61991C0188

Conclusões do advogado-geral Van Gerven apresentadas em 15 de Outubro de 1992. - DEUTSCHE SHELL AG CONTRA HAUPTZOLLAMT HAMBURG-HARBURG. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: FINANZGERICHT HAMBURG - ALEMANHA. - TRANSITO - CONVENCAO INTERNACIONAL. - PROCESSO C-188/91.

Colectânea da Jurisprudência 1993 página I-00363


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. O Finanzgericht Hamburg (a seguir "juiz de reenvio") colocou ao Tribunal um determinado número de questões sobre a interpretação e a aplicação da convenção sobre um regime de trânsito comum concluída em 20 de Maio de 1987 entre a Comunidade e os países da AECL (a seguir "convenção") (1). Estas questões foram apresentadas no âmbito de um litígio que opõe a Deutsche Shell Aktiengesellschaft (a seguir "Shell"), recorrente no processo principal, ao Hauptzollamt Hamburg-Harburg (a seguir "Hauptzollamt").

Contexto

2. A convenção estabelece medidas para o transporte de mercadorias em trânsito entre a Comunidade e os países da AECL, assim como entre os próprios países da AECL. Prevê para este efeito um regime de trânsito comum aplicável independentemente do tipo e da origem das mercadorias (v. artigo 1. , n. 1, da convenção) (2). Este regime foi estabelecido com base no modelo do regime de trânsito comunitário constante do Regulamento (CEE) n. 222/77 (3). A convenção foi aprovada pela decisão do Conselho de 15 de Junho de 1987 (4).

As regras que regem a identificação das mercadorias em trânsito figuram no artigo 11. da convenção. Em geral, a identificação das mercadorias é assegurada por meio de selagem (artigo 11. , n. 1). A estância aduaneira de partida pode, no entanto, dispensar a selagem quando, tendo em conta outras medidas eventuais de identificação, a descrição das mercadorias na declaração T1 ou T2 ou nos documentos complementares permita a sua identificação (artigo 11. , n. 4). Este fundamento de derrogação corresponde ao que é aplicável relativamente ao trânsito comunitário (5).

Nos termos do artigo 63. do apêndice II da convenção, as autoridades aduaneiras de cada país podem autorizar certos expedidores a não apresentar na estância aduaneira de partida nem as mercadorias nem a declaração de trânsito de que essas mercadorias são objecto. Para obter este estatuto de "expedidor autorizado", o expedidor deve satisfazer diferentes condições e, nomeadamente, manter escritas que permitam às autoridades aduaneiras controlar as operações (artigo 64. do apêndice II). Essa autorização deve, nomeadamente, determinar as medidas de identificação a tomar. Para esse efeito, as autoridades aduaneiras podem exigir que os meios de transporte ou os volumes se encontrem providos de selos de um modelo especial, admitidos pelas autoridades aduaneiras e apostos pelo expedidor autorizado [artigo 65. , alínea d) do apêndice II].

3. Nos termos da convenção, foi instituída uma comissão mista. Esta é responsável pela gestão e pela boa aplicação da convenção. É composta de representantes de todas as partes contratantes - em relação às Comunidades trata-se da Comissão - e age mediante acordo mútuo, quer dizer, por unanimidade. Formula recomendações para aplicação da convenção e pode adoptar, por meio de decisão, um certo número de alterações determinadas, bem como outras medidas eventualmente necessárias (artigos 14. e 15. da convenção).

Aquando da sua primeira reunião anual de 21 de Janeiro de 1988, a comissão mista adoptou um conjunto de medidas administrativas ("Verwaltungsabsprachen", "administrative arrangements") que constam do documento XXI/1367/87 - AECL 2. Segundo a acta da reunião, trata-se de um conjunto de textos que foram elaborados por peritos CEE-AECL e que devem ser aplicados aquando da execução da convenção (6). No capítulo III, intitulado "Formalidades na estância aduaneira de partida", ponto C, "Medidas de identificação", figuram medidas de base, citadas in extenso no relatório para audiência, em que a comissão mista declara, nomeadamente, que a selagem constitui a medida mais adequada para facilitar a passagem das fronteiras. Além disso, lê-se aí que a dispensa de selagem prevista no artigo 11. , n. 4, da convenção só pode ser concedida e feita a identificação das mercadorias por uma descrição nos documentos de transporte, quando essa descrição "seja suficientemente pormenorizada para permitir um reconhecimento fácil da quantidade e da natureza das mercadorias".

