RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-362/89 ( *1 )

I — Matéria de facto e tramitação processual

1. A regulamentacăo comunitária aplicável

A Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122), é aplicável, nos termos do seu artigo 1.°, n.° 1, «às transferências de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos que resultem de uma cessão convencional ou de fusão».

O primeiro parágrafo do n.° 1 do artigo 3.° da directiva dispõe que «os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência na acepção do n.° 1 do artigo 1.° são, por este facto, transferidos para o cessionário».

Deve salientar-se ainda que, nos termos do n.° 1 do artigo 4.°, «a transferência de uma empresa, estabelecimento ou parte de estabelecimento não constitui em si mesma fundamento de despedimento por parte do cedente ou do cessionário. Esta disposição não constitui obstáculo aos despedimentos efectuados por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças no plano do emprego».

2. A legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal

Por força do artigo 2112.°, n.° 1, do Codice civile (código civil) italiano, «em caso de transferência de estabelecimento, se o alienante não o rescindir em tempo útil, o contrato de trabalho continua com o adquirente e o prestador de trabalho mantém os direitos derivados da antiguidade adquirida anteriormente à transferência».

Contudo, foram introduzidas disposições derrogatórias a esta norma pelo Decreto-Lei n.° 835, de 9 de Dezembro de 1986, na redacção dada pela Lei n.° 19, de 6 de Fevereiro de 1987, cujo artigo 3.° dispõe que: «Em caso de cessão de estabelecimento ou de parte de estabelecimento feita por programa de gestão de empresas sob administração extraordinária... não se aplicam as disposições... do artigo 2112.°, n.° 1, do Codice civile unicamente ao pessoal não transferido na altura...»

O processo de amministrazione straordinaria delle grandi imprese in crisi (administração extraordinária de grandes empresas em crise) foi instituído pelo Decreto-Lei n.° 26, de 30 de Janeiro de 1979, convertido com alterações na Lei n.° 95, de 3 de Abril de 1979. Aplica-se, excluindo o processo de falência, às empresas de grandes dimensões em relação às quais os tribunais declarem o estado de insolvência ou o não pagamento de remunerações durante três meses. A aplicação do processo é decidida por decreto ministerial, sendo executado por um ou três administradores, nomeados e controlados pela autoridade ministerial. O decreto que institui o regime pode autorizar, tendo em conta os interesses dos credores, a prossecução das actividades da empresa durante um período de tempo limitado. O administrador prepara um programa que pode prever um plano de saneamento da empresa. Sem prejuízo do disposto em sentido contrário no decreto-lei de 30 de Janeiro de 1979, o processo de administração extraordinária rege-se pelas normas da legislação italiana relativas à liquidazione coatta amministrativa (liquidação coerciva administrativa) das empresas.

Segundo o juiz de reenvio, o processo de administração extraordinária das grandes empresas em crise tem natureza especial face aos critérios de distinção existentes entre os processos cujo escopo é a liquidação e os destinados à salvaguarda do património do devedor e à prossecução da actividade da empresa. Com efeito, o objectivo primeiro do instituto é o saneamento da empresa, sobretudo em função da manutenção dos postos de trabalho; contudo, a disciplina jurídica foi elaborada como variante de um processo tipicamente liquidatário, que é a liquidação coerciva administrativa. Os aspectos que, segundo o Pretore de Milão, identificam o escopo «conservador» do instituto são os seguintes:

conforme indica a referência ao Decreto-Lei n.° 26/1979, o escopo do instituto é manter as partes substancialmente sãs da empresa ou do grupo de empresas, transferindo a titularidade do empresário insolvente para um novo, para quem, no entanto, se não transferem os débitos;

a empresa em administração extraordinária pode obter das instituições de crédito quantias em dinheiro que serão reembolsadas pelo Estado, garante das mesmas, com o objectivo de reactivação e acabamento de instalações, imóveis e equipamentos industriais;

a tutela do interesse dos credores é menos incisiva que noutros processos de liquidação: em especial, é-lhes vedada qualquer interferência nas decisões relativas à continuação da actividade da empresa e não lhes é dada qualquer garantia de uma análise da conveniência de tal continuação relativamente aos seus interesses;

tanto é privilegiada a hipótese de prossecução da actividade da empresa que a lei não desenvolve a hipótese oposta, e teoricamente possível, nem indica as consequências da impraticabilidade do plano de saneamento, após ter sido determinada a sua prossecução.

3. Os /actos do litígio no processo prìncipal

Os requerentes no processo principal são trabalhadores da sociedade Ercole Marelli Elettromeccanica Generale SpA (a seguir «EMG») sob administração extraordinária. As suas relações de trabalho com a sociedade estão suspensas desde 1985, estando os trabalhadores a cargo da Cassa integrazione guadagni straordinaria (a seguir «CIGS») quanto à totalidade do seu horário de trabalho.

A sociedade EMG bem como outras sociedades do grupo Marelli foram submetidas ao regime de administração extraordinária por decreto do ministro da Indústria de 26 de Maio de 1981, que autorizou a continuação da actividade da empresa.

Em 1985, reestruturadas as outras empresas do grupo, apenas ficou submetida ao processo referido a EMG. Em Setembro de 1985, foi cedida a uma sociedade constituída para o efeito, a Ercole Marelli Nuova Elettromeccanica Generale SpA (a seguir «Nuova EMG»), que posteriormente se cindiu em duas outras sociedades, a ABB Tecnomasio SpA e a ABB Industria Sri.

Nos termos do contrato de cessão e em conformidade com os acordos sindicais com ele relacionados, passaram a depender da sociedade cessionária 940 trabalhadores.

Para os 518 trabalhadores que permaneceram a cargo da cedente, um dos mencionados acordos sindicais previa, além da permanência a cargo da CIGS, vários dispositivos tendo por objecto resolver definitivamente o problema desse excesso de pessoal.

Os requerentes no processo principal, que se encontram ainda subordinados à EMG sob administração extraordinária e cuja relação laboral continua suspensa, requereram ao Pretore de Milão que declare que a sua relação laboral se mantém com a sociedade cessionária desde a data da cessão do estabelecimento a que estavam ligados.

Alegam que lhes deve ser aplicado o disposto no artigo 2112.°, n.° 1, do Codice civile, e não a disposição derrogatória do Decreto-Lei n.° 835/1986.

Tendo em consideração esta argumentação, o Pretore de Milão considerou que, para dirimir o litigio, era necessario interpretar a Directiva 77/187 do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, já refenda.

Por este motivo, por despacho de 23 de Outubro de 1989, decidiu suspender a instância até que o Tribunal de Justiça se pronunciasse sobre as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Se o artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Directiva 77/187, de 14 de Fevereiro de 1977, prevê a transferência automàtica para o cessionàrio das relações de trabalho inerentes ao estabelecimento cedido e existentes à data da sua transmissão?

2)

Se a directiva acima referida se aplica às cessões de estabelecimentos efectuadas por empresas em administração extraordinária?»

4. Tramitação processual no Tribunal

O despacho do Pretore de Milão deu entrada no Tribunal em 17 de Novembro de 1989.

Em conformidade com o artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, foram apresentadas observações escritas pelos requerentes no processo principal, representados por Alfonso Ognibene, advogado no foro de Milão; pelas requeridas no processo principal, representadas por Giacinto Favalli e Salvatore Trifirò, advogados no foro de Milão; pelo Governo francês, representado por Claude Chavance, adido principal de administração central na direcção dos assuntos jurídicos do Ministerio dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente; pelo Governo italiano, representado por Oscar Fiumara, avvocato dello Stato, na qualidade de agente; e pela Comissão das Comunidades Europeias, representada por Giuliano Marenco, consultor jurídico, assistido por Karen Banks, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agentes.

Por carta enviada ao Tribunal em 20 de Maio de 1990, o Governo italiano pediu que, nos termos do artigo 95.° do Regulamento de Processo, o Tribunal decidisse em plenário.

Com base no relatório preliminar do juiz relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

II — Resumo das observações escritas apresentadas ao Tribunal

Os governos francês e italiano e a Comissão das Comunidades Europeias entendem que a primeira questão prejudicial apenas se suscita em caso de resposta afirmativa à segunda questão e que, por conseguinte, é necessário responder a esta antes de responder, se for necessário, àquela.

Tendo em conta estas considerações, devem apresentar-se, antes de mais, as observações relativas à segunda questão prejudicial.

Quanto â segunda questão prejudicial

1.

Os requerentes no processo principal, após uma análise aprofundada da legislação italiana e da sua evolução, alegam que a Lei italiana n.° 19/87 tem por escopo salvaguardar a continuidade da empresa, sendo esta a finalidade de todas as intervenções económicas e fiscais previstas pela lei em favor das empresas em crise. A gestão da empresa em crise é assumida por um ente público, o administrador extraordinário, que tem por objectivo principal o saneamento da estrutura produtiva e a reinserção da empresa no mercado.

E certo, acrescentam os requerentes no processo principal, que o instrumento escolhido pelo legislador italiano é, na medida do possível, baseado em instituições típicas dos processos de concurso de credores. Contudo, à luz da jurisprudência do Tribunal, esse facto é desprovido de importância (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, 135/83, Recueil, p. 469; Industriebond, 179/83, Recueil, p. 511).

Para que melhor se compreendam os efeitos decorrentes da aplicação da Lei n.° 19/87, os requerentes no processo principal pretendem esclarecer nos seguintes termos a situação dos trabalhadores a que diz respeito à transferência do estabelecimento. Na cessão, é transferida a totalidade (ou uma parte autônoma) do estabelecimento. Apenas uma parte dos trabalhadores acompanha o estabelecimento cedido. Os restantes permanecem subordinados ao administrador extraordinário e a sua relação de trabalho mantém-se apenas com o objectivo de lhes permitir beneficiar da CIGS. Uma vez que as funções do administrador extraordinário se limitam à reinserção do estabelecimento no mercado, sobretudo através da sua cessão, a relação laboral dos trabalhadores não transferidos limita-se a uma existência meramente formal. Tendo cessado de existir o estabelecimento cedido, estes trabalhadores não podem voltar a ser utilizados em qualquer actividade produtiva, cessando o seu contrato de trabalho logo que deixem de beneficiar do regime da CIGS. Deste modo, são desvinculados de modo definitivo do estabelecimento precisamente por este ter sido cedido, o que é incompatível com o disposto na directiva (acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, n.° 18).

Por outro lado, os requerentes no processo principal observam que a legislação italiana não regulamenta as modalidades de transferência dos trabalhadores aquando da cessão e, em especial, nada dispõe quanto aos critérios de escolha dos trabalhadores a transferir; também não prevê a consulta prévia das organizações sindicais dos trabalhadores. Esta situação leva os requerentes no processo principal a fazer duas observações. Por um lado, a inexistência de uma obrigação de tratar com as organizações sindicais constitui uma violação do artigo 6.°, n.os 1 e 2, da directiva de 14 de Fevereiro de 1977 (ver o acórdão de 10 de Julho de 1986, Comissão/Itália, 235/84, Colect., p. 2291). Por outro lado, a escolha dos trabalhadores que passam a depender da nova entidade patronal é deixada à discrição do cedente e do cessionário. Os trabalhadores excluídos são vítimas de uma espécie de despedimento colectivo dissimulado que não pode ser equiparado ao despedimento colectivo previsto no artigo 4.°, n.° 1, da directiva, uma vez que elude qualquer possibilidade de controlo jurisdicional tanto quanto à necessidade de eliminação de postos de trabalho como quanto à escolha dos trabalhadores excluídos.

Deste modo, segundo os requerentes no processo principal, a regulamentação italiana é contrária à directiva, a qual também é aplicável aos casos em que o estabelecimento cedido está sujeito ao regime de administração extraordinária. É inútil o Estado italiano sustentar que a regulamentação é legal por razões objectivas atinentes à situação socioeconómica actual do país. Esse argumento foi rejeitado pelo Tribunal (acórdão de 6 de Novembro de 1985, Comissão//Itália, 131/84, Recueil, p. 3531) a propósito do desrespeito da Directiva 75/129/CEE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 1975, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos despedimentos colectivos (JO L 48, p. 29; EE 05 F2 p. 54).

Por ùltimo, os requerentes no processo principal pedem ao Tribunal que se pronuncie no sentido de que a Directiva 77/187 se aplica às cessões de estabelecimentos efectuadas por empresas sujeitas ao regime de administração extraordinária nos termos da Lei n.° 95, de 3 de Abril de 1979.

2.

Segundo as requeridas no processo principal, a interpretação do regime de administração extraordinária feita no despacho de reenvio é incorrecta e aberrante.

Com efeito, a doutrina italiana é unânime em considerar que se trata de um processo de concurso de credores tendo por finalidade a liquidação. Segundo os mais eminentes especialistas na matéria, este processo tem por escopo principal a liquidação, tendo natureza liquidatória ou principalmente liquidatória e, apenas a título subsidiário, conservatória. Se durante um período limitado a liquidação coexiste com a prossecução reputada normal da actividade da empresa em dificuldades, isto deve-se à finalidade de salvaguardar não a empresa mas sim os elementos de produção mediante a sua cessão a terceiros. Deste modo, não se procura realizar o saneamento da empresa mas sim, no caso e na medida em que os objectivos prosseguidos sejam alcançados, obter a simples manutenção dos complexos de produção, com tudo o que lhes é acessório.

No entender das requeridas no processo principal, esta interpretação da lei italiana encontra fundamento no próprio texto, uma vez que remete expressamente para a lei relativa às falências.

Deste modo, as requeridas no processo principal pedem que o Tribunal responda pela negativa à segunda questão prejudicial.

3.

O Governo francês, citando o acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, declara que, se até à data o Tribunal excluiu do âmbito de aplicação do disposto na directiva de 14 de Fevereiro de 1977 a transferência de empresas aquando de falências, não quis excluir do seu âmbito os mecanismos anteriores à falência que têm por objecto a prossecução da actividade, como o redressement judiciaire (processo especial de recuperação de empresas por decisão judicial) em França ou, tanto quanto se possa avaliar à luz do despacho de reenvio, o regime de administração extraordinária em Itália. Por conseguinte, a directiva aplica-se à transferência efectuada no âmbito deste processo, desde que este se efectue por cessão convencional ou fusão.

O Governo francês observa que a sua legislação nacional foi completada a fim de estar em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 1, da directiva. Estão previstas duas excepções ao princípio da transferência para o cessionário das relações de trabalho relativas à empresa cedida e existentes no momento da transferência:

a primeira é relativa à relação triangular em que se verifica uma alteração da entidade patronal sem que os empregadores sucessivos tenham celebrado um acordo entre si;

a segunda diz respeito aos processos de recuperação de empresas e de liquidação por decisão judicial. No termo destes processos e em função dos despedimentos previamente autorizados pelo tribunal de commerce, a nova entidade patronal fica vinculada às obrigações que incumbiam ao antigo empregador relativamente aos trabalhadores cujos contratos subsistam na data da transferência da empresa, desde que exista um acordo celebrado entre a anterior e a nova entidade patronal com vista à cessão ou à fusão das duas empresas.

Por analogia, o Governo francês entende que, embora por natureza o instituto jurídico italiano das sociedades sob administração extraordinária não derrogue o regime instituído pela directiva de 14 de Fevereiro de 1977, se deve considerar que, caso essa situação jurídica leve à cessão convencional ou à fusão da empresa em causa, é aplicável o disposto na directiva.

O Governo francês propõe, por conseguinte, a seguinte resposta:

«A Directiva 77/187 só é aplicável a uma transferência de empresa sob regime de recuperação de empresas por decisão judicial ou de administração extraordinária se a transferência se efectuar por cessão convencional ou fusão entre as empresas cessionária e cedente.»

4.

Após apresentar as características principais do processo de «administração extraordinária das grandes empresas em dificuldade», o Governo italiano observa que a legislação prossegue objectivos de política económica e social evidentes. Trata-se de salvar tanto quanto possível as partes sãs de empresas ou de grupos de empresas pela sua transferência para um novo empresário, de modo a limitar os prejuízos económico e social que a cessação de actividade de empresas de importante dimensão pode ocasionar ao sector de actividade específico, ao nível de emprego, às empresas subcontratantes e, em geral, a toda a economia nacional.

Segundo a jurisprudência do Tribunal (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis e Industriebond, já referidos), as regras impostas pela directiva de 14 de Fevereiro de 1977 não abrangem as transferências «efectuadas no âmbito de um processo de falência que tenha em vista, sob o controlo da autoridade judicial competente, a liquidação dos bens do cedente». Em contrapartida, devem ser aplicadas no caso de transferências efectuadas no decurso de um processo em que o controlo exercido pelo juiz seja de âmbito mais restrito e cujo objectivo seja, «em primeiro lugar, a salvaguarda da massa e, eventualmente, a continuação da actividade da empresa através de uma suspensão colectiva de pagamentos destinada a conseguir um acordo que permita assegurar a actividade da empresa no futuro».

No entender do Governo italiano, para efeitos da directiva, o processo de administração extraordinária deve ser equiparado aos processos de falência pelas seguintes razões: a transferência efectua-se não pela livre vontade das partes, mas no âmbito e por força de um processo de concurso de credores (é indiferente que o processo esteja sob controlo das autoridades administrativas ou do juiz); não se trata de uma transferência para uma simples reestruturação da empresa mas sim de uma transferência imposta pelo estado de insolvência da empresa; o processo é aplicado em substituição ou com exclusão da falência não para salvaguardar o património da empresa mas sim por interesses, mais amplos, de política económica e social.

Por conseguinte, segundo o Governo italiano, deve responder-se do seguinte modo à questão prejudicial:

«A Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, não impõe aos Estados-membros a obrigação de aplicar as regras nela contidas às transferências de empresas, de estabelecimentos ou de partes de estabelecimentos efectuadas no âmbito de um processo de concurso de credores como o de administração extraordinária previsto pela Lei italiana n.° 95, de 3 de Abril de 1979.»

O Governo italiano admite, contudo, que os Estados-membros são livres de aplicar, de modo autónomo, os princípios da directiva na sua legislação.

5.

A Comissão recorda que, na fase pré-contenciosa do processo que conduziu ao acórdão de 10 de Julho de 1986 (processo 235/84, já referido) que declarou o incumprimento da Itália, tinha aceite que a legislação italiana podia derrogar a directiva de 14 de Fevereiro de 1977, desde que essa derrogação se limitasse estritamente às empresas declaradas «em estado de crise», que fosse justificada pela exigência de dar preferência à salvaguarda dos postos de trabalho em relação à protecção dos direitos adquiridos dos trabalhadores relativamente ao cedente e que fosse acompanhada da garantia resultante da necessidade de um acordo prévio das organizações sindicais.

A Comissão recorda ainda que, nas suas observações no acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido), tinha adoptado a mesma lógica ao propor que a directiva fosse interpretada de modo a deixar fora do seu âmbito de aplicação um conjunto de situações relativamente amplo, incluindo os processos de falência e de prevenção da falência. Contudo, o Tribunal apenas partilhou deste entendimento quanto aos processos de falência, declarando a directiva aplicável aos processos de suspensão de pagamentos.

A Comissão recorda por último que propôs uma acção por incumprimento contra a Itália a propósito do artigo 3.° da Lei n.° 19, de 6 de Fevereiro de 1987, por considerar que, na medida em que o processo de administração extraordinária prevê a prossecução da actividade produtiva, a directiva lhe é aplicável e que, deste modo, é incompatível com a directiva a norma que permite uma transferência parcial dos trabalhadores cujo contrato se mantenha em vigor na data da transferência.

Após citar os elementos salientados pelo juiz de reenvio que, no entender deste, testemunham do escopