61992C0294

Conclusões do advogado-geral Darmon apresentadas em 8 de Fevereiro de 1994. - GEORGE LAWRENCE WEBB CONTRA LAWRENCE DESMOND WEBB. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: COURT OF APPEAL (ENGLAND) - REINO UNIDO. - CONVENCAO DE BRUXELAS - ARTIGO 16., N. 1 - ACCAO RELATIVA A EXISTENCIA DE UM'TRUST'SOBRE UM BEM IMOVEL. - PROCESSO C-294/92.

Colectânea da Jurisprudência 1994 página I-01717


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. Através da sua questão prejudicial, a Court of Appeal convida o Tribunal a pronunciar-se sobre a interpretação do artigo 16. , n. 1, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (1) (a seguir "Convenção"), no âmbito de um litígio de que se recordarão os dados essenciais.

2. Durante o ano de 1971, George Lawrence Webb celebrou um contrato que incidia sobre a aquisição de um apartamento situado em Antibes (França), tendo as autorizações exigidas pelo Banco de Inglaterra nos termos da legislação sobre controlo de câmbios sido concedidas em nome de seu filho, Lawrence Desmond Webb.

3. Os fundos necessários para essa aquisição foram transferidos da conta bancária do demandante no processo principal para a conta bancária aberta em Antibes por seu filho, em cujo nome a propriedade foi registada.

4. No mês de Março de 1990, George Webb intentou na High Court uma acção contra seu filho, destinada, a título principal, a obter a declaração de que este último possuía o bem na qualidade de trustee, e ainda a que lhe fosse dirigida uma injunção para que preparasse os documentos necessários para que o pai fosse reconhecido como titular da "legal ownership".

5. Lawrence Webb, para além do facto de se afirmar beneficiário de uma doação, impugnou a competência dos tribunais ingleses com fundamento em que, incidindo a acção em causa sobre um direito real sobre imóvel, apenas seria competente o tribunal francês do lugar da situação do imóvel. Invocou a este respeito o artigo 16. , n. 1, da Convenção, que dispõe que

"Têm competência exclusiva, qualquer que seja o domicílio: em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado contratante onde o imóvel se encontre situado".

6. Por decisão de 23 de Maio de 1991, a High Court rejeitou esta excepção com fundamento em que o pedido do pai se baseou numa relação fiduciária sem que tenha sido solicitada a entrega da posse, a rectificação do registo predial ou a declaração da sua qualidade de proprietário.

7. Desta decisão foi interposto recurso. A Court of Appeal submete ao Tribunal a seguinte questão:

"Deve interpretar-se o artigo 16. , n. 1, da Convenção de Bruxelas no sentido de que a acção intentada na Chancery Division da High Court of Justice cuja designação abreviada e número de registo são Webb v. Webb 1990 W. No 2827 é da exclusiva competência dos tribunais franceses?"

8. Impõe-se uma observação liminar: se o órgão jurisdicional de reenvio consulta o Tribunal com base no artigo 177. do Tratado CEE, o texto aplicável no caso concreto é o do artigo 3. do protocolo de 3 de Junho de 1971. Mesmo neste quadro o Tribunal não pode decidir directamente o litígio submetido à Court of Appeal, mas deve fornecer-lhe os elementos de interpretação necessários para que profira a decisão. A questão deve, pois, ser reformulada e poderá sê-lo nestes termos: será uma acção em matéria de direitos reais, na acepção do n. 1 do artigo 16. da Convenção, a acção intentada por uma pessoa contra outra com a finalidade de obter a declaração de que esta última possui um bem imóvel na qualidade de trustee e destinada a que seja dirigida na injunção ao demandado para preparar os documentos necessários para que o demandante seja titular da "legal ownership"?

9. A Convenção não desconhece nem o trust nem a sua especificidade, uma vez que no n. 6 do artigo 5. determina a competência nessa matéria. Contudo, esta disposição é inaplicável no presente processo devido ao carácter muito especial do trust em causa. Com efeito, enquanto ela só tem vocação para regular "... um trust constituído quer nos termos da lei quer por escrito ou por acordo verbal confirmado por escrito...", o "resulting trust" em questão infere-se

"... da intenção presumida da pessoa que fornece os bens ou do preço de compra desses bens" (2).