No mesmo local desse documento figuram, além disso, disposições especiais aplicáveis às trocas comerciais com a Suíça e a Áustria, disposições que são igualmente citadas no relatório para audiência. Aí pode ler-se que "as disposições da convenção relativas à selagem devem ser aplicadas de modo estrito", sendo as dispensas de selagem concedidas por derrogação "para as mercadorias muito pesadas ou volumosas e para as que não são susceptíveis de transporte sob selagem aduaneira (animais) bem como para os veículos que não podem tecnicamente ser chumbados".

4. A Shell é um expedidor autorizado em conformidade com o regime de trânsito comunitário. Nesta qualidade, beneficiou durante muito tempo da autorização do Hauptzollamt de transportar os seus produtos petrolíferos por barco sem selagem aduaneira. Por decisão de 1 de Novembro de 1988, o Hauptzollamt alterou essa autorização, nomeadamente no sentido que a partir de então, nas operações de trânsito aduaneiro com (todos) os países da AECL, a Shell só pode proceder à identificação das mercadorias por simples descrição quando i) se trate de mercadorias difíceis de selar ou volumosas ou de mercadorias que não se prestam ao transporte sob selagem aduaneira (animais), ii) se trate de veículos que não possam ser chumbados por razões técnicas, ou iii) a estância de destino seja uma estância aduaneira de entrada situada num país da AECL. Ao fazê-lo, o Hauptzollamt seguiu as instruções do Ministério federal das Finanças que eram baseadas no acto atrás referido da comissão mista, e mais precisamente nas disposições especiais aplicáveis às trocas comerciais com a Suíça e a Áustria.

5. Depois de ter apresentado uma reclamação que foi indeferida pela Oberfinanzdirektion Hamburg, a Shell interpôs recurso para o Finanzgericht Hamburg pedindo a anulação da parte em questão da decisão do Hauptzollamt e a anulação da decisão da Oberfinanzdirektion. Pretende continuar a transportar os seus produtos petrolíferos em trânsito comunitário acompanhando-os, como anteriormente, de uma simples descrição. Segundo a Shell, o artigo 11. , n. 4, da convenção confere à estância aduaneira de partida uma certa margem de apreciação em casos individuais. Em sua opinião, o referido acto da comissão mista suprime essa possibilidade de fixar as medidas de identificação necessárias tendo em conta cada caso individual. Além disso, a Shell considera que a obrigação de proceder a uma selagem aduaneira relativamente a cada expedição com destino a um país da AECL é desproporcionada. Enquanto expedidor autorizado, está permanentemente colocada sob controlo adequado das autoridades aduaneiras, o que exclui qualquer abuso ao regime de trânsito. A prática de identificação seguida até ao presente no trânsito comunitário, isto é, a identificação das mercadorias pela sua descrição nos documentos de transporte, não ocasionou, em sua opinião, qualquer dificuldade e é suficiente para garantir o interesse que as imposições representam para os países envolvidos no transporte. Em contrapartida, a identificação por selagem constitui um ónus considerável aquando das operações de transporte, tanto pelo tempo que exige como pelo pessoal utilizado, nomeadamente, quando são embarcações de navegação interior que devem ser seladas. Essa selagem exige que cada embarcação seja selada com 40 a 60 chumbos, o que representa muitas horas de trabalho. A Shell não pode compreender que os interesses que representam os direitos aduaneiros possam justificar estas formalidades aquando de operações de transporte com destino a países da AECL, quando, segundo a própria decisão do Hauptzollamt e o modo como aplica a convenção, essas formalidades não são necessárias quando se trata de transporte com destino a Estados-membros das Comunidades.

