CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

WALTER VAN GERVEN

apresentadas em 28 de Abril de 1993 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

Nos termos do artigo 95.°, n.° 3, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 19 de Junho de 1991 ( 1 ), a Segunda Secção remeteu os presentes processos ao Tribunal Pleno. Por decisão de 9 de Dezembro de 1992, as partes que apresentaram observações escritas ao Tribunal foram, igualmente, convidadas a responder, na audiência, a três questões ( 2 ).

Nestas segundas conclusões examinaremos sobretudo as observações apresentadas na audiência de 9 de Março de 1993 e veremos se alteram as nossas primeiras conclusões de 18 de Novembro de 1992. Relativamente aos antecedentes do litígio podemos remeter para as citadas conclusões e para o relatório para audiência. Basta recordar que, no caso vertente, se trata de apreciar a compatibilidade com o artigo 30.° do Tratado CEE de uma proibição nacional da revenda com prejuízo.

Natureza da regulamentação relativa à revenda com prejuízo

2.

Examinaremos antes de mais a terceira questão colocada pelo Tribunal de Justiça, ou seja, a de saber se uma proibição de revenda com prejuízo constitui um instrumento para a repressão de um meio de promoção de vendas ou se faz parte de um regime nacional de regulamentação dos preços. O pedido de esclarecimento do Tribunal de Justiça parece-nos inspirado pela jurisprudência que desenvolveu a propósito dos regimes nacionais de regulamentação dos preços. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou repetidamente

«que medidas nacionais que regulamentam a fixação dos preços, indistintamente aplicáveis aos produtos nacionais e aos produtos importados, não constituem por si só uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, mas podem produzir esse efeito quando, em virtude do nível do preço fixado, prejudicam os produtos importados, designadamente porque a sua vantagem concorrencial resultante de um preço de custo inferior é neutralizada ou porque foi fixado o preço máximo a um nível de tal forma baixo que — considerando a situação geral dos produtos importados relativamente à dos produtos nacionais — os operadores que pretendessem importar os produtos em questão no Estado-membro em causa só o poderiam fazer com prejuízo» ( 3 ).

Noutros termos, esta jurisprudência só considera existir nos regimes nacionais de regulamentação dos preços uma medida de efeito equivalente proibida pelo artigo 30.° quando esses regimes dificultam ou impedem o escoar dos produtos importados ou o tornam mais difícil que o dos produtos nacionais ( 4 ), quer ao privar os produtos importados da vantagem resultante do preço de custo inferior, quer ao obrigar os eventuais importadores a obter o produto com prejuízo.

3.

Como era de esperar, a resposta unânime das partes foi que a legislação francesa em litígio, que não se destina a intervir na formação normal dos preços, não faz parte de um regime nacional de regulamentação dos preços. De resto, dificilmente podia ser de outra forma, pois a República Francesa suprimiu o seu regime de regulamentação de preços — com algumas excepções — por decreto de 1 de Dezembro de 1986 ( 5 ). Este mesmo decreto introduziu igualmente, no seu artigo 32.°, a versão actualmente em vigor de proibição de revenda com prejuízo em causa no presente processo ( 6 ).

A questão colocada pelo Tribunal de Justiça fez com que o Governo francês tecesse uma série de considerações sobre a natureza da venda com prejuízo e da sua regulamentação, e isto com o objectivo de diferenciar as situações surgidas em processos como Oosthoek e Buet daquela que se coloca no caso presente. Resumida de uma forma sintetica, a tese do governo é a de que a regulamentação francesa não constitui um instrumento para a repressão de um determinado método de promoção das vendas, mas um meio de repressão contra uma forma de concorrência desleal entre distribuidores ( 7 ).

Com efeito, a experiência francesa da investigação e da repressão da venda com prejuízo revela que este tipo de venda é, antes de mais, uma técnica de ataque praticada pelas grandes redes de distribuição — que têm uma forte concentração nesse país. Ademais, a maior parte das infracções à proibição de revenda com prejuízo não diz respeito, na prática, aos produtos novos, mas a produtos de consumo bem conhecidos (detergentes, cafés, bebidas, conservas) e cujo preço habitual é conhecido do consumidor. Disto resulta que a regulamentação da venda com prejuízo, ao contrário das regulamentações em causa nos processos Oosthoek (proibição do sistema de ofertas) e Buet (proibição da venda de material pedagógico através da promoção ao domicílio), constitui uma regulamentação geral do mercado que não se destina a reger os fluxos comerciais entre os Estados-membros, antes sendo a consequência de uma política económica, ou seja, a realização de um determinado nível de transparência e de lealdade nas condições de concorrência.