10. A propósito do "resulting trust", o Sr. Béraudo dá o exemplo

"... (de) uma pessoa (que) compra um bem em nome de outrem. Na falta de intenção segura de fazer uma doação, presume-se que a pessoa que financiou a compra tenha conservado a propriedade em equidade, os interesses beneficiários do bem. O proprietário nominal tem apenas a propriedade legal. Ele é o presumido trustee do bem" (3).

11. Quanto ao artigo 16. , recordemos que esta disposição figura no título II, secção 5, da Convenção e determina qual o tribunal competente quando o pedido incide, a título principal, sobre uma matéria aí enunciada. Atribuindo competência exclusiva, este artigo tem como efeito afastar o foro do domicílio do réu, impondo-se independentemente de acordo em contrário das partes.

12. Com efeito, como escreveu o Sr. Droz (4),

"... as regras de competência enumeradas no artigo 16. só têm carácter exclusivo quando o tribunal deva conhecer do litígio a título principal. Isto resulta, a contrario, mas muito claramente, do artigo 19. da Convenção, que só impõe ao juiz a obrigação de se declarar incompetente, quando um órgão jurisdicional de outro Estado contratante seja exclusivamente competente por força do artigo 16. , se for chamado a decidir a título principal o problema reservado aos tribunais de outro Estado contratante" (5).

13. Por fim, uma decisão proferida noutro Estado contratante com violação desta regra de competência não poderá beneficiar nem de reconhecimento (artigo 28. ) nem de execução (artigo 34. ).

14. O artigo 16. pode assim ter como efeito fazer comparecer as partes perante uma jurisdição que não é a de nenhuma delas.

15. Esta disposição, na parte em que confere competência exclusiva "em matéria de direitos reais sobre imóveis" aos tribunais do Estado contratante onde está situado o imóvel, até agora apenas deu lugar a uma decisão deste Tribunal, o acórdão Reichert I (6), sobre o qual se concentraram as observações das partes sem que, no entanto, tenha sido invocado no processo perante os tribunais ingleses.

16. No processo que deu origem a este acórdão, um casal residente na República Federal da Alemanha tinha doado ao seu filho, igualmente residente naquele Estado, a nua propriedade de um bem imóvel situado em França, com reserva de usufruto. O banco alemão, credor do casal, intentou em França uma acção dita "pauliana", que tem como consequência tornar inoponível ao credor a transferência de propriedade efectuada. Tendo os réus contestado a competência do tribunal francês em proveito do tribunal alemão do seu domicílio, a cour d' appel d' Aix-en-Provence submeteu ao Tribunal uma questão prejudicial visando, no essencial, saber se a acção pauliana constitui uma acção em matéria de direitos reais, na acepção do artigo 16. , n. 1, da Convenção.

17. Recordando os acórdãos Sanders (7) e Duijnstee (8), o primeiro relativo à noção de "arrendamento de imóveis" e o segundo dizendo respeito a um litígio "em matéria de inscrição ou de validade de patentes", o Tribunal renovou a sua preocupação de afirmar a uniformidade das noções inscritas na Convenção, o que implica que esteja definido

"... de forma autónoma, em direito comunitário, o sentido da expressão 'em matéria de direitos reais sobre imóveis' ..." (9).

18. Observando, em seguida, que o artigo 16. constituiu um foro derrogatório das competências ordinárias, o Tribunal concluiu que o mesmo não devia

"... ser interpretado num sentido mais amplo do que o requerido pelo seu objectivo..." (10),

assentando a ratio legis desta disposição no princípio da proximidade (11) que justifica a competência do tribunal do lugar da situação do imóvel, por

"... ser o que está em melhores condições, tendo em conta a sua proximidade, de possuir um bom conhecimento das situações de facto e de aplicar as regras e usos que são, em geral, os do Estado da situação..." (12).

19. Estas considerações levaram o Tribunal a interpretar aquela disposição no sentido de que

"... a competência exclusiva dos tribunais do Estado contratante onde o imóvel está situado não abrange a totalidade das acções sobre direitos reais sobre imóveis, mas apenas aquelas que, ao mesmo tempo, se incluem no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas e se destinam a determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses bens e a garantir aos titulares desses direitos a protecção das prerrogativas ligadas ao seu título" (13).