O Hauptzollamt e a Oberfinazdirektion Hamburg, que se constituiu parte interveniente no processo principal, alegam perante o juiz de reenvio que as medidas adoptadas pela comissão mista visam garantir um exercício uniforme das competências nos Estados signatários. As medidas em causa são necessárias para assegurar uma passagem fácil e rápida das fronteiras, tendo em conta, designadamente, o grande volume do tráfego que transita pela Suíça e pela Áustria. Em sua opinião, a comissão mista é competente para adoptar essas medidas, dado que até tem competência para alterar os apêndices da convenção.

6. O juiz de reenvio considerou que o exame do litígio suscita problemas de direito comunitário e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

"1) A resolução da comissão mista criada nos termos do artigo 14. da convenção sobre um regime de trânsito comum, de 20 de Maio de 1987, segundo a qual o documento XXI/1367/87 - AECL 2 deve ser utilizado num regime de trânsito comum, vincula os Estados-membros ? O Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre esta resolução?

2) Em caso de resposta afirmativa à questão 1:

Esta resolução é válida?

3) Em caso de resposta negativa à questão 1:

O Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre a convenção de 20 de Maio de 1987? Em caso de resposta afirmativa a esta questão:

a) Os artigos 11. , n. 4, e 15. , n. 2, da convenção, devem interpretar-se no sentido de que a comissão mista pode restringir o poder de a estância aduaneira de partida decidir dispensar da selagem, de modo que a identificação das mercadorias deve ser sempre garantida mediante selagem quando a estância aduaneira de entrada do país da AECL não seja a estância de destino ou quando a selagem por capacidade não possa ser efectuada?

b) As disposições referidas na alínea a) devem ser interpretadas no sentido de que também a administração central do Estado-membro em questão pode tomar esta decisão, em vez das estâncias aduaneiras de partida?

4) Em caso de resposta afirmativa à questão 3:

As disposições aí referidas, conjugadas com o princípio da proporcionalidade, devem entender-se no sentido de que pode ser exigida igualmente uma selagem em caso de transporte de óleos minerais por vagões-cisterna ou por barcos por um expedidor autorizado nos termos do apêndice II, capítulo II, da convenção?"

Competência do Tribunal de Justiça e natureza jurídica do acto em causa

7. Nas primeira e terceira questões prejudiciais, o juiz de reenvio suscita a questão da competência do Tribunal de Justiça relativamente à convenção de 20 de Maio de 1987 e relativamente ao acto em causa da comissão mista instituída em aplicação da convenção.

É com razão que o juiz de reenvio presume que a interpretação da convenção releva da competência do Tribunal de Justiça. É jurisprudência assente que as disposições de uma convenção celebrada pelo Conselho fazem parte integrante da ordem jurídica comunitária desde o momento da entrada em vigor da referida convenção (7). No respeitante à Comunidade, esta convenção é efectivamente um acto adoptado por uma instituição da Comunidade na acepção do artigo 177. , primeiro parágrafo, alínea b), do Tratado CEE, de modo que o Tribunal de Justiça é competente para proferir uma decisão prejudicial aplicável na Comunidade sobre a interpretação a dar a esta convenção (8).

8. No que diz respeito à competência do Tribunal de Justiça para conhecer do acto litigioso da comissão mista, é necessário, para responder à (primeira parte da) primeira questão prejudicial, examinar previamente como o acto impugnado deve ser qualificado juridicamente nos termos da convenção.

A sua denominação provoca já divergências de opinião. O juiz de reenvio fala de uma resolução ("Entschliessung"), mas a Comissão contesta este termo. Com efeito, esta denominação não figura nos documentos da reunião em causa da comissão mista. Em minha opinião, parece-me manifesto que não se trata de uma decisão na acepção do artigo 15. , n. 3, da convenção. Esta disposição enuncia, com efeito, de modo exaustivo os domínios em que a comissão mista pode adoptar decisões obrigatórias. Trata-se do poder de introduzir um certo número de alterações bem precisas ou de tomar certas medidas (transitórias) determinadas. O acto que aqui está em causa não faz parte de nenhuma destas duas categorias. Por outro lado, resulta da acta da reunião anual de 21 de Janeiro de 1988 que a comissão mista julgou esta medida necessária para a aplicação da convenção, e não para a sua alteração. Consequentemente, o acto em questão deve ser considerado uma recomendação na acepção do artigo 15. , n. 2, alínea b) da convenção, nos termos do qual a comissão mista recomendará "quaisquer outras medidas necessárias (à) sua aplicação (da convenção)".

