende da interpretação de disposições de direito comunitário, a High Court of Justice suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

"1) Os bilhetes ou publicidade para uma lotaria que é legalmente organizada noutro Estado-membro constituem mercadorias para efeitos de aplicação do artigo 30. do Tratado de Roma?

2) Em caso de resposta afirmativa, o artigo 30. aplica-se à proibição, pelo Reino Unido, de importação de bilhetes ou de publicidade para lotarias de grande dimensão, dado que as restrições impostas pela lei do Reino Unido quanto à actividade dessas lotarias no Reino Unido se aplica sem discriminação em razão da nacionalidade e independentemente do facto de a lotaria ser organizada no exterior ou no interior do Reino Unido?

3) Em caso de resposta afirmativa, as preocupações do Reino Unido em limitar as lotarias por razões de política social e de prevenção de fraudes constituem razões legítimas de ordem pública ou de moralidade pública que justifiquem as restrições controvertidas, ao abrigo do artigo 36. ou por outros fundamentos, nas circunstâncias do presente caso?

4) A venda de bilhetes ou o envio de publicidade para uma lotaria que é legalmente organizada noutro Estado-membro constitui uma prestação de serviços na acepção do artigo 59. do Tratado de Roma?

5) Em caso de resposta afirmativa, o artigo 59. aplica-se à proibição, pelo Reino Unido, de importação de bilhetes ou de publicidade para lotarias de grande dimensão, tendo em conta que as restrições impostas pela lei do Reino Unido quanto à actividade dessas lotarias no interior do Reino Unido se aplicam sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade independentemente do facto de a lotaria ser organizada no exterior ou no interior do Reino Unido?

6) Em caso de resposta afirmativa, as preocupações do Reino Unido em limitar as lotarias por razões de política social e de prevenção de fraudes constituem razões legítimas de ordem pública ou de moralidade pública que justifiquem as restrições controvertidas, nos termos do artigo 56. conjugado com o artigo 66. ou por outros fundamentos, nas circunstâncias do presente processo?"

13 Tendo em conta os argumentos apresentados pelas partes no processo principal e a fundamentação do seu despacho de reenvio, o juiz nacional pergunta se os artigos 30. e 59. do Tratado impedem que a legislação de um Estado-membro proíba, como faz a legislação britânica salvo excepções, as lotarias no território desse Estado e, consequentemente, a importação de material destinado a permitir a participação dos habitantes desse território em lotarias estrangeiras.

14 Através das primeira e quarta questões prejudiciais, o juiz nacional pretende determinar se a importação de documentos publicitários e de bilhetes de lotaria num Estado-membro, para fazer participar os habitantes desse Estado numa lotaria organizada num outro Estado-membro, constitui uma importação de mercadorias e é abrangida pelo artigo 30. do Tratado ou se essa actividade é uma prestação de serviços entrando, a este título, no campo de aplicação do artigo 59. do mesmo Tratado.

15 Deste modo, importa examinar conjuntamente estas duas questões.

Quanto à primeira e quarta questões

16 Acerca da aplicabilidade dos artigos 30. e 59. do Tratado, um primeiro grupo de governos, que inclui os Governos belga, alemão, irlandês, luxemburguês e português, sustenta que a actividade das lotarias não é uma "actividade económica", na acepção do Tratado. Alegam que as lotarias são tradicionalmente proibidas nos Estados-membros ou são exploradas directamente pelas autoridades públicas, ou sob o seu controlo, com fins, unicamente, de interesse geral. Consideram que as lotarias não têm fundamento económico porque se baseiam na sorte. Afirmam, finalmente, que as lotarias têm um carácter recreativo ou lúdico e não um carácter económico. Os Governos belga e luxemburguês acrescentam que resulta da Directiva 75/368/CEE do Conselho, de 16 de Junho de 1975, relativa a medidas destinadas a favorecer o exercício efectivo da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços em várias actividades (ex classe 01 a classe 85 CITI) e contendo, nomeadamente, medidas transitórias para estas actividades (JO L 167, p. 22; EE 06 F1 p. 205), que as lotarias são excluídas do campo de aplicação do Tratado, com excepção das que são organizadas por particulares com fins lucrativos.