20. O Tribunal foi levado a procurar o fundamento e o objecto da acção intentada e recusou a aplicação do artigo 16. , n. 1, com fundamento em que

"... a acção dita 'pauliana' encontra o seu fundamento no direito de crédito, direito pessoal do credor relativamente ao devedor, e tem por objecto proteger o direito de garantia de que pode dispor o primeiro sobre o património do segundo" (14).

21. Como salientou o Sr. Bischoff (15):

"Assim, pode considerar-se, sem que isso constitua uma audácia excessiva, que o alcance do acórdão ultrapassa indiscutivelmente o caso da simples acção pauliana, e diz respeito, igualmente, a todas as acções de anulação, rescisão e resolução que tenham o seu fundamento num direito pessoal do autor, ainda que com eventual incidência na propriedade de um imóvel" (16).

22. Assim, baseando-se no direito de crédito, a acção pauliana tem por objecto a preservação do direito geral de garantia do credor sobre o património do seu devedor sem no entanto lhe conferir um jus in rem, de modo que, segundo o Sr. Ancel (17):

"Os pedidos que pretendam atingir um direito real sobre imóvel através da impugnação do acto que assegura a sua transmissão não interessam tão imediatamente a esta categoria de direitos como aqueles que se prendem com a sua estrutura e protecção. Ao contrário destes últimos, os primeiros evoluem à distância do núcleo da 'realidade' ° a condição jurídica do bem ° e ficam assim expostos à ameaça de serem excluídos pela regra de interpretação estrita" (18).

23. Estamos em presença das seguintes teses.

24. Por um lado, segundo o Governo do Reino Unido, a acção do pai tem por objecto principal "... determinar se um imóvel é possuído no quadro de um trust..." (19) e diz respeito apenas às relações internas ao trust, de modo que não pode ser considerada como incidindo sobre um direito real.

25. Esta análise é partilhada pelo autor no processo principal, o qual considera que "... quando o litígio diz respeito à existência de um direito resultante de um contrato entre as partes ou de um certo comportamento das partes uma para com a outra, os tribunais do lugar da situação do imóvel não estão em melhores condições para decidir do litígio do que os de qualquer outro Estado contratante..." (20).

26. Por outro lado, a Comissão, de forma expressa, bem como o réu no processo principal, de forma implícita, insistindo na finalidade do pedido, concluem pelo carácter real da acção, reivindicando o pai, de facto, a qualidade de proprietário, o que levou, aliás, o patrono do réu, na audiência, a resumir nestes termos, e não sem humor, a pretensão do autor: "What is the plaintiff' s claim? My Lords, the plaintiff' s claim is to own the flat!".

27. A questão não é simples e interrogámo-nos sobre a escolha da tese a defender, pois a reivindicação do direito de propriedade irrompe incontestavelmente sob o pedido de reconhecimento de tal trust.

28. Contudo, a análise que consiste em tomar em consideração o objectivo real prosseguido pelo demandante no processo principal não é apoiada nem pelo texto, nem pela doutrina dominante, nem pela jurisprudência deste Tribunal. A competência ratione materiae de um órgão jurisdicional aprecia-se necessariamente, sem exame da finalidade, face ao objecto do pedido, tal como determinado no acto introdutório da instância (21).

29. A competência exclusiva é atribuída desde que o pedido incida, a título principal, sobre direitos reais sobre imóveis. Se se lerem as versões francesa: "en matière de droits réels immobiliers", espanhola: "en materia de derechos reales immobiliarios", italiana: "in materia di diritti reali immobiliari", notar-se-á o matiz do texto inglês: "in proceedings which have as their object rights in rem".

30. Tal como salientou o advogado-geral Sir Gordon Slynn nas suas conclusões no processo Roesler (22):

"Segundo as versões nas outras línguas, afigura-se que o artigo visa o processo contencioso que tem por objecto (em inglês 'the subject matter' de preferência a 'the object' ) a locação de um bem imóvel e não um acordo que apenas respeite ao próprio bem imóvel." (23).