Deste modo, temos imediatamente a resposta à primeira parte da primeira questão: trata-se de uma acto jurídico não obrigatório adoptado por um órgão de gestão e de fiscalização instituído em aplicação de uma convenção celebrada pela Comunidade com países terceiros.

9. A Comissão que, nas suas observações escritas, chega também à conclusão que o acto em causa é uma recomendação, deduz desse facto que o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a validade e a interpretação desse acto no âmbito do processo instituído pelo artigo 177. do Tratado CEE. Em sua opinião, o artigo 177. só pode ser interpretado em sentido lato em caso de real necessidade. Tal não é o caso de actos jurídicos não obrigatórios emanados de instituições que agem com base em tratados internacionais celebrados pela Comunidade. Segundo a Comissão, tais actos não fazem parte da ordem jurídica comunitária. Admite que no acórdão Sevince, o Tribunal de Justiça se tinha considerado competente para se pronunciar sobre a interpretação de decisões de um Conselho Misto de Associação instituído em aplicação de um acordo de associação celebrado com um país terceiro. A Comissão interpreta o acórdão Sevince no sentido de que a principal razão pela qual o Tribunal de Justiça aplicou o artigo 177. do Tratado reside, contudo, na necessidade de uma aplicação uniforme de todas as normas comunitárias na Comunidade. Essa necessidade não existe no caso de uma medida sem efeito obrigatório. O juiz nacional pode sempre interrogar o Tribunal de Justiça sobre a interpretação do direito comunitário em que se baseiam esses actos. Na medida em que se afigure que esses actos são compatíveis com o direito comunitário, não há evidentemente qualquer problema; mas mesmo em caso de incompatibilidade, também não haveria problemas uma vez que o acto em causa não é obrigatório.

10. Não estou de acordo com este raciocínio. Em primeiro lugar, não compreendo porque é que os actos jurídicos sem efeito obrigatório adoptados por um órgão instituído em aplicação de uma convenção internacional aprovada pelo Conselho não fazem parte da ordem jurídica comunitária, ao passo que é esse o caso dos actos obrigatórios do órgão em questão. Resulta claramente da jurisprudência recente do Tribunal de Justiça que não é o carácter obrigatório do acto que é determinante mas sim a relação directa que esse acto apresenta com a convenção internacional assinada pela Comunidade. Se existir esse nexo directo, o acto em causa faz parte integrante da ordem jurídica comunitária da mesma maneira que a convenção internacional na qual se baseia (9). O que é determinante para que exista tal ligação directa, pode ler-se seguidamente na jurisprudência do Tribunal de Justiça, é que o acto se situe "no âmbito institucional" do acordo (10) que tem por objecto "aplicar" (11). A condição de uma ligação directa está portanto preenchida a partir do momento em que esteja estabelecido que o acto em causa emana do "órgão instituído pelo acordo e encarregado da sua aplicação" (12). É incontestável que existe essa ligação directa no caso em apreço: como se verá mais adiante, trata-se aqui de um acto adoptado no âmbito institucional da convenção pelo órgão de gestão e de fiscalização por ela designado (v. o ponto 13 adiante) e que a aplica na medida em que este tem por objecto fornecer à estância aduaneira de partida indicações práticas para a identificação das mercadorias a transportar. Apresenta assim uma ligação directa com os objectivos essenciais da convenção, a saber, a simplificação do transporte das mercadorias efectuado no âmbito das trocas comerciais entre a Comunidade e os países AECL (v. os pontos 15 e 16 adiante).