4.

Ainda que estas observações sejam susceptíveis de clarificar as condições de mercado e de concorrência em França, nada retiram ao facto de que a venda com prejuízo é uma técnica de venda susceptível, em determinadas circunstâncias bem determinadas, de tornar impossível ou mais difícil o escoamento dos produtos importados, tal como mais uma vez vamos tentar explicar.

O Governo francês vê principalmente na venda com prejuízo uma estratégia de eliminação da concorrência. A analogia que por diversas vezes estabelece com o fenómeno do dumping ( 8 ) revela que tem em vista a situação de uma empresa, normalmente uma grande superfície, que tenta eliminar os seus concorrentes a nível de comércio a retalho, vendendo com prejuízo durante um determinado período com o objectivo de, uma vez eliminado o concorrente, utilizar a posição dominante assim adquirida para impor preços superiores aos consumidores.

Tal como já observámos nas nossas primeiras conclusões, esta estratégia constitui, efectivamente, uma manifestação bem específica da venda com prejuízo, cuja repressão pode ser considerada necessária por um Estado-membro para assegurar a lealdade das transacções comerciais — reconhecida pelo Tribunal como exigência imperativa nos termos do artigo 30.° — ou de impedir que a concorrência seja falseada. O direito comunitário não levanta qualquer problema a este respeito. Nas nossas anteriores conclusões, reconhecemos igualmente que não se podia recusar uma justificação semelhante, agora com o objectivo de protecção dos consumidores, à regulamentação de um outro tipo de venda com prejuízo, ou seja, aquilo a que se convencionou chamar «loss-leadering»: esta técnica consiste em atrair os clientes através de produtos vendidos com prejuízo ou com uma margem de lucro excepcionalmente reduzida com o objectivo de os levar, uma vez entrados na área comercial, a comprar igualmente outros produtos que — para compensar o prejuízo suportado com a venda do primeiro — são marcados a preços mais elevados ( 9 ).

5.

Estas formas de venda com prejuízo são métodos de promoção de vendas utilizadas sobretudo nos retalhistas. Todavia, a venda com prejuízo constitui muitas vezes, para o fabricante, um importador ou um grossista — quer dizer, não apenas a nível de comércio a retalho — um método eficaz de lançamento de um novo produto ou de penetração num novo mercado. Mais do que uma técnica de ataque ou de «chamariz», a venda com prejuízo equivale, nestas circunstâncias, a uma estratégia de marketing que consiste em introduzir junto da clientela um produto novo através de preços reduzidos, com a intenção de recuperar o prejuízo sofrido com a venda promocional através de melhores vendas posteriores do mesmo produto, a um preço um pouco superior. São sobretudo os operadores económicos estrangeiros que podem tirar partido deste método de promoção de vendas para penetrar num outro mercado nacional. Quando se verifica a aplicação desta estratégia ao nível do fabricante, do importador ou do grossista, é seguramente pertinente na perspectiva do direito comunitário ( 10 ).

Não vemos portanto qualquer razão para estabelecer uma distinção, para aplicação do artigo 30.°, entre determinados métodos mais permanentes, como a oferta conjunta, a promoção de porta em porta e a venda por correspondência ( 11 ), e um método como o da venda com prejuízo, em que se acentua o carácter provisório, promocional. De acordo com os próprios termos do acórdão Dassonville ( 12 ), trata-se de saber se uma regulamentação nacional destes métodos de venda ou de promoção das vendas é susceptível de dificultar «directa ou indirectamente, actual ou potencialmente» o comércio intracomunitário. Examinaremos esta questão nos pontos seguintes;

A este respeito pouco importa entretanto saber se o regime nacional em questão constitui ou não uma regulamentação dos preços. Quando o regime constitui uma regulamentação dos preços, trata-se igualmente de saber se é susceptível de dificultar ou impedir o escoamento dos produtos importados. Do mesmo modo que uma proibição de revenda com prejuízo, uma regulamentação dos preços pode, com efeito, em caso de importação, privar um produtor estrangeiro da vantagem do seu preço de custo inferior e pode, então, ser incompatível com a proibição do artigo 30.° ( 13 ).

Uma regulamentação da revenda com prejuízo tem efeitos «directos ou indirectos ou simplesmente hipotéticos» sobre as trocas intracomunitárias ?

6.

O Tribunal também questionou as partes que apresentaram observações sobre os efeitos da regulamentação da revenda com prejuízo nas trocas intracomunitárias. Fê-lo referindo-se ao seu acórdão mais recente em matéria de encerramento aos domingos dos estabelecimentos comerciais, o acórdão B & Q de 16 de Dezembro de 1992, no qual considerou que:

«A fiscalização da proporcionalidade de uma regulamentação nacional que prossegue um objectivo legítimo à luz do direito comunitário coloca o problema da ponderação do interesse nacional na realização desse objectivo com o interesse comunitário na realização da livre circulação de mercadorias. A este respeito, para verificar se os efeitos restritivos da regulamentação em apreço sobre as trocas intracomunitárias não ultrapassam o que é necessário para atingir o objectivo visado, é importante analisar se esses efeitos são directos, indirectos ou simplesmente hipotéticos e se não colocam mais entraves à comercialização dos produtos importados do que à dos produtos nacionais» ( 14 ).

7.

Os intervenientes tiveram reacções diversas. De acordo com o Governo francês, os efeitos sobre as trocas intracomunitárias são puramente hipotéticos. A Comissão entende que os efeitos são indirectos ou hipotéticos e aceita que não ficou provado através de qualquer elemento dos autos que a regulamentação da revenda com prejuízo tenha efeitos directos nas trocas intracomunitárias. Por último, na opinião do representante de Mithouard, a regulamentação tem, efectivamente, efeitos restritivos.

8.

Para tomar posição a respeito do ponto em questão, partimos do princípio de que o Tribunal se ateve ao sentido amplo da fórmula Dassonville. Pretendemos recordar que, nas conclusões que apresentámos no primeiro processo relativo ao encerramento do comércio ao domingo ( 15 ), propusemos ao Tribunal que adoptasse uma perspectiva mais circunspecta relativamente às regulamentações nacionais que, do mesmo modo que a regulamentação em causa no caso em apreço ou no citado processo relativo ao encerramento ao domingo, não se destinam a regulamentar o comércio entre os Estados. Com efeito, a nossa proposta consistia em apenas declarar a proibição do artigo 30.° aplicável a regulamentações desse tipo desde que exerçam um efeito de fecho ou compartimentação do mercado, ou seja, se puserem em perigo a interpenetração dos mercados nacionais ( 16 ).

A Sexta Secção do Tribunal de Justiça não adoptou a nossa tese. No seu acórdão, o Tribunal de Justiça manteve de uma forma tácita a fórmula Dassonville e aceitou que a ponderação dos interesses respectivos, que deve ser efectuada em virtude dessa formulação ampla, no âmbito do princípio da proporcionalidade inscrito no artigo 30.°, compete ao órgão jurisdicional nacional ( 17 ). No seu segundo e, de uma forma mais clara ainda, no seu terceiro acórdão supracitado relativo ao encerramento ao domingo dos comércios, o Tribunal, decidindo em sessão plenária, retratou-se a propósito deste último ponto ( 18 ), mas não relativamente ao primeiro. Tal como resulta da passagem do terceiro acórdão supramencionado (n.° 6), o Tribunal, com efeito, apreciou a compatibilidade da regulamentação nacional em questão com a exigência de proporcionalidade, o que significa que reconheceu a aplicação do princípio do artigo 30.°

Consideramos portanto, a partir deste momento, que o sentido amplo da fórmula Dassonville permanece a pedra angular da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao âmbito de aplicação do artigo 30.° do Tratado CEE. A fim de evitar qualquer confusão, o Tribunal é obrigado, em nosso entender, a confirmar essa perspectiva de forma completamente clara aos órgãos jurisdicionais nacionais.

9.

Se se aplicar igualmente a fórmula Dassonville ao presente processo, não se pode então excluir que uma proibição legal de revenda com prejuízo, como a que existe em França, seja susceptível de dificultar «directa ou indirectamente, actual ou potencialmente» o comércio intracomunitário. Mesmo que a proibição francesa não se aplique ao nível da venda por um fabricante (nacional ou estrangeiro), existem pelo menos dois entraves potenciais, tal como sublinhámos nas nossas primeiras conclusões ( 19 ): por um lado, a regulamentação é susceptível de incomodar o revendedor que, sem a ajuda do produtor estrangeiro, pretenda lançar no mercado francês um produto que importe de outro Estado-membro vendendo-o temporariamente com prejuízo, quer dizer, abaixo do preço que lhe factura o produtor estrangeiro; por outro lado, é possível que o importador-revendedor de um produto estrangeiro, mesmo quando o vende em França ao seu próprio preço de custo ou a um preço superior, se encontre aí numa situação concorrencial desfavorável relativamente a um fabricante nacional que pode vender com prejuízo sem restrições, pois a proibição francesa não se aplica ao nível do fabricante.

10.

As primeiras conclusões que apresentámos no presente processo datam de 18 de Novembro de 1992 e são, portanto, anteriores ao último acórdão do Tribunal relativo ao encerramento dos comércios ao domingo. Terá o Tribunal, com esse acórdão, alterado a sua jurisprudência relativa à livre circulação das mercadorias para uma concepção mais restritiva?

Parece-nos que não. Se o Tribunal tivesse pretendido restringir o alcance de princípio da proibição do artigo 30.° do Tratado CEE, teria indubitavelmente começado por se referir expressamente à fórmula Dassonville para a restringir em seguida e chegar, por exemplo, à conclusão de que a regulamentação em questão relativa ao encerramento do comércio ao domingo (a propósito da qual o órgão jurisdicional de reenvio tinha observado que exercia uma influência sobre o escoamento dos produtos importados) não constituía uma medida de efeito equivalente ( 20 ). O Tribunal confirmou pelo contrário, tal como o tinha feito nos anteriores processos relativos ao encerramento ao domingo (acórdãos Torfaen, Conforama e Marchandise) que uma tal regulamentação podia ter consequências negativas sobre o volume das vendas de determinadas lojas, mesmo que afecte tanto a venda dos produtos nacionais como a dos produtos importados, e que a comercialização dos produtos provenientes de outros Estados-membros não se torna mais difícil do que a dos produtos nacionais ( 21 ). Em seguida, o Tribunal examinou de novo se o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa se justificava para concluir, por último, a sua argumentação com um exame da proporcionalidade da regulamentação.

11.

Consideramos que o acórdão B & Q traduz, seguramente, um esclarecimento importante relativo à forma segundo a qual o Tribunal efectua o seu controlo de proporcionalidade. Com efeito, o Tribunal admite pela primeira vez claramente que, para determinar se uma regulamentação não excede o que é necessário para alcançar o objectivo (justificado na perspectiva do direito comunitário), importa, designadamente, verificar se os efeitos restritivos da regulamentação em causa sobre as trocas intracomunitárias são «directos, indirectos, ou simplesmente hipotéticos». Noutros termos, se se verificar que o efeito invocado sobre (ou o nexo com) a importação é de tal forma incerto e hipotético que não se pode dizer de forma absoluta da disposição nacional em causa que entrava as trocas entre os Estados-membros, não existe incompatibilidade com o artigo 30.° ( 22 ).

Todavia, este esclarecimento em nada afecta, em nosso entender, o resultado final a que chegámos nas nossas primeiras conclusões a propósito da aplicação do controlo de proporcionalidade. O elemento essencial da apreciação da proporcionalidade é o de que os efeitos restritivos de uma regulamentação nacional não podem exceder o que é necessário para alcançar o objectivo que se justifica na perspectiva do direito comunitário. Ora, na medida em que a proibição francesa de revenda com prejuízo se aplica igualmente a situações que não relevam das exigências imperativas reconhecidas pelo Tribunal — e a situação já invocada do lançamento de um novo produto importado é uma delas — nenhum fundamento de justificação comunitário pode ser invocado em apoio da proibição e o Tribunal não tem, portanto, em princípio, qualquer motivo para apreciar a proibição nacional na perspectiva do princípio da proporcionalidade ( 23 ). Em tais situações, os efeitos restritivos de uma proibição legal como a do caso vertente podem, de resto, dificilmente ser qualificados de «simplesmente hipotéticos».

12.

