CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

WALTER VAN GERVEN

apresentadas em 26 de Setembro 1991 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

No Verão de 1983, os serviços aduaneiros do Oberfinanzbezirk de Frankfurt am Main efectuaram na empresa Meico-Fell uma inspecção relativa aos direitos aduaneiros devidos por mercadorias importadas entre 1 de Julho de 1980 e 10 de Junho de 1983. Esta inspecção permitiu apurar que a Meico-Fell tinha enviado para uma empresa canadiana, com vista a serem acabadas, peles de coati em bruto, tendo, seguidamente, procedido à sua reimportação para a Comunidade, declarando-as como peles em bruto de outros animais, isentas do pagamento de direitos aduaneiros. Devido a essa declaração errada, o montante total dos direitos aduaneiros pagos foi inferior em 2764,85 DM ao montante legalmente devido. Por aviso de cobrança a posteriori, datado de 24 de Maio de 1984, o Hauptzollamt Darmstadt reclamou o pagamento desta diferença.

Na sequência do indeferimento de uma reclamação que apresentou contra esta decisão, a Meico-Fell interpôs um recurso sobre o qual o juiz a quo se deve pronunciar.

2. 

A Meico-Fell alega principalmente, como fundamento do seu recurso, que os direitos aduaneiros em litígio prescreveram. Com efeito, o artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 ( 1 ) determina, no que respeita à acção para cobrança de direitos não pagos, que

«todavia, esta acção não pode ser iniciada depois de findo o prazo de três anos a contar da data do registo da liquidação do montante primitivamente exigido ao devedor, ou, não tendo havido registo da liquidação, a contar da data da constituição da dívida aduaneira relativa à mercadoria em causa».

As partes no processo principal e o juiz a quo estão de acordo quanto ao facto de este prazo de três anos já ter decorrido, o que significa que o artigo 3.° do regulamento atrás referido é o único preceito que ainda permite a cobrança a posteriori; este artigo tem a seguinte redacção.

«Não se aplica o prazo previsto no artigo 2.° sempre que as autoridades competentes verificarem que, como consequência de um acto passível de procedimento judicial repressivo, não puderam determinar o montante exacto dos direitos de importação ou dos direitos de exportação legalmente devidos pela mercadoria em causa.

Neste caso, a acção para cobrança pelas autoridades competentes exercer-se-á em conformidade com as disposições em vigor nos Estados-membros sobre a matéria».

3. 

Assim, a possibilidade da cobrança a posteriori depende da resposta à questão de saber se o erro cometido pela Meico-Fell na sua declaração pode ser considerado «um acto passível de procedimento judicial repressivo» na acepção do artigo 3.° do regulamento. O juiz a quo parece partir do princípio de que a declaração errada da Meico-Fell não viola nenhuma norma do direito penal formal (alemão), constituindo apenas uma contra-ordenação («Ordnungswidrigkeit») punida com coima. O Hauptzollamt Darmstadt, recorrido no processo principal, defende que esta contra-ordenação deve ser igualmente considerada um acto passível de procedimento judicial repressivo na acepção do artigo 3.° do Regulamento n.° 1697/79. Neste caso, seria necessário, por força do n.° 2 do artigo 3.° do citado regulamento, aplicar o prazo de prescrição previsto na legislação alemã para tal contra-ordenação. Concretamente, deveria aplicar-se o artigo 169.° do Abgabenordnung que prevê um prazo de prescrição de cinco anos.

A fim de poder resolver esta questão, o juiz a quo colocou ao Tribunal a seguinte questão:

«O artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, relativo à cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação que não tenham sido exigidos ao devedor por mercadorias declaradas para um regime aduaneiro que implica a obrigação de pagamento dos referidos direitos (JO L 197, p. 1; EE 02 F6 p. 54), deve ser interpretado no sentido de que a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» abrange apenas actos formalmente puníveis face ao direito penal nacional, ou se abrange qualquer infracção a regras de direito fiscal em relação à qual esteja previsto um prazo de prescrição mais longo?»

4. 

Uma análise dos objectivos e do conteúdo do Regulamento n.° 1697/79 pode contribuir para uma melhor compreensão das questões de direito que estão em causa no presente processo. O regulamento atrás referido prevê em que casos as autoridades aduaneiras competentes podem exigir ao devedor o pagamento a posteriori dos direitos aduaneiros sempre que verifiquem que o montante inicialmente cobrado estava errado ou era insuficiente. Assim, o regulamento prossegue um duplo objectivo: por um lado, garantir a aplicação uniforme da pauta aduaneira comum fixando regras uniformes em matéria de cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros; por outro, salvaguardar os princípios da segurança jurídica e/ou da protecção da confiança legítima ao sujeitar esta cobrança a posteriori a um certo número de restrições.

Em princípio, as autoridades aduaneiras devem iniciar uma acção para cobrança a posteriori sempre que verifiquem que a totalidade ou parte do montante dos direitos legalmente devidos não foi exigida ao devedor ( 2 ). Esta obrigação de princípio é mitigada pelo regulamento em dois aspectos. Em primeiro lugar, a cobrança a posteriori torna-se facultativa, ou mesmo impossível, sempre que as autoridades aduaneiras sejam responsáveis pela inexactidão ou pela insuficiência da cobrança inicial ( 3 ). Em segundo lugar, nos casos em que a cobrança a posteriori é obrigatória ou possível, o regulamento tem em conta que esta cobrança «atenta de certo modo contra a segurança que os devedores têm o direito de esperar dos actos administrativos que acarretam consequências pecuniárias» (segundo considerando do regulamento). O artigo 2° do regulamento prevê igualmente um prazo de prescrição de três anos findo o qual a liquidação inicial dos direitos deve ser considerada definitiva. No entanto, este prazo não se aplica sempre que a cobrança incorrecta ou insuficiente resulte de um «acto passível de procedimento judicial repressivo», praticado pelo devedor. Neste caso, a acção para cobrança a posteriori exerce-se «em conformidade com as disposições em vigor nos Estados-membros sobre a matéria» (ver artigo 3.°, atrás referido, do regulamento) — por outras palavras, o prazo de prescrição previsto para o acto em questão pelo direito nacional (prazo que, por hipótese, é mais longo) substitui o prazo previsto no direito comum (ou antes, de direito comunitário) de três anos.

5. 

Apenas apresentaram observações ao Tribunal, a Comissão e a Meico-Fell. Ambas estão de acordo em considerar que o artigo 3.°, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1697/79 remete implícita, mas inequivocamente, para o direito nacional. Com efeito, dos termos do artigo 3.° resulta que, embora em matéria de modalidades de cobrança, inclusive no que respeita aos prazos de prescrição aplicáveis (nomeadamente quando a irregularidade da declaração resulta de um «acto passível de procedimento judicial repressivo»), o segundo parágrafo deste artigo remeta expressamente para o direito nacional, no que respeita todavia à definição deste conceito constante do primeiro parágrafo, a remissão para o direito nacional é, quando muito, implícita.

A Comissão e a Meico-Fell estão em desacordo quanto ao alcance desta remissão para o direito nacional: o significado da expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» deve ser determinado mediante a aplicação dos critérios de direito comunitário (que, por esta razão, têm um carácter uniforme) ao direito nacional (como defende a Comissão) ou o seu significado varia de um Estado-membro para outro e só pode ser determinado através do direito nacional aplicável (como defende a Meico-Fell)? Em nossa opinião, tendo em conta a salvaguarda da aplicação uniforme do direito comunitário e da igualdade de tratamento dos devedores, que é um dos objectivos do Regulamento n.° 1697/79 (ver o n.° 4), é necessário dar preferência à tese da Comissão. Esta opinião é igualmente corroborada pela jurisprudência do Tribunal, segundo a qual os termos de uma disposição de direito comunitário que não admita qualquer remissão expressa para o direito dos Estados-membros com vista a determinar o seu significado e o seu alcance devem, normalmente, ser objecto em toda a Comunidade de uma interpretação autónoma e uniforme que se deve tentar alcançar tendo em conta o contexto da disposição e do objectivo prosseguido pela regulamentação em causa ( 4 ). Por outras palavras, cabe ao juiz nacional determinar, com base no direito nacional aplicável, embora aplicando critérios de interpretação fornecidos pelo Tribunal, se existe «acto passível de procedimento judicial repressivo».

6. 

Nas observações apresentadas ao Tribunal foram defendidos dois critérios possíveis: ura critério estrito (defendido pela Meico-Fell), segundo o qual a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» remete unicamente para o direito penal nacional em sentido formal e um critério lato (defendido pela Comissão), segundo o qual a expressão em causa poderia englobar igualmente os actos em relação aos quais os Estados-membros previram sanções desprovidas de carácter penal (tais como coimas).

O critério de interpretação estrita, preconizado pela Meico-Fell, embora apresente a vantagem de ser de fácil aplicação, é desprovido de conteúdo comunitário e conduz ao resultado pouco satisfatório de que a cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros resultante de um único e mesmo facto estará ou não sujeita ao prazo de prescrição «mais longo» consoante o Estado-membro tenha optado (opção finalmente arbitrária) por reprimir este facto penalmente ou administrativamente. Desta forma, a aplicação uniforme da pauta aduaneira comum e a igualdade de tratamento dos devedores só estariam garantidas em termos limitados.

7. 

E precisamente tendo em vista uma aplicação e uma interpretação uniformes do artigo 3.° que a Comissão sugere que a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» seja interpretada no sentido de que se aplica o prazo de prescrição previsto no direito nacional — e que, por hipótese, é mais longo — sempre que o devedor tenha agido de má fé, isto é, sempre que a cobrança incorretta ou insuficiente dos direitos seja imputável à sua negligência grave, ou seja, sempre que o devedor tenha a obrigação de se aperceber que o seu comportamento é ilícito e/ou dá origem a uma cobrança insuficiente dos direitos aduaneiros. Assim, os «actos passíveis de procedimentos judiciais repressivos» englobam igualmente as infracções às regras relativas às declarações aduaneiras, pelo menos quando se trate de regras que concretizem a obrigação de vigilância por parte dos devedores.

Embora pareça mais adequado, com vista a garantir a aplicação uniforme do direito comunitário e a igualdade dos devedores nos Estados-membros, este critério apresenta igualmente um determinado número de inconvenientes. Em primeiro lugar, trata-se de um critério vago que os juízes nacionais deverão aplicar no quadro da sua própria ordem jurídica, o que, definitivamente, também conduzirá a resultados que variam de um Estado-membro para outro; por outro lado, sendo vago, este critério não se ajusta correctamente ao princípio da segurança jurídica (que está igualmente na base do Regulamento n.° 1697/79). Em segundo lugar, este critério parece-nos dificilmente conciliável com a finalidade do Regulamento n.° 1697/79. Com efeito, do regulamento resulta claramente que o prazo de prescrição de três anos, previsto no direito comunitário, em princípio, também se aplica quando a cobrança incorrecta ou insuficiente se deve a negligência do devedor; só em casos excepcionais, isto é, quando os actos praticados são passíveis de procedimento judicial repressivo, é que será aplicável o prazo previsto no direito nacional que, por hipótese, é mais longo. Ora, o critério preconizado pela Comissão levaria a que fosse aplicado o prazo mais longo sempre que a cobrança incorrecta ou insuficiente se devesse a negligência grave do devedor, punida pelo direito nacional, independentemente da natureza e da gravidade da sanção prevista para esta negligência. Isto parece-nos incompatível com a finalidade do regulamento.

8. 

As considerações que antecedem levam-nos a defender que o criterio sugerido pela Meico-Fell conduz a uma interpretação demasiado estrita da expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» e que o critério sugerido pela Comissão conduz a uma interpretação demasiado ampla desta expressão. É, pois, necessário, encontrar um critério «intermédio» que permita conciliar as exigências da aplicação uniforme do direito comunitário e de igualdade dos sujeitos passivos, por um lado, com as exigências dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima, por outro.

Para encontrar tal critério é, evidentemente, necessário partir da forma como a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» é apresentada em cada versão linguística. Verifica-se, quanto a este aspecto, que determinadas versões, especialmente as versões dinamarquesa, alemã, inglesa e neerlandesa, onde consta, respectivamente, «en handeling, der vil kunne undergives strafferetlig forfølgnig», «Handlungen, die strafrechtlich verfolgbar sind», «an act that could give rise to criminal court proceedings» e «strafrechtlijk vervolgbare handelingen», afiguram-se mais restritivas (parecem remeter para o direito penal formal) do que as versões francesa, italiana, espanhola, portuguesa e grega (respectivamente «acte passible de poursuites judiciaires répressives», «atto passibile di un'azione giudiziaria repressiva», «un acto que puede dar lugar a la incoación de un proceso judicial punitivo», «um acto passível de procedimento judicial repressivo» e «... στη συνέχεια πράξεως γιά την οποία έχει επιληφθεί η δικαστική αρχή») A escolha de termos mais latos pelas versões francesa, italiana, espanhola, portuguesa e grega permite pensar que a prática destes actos envolve, pelo contrario, a aplicação de sanções de natureza dissuasiva ou repressiva, embora devam ser fixadas por um juiz (que não é necessariamente o juiz de direito penal). De resto, verifica-se que outros textos comunitários que contêm a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo» (ou uma expressão semelhante) utilizam, nas suas versões francesa, italiana, espanhola e portuguesa, expressões típicas do «direito penal formal» ( 5 ). Em nosso entender, as considerações que antecedem constituem um primeiro indício de que à luz do regulamento em questão no caso em análise impõe-se atribuir à expressão «acte passible de poursuites judiciaires repressives» não um significado formal, mas um significado material, apelando, mais precisamente, para o caracter dissuasivo e repressivo da sanção escolhida por um Estado-membro.

9. 

Ora, esta tese pretende apoiar-se igualmente numa outra disposição de direito europeu, a saber, o artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que, à semelhança das disposições de direito comunitário, deve ser interpretada e aplicada do modo mais uniforme possível nos diferentes Estados. A este propósito, é absolutamente desnecessário acrescentar que o Tribunal admite como critério de interpretação de disposições do direito comunitário a sua interpretação em conformidade com a convenção atrás referida ( 6 ).

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi convidado a interpretar a expressão «acusação em materia penal» (na versão inglesa da convenção: «criminal charge») que figura no artigo 6.°, n.° 1, da convenção e da expressão «qualquer pessoa acusada da prática de um crime» (na versão inglesa «everyone charged with a criminal offence»), que figura no artigo 6.°, n.os 2 e 3, a propòsito das infracções que o direito nacional reprime não penal, mas administrativamente. Ora, no seu acórdão no processo Engel ( 7 ), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que a expressão «acusação em matéria penal» tinha um significado autónomo no sistema da convenção pelo que, as qualificações, válidas em direito nacional, é certo que constituem indícios mas não são determinantes. Com vista a fixar se uma determinada sanção, prevista no direito nacional, é de natureza penal, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem analisa o conteúdo da sanção.

Assim, no acórdão Öztürk de 1984 ( 8 ), aquele órgão jurisdicional declarou que uma infracção ao código da estrada, punida pelas autoridades alemãs com coima («Ordnungswidrigkeit»), isto é, uma infracção da mesma natureza da que está em causa no presente processo, devia ser considerada uma «infracção» na acepção do artigo 6.°, n.os 2 e 3 da convenção. Sobre este aspecto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem atribui uma importância limitada ao facto de tal contra-ordenação ter sido «despenalizada» pelo direito nacional, isto é, ter sido subtraída ao direito penal. As circunstâncias de i) a norma jurídica cuja violação era punida com coima, ser uma norma jurídica de natureza geral (isto é, aplicável a todos os cidadãos enquanto utilizadores da estrada) e de ii) a sanção aplicável à infracção em causa ter um carácter punitivo e dissuasivo ( 9 ) foram consideradas mais importantes. Nos acórdãos Engel e Lutz, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem esclareceu também que existia «acusação em matéria penal» e «infracção» quando a sanção de determinado facto era de tal modo «grave» que devia considerar-se abrangida pela matéria «penal» ( 10 ).

Em suma, as garantias referidas no artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem serão objecto de aplicação quer sempre que um acto é punido pelas autoridades nacionais através de uma sanção prevista no direito penal formal, quer quando se trate de uma regra geral, combinada com sanções de natureza preventiva e repressiva («deterrent and punitive»), quer quando, em razão do seu grau de gravidade («degree of severity»), a sanção de determinado facto deva ser considerada abrangida pela materia» «penal» («the ‘criminal’ sphere»).

10. 

Pensamos que os critérios utilizados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para interpretar as expressões «acusação em matéria penal» e «infracção» na acepção do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem podem ser igualmente utilizados no presente processo com vista a interpretar a expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo». Isto é tanto mais verdade que, sempre que o Tribunal se deva pronunciar sobre a compatibilidade de determinadas sanções nacionais com o direito comunitário, utiliza igualmente critérios uniformes que, embora não assentem na qualificação formal pelo direito nacional, têm em conta o conteúdo destas sanções. O Tribunal exige mais especialmente que as sanções com que o legislador nacional pune as violações do direito comunitário tenham um carácter «efectivo, proporcional e dissuasivo» ( 11 ). De resto, quando o próprio direito comunitário prevê determinadas sanções, por exemplo no artigo 15.° do Regulamento n.° 17 ( 12 ) (a propósito das quais se afirma, no n.° 4, que não têm natureza penal), o legislador comunitário recorre igualmente a sanções administrativas, que não são menos dissuasivas ou menos repressivas do que as sanções penais formais. Isto revela, mais uma vez, que o aspecto essencial não é, pelo menos num primeiro plano, a qualificação formal da sanção, mas sim a sua natureza e o seu grau de gravidade.

De todas estas considerações, que poderemos deduzir que apresente interesse para o presente processo? Em nosso entender, o juiz a quo poderá concluir que existe um «acto passível de procedimento judicial repressivo» em primeiro lugar, quando se trate de um acto que o direito penal nacional aplicável pune formalmente através de uma sanção penal e, em segundo lugar, quando se trate de um acto que viole uma norma geral e que o direito nacional aplicável pune com uma sanção de carácter dissuasivo e punitivo (ou repressivo) tal e/ou caracterizado por um tal grau de gravidade que deve ser equiparado a uma sanção penal formal.

11. 

Contra esta nossa proposta de interpretação da expressão «acto passível de procedimento judicial repressivo», que figura no artigo 3.° do Regulamento n.° 1697/79, tendo em conta o modo como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem interpreta as expressões «acusações em matéria penal» e «infracção» que figuram no artigo artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, poderá objectar-se que este último preceito visa garantir aos particulares uma justiça equitativa e pública (mesmo no caso de um processo administrativo que, finalmente, acaba por dar origem a um processo crime), ao passo que o artigo 3.° do regulamento em causa se destina a estabelecer um prazo de prescrição mais longo em detrimento dos particulares. Ora, parece-nos que este aspecto justifica o recurso a métodos de interpretação diferentes em ambos os casos. Finalmente, em qualquer dos casos, o legislador procura garantir aos cidadãos uma protecção jurisdicional adequada. E também o que se verifica quando uma disposição prevê um prazo de prescrição. O facto de, com vista a determinar a duração do prazo de prescrição, ser necessário ter em conta a gravidade do crime e, portanto, a natureza e a gravidade da sanção, independentemente da sua qualificação formal pelo direito nacional, satisfaz simultaneamente a necessidade de uma protecção jurisdicional adequada e, especialmente, a obrigação de um tratamento igual dos autores de infracções com a mesma gravidade e de um tratamento desigual dos autores de infracções de gravidade diferente.

Conclusão

12.

Por estas razões, sugerimos que o Tribunal responda nos seguintes termos à questão prejudicial:

«O artigo 3.° do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, relativo à cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação que não tenham sido exigidos ao devedor por mercadorias declaradas para um regime aduaneiro que implica a obrigação de pagamento dos referidos direitos, deve ser interpretado no sentido de que a expressão ‘acto passível de procedimento judicial repressivo’ deve abranger i) os actos que o direito aplicável pune através de uma sanção penal formal; ii) os actos que violem as regras de aplicação geral punidos com uma sanção de carácter dissuasivo e punitivo ou repressivo tal e/ou com uma sanção caracterizada por um grau de gravidade tal que deve ser equiparada a uma sanção penal formal».


( *1 ) Língua original: neerlandês.

( 1 ) Regulamento do Conselho de 24 de Julho de 1979 relativo á cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação que não tenham sido exigidos ao devedor por mercadorias declaradas para um regime aduaneiro que implica o pagamento dos referidos direitos (JO L 197, p. 1;EE 02 F6 p. 54).

( 2 ) Ver o artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do regulamento.

( 3 ) Ver o artigo 5.° do regulamento.

( 4 ) Ver o acórdão de 18 de Janeiro de 1984, Ekro/Productschap voor Vee en Vlees, n.° 11 (327/82, Recuei!, p. 107).

( 5 ) Citemos apenas três exemplos. O Regulamento (CEE) n.° 2144/87 do Conselho, de 13 de Julho de 1987, relativo à dívida aduaneira (JO L 201, p. 15), utiliza para a expressão refenda no artigo 2.°, n. 2, «poursuites pénales», respectivamente, «azioni penali», «diligencias penales» e «procedimentos penais». A Directiva 89/592/CEE do Conselho, de 13 de Novembro de 1989, relativa à coordenação das regulamentações respeitantes às operações de iniciados (IO L 334, p. 30), utiliza para a expressão «poursuites judiciaires a caractère pćnal», referida no artico 10.°, n.° 3, respectivamente, «procedimenti giudiziari di carattere penale», «procedimientos judiciales de indole penai» e «processos judiciais de carácter penal». A Directiva 87/344/CEE do Conselho, dc 22 de Junho de 1987, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro de protecção jurídica (JO L 185, p. 77), utiliza para a expressão «procedure pénale» contida no artigo l.°, n.° 1, respectivamente, «procedimento penale», «procedimiento penal» e processo penal».

( 6 ) Ver, a este propósito, o acórdão de 28 de Outubro de 1975, Rutili (36/75, Recueil, p. 1219) que salienta que as limitações da competência dos Estados-membros, em matéria de controlo dos estrangeiros, previstas num texto de direito comunitário, podiam considerar-se compatíveis com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

( 7 ) Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, processo Engel e outros, acórdão de 8 de Junho de 1976/23 de Novembro de 1976, Publicações do Tribunal Europeu dos Direilos do Homem, série A, volume 22, especialmente os n.os 80 e 81.

( 8 ) Acórdão de 21 de Fevereiro de 1984, Publicações do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, série A, volume 73, especialmente os n.os 49 a 54, confirmado pelo acórdão Lutz de 25 Agosto de 1987, ibidem, sére A, volume 123, especialmente os n.os 50 e 55.

( 9 ) Ver os n. 52 e 53 do acórdão.

( 10 ) Ver os n.os 82 e 85 do acórdão Engel tal como foram posteriormente esclarecidos nos acórdãos Öztürk (n.os 54 e 55).

( 11 ) Ver, por exemplo, a acórdão de 10 de Julho de 1990, Hansen & San (C-326/88, Colect., p. I-2911).

( 12 ) Regulamento do Conselho de 6 de Fevereiro de 1962; primeiro regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 FI p. 22).