17 Um segundo grupo de governos, constituído pelos Governos espanhol, francês e do Reino Unido, bem como a Comissão sustentam que a actividade que consiste na organização de lotarias é uma actividade de "serviços", na acepção do artigo 60. do Tratado. Alegam que uma tal actividade incide sobre prestações que são, por um lado, normalmente fornecidas contra remuneração ao organizador da lotaria ou aos participantes nessa lotaria e que, por outro lado, não são abrangidas pelas normas relativas à livre circulação de mercadorias.

18 Finalmente, os demandados no processo principal consideram que a actividade que exercem releva do âmbito de aplicação do artigo 30. do Tratado. Defendem que o material publicitário e os documentos que anunciam ou que se referem à extracção de uma lotaria são "mercadorias", na acepção do Tratado, isto é, objectos materiais obtidos por fabrico, segundo a definição dada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 11 de Julho de 1985, Cinéthèque (60/84 e 61/84, Recueil, p. 2605).

19 Dado que alguns governos sustentaram que as lotarias não são "actividades económicas", na acepção do Tratado, importa salientar que uma importação de mercadorias ou uma prestação de serviços remunerada (v., acerca deste último ponto, os acórdãos de 14 de Julho de 1976, Doña, 13/76, Recueil, p. 1333, n. 12 e de 5 de Outubro de 1988, Steymann, 196/87, Colect., p. 6159, n. 10) devem ser consideradas como "actividades económicas", na acepção do Tratado.

20 Nestas condições, basta examinar se as lotarias entram no âmbito de aplicação de qualquer um dos artigos do Tratado referidos no despacho de reenvio.

21 O juiz nacional pergunta se as lotarias são abrangidas, pelo menos parcialmente, pelo artigo 30. do Tratado, uma vez que implicam o envio e difusão em grandes quantidades, no caso em apreço num outro Estado-membro, de objectos materiais como cartas, prospectos publicitários ou bilhetes de lotaria.

22 É certo que a actividade dos demandados no processo principal parece limitar-se ao envio de documentos publicitários e de formulários de adesão, talvez de bilhetes, por conta da SKL, um organizador de lotarias. Mas essas actividades mais não são do que modalidades concretas de organização ou de funcionamento de uma lotaria e não podem, face ao Tratado, ser consideradas independentemente da actividade de lotaria em que se inserem. A importação e a difusão de objectos não constituem fins em si mesmos, destinando-se apenas a permitir que os habitantes dos Estados-membros, onde esses objectos são importados e difundidos, participem na lotaria.

23 O facto, invocado pelos associados Schindler no processo principal, de os agentes da lotaria SKL enviarem objectos materiais para a Grã-Bretanha para garantirem a publicidade e a colocação dessa lotaria, e de os objectos materiais obtidos por fabrico serem mercadorias, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, não é suficiente para reduzir a sua actividade à de uma exportação ou importação.

24 As actividades de lotaria não são, portanto, actividades relativas a "mercadorias" abrangidas, como tais, pelo artigo 30. do Tratado.

25 Estas actividades devem, ao invés, ser consideradas como actividades de "serviços", na acepção do Tratado.

26 Nos termos do artigo 60. , primeiro parágrafo, do Tratado:

"... consideram-se 'serviços' as prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas".

27 As prestações em causa são as que o organizador da lotaria fornece ao fazer participar os compradores de bilhetes num jogo de azar dando-lhes uma esperança de ganhar, garantindo, para tal, a recolha do dinheiro das apostas, a organização das extracções aleatórias, a determinação e o pagamento dos prémios pecuniários ou outros.