31. Resulta igualmente do relatório Jenard que

"... as matérias enumeradas no artigo 16. apenas implicam competência judiciária exclusiva se o Tribunal delas dever conhecer a título principal",

e que

"(as) normas (de competência exclusiva) que assentam no objecto do pedido aplicam-se independentemente do domicílio e da nacionalidade das partes" (24).

32. Quanto à jurisprudência deste Tribunal, a exigência de uma interpretação restritiva do artigo 16. , acolhida pela primeira vez no acórdão Sanders, já referido, traduz a recusa do Tribunal de alargar o âmbito de aplicação desta disposição a pedidos que só respeitem indirectamente ou de maneira incidental a direitos reais.

33. Deve, assim, determinar-se se uma acção destinada a obter a declaração de que uma pessoa possui um bem imóvel em nome de outrem no quadro de um trust e a obter uma injunção contra o réu para que elabore os documentos necessários para que a "legal ownership" fique em nome do autor constitui ou não uma acção em matéria de direitos reais, na acepção do n. 1 do artigo 16.

34. A distinção dos direitos pessoais e dos direitos reais, bem conhecida dos direitos continentais, foi assim definida no relatório Schlosser:

"Um direito pessoal só pode ser reivindicado contra o devedor... Pelo contrário, o direito real de que é objecto um bem móvel corpóreo produz os seus efeitos em relação a todas as pessoas. A consequência jurídica essencial que caracteriza um direito real consiste na faculdade de o seu titular poder reclamar o bem que é objecto desse direito a qualquer pessoa que não possua um direito real hierarquicamente superior" (25).

35. Quando um bem é transmitido a um trustee a fim de ser detido no quadro de um trust, opera-se um "desdobramento do direito de propriedade" (26), uma vez que o título de propriedade é lavrado em nome do trustee, ou de outra pessoa por conta do trustee (27), e o beneficiário é titular do "beneficial interest" que é um "equitable interest".

36. Segundo o relatório Schlosser, os "equitable interests" não são equivalentes

"... aos direitos estritamente pessoais dos sistemas continentais. Alguns deles podem ser registados, produzindo, neste caso, efeitos de forma universal, à semelhança dos 'legal rights' , mesmo em relação a compradores de boa-fé. Mesmo no caso de não serem registados, os 'equitable interests' produzem, em princípio, efeitos de forma universal; neste caso, só os compradores de boa fé que deles não tinham conhecimento se encontram protegidos" (28).

37. A inclusão do "equitable interest in land" no conceito de direitos reais é igualmente preconizada pelos Srs. Lasok e Stone (29), que escrevem:

"... there can be no doubt that an equitable interest in land, as known to English law, qualifies as a 'right in rem' for the purpose of Article 16 (1); such an interest is binding on all persons, with the limited exceptions of certain purchasers, viz. those who purchase without notice, or benefit of non-registration, or purchase from a vendor exercising powers of overreaching" (30).

38. Contudo, poderá, no caso em apreço, a acção do autor no processo principal ser considerada uma acção de reivindicação do imóvel situado em França com base num "equitable interest", quando o objecto do litígio incide sobre a eventual existência de um trust entre ele e o seu filho e, a título subsidiário, sobre a realidade da intenção das partes no momento da aquisição do bem (31)? Não se tratará antes de uma questão prévia que terá obviamente consequências determinantes quanto à propriedade, mas que está intrinsecamente baseada numa relação puramente pessoal?

39. Não obstante ter surgido num contexto muito diferente, uma vez que se tratava do artigo 16. , n. 4, o processo que deu origem ao acórdão Duijnstee, já referido, não deixa de apresentar certas semelhanças. Recordemos brevemente os factos relevantes.

40. L. Goderbauer, empregado de uma sociedade, tinha depositado patentes, em seu nome, em vários Estados contratantes. O síndico da falência da sociedade, Sr. Duijnstee, afirmava que as patentes pertenciam de facto à sociedade, em nome da qual exigia a respectiva transferência. O artigo 16. , n. 4, confere competência "em matéria de inscrição ou de validade de patentes... (aos) tribunais do Estado contratante em cujo território o depósito ou o registo tiver sido... efectuado...".