Como já referimos nas primeiras conclusões, isto não significa que em semelhantes casos o regime, no seu conjunto, deva ser declarado incompatível com o artigo 30.° Só na medida em que não tem justificação comunitária — e em que, portanto, também não pode ser sujeito, em princípio, a um controlo de proporcionalidade — é que existe uma incompatibilidade. No caso em apreço, isto significa concretamente que o órgão jurisdicional nacional não é obrigado a não aplicar a proibição francesa de revenda com prejuízo: a situação que se apresenta no processo principal diz respeito, com efeito, aos casos de revenda com prejuízo que ocorreram apenas ao nível do comércio a retalho ( 24 ). Tal como o Governo francês observa, trata-se sempre de um responsável francês de um supermercado estabelecido em França (é verdade que em zona fronteiriça) que colocou em venda com prejuízo um produto de consumo específico, café (Sati rouge) no primeiro caso, e cerveja (Picon Bière) no segundo. É evidente que esta situação nada tem a ver com a hipótese acima delineada de lançamento de um novo produto — a propósito do qual nem sequer se provou que é proveniente de outro Estado-membro — antes se colocando entre os outros fenómenos de revenda com prejuízo, quer seja como forma de eliminar um concorrente ou de atrair clientes ( 25 ).

13.

Perante a última observação feita, gostaríamos de precisar o resultado a que chegámos nas nossas primeiras conclusões. A esse respeito, partimos da ideia de que compete ao Tribunal, no âmbito de uma questão prejudicial, fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos que lhe são necessários para a solução do litígio que lhe foi colocado, mas apenas estes. Para este efeito, basta informar o órgão jurisdicional de que uma proibição legal da revenda com prejuízo não é incompatível com o artigo 30.° do Tratado CEE, pois que se verificou que os factos do litígio principal ocorreram ao nível do comércio a retalho, quer dizer, a um nível a respeito do qual a regulamentação pode invocar um fundamento de justificação reconhecido, e que não existe uma influência mais que simplesmente hipotética sobre o comércio entre os Estados-membros e, de certo, entrave mais que hipotético sobre os fluxos comerciais ( 26 ).

14.

Isto não quer dizer que a República Francesa não fizesse melhor, como já referimos nas primeiras conclusões, em modificar a sua legislação para a pôr em maior conformidade com o direito comunitário. Mesmo que fosse verdade, tal como o Governo francês sustentou na audiência, que, na prática, as únicas infracções à regulamentação perseguidas até agora dizem respeito ao domínio da distribuição supra-referida, a segurança jurídica exige que a proibição legal seja precisada de forma a ser limitada a situações que não são abrangidas pelo direito comunitário. Com efeito, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal,

«os princípios da segurança jurídica e da protecção dos particulares exigem que, nos domínios abrangidos pelo direito comunitário, as normas jurídicas dos Estados-membros sejam formuladas de maneira inequívoca que permita aos interessados conhecer os seus direitos e deveres de forma clara e precisa e aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar o seu respeito» ( 27 ).

O facto de a disposição em questão nunca ser ou, pelo menos, só ser muito raramente aplicada de uma forma não conforme ao direito comunitário não pode, portanto, constituir um argumento para não ser adaptada ( 28 ). Enquanto se espera uma modificação legal, compete, aliás, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ao órgão jurisdicional nacional

«dar à lei interna, em toda a medida em que uma margem de apreciação lhe seja concedida pelo respectivo direito interno, uma interpretação e uma aplicação em conformidade com as exigências do direito comunitário e, na medida em que tal interpretação não seja possível, deixar inaplicada qualquer disposição de direito interno de sentido contrário» ( 29 ).

Conclusão

15.

Propomos ao Tribunal que declare o seguinte:

«Numa situação como a que se apresenta no processo principal, o artigo 30.° do Tratado CEE não se opõe a uma proibição legal de revenda com prejuízo.»


( *1 ) Lingua original: neerlandês.

( 1 ) JO 1991, L 176, p. 7.

( 2 ) V. adenda ao relatório para audiência quanto à formulação exacta destas questões.

( 3 ) Acórdão de 7 de Junho de 1983, Comissão/Itália (78/82, Recueil, p. 1955, n.° 16); v. também, designadamente, os acórdãos dc 5 dc Abril de 1984, Van de Haar (177/82 c 178/82, Recueil, p. 1797, n.°19), de 29 de Janeiro de 1985, Cullct/Leclerc (231/83, Recueil, p. 305, n.°23), c de 7 de Maio dc 1991, Comissāo/Bčlgica (C-287/89, Colect., p. I--2233, n.° 17).

( 4 ) V. o acórdão de 29 de Novembro de 1983, Roussel Laboratoria (181/82, Recueil, p. 3849, n.° 17); acórdão de 19 de Março de 1991, Comissão/Bélgica (C-249/88, Colect., p. I--1275, n.° 15).