28 Estas prestações são normalmente fornecidas contra uma remuneração que consiste no preço do bilhete da lotaria.

29 As prestações em causa apresentam um carácter transfronteiriço quando, como acontece no processo principal, são realizadas no território de um Estado-membro que não é aquele onde está estabelecido o organizador da lotaria.

30 Finalmente, as lotarias não são regidas nem pelas normas do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias, tal como ficou dito no n. 24 do presente acórdão, nem pelas normas relativas à livre circulação de pessoas, que só abrangem os movimentos de pessoas, nem pelas normas relativas à livre circulação de capitais, que só abrangem os movimentos de capitais mas não o conjunto das transferências monetárias necessárias às actividades económicas (v. acórdão de 23 de Novembro de 1978, Thomson e o., 7/78, Recueil, p. 2247).

31 É verdade que, tal como salientam alguns Estados-membros, as lotarias são objecto de uma regulamentação particularmente rígida e de um controlo estreito por parte das autoridades públicas nos diferentes Estados-membros da Comunidade. Todavia, as lotarias não são, ainda assim, totalmente proibidas nestes diferentes Estados-membros. Pelo contrário, são largamente praticadas. Nomeadamente, apesar de as lotarias serem, em princípio, proibidas no Reino Unido, são autorizadas neste Estado-membro as pequenas lotarias, organizadas sem fins lucrativos, bem como a lotaria nacional após a adopção, em 1993, da respectiva lei.

32 Nestas condições, as lotarias não podem ser consideradas como actividades cuja nocividade leva a proibí-las em todos os Estados-membros e cuja situação, face ao direito comunitário, possa ser comparada com a das actividades relativas aos produtos ilícitos (v., quanto aos estupefacientes, o acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, Einberger, 294/82, Recueil, p. 1177), apesar de, como fazem notar os Governos belga e luxemburguês, os contratos de jogo poderem ser considerados nulos no direito de alguns Estados-membros. Mesmo supondo que a moralidade das lotarias possa, no mínimo, ser posta em causa, não compete ao Tribunal substituir a sua apreciação à dos legisladores dos Estados-membros onde a actividade em causa é legalmente praticada (v. acórdão de 4 de Outubro de 1991, Society for the Protection of Unborn Children Ireland, C-159/90, Colect., p. I-4685, n. 20).

33 Alguns governos insistem no carácter aleatório dos ganhos da lotaria. Mas as actividades habituais de uma lotaria traduzem-se no pagamento de uma soma por um apostador que espera receber em contrapartida um prémio pecuniário ou outro. A eventualidade que pode revestir esta contrapartida não retira à troca o seu carácter comercial.

34 É igualmente verdade que uma lotaria pode, tal como o desporto amador, apresentar um carácter recreativo para os jogadores que nela participam. No entanto, este aspecto lúdico não retira à lotaria o seu carácter de prestação de serviços. Por um lado, dá aos jogadores um ganho ou, pelo menos, uma esperança de ganho, por outro dá um lucro ao organizador. As lotarias são, com efeito, organizadas por entidades privadas ou públicas, com fins que são lucrativos dado que, na maior parte dos casos, a totalidade das somas apostadas pelos jogadores não é redistribuída sob a forma de prémios pecuniários ou outros.

35 O facto de, em numerosos Estados-membros, a lei prever que os lucros proporcionados por uma lotaria só possam ser utilizados para determinados objectivos, nomeadamente de interesse geral, ou prever mesmo que sejam afectados ao orçamento do Estado, não significa que essas normas de afectação dos lucros alterem a natureza da actividade em causa, privando-a do seu carácter económico.