41. A advogada-geral S. Rozès salientou que nenhum dos pedidos incidia a título principal sobre a regularidade ou a inscrição e continuou nestes termos:

"Esta questão (das relações entre o empregado e a sociedade) põe-se 'a montante' das formalidades propriamente ditas de transferência dos pedidos apresentados ou das patentes registadas... Só depois de se ter decidido sobre a assistência que Lodewijk Goderbauer deveria eventualmente prestar ao síndico da falência é que o problema da transcrição propriamente dita dos direitos do autor ou do inventor se colocará realmente nos outros Estados contratantes..." (32).

42. O Tribunal considerou então que o artigo 16. , n. 4, era inaplicável porque

"... nem a validade das patentes nem a regularidade da sua inscrição nos diferentes países são contestadas pelas partes no processo principal. A solução do litígio depende, com efeito, exclusivamente da questão de saber se o titular do direito à patente é L. Goderbauer ou a sociedade falida... o que deve ser estabelecido com base nas relações jurídicas que existiram entre os interessados" (33).

43. Embora a regularidade da inscrição não fosse o principal objecto do litígio, nem por isso dependia menos estreitamente da intenção e dos vínculos entre as partes no momento do depósito, de modo que o exame desta última questão constituía um momento preliminar relativamente à realização das formalidades de transferência.

44. Eis a razão por que, no presente processo, os argumentos da Comissão, baseados na autoridade do prof. Kaye, não nos convenceram. Com efeito, este considera que depende do n. 1 do artigo 16.

"An action for a declaration that land purchased by one person in the name of another is subject to a resulting trust in favour of the former" (34),

uma vez que o litígio respeita a um "equitable interest in land" e que

"There seems no good reason why Article 16 (1) should not also be held to apply when the immovable property, rights in rem in which form the object of the proceedings, is or is alleged to be property subject to a trust, since the sound policy reasons for subjecting such proceedings to the exclusive jurisdiction of courts of the Contracting State situs are no less applicable than would be the case if the property were not held on trust" (35).

45. Contudo, para além de manifestar uma dúvida quanto às acções que poderiam ser consideradas em matéria de direitos reais, o prof. Kaye entende, depois de ter dado o exemplo da acção de reconhecimento de um "resulting trust" como sendo uma acção em matéria de direitos reais, que deveria ser igualmente considerada como tal uma acção baseada na section 172 do Law of Property Act 1925, que penaliza a transmissão de bens por um instituidor aos trustees para defraudar direitos do credor (36), acção que pode ser equiparada à acção pauliana, que em contrapartida foi considerada pelo Tribunal, no acórdão Reichert I, como sendo de natureza pessoal.

46. Em nossa opinião, apenas as acções que incidem directamente sobre "... o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel..." (37) se incluem no âmbito de aplicação do artigo 16. , n. 1.

47. A este respeito, o relatório Schlosser estabelece a seguinte distinção:

"Poder-se-á, todavia, imaginar que duas pessoas se encontram em litígio devido ao facto de ambas reclamarem para si a qualidade de trustee de um imóvel. Se uma destas duas pessoas intentar uma acção contra a outra perante tribunais alemães, a fim de que o requerido consinta no cancelamento da sua inscrição no registo predial enquanto proprietário de um imóvel, e na inscrição do requerente a título de verdadeiro proprietário, os tribunais alemães são, sem qualquer dúvida, exclusivamente competentes, nos termos dos pontos 1 ou 3 do artigo 16. Todavia, se for intentada uma acção a fim de que se proceda à verificação de que uma certa pessoa é trustee de um determinado trust de que faz parte uma universalidade de bens, o ponto 1 do artigo 16. não se torna automaticamente aplicável pelo simples facto de esses bens incluírem um imóvel" (38).

48. A linha de demarcação parece assim situar-se entre as acções cujo objecto principal é a contestação da propriedade que opõe pessoas que não reivindicam entre elas qualquer relação fiduciária e aquelas que incidem sobre a violação de uma obrigação fiduciária cuja constatação terá consequências reais. Num caso destes, em nossa opinião, a natureza pessoal das relações prevalece.

49. Não há aqui que aplicar o artigo 16. , uma vez que, interpretada à luz do artigo 19. , esta disposição apenas tem vocação para regular as situações em que predomina o carácter real.

50. Salientemos, a este respeito, que esse raciocínio é precisamente o adoptado no relatório Schlosser, quanto às de acções em matéria de obrigações de transmissão da propriedade de imóveis (39). Resulta das constatações do prof. Schlosser que nos direitos francês, belga, luxemburguês e, em grande medida, no italiano, a propriedade é transmitida aquando da celebração do contrato, momento a partir do qual o adquirente pode proceder às operações de registo que têm como consequência tornar o seu direito de propriedade oponível a terceiros. No Reino Unido, o comprador detém um "equitable interest" sobre o imóvel, oponível a terceiros mesmo que ele tenha de obter a cooperação do vendedor para que a sua posição jurídica produza todos os seus efeitos.

51. Embora considere que o adquirente pode reivindicar a transmissão de propriedade com fundamento no direito real de que é titular, tal acção deve, segundo o prof. Schlosser, ser considerada como pessoal, escapando ao âmbito de aplicação do artigo 16. , n. 1. E conclui nestes termos:

"Por conseguinte, as acções baseadas em contratos e destinadas a obter a propriedade ou outros direitos reais sobre imóveis não têm como objecto direitos reais" (40).

52. Segundo os Srs. Gothot e Holleaux (41):

"As acções mistas, pelas quais uma pessoa invoca ao mesmo tempo um direito real e um direito pessoal, originários da mesma operação jurídica, parecem também fora do âmbito do artigo 16. , n. 1..." (42),

considerando, aliás, que uma acção de partilha de imóveis não deveria ser submetida à regra de competência especial (43).

53. Ora, como salientou a High Court, o autor no processo principal baseia-se apenas na existência de uma relação fiduciária, situação que parece corresponder perfeitamente ao exemplo descrito no relatório Schlosser.

54. Consideramos que não cabe nesta disposição a acção pela qual uma pessoa pretende obter a declaração de que um bem é detido por outrem no âmbito de um trust quando ela própria não é titular de direitos erga omnes, isto é, oponíveis a todos. Os direitos de terceiros de boa-fé não ficam, aliás, comprometidos pelo eventual reconhecimento de um trust, uma vez que, por hipótese, aqueles não foram previamente informados da sua existência.

55. A circunstância de o autor no processo principal pretender obter uma injunção contra o réu para que este prepare os documentos necessários para lhe permitir ser titular da "legal ownership" não modifica a natureza da acção, pois a injunção traduz-se numa prestação de facto que incumbe apenas ao réu e cuja inexecução levaria o autor a instaurar um processo a fim de obter a rectificação do registo predial.

56. É certo que a ratio legis do artigo 16. , n. 1, assenta em parte na economia processual invocada pelo relatório Jenard:

"... o sistema adoptado tem igualmente em conta a necessidade de efectuar traslados dos registos prediais existentes no lugar onde se situa o imóvel" (44).

57. Esta ideia de economia processual, fundamento da regra de competência exclusiva, foi, nomeadamente, defendida pelo Sr. Huet (45), que, no seu comentário ao acórdão Roesler, considerou que

"... a única ideia que permitiria explicar a competência exclusiva prevista no artigo 16. , n. 1, é a da necessária execução da sentença a realizar no lugar da situação do imóvel" (46).

58. Todavia, é forçoso constatar que este Tribunal nunca acolheu formalmente este princípio. Assim, no acórdão Sanders, já referido, o Tribunal declarou que

"... os litígios em matéria de direitos reais sobre imóveis devem ser julgados segundo as regras do Estado onde o imóvel está situado, e... as contestações implicam, com efeito, frequentemente, verificações, averiguações e peritagens que devem ser efectuadas no local, de modo que a atribuição de uma competência exclusiva corresponde ao interesse da boa administração da justiça" (47).