11. A partir do momento em que se encontre estabelecido que um acto faz parte do direito comunitário, o facto de o mesmo ser desprovido de efeito obrigatório não constitui um obstáculo à aplicação do artigo 177. O Tribunal de Justiça já confirmou esta opinião várias vezes a propósito de recomendações adoptadas com base no Tratado CEE (13). Eis o que o Tribunal de Justiça considerou a este propósito no acórdão Grimaldi:

"A este respeito, basta constatar que, diferentemente do que acontece com o artigo 173. do Tratado CEE, que afasta a fiscalização pelo Tribunal de actos com a natureza de recomendações, o artigo 177. atribui ao Tribunal competência para decidir, a título prejudicial, sobre a validade e a interpretação de actos adoptados pelas instituições da Comunidade, sem qualquer excepção." (14)

Não vejo porque é que isto não pode ser válido também para as recomendações da comissão mista que foi instituída nos termos da convenção internacional aqui em causa a partir do momento em que essas recomendações fazem parte da ordem jurídica comunitária na medida em que têm uma ligação directa com essa convenção. Como o Tribunal de Justiça o declarou no acórdão Grimaldi, essas recomendações não podem, é um facto, criar direitos

"de que (os nacionais) se possam prevalecer perante os juízes nacionais. No entanto, estes últimos terão de tomar em consideração as recomendações para resolver os litígios que lhe são submetidos, nomeadamente quando sejam susceptíveis de os auxiliar na interpretação de outras disposições nacionais ou comunitárias" (15).

Por este motivo, as instâncias nacionais são também obrigadas, mutatis mutandis, a tomar em consideração as recomendações controvertidas da comissão mista quando as mesmas sejam susceptíveis de esclarecer a interpretação da convenção, isto é, no caso em apreço a interpretação que deve ser dada ao seu artigo 11. , n. 4, excepto se essas recomendações forem inválidas por incompatibilidade com a convenção ou com princípios jurídicos superiores (v. sobre este aspecto os pontos 12 e seguintes e o ponto 17 adiante).

Resulta dos elementos que acabo de expor que o Tribunal de Justiça é efectivamente competente para se pronunciar sobre a interpretação e a validade da recomendação em causa no âmbito do processo instituído pelo artigo 177.

Compatibilidade do acto com a convenção

12. A questão da compatibilidade do acto com a convenção é, essencialmente, uma questão de interpretação da própria convenção, e em particular, dos seus artigos 11. , n. 4, e 15. , n. 2, e dos artigos 63. e 65. do apêndice II.

A terceira questão prejudicial alínea a) do juiz de reenvio visa obter uma resposta à questão de saber precisamente se a comissão mista pode, como o fez no acto impugnado - através de uma recomendação formulada com base no artigo 15. , n. 2, da convenção -, imiscuir-se na competência atribuída à estância aduaneira de partida pelo artigo 11. , n. 4, da convenção. Através da mesma questão alínea b) o juiz de reenvio pergunta em seguida se as referidas disposições da convenção obstam a que seja a administração central do Estado-membro em causa a adoptar a decisão que compete normalmente à estância aduaneira de partida.

Para responder a estas questões, vou em primeiro lugar precisar (no ponto 13 adiante) a competência que o artigo 15. , n. 2, da convenção confere à comissão mista para definir a seguir (no ponto 14) a competência que é deixada à estância aduaneira de partida ou a outras autoridades nacionais pelo artigo 11. , n. 4, da convenção, e examinarei, por último, a questão de saber se a comissão mista podia limitar esta última competência através do acto em litígio (ponto 15).

13. Como referi, o artigo 15. , n. 1, da convenção encarrega a comissão mista da gestão e boa aplicação da convenção, constituindo assim uma espécie de foro onde as partes contratantes (a Comunidade e os países AECL) podem concertar-se e fazer intercâmbio das experiências adquiridas na aplicação da convenção. Para este efeito igualmente a convenção confere-lhe uma competência de formular pareceres e, em determinados casos, uma competência de decisão. Para propor alterações à convenção [que não sejam as que decorrem das modificações dos apêndices desta: v. artigo 15. , n. 3, alínea c), da convenção] e para propor as outras medidas necessárias à aplicação da convenção, a comissão mista só dispõe do poder de formular recomendações (artigo 15. , n. 2).

Como resulta do conteúdo do acto impugnado e, como já o disse (no ponto 8 anterior), da acta da reunião no decurso da qual foi discutido, esse acto diz claramente respeito à aplicação da convenção, o que já me permitiu concluir anteriormente que se trata não de uma decisão, mas efectivamente de uma recomendação. Aliás, na sua questão o juiz de reenvio refere-se também ao artigo 15. , n. 2.