36 Finalmente, ao excluir do seu âmbito de aplicação as actividades de lotaria, excepto as exercidas por particulares com fins lucrativos, a Directiva 75/368, já referida, não negou, por isso, o carácter de "serviços" a essas actividades. Esta directiva visa, unicamente, facilitar, a título transitório, o exercício, pelos nacionais de outros Estados-membros, das actividades não assalariadas que indica. Não tem nem por objectivo, nem por efeito, nem teria, de qualquer modo, competência para o fazer, excluir as lotarias do âmbito da aplicação dos artigos 59. e 60. do Tratado.

37 Por conseguinte, deve responder-se às primeira e quarta questões prejudiciais que a importação de documentos publicitários e de bilhetes de lotaria num Estado-membro, para fazer participar os habitantes desse Estado-membro numa lotaria organizada num outro Estado-membro, constitui uma actividade de "serviços", na acepção do artigo 60. do Tratado, abrangida, portanto, pelo âmbito de aplicação do artigo 59. do Tratado.

Quanto às segunda e terceira questões

38 Decorre do seu próprio enunciado que as segunda e terceira questões prejudiciais só são colocadas no caso de se considerar que a actividade em causa no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 30. do Tratado. Não sendo esse o caso, não há que responder a estas questões.

Quanto à quinta questão

39 Através da quinta questão, o juiz nacional pergunta se uma legislação nacional que, tal como a legislação britânica sobre as lotarias, proíbe, salvo excepções que ela própria determina, a actividade de lotarias no território de um Estado-membro, constitui um entrave à livre prestação de serviços.

40 A Comissão e os demandados no processo principal sustentam que uma tal legislação que é, de facto, discriminatória, restringe, em qualquer caso, a livre prestação de serviços.

41 Os governos espanhol, francês e helénico, bem como o Governo do Reino Unido reconhecem que uma tal legislação pode constituir uma restrição à livre prestação de serviços, apesar de ser indistintamente aplicável.

42 Os governos belga e luxemburguês consideram que uma legislação como a britânica não constitui uma restrição à livre prestação de serviços dado que é indistintamente aplicável.

43 Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (v. acórdão de 25 de Julho de 1991, Saeger, C-76/90, Colect., p. I-4221, n. 12), uma legislação nacional pode cair na alçada do artigo 59. do Tratado, ainda que seja indistintamente aplicável, quando for susceptível de impedir ou entravar de alguma forma as actividades do prestador estabelecido noutro Estado-membro, onde preste, legalmente, serviços análogos.

44 É, evidentemente, o caso de uma legislação nacional, como a legislação britânica sobre as lotarias, que impede, de maneira absoluta, os organizadores de lotarias de outros Estados-membros de promoverem as suas lotarias e de venderem os seus bilhetes, seja directamente, seja por intermédio de agentes independentes, no território do Estado-membro que adoptou essa legislação.

45 Assim, deve responder-se à quinta questão prejudicial que uma legislação nacional que, tal como a legislação britânica sobre as lotarias, proíbe, salvo excepções que ela própria determina, a actividade de lotarias no território de um Estado-membro constitui um entrave à livre prestação de serviços.

Quanto à sexta questão

46 Através da sexta questão prejudicial, o juiz nacional pergunta se as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços se opõem a uma legislação do tipo da legislação britânica sobre as lotarias, tendo em conta as preocupações de política social e de prevenção de fraudes que a justificam.

47 A título liminar, importa verificar que, como afirma o juiz nacional, uma legislação do tipo da britânica não prevê nenhuma discriminação segundo a nacionalidade devendo, consequentemente, ser considerada como indistintamente aplicável.

48 Está assente, com efeito, que uma proibição como a prevista pela legislação britânica, que visa a organização de grandes lotarias e, mais especialmente, a publicidade e a difusão dos bilhetes deste tipo de lotarias, se aplica independentemente da nacionalidade do organizador da lotaria ou dos seus agentes e qualquer que seja o ou os Estados-membros onde se encontrem estabelecidos o organizador ou seus agentes. Não há, portanto, nenhuma discriminação devido à nacionalidade dos operadores económicos em causa ou em função do Estado-membro onde se encontram estabelecidos.