59. Do mesmo modo, no acórdão Reichert I, o Tribunal considerou que

"... embora as regras relativas ao registo predial em vigor em determinados Estados-membros exijam a publicação das acções judiciais destinadas a obter a revogação ou a que seja declarada a inoponibilidade a terceiros dos actos relativos a direitos sujeitos a essa forma de publicidade, bem como a publicação das decisões judiciais proferidas nessas acções, esta circunstância não basta, só por si, para justificar a competência exclusiva dos tribunais do Estado contratante onde se situa o imóvel objecto desses direitos" (48).

60. Contudo, nenhuma dúvida existe de que a necessidade de execução de uma sentença no lugar da situação do imóvel participa da ratio legis do artigo 16. , n. 1, de modo que, neste caso, a competência dos tribunais franceses poderia corresponder a esta exigência.

61. Mas se o Tribunal viesse a admitir que tem natureza real uma acção destinada a obter a declaração de que uma pessoa é trustee de um trust que incide sobre um imóvel, esta análise seria necessariamente idêntica na hipótese de um trust que incidisse sobre diversos imóveis distribuídos por diferentes Estados contratantes. O autor seria então forçado a recorrer a cada um dos tribunais exclusivamente competentes do lugar da situação dos imóveis. Quem não vê que tal situação acarretaria um sério risco de decisões contraditórias, tendo cada um dos tribunais o monopólio do reconhecimento da eventual existência de um trust relativo ao imóvel situado sob a sua alçada? O artigo 22. da Convenção, relativo a acções conexas, não poderia obviar, em todos os casos, a esse risco, uma vez que não constitui uma regra atributiva de competência (49). Em tal situação, a boa administração da justiça exige que o recorrente recorra a uma única jurisdição, que apreciará a eventual existência de um trust através de uma decisão seguida ou de um processo de tipo executivo, se o réu acatar a injunção, ou de um processo directo de reivindicação do direito de propriedade.

62. Indiquemos, para terminar, que o motivo essencial de justificação da competência exclusiva do artigo 16. , n. 1, reconhecido pelo Tribunal no acórdão Reichert I, a saber, melhores condições para um bom conhecimento das situações de facto e para aplicação das regras e usos pelo tribunal do lugar da situação do imóvel, é irrelevante quando, como no presente caso, o objecto principal do litígio é a eventual existência de uma relação de natureza fiduciária entre as partes.

63. Propomos, por conseguinte, que o Tribunal declare que a acção intentada por uma pessoa contra outra a fim de obter a declaração de que esta última possui um bem imóvel na qualidade de trustee e a que lhe seja dirigida uma injunção para que prepare os documentos necessários para que o demandante seja titular da "legal ownership" não é uma acção em matéria de direitos reais, na acepção do artigo 16. , n. 1, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

(*) Língua original: francês.

(1) ° Convenção com as modificações introduzidas pela convenção de adesão de 9 de Outubro de 1978 (JO L 304, p. 1).

(2) ° Relatório Dyer-Van Loon sobre os trusts e instituições análogas, Conférence de La Haye de droit international. Actes et documents de la quinzième session, 8 au 20 octobre 1984, tomo II, 1985, p. 64, n. 110.

(3) ° Les trusts anglo-saxons et le droit français, LGDJ, 1992, p. 38, n. 65.

(4) ° Compétence judiciaire et exécution des jugements dans le marché commum, Dalloz, 1972.

(5) ° N. 146. V. igualmente o relatório Jenard (JO 1979, C 59, pp. 34 e 38; versão portuguesa no JO C 189, de 28.7.1990, p. 122); Bellet, P.: L' élaboration d' une convention sur la reconnaissance des jugements dans le cadre du marché commum , Journal de droit international, 1965, pp. 833, 857; Gothot e Holleaux: La convention de Bruxelles du 27 septembre 1968, Jupiter, 1985, n. 141; Kaye, P.: Civil Jurisdiction and Enforcement of Foreign Judgments, Professional Books, 1987, p. 874.

(6) ° Acórdão de 10 de Janeiro de 1990 (C-115/88, Colect., p. I-27). Recordemos que, na sequência deste acórdão, o tribunal de reenvio interrogou de novo este Tribunal a fim de determinar se a acção pauliana poderia ser equiparada a uma acção prevista nos artigos 5. , n. 3, 16. , n. 5, e 24. da Convenção (acórdão Reichert II, de 26 de Março de 1992, C-261/90, Colect., p. I-2149). Esta última decisão não é revelante para efeitos do presente processo.

(7) ° Acórdão de 14 de Dezembro de 1977 (73/77, Recueil, p. 2383).

(8) ° Acórdão de 15 de Novembro de 1983 (288/82, Recueil, p. 3663).

(9) ° N. 8.

(10) ° N. 9.

(11) ° V., sobre este ponto, o estudo do prof. Lagarde sobre Le principe de proximité dans le droit international privé contemporain , Académie de droit international, Recueil des Cours, 1986, I, tomo 196 da colecção, pp. 9 e segs., 129.

(12) ° N. 10.

(13) ° N. 11.

(14) ° N. 12.

(15) ° Journal de droit international, 1990, p. 503.

(16) ° P. 505.

(17) ° Revue critique de droit international privé, 1991, p. 151.

(18) ° P. 157.

(19) ° N. 9 das observações.

(20) ° P. 12 da tradução francesa das observações.

(21) ° V. Verheul, J. P.: The EEC Convention on Jurisdiction and Judgments of 27 september 1968 in Netherlands Legal Practice , Netherlands International Law Review, 1975, p. 210.

(22) ° Acórdão de 15 de Janeiro de 1985 (241/83, Recueil, p. 99).

(23) ° P. 104, in fine. A doutrina britânica considera igualmente que o objecto ( subject matter ), e não o objectivo, do pedido determina o foro. Neste sentido, Dashwood-Hacon-White: A Guide to the Civil Jurisdiction and Judgments Convention, Kluwer, 1987, p. 29; Anton, A. E.: Civil Jurisdiction in Scotland, Green & Son Ltd, 1984, p. 103.

(24) ° JO C 59, p. 34, sublinhado nosso.

(25) ° JO 1979, C 59, n. 166, p. 120, versão portuguesa no JO C 189, de 28.7.1990, p. 184.

(26) ° V. o relatório Dyer-Van Loon, já referido na nota 2, n. 9, p. 15.

(27) ° V., neste sentido, a definição de trust no artigo 2. da Convenção de Haia relativa à lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento, de 1 de Julho de 1985, in Conférence de La Haye de droit international. Actes et documents de la quinzième session, 8 au 20 octobre 1984, já referida na nota 2, p. 362.

(28) ° N. 167, b), p. 121, segundo parágrafo, in fine.

(29) ° Conflict of Laws in the European Community, Professional Books, 1987.

(30) ° P. 237. V. igualmente Megarry e Wade: The Law of Real Property, 1984, p. 114, que se exprimem nestes termos: If by rights in rem is meant (as normally) rights enforceable against third parties generally, as opposed to rigths in personam which are enforceable only against specified persons (e.g. contractual rights), then equitable rights to property are unquestionably rights in rem, though somewhat different from legal rights to property . V. também Kaye, op. cit., p. 901.

(31) ° N. 11 do acórdão de reenvio.

(32) ° Pp. 3683 e 3684.

(33) ° N. 26.

(34) ° P. 903.

(35) ° Pp. 901 e 902.

(36) ° P. 903, d).

(37) ° Acórdão Reichert I, já referido, n. 11.

(38) ° N. 120, p. 108.

(39) ° N.os 169 a 172.

(40) ° N. 172 c), p. 122.

(41) ° La convention de Bruxelles du 27 septembre de 1968, Jupiter, 1985.

(42) ° N. 145, p. 84. Salientam igualmente que O artigo 16. , n. 1, atribui competência exclusiva aos tribunais do país onde o imóvel está situado para conhecer das acções baseadas num direito real sobre imóvel, principal ou acessório (n. 144, sublinhado nosso).

(43) ° N. 146.

(44) ° P. 35.

(45) ° Journal de droit international, 1986, p. 440. Ver igualmente, neste sentido, o comentário do Sr. Bischoff na mesma revista, 1978, pp. 388, 393.

(46) ° P. 444.

(47) ° N. 13.

(48) ° N. 13.

(49) ° V., sobre este ponto, Gaudemet-Tallon, H.: Les conventions de Bruxelles et de Lugano, LGDJ, 1993, p. 204 e segs.