A oposição que existe entre a alínea a) e a alínea b) do artigo 15. , n. 2, demonstra, além disso, que as recomendações referidas na alínea b) não têm por natureza propor às partes contratantes uma alteração a introduzir na convenção mas dizem unicamente respeito à sua aplicação. Nesta perspectiva, as recomendações desta segunda categoria têm por objecto, em minha opinião, comparar entre si as práticas seguidas pelas administrações aduaneiras nacionais e harmonizá-las na medida do possível. As recomendações formuladas com vista a essa harmonização devem no entanto permanecer no quadro das disposições da convenção, o que não impede que estas disposições possam ser precisadas nas recomendações (16). Todavia, através de tal a natureza e o alcance das disposições da convenção não pode ser afectado.

14. É agora necessário circunscrever o poder de apreciação que o artigo 11. , n. 4, da convenção confere à estância aduaneira de partida ou, eventualmente, às autoridades aduaneiras nacionais superiores, poder em virtude do qual eles ou elas podem derrogar a regra geral inserida no artigo 11. , n. 1, de acordo com a qual a identificação das mercadorias é, em princípio, assegurada por selagem. Como o referi, a estância aduaneira de partida pode dispensar a selagem num caso individual "quando, tendo em conta outras medidas eventuais de identificação, a descrição das mercadorias na declaração T1 ou T2 ou nos documentos complementares permita a sua identificação".

A norma do artigo 11. , n. 4, deve ser lida em conjugação com o artigo 65. , alínea d), do apêndice II da convenção (que faz parte integrante desta (17)). Esta disposição emcarrega as autoridades aduaneiras de prescreverem determinadas medidas de identificação (e nomeadamente um determinado tipo de selagem) no âmbito das condições de concessão do estatuto de expedidor autorizado.

A leitura conjunta destes dois artigos indica, em minha opinião, que de acordo com a convenção, o poder de apreciação da estância aduaneira de partida, que diz necessariamente respeito a casos individuais, situa-se num quadro geral a definir pelas autoridades aduaneiras superiores do Estado em causa e que deve consequentemente ser exercido dentro dos limites desse quadro. Esta solução parece-me indicada uma vez que é necessário garantir a segurança jurídica e o exercício uniforme, pelas estâncias aduaneiras de partida num determinado Estado-membro, do poder que lhe foi conferido de conceder derrogações ao princípio da selagem. Não é evidente que é às autoridades aduaneiras superiores que cabe definir uma linha geral que as estâncias individuais devem seguir nas decisões que tomam na prática?

Respondi assim à questão b) da terceira questão prejudicial: não é à administração central aduaneira de um Estado-membro que compete conceder uma dispensa em casos individuais mas, em contrapartida, é ela que deve, através de directrizes gerais, garantir na medida do possível a uniformidade da prática seguida pelas estâncias individuais nas decisões que estas adoptam.

15. É ainda necessário responder à questão de saber se, tendo em conta a competência conferida à comissão mista pelas disposições da convenção e tendo em conta o poder de apreciação que esta deixa às autoridades nacionais, a comissão mista, pela recomendação impugnada, não limitou esse poder de apreciação de modo ilícito.

Parece-me dever responder a esta questão a partir das seguintes permissas: i) como acabo de dizer, a comissão mista tem por missão assegurar tanto quanto possível a concordância entre as práticas aduaneiras seguidas nos Estados-membros da Comunidade e as que vigoram nos Estados AECL no que diz respeito à concessão de dispensas de selagem; ii) a selagem, que foi instituída a fim de assegurar uma circulação rápida das mercadorias, constitui a regra geral mas pode ser derrogada quando as mercadorias possam ser identificadas de modo satisfatório por um outro processo menos oneroso para as empresas.

Tendo em conta esta permissas, parece-me que o regime de base tal como figura no acto impugnado da comissão mista (v. o ponto 3 anterior) não comporta de modo algum qualquer restrição ilícita do poder de apreciação das estâncias nacionais ou das autoridades aduaneiras. As recomendações que contém não me parecem fazer outra coisa que não seja precisar, ou mesmo parafrasear, o que se poder ler no artigo 11. da convenção.

16. As disposições especiais do acto impugnado relativas ao comércio com a Suíça e a Áustria, (v. o ponto 3 anterior) parecem também elas ser apenas uma precisão do âmbito geral no interior do qual as derrogações ao princípio geral da selagem podem ser autorizadas. Embora seja um facto que estas disposições especiais especificam o poder de derrogação deixado às autoridades aduaneiras nacionais para o comércio com esses dois países de um modo mais restritivo do que o que diz respeito ao comércio com os outros países AECL, esta abordagem mais restritiva é apesar disso justificada, como resulta da acta da reunião da comissão mista de 21 de Janeiro de 1988, pelo facto de que se pôde rapidamente verificar depois da entrada em vigor da convenção que a identificação das mercadorias por descrição nos documentos de transporte em vez de uma identificação por selagem, método que a Shell tinha pedido para utilizar, teve por resultado tornar mais difícil a passagem da fronteira com a Áustria. Como o Comissão o confirmou na audiência, esse método de identificação levou as autoridades aduaneiras suíças e austríacas a intensificar os controlos por amostragem nas fronteiras em causa.

Tendo em conta este objectivo - permitir uma passagem mais rápida das fronteiras, em especial nas fronteiras com a Suíça e a Áustria em que o tráfego é particularmente intenso, objectivo que se enquadra perfeitamente no da convenção (18) - e tendo em conta a necessidade de garantir quanto a este aspecto igualmente uma prática administrativa uniforme na aplicação da convenção, também não me parece que, nesta parte da recomendação, a comissão mista tenha afectado de modo ilícito o poder das estâncias aduaneiras nacionais.

Compatibilidade do acto com o princípio da proporcionalidade

17. A Shell alega que o acto impugnado é incompatível com os princípios gerais do direito comunitário, em especial com o princípio da proporcionalidade. Em sua opinião, ao restringir o poder de apreciação das estâncias aduaneiras nacionais de partida, a comissão mista exerceu a sua competência de modo desproporcionado relativamente a um expedidor autorizado como a Shell. Este problema é abordado na quarta questão prejudicial do juiz de reenvio.

Eis o que me é dado observar a este propósito. Por um lado, é sabido que a identificação por selagem é considerada na convenção como sendo o método mais indicado relativamente às trocas comerciais transfronteiras rápidas e fáceis. Por outro lado, parece que essa preferência pela selagem foi aprovada pela comissão mista no exercício dos poderes que lhe foram conferidos pela convenção. Em tal situação, não compete ao Tribunal de Justiça substituir a sua decisão à da comissão mista, excepto se o acto por ela adoptado for manifestamente incompatível com o princípio da proporcionalidade consagrado pelo direito comunitário. No caso em apreço, parece que nada disso foi provado. Com efeito, a Shell não demonstrou que a técnica de descrição por ela proposta enquanto método de identificação constitui, do ponto de vista da rapidez das trocas comerciais, uma alternativa eficaz ao método da selagem dado que o primeiro método ocasiona sérios problemas aquando da passagem das fronteiras com a Suíça e a Áustria. O método da selagem é incontestavemente mais oneroso para a Shell; no entanto, não acredito que, sacrificando o interesse de um expedidor autorizado como a Shell às vantagens de uma passagem da fronteira mais rápida graças ao método da selagem, a comissão mista tenha recomendado uma medida manifestamente desproporcionada (19).

Conclusão e proposta de respostas

18. Resulta do que precede - e tal constitui uma resposta à segunda questão prejudicial - que o acto impugnado da comissão mista não é, em minha opinião, incompatível com a convenção e que também não é incompatível com o princípio comunitário da proporcionalidade. Consequentemente, nada impede as autoridades dos Estados-membros de adoptarem as recomendações enunciadas nesse acto em questão, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, e em especial na acepção do acórdão Grimaldi (20).

19. Tendo em conta os elementos precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões apresentadas pelo juiz de reenvio do seguinte modo:

"1) As medidas administrativas enunciadas no documento XXI/1367/87 - AECL 2, de 21 de Janeiro de 1988, adoptadas pela comissão mista instituída em aplicação do artigo 14. do convenção de 20 de Maio de 1987 relativa a um regime de trânsito comum, são recomendações que, embora não vinculando os Estados-membros, devem ser tomadas em consideração por estes, se não forem incompatíveis com a convenção ou com princípios de direito de categoria superior, a saber, o princípio da proporcionalidade.

2) O artigo 11. , n. 4, e o artigo 15. , n. 2, alínea b), da convenção, lidos em conjugação com os artigos 63. e 65. , alínea d), do apêndice II da convenção não impedem que uma autoridade aduaneira superior de um Estado-membro fixe o quadro geral no interior do qual deve ser exercido o poder conferido à estância aduaneira de partida de renunciar à selagem. Também não se opõem a que, nas referidas medidas, a comissão mista tenha especificado esse poder por forma a que as partes signatárias da convenção o exerçam de modo uniforme, em conformidade com a natureza e o alcance da convenção.

3) As referidas medidas não se revelaram incompatíveis com o princípio da proporcionalidade."

(*) Língua original: neerlandês.

(1) - JO 1987, L 226, p. 2.

(2) - Trânsito significa um procedimento aduaneiro ao abrigo do qual as mercadorias são transportadas, sob controlo aduaneiro, de uma estância aduaneira de um país para uma estância aduaneira no mesmo país ou num outro país, tendo atravessado pelo menos uma fronteira [artigo 3. , n. 1, alínea a), da Convenção].

(3) - Regulamento (CEE) n. 222/77 do Conselho, de 13 de Dezembro de 1976, relativo ao trânsito comunitário (JO 1977, L 38, p. 1; EE 02 F3 p. 91).

(4) - JO L 226, p. 1.

(5) - V. artigo 18. do Regulamento n. 222/77.

(6) - V. o n. 4 da acta da reunião, anexo I das observações escritas da Comissão.

(7)

- V. o acórdão de 30 de Abril de 1974, Haegeman (181/73, Recueil, p. 449, n. 5); v. igualmente o acórdão de 30 de Setembro de 1987, Demirel (12/86, Colect., p. 3719, n. 7); o acórdão de 14 de Novembro de 1989, Grécia/Comissão (30/88, Colect., p. 3711, n. 12), e o acórdão de 20 de Setembro de 1990, Sevince (C-192/89, Colect., p. I-3461, n. 8); v., ainda, recentemente o parecer de 14 de Dezembro 1991 (Colect., p. I-6079, n. 37).

(8) - Acórdão Haegman, n.os 4 e 6; acórdão Demirel, n. 7; parecer 1/91, n. 38.

(9) - Acórdão Sevince, n. 9; acórdão Grécia/Comissão, n. 13.

(10) - Acórdão de 27 de Setembro de 1988, Grécia/Conselho (204/86, Colect., p. 5523, n. 20); acórdão Grécia/Comissão, n. 13.

(11) - Acórdão Sevince, n. 9.

(12) - Acórdão Sevince, n. 10.

(13) - V. os acórdãos de 15 de Junho de 1976, Frecassetti (113/75, Recueil, p. 983); de 9 de Junho de 1977, Van Ameyde (90/76, Recueil, p. 1091), e de 13 de Dezembro de 1989, Grimaldi (C-22/88, Colect., p. 4407, n. 9).

(14) - Acórdão Grimaldi, n. 8.

(15) - Ibidem, n. 19.

(16) - A propósito deste poder de precisar as disposições da convenção, v. também as conclusões que apresentei no processo 14/88, Itália/Comissão (Colect., 1989, pp. 3694, 3695, ponto 13), na qual se tratava do poder de implementar ou de precisar conferido à Comissão pelo Regulamento (CEE) n. 729/70.

(17) - V. o artigo 19. da convenção.

(18) - V. o primeiro ponto da fundamentação da decisão do Conselho de 15 de Junho de 1987 (JO 1987, L 226, p. 1).

(19) - Segundo a Shell, o ministro federal das Finanças teria declarado que as regras especiais recomendadas para a Áustria e a Suíça no acto impugnado são de aplicação geral e que, consequentemente, as aplica igualmente nas trocas comerciais com os outros países AECL. O juiz de reenvio não apresentou qualquer questão sobre este aspecto. Assim, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a proporcionalidade desta medida nacional mais radical (na medida em que ultrapassa as recomendações feitas pela Comissão Mista).

(20) - V. o ponto 11 anterior.