49 A Comissão e os demandados no processo principal sustentam, no entanto, que uma legislação do tipo da britânica sobre as lotarias é, de facto, discriminatória. Alegam que, apesar de proibir as grandes lotarias no território britânico de maneira aparentemente não discriminatória, uma legislação deste tipo autoriza, por um lado, a organização simultânea por uma mesma pessoa, de várias pequenas lotarias, isto é, o equivalente de uma grande lotaria e, por outro lado, a organização de jogos de azar de natureza e dimensão comparáveis à das grandes lotarias, tais como os prognósticos de jogos de futebol ou o "bingo".

50 É certo que a proibição em causa no processo principal não abrange todos os tipos de lotarias, dado que as pequenas lotarias sem fins lucrativos são autorizadas no território nacional e que esta proibição se inscreve no âmbito mais geral de uma legislação nacional relativa aos jogos a dinheiro, que autoriza algumas formas de jogo próximas das lotarias, tais como os prognósticos sobre os jogos de futebol ou o jogo denominado "bingo".

51 No entanto, apesar de poderem originar montantes de apostas comparáveis aos das grandes lotarias e de incluírem uma parte importante de sorte, os jogos deste modo autorizados no Reino Unido têm objectivos, regras e modalidades de organização diferentes dos das grandes lotarias que, até ao aparecimento do National Lottery, etc. Act 1993, estavam estabelecidas em outros Estados-membros. Não estão, portanto, em situação comparável com a das lotarias proibidas pela legislação britânica, não podendo ser-lhes equiparadas, contrariamente ao defendido pela Comissão e pelos demandados no processo principal.

52 Nestas condições, uma legislação como a britânica não pode ser considerada discriminatória.

53 Importa, portanto, averiguar se o artigo 59. do Tratado se opõe a uma legislação deste tipo que, apesar de não ser discriminatória, restringe, contudo, a livre prestação de serviços, tal como ficou dito no n. 45 do presente acórdão.

54 Todos os governos que apresentaram alegações consideram que uma legislação, como a que está aqui em causa, é compatível com as disposições do artigo 59. do Tratado. Segundo estes, a legislação deve ser considerada como justificada por razões imperiosas de interesse geral que são a protecção dos consumidores, a prevenção da delinquência, a protecção da moralidade pública, a limitação da procura dos jogos a dinheiro, bem como o financiamento de actividades de interesse geral. Consideram, ademais, que uma legislação deste tipo é proporcional aos objectivos que prossegue.

55 Ao contrário, a Comissão considera que, não obstante ser baseada em razões imperiosas de interesse geral, uma proibição de lotaria como a prevista pela legislação britânica não é compatível com o artigo 59. do Tratado porque os objectivos pretendidos podem ser conseguidos através de medidas menos restritivas.

56 Pelo seu lado, os demandados no processo principal defendem que os motivos invocados para justificar a proibição controvertida não podem constituir razões imperiosas de interesse geral dado que uma legislação do tipo da britânica não prevê uma proibição semelhante relativamente aos jogos a dinheiro de natureza idêntica à das grandes lotarias.

57 De acordo com as indicações do juiz nacional, a legislação britânica, na sua redacção anterior à lei de 1993 que institui a lotaria nacional, prosseguia os seguintes objectivos: prevenir os delitos e garantir que os participantes nos jogos a dinheiro fossem tratados de forma honesta; evitar estimular a procura no sector dos jogos a dinheiro, cujos excessos têm consequências sociais nefastas; providenciar para que as lotarias não fossem organizadas tendo em vista um lucro pessoal e comercial mas apenas fins de beneficência, desportivos ou culturais.