( 5 ) Decreto n.° 86-1243 de 1 de Dezembro de 1986 relativo à liberdade dos preços e da concorrência (JORF de 9.12.1986).

( 6 ) O artigo 32.° do decreto modifica, designadamente, o artigo 1.°, ponto I, da Lei de finanças n.° 63-628 de 2 de Julho de 1963.

( 7 ) Para este efeito, remete igualmente para o lugar que ocupa a proibição legal no âmbito do despacho de 1 de Dezembro de 1986, ou seja, no título 4, no capítulo «De la transparence et des pratiques restrictives.»

( 8 ) O Governo francês efectuou essa comparação tanto na primeira como na segunda audiência.

( 9 ) V. ponto 8 das nossas primeiras conclusões.

( 10 ) Pretendemos sublinhar, além disso, que no acórdão Van Tiggele, citado pelo Governo francês nas suas observações escritas, o Tribunal de Justiça concluiu apenas pela não aplicabilidade do artigo 30.° relativamente a uma disposição nacional que proíbe a venda a retalho com prejuízo: acórdão de 24 de Janeiro de 1978 (82/77, Recueil, p. 25, n.° 16). Noutros termos, o Tribunal não se pronunciou propriamente neste acórdão a propósito de uma regulamentação nacional que seja aplicável igualmente a outros níveis de comércio, o que, tendo cm conta os factos que estão na origem do processo principal (a venda a retalho de gengibre a preços inferiores aos preços mínimos fixados), não era, de resto, necessário.

( 11 ) Este último método de venda era o que estava em causa no processo Delattre: acórdão de 21 de Março de 1991 (C-369/88, Colect., p. I-1487).

( 12 ) Acórdão de 11 de Julho de 1974 (8/74, Recueil, p. 837, n.o 5).

( 13 ) Como já referimos nas nossas primeiras conclusões, nos pontos 3 e segs., entendemos que, sobre este ponto preciso, o valor de precedente do acórdão Van Tiegele, já referido, é anulado, na medida em que dele se deduzisse que uma proibição da revenda com prejuízo não pode ser incompatível com o artigo 30.°, desde que se aplique indistintamente aos produtos nacionais e aos produtos importados. V., aliás, a passagem da jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça referida no n.° 2 supra.

( 14 ) Acórdão de 16 de Dezembro de 1992, Stoke-on-Trent and Norwich City Councils (C-169/91, Colect., p. I-6635, n.° 15)

( 15 ) Conclusões do processo C-145/88, Torfaen (Colect. 1989, pp. 3865 c segs.).

( 16 ) A este propósito, mas também a propósito de outras propostas destinadas a limitar o alcance do artigo 30.° do Tratado CEE, v. o relatório recente de Steiner, J.: «Drawing the line: uses and abuses of Article 30 CEE», CML Rev., 1992, 749-774. Este autor propõe que se conserve a fórmula Dassonville, na qual, todavia, o critério não é o de perguntar se uma regulamentação nacional è susceptível de exercer uma influencia sobre (o volume) das mercadorias importadas, mas se a regulamentação em questão dificulta (actual ou potencialmente) o comércio intracomunitário.

( 17 ) Acórdão de 23 de Novembro de 1989 (C-145/88, Colect., p. 3851).

( 18 ) Tanto nos acórdãos de 28 de Fevereiro de 1991, Conforama (C-312/89, Colect., p. I-997, n.° 12), Marchandise (C-332/89, Colect., p. I-1027, n.° 13), como no acórdão de 16 de Dezembro de 1992, B & Q, já referido, n.° 16, o Tribunal aplica, com efeito, o mesmo critério de proporcionalidade.

( 19 ) V. o ponto 5 das referidas conclusões.

( 20 ) Para este efeito, o Tribunal teria podido seguir a perspectiva 3ue expusemos nas nossas primeiras conclusões em matéria e encerramento ao domingo (ponto 8 supra) ou aplicar a regra «de minimis» no que se refere ao artigo 30.°, mas isso imporia que fosse contra o seu acórdão Van de Haar (iá referido na nota 3, n.° 13), onde se pode 1er que quando uma medida nacional é susceptível de dificultar as importações, deve ser qualificada de medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, mesmo que a dificuldade levantada seja pequena e que existam outras possibilidades de escoamento dos produtos importados; v. igualmente o acórdão de 14 de Março de 1985, Comissão/França (269/83, Recueil, p. 837, n.° 10); acórdão de 5 de Maio de 1986, Comissão/Itália (103/84, Colect., p. 1759, n.° 18). Para mais informações, remete-se para o artigo de J. Steiner referido na nota 16.

( 21 ) Acórdão B & Q, n.° 10; v. acórdão Torfaen, n.° 11; acórdão Conforama, n.os 7 e 8; acórdão Marchandise, n.os 9 e 10.

( 22 ) A jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça já prefigura esta perspectiva: v. acórdão de 31 de Março de 1982, Blesgen (75/81, Recueil, p. 1211, n.° 9); acórdão de 25 de Novembro de 1986, Forest (148/85, Colect., p. 3449, n.° 19); acórdão de 7 de Março de 1990, Krantz (C-69/88, Colect., p. I-583, n.°11); acórdão de 11 de Julho de 1990, Quietlynn (C-23/89, Colcct., p. I-3059, n.os 10 e 11). V. igualmente as conclusões que apresentámos nos últimos processos relativos ao encerramento ao domingo (C-306/88, C-304/90 c C-169/91, Colect., p. I-6457, n.° 16) de 8 de Julho de 1992.

( 23 ) Dizemos «em princípio» porque, com a preocupação de facilidade, o Tribunal poderia apenas declarar que o regime satisfaz, de um modo geral, o critério da proporcionalidade, sem examinar se existe ou não fundamentos de justificação admissíveis de acordo com o direito comunitário. Num domínio como o do artigo 30.°, onde existe uma grande confusão de ideias, este método não nos parece, todavia, indicado.

( 24 ) O Tribunal já declarou anteriormente que as regras cujo âmbito de aplicação se encontra limitado ao comércio a retalho não relevam da proibição do artigo 30.°, desde que as trocas intracomunitárias sejam sempre possíveis: v. o acórdão de 14 de Julho de 1981, Ocbel (155/80, Recueil, p. 1993, n.° 20); acórdão Blesgen, n.° 9; acórdão Quetlynn, n.° 10.

( 25 ) Convém observar, além disso, que, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal, as disposições do Tratado não se aplicam, pelo menos no âmbito da circulação de pessoas c dos serviços, às actividades em que todos os elementos se realizam no interior de um único Estado-membro: v. o recente acórdão de 19 de Março de 1992, Batista Morais (C-60/91, Colect., p. I-2085, n.° 7). A questão de saber se é esse o caso depende de verificações de facto que incumbem exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional: v., designadamente, o acórdão de 18 de Março de 1980, Debauve (52/79, Recueil, p. 833, n.° 9); acórdão de 23 de Abril de 1991, Hõfner c Elser (C-41/90, Recueil, p. I-1979, n.° 37).

( 26 ) Sobre a distinção entre influência sobre o comércio entre os Estados-membros e obstáculo, no sentido de efeito dissuasivo («deterrent»), às importações de produtos provenientes de um outro Estado-membro, v. o artigo de J. Steiner referido na nota 16.

( 27 ) Acórdão de 21 de Junho de 1988, Comissão/Itália (257/86, Colect., p. 3249, n.° 12); v. igualmente o acórdão de 30 de Janeiro de 1985, Comissão/Dinamarca (143/83, Recueil, p. 427, n.° 10).

( 28 ) V. o acórdão de 7 de Fevereiro de 1984, Comissão/Itália (166/82, Recueil, p. 459, n.° 24). A ambiguidade de uma regulamentação quanto à sua compatibilidade com o direito comunitário já possui por si só, pelo menos potencialmente, um efeito dissuasivo sobre a livre circulação das mercadorias: v., no que se refere ao artigo 34.° do Tratado CEE, o acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Comissão/França (173/83, Recueil, p. 491, n.os 7 e 8).

( 29 ) Acórdão de 4 de Fevereiro de 1988, Murphy (15/86, Colect., p. 673, n.° 11, segundo período). Embora este acórdão diga respeito ao artigo 119.° do Tratado CEE, o fundamento citado é indubitavelmente válido quando se trata de interpretar disposições nacionais na perspectiva de uma outra disposição cfo Tratado directamente aplicável, no caso em apreço o artigo 30.° Com efeito, já é válido quando se trata de interpretar disposições nacionais na perspectiva de disposições efe directivas que não são directamente aplicáveis: v. o acórdão recente de 16 de Janeiro de 1992 (C-373/90, Colect., p. I-131, n.° 7).