58 Estes motivos, que devem ser considerados no seu conjunto, prendem-se com a protecção dos destinatários do serviço e, mais geralmente, dos consumidores, e ainda com a protecção da ordem social. O Tribunal de Justiça já decidiu que estes objectivos se incluíam naqueles que podiam justificar restrições à livre prestação de serviços (v. acórdãos de 18 de Janeiro de 1979, Van Wesemael, 110/78 e 111/78, Recueil, p. 35, n. 28; de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/França, 220/83, Colect., p. 3663, n. 20; de 24 de Outubro de 1978, Société général alsacienne de banque, 15/78, Recueil, p. 1971, n. 5).

59 Tendo em conta a natureza muito especial das lotarias, que foi sublinhada por numerosos Estados-membros, estes motivos são susceptíveis de justificar, à luz do artigo 59. do Tratado, restrições que vão até à proibição das lotarias no território de um Estado-membro.

60 Com efeito, não é possível abstrair, antes de mais, das considerações de ordem moral, religiosa ou cultural que envolvem as lotarias e os outros jogos a dinheiro em todos os Estados-membros. De um modo geral, estes tendem a limitar, até mesmo a proibir, a prática de jogos a dinheiro e a evitar que sejam uma fonte de lucro individual. Importa, de seguida, realçar que, atendendo à importância das somas que permitem recolher e aos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, sobretudo quando são organizadas em grande escala, as lotarias comportam riscos elevados de delito e de fraude. Constituem, além disso, uma incitação à despesa que pode ter consequências individuais e sociais nefastas. Finalmente, sem que este motivo possa, em si, ser considerado uma justificação objectiva, não é indiferente salientar que as lotarias podem participar, significativamente, no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tais como as obras sociais, de beneficência, o desporto ou a cultura.

61 Estas particularidades justificam que as autoridades nacionais disponham de um poder de apreciação suficiente para determinar as exigências que a protecção dos jogadores comporta e, mais geralmente, atendendo a particularidades sócio-culturais de cada Estado-membro, a protecção da ordem social, tanto no que se refere às modalidades de organização das lotarias e ao volume das suas apostas, como à afectação dos lucros que originarem. Nessas condições, compete-lhes apreciar não apenas se basta restringir as actividades das lotarias, mas também se é necessário proibí-las, desde que essas restrições não sejam discriminatórias.

62 Quando um Estado-membro proíbe no seu território a organização de grandes lotarias e, mais especialmente, a publicidade e a difusão dos bilhetes desse tipo de lotarias, a proibição de importar materiais destinados a permitir aos cidadãos desse Estado-membro a participação em tais lotarias organizadas num outro Estado-membro não deve ser considerada como uma medida que restrinja, injustificadamente, a livre prestação de serviços. Com efeito, uma tal proibição de importação é um elemento necessário à protecção que esse Estado-membro pretende assegurar no seu território em matéria de lotarias.

63 Deste modo, deve responder-se à sexta questão prejudicial que as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação do tipo da legislação britânica sobre as lotarias, tendo em conta as preocupações de política social e da prevenção de fraude que a justificam.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

64 As despesas efectuadas pelos Governos belga, dinamarquês, alemão, helénico, espanhol, francês, irlandês, luxemburguês, neerlandês, português e do Reino Unido, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pela High Court of Justice (Queen' s Bench Division, Commercial Court), por despacho de 3 de Abril de 1992, declara:

1) A importação de documentos publicitários e de bilhetes de lotaria num Estado-membro, para fazer participar os habitantes desse Estado-membro numa lotaria organizada num outro Estado-membro, constitui uma actividade de "serviços", na acepção do artigo 60. do Tratado, abrangida, portanto, pelo âmbito de aplicação do artigo 59. do Tratado.

2) Uma legislação nacional que, tal como a legislação britânica sobre as lotarias, proíbe, salvo excepções que ela própria determina, a actividade de lotarias no território de um Estado-membro constitui um entrave à livre prestação de serviços.

3) As disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação do tipo da legislação britânica sobre as lotarias, tendo em conta as preocupações de política social e da prevenção de fraude que a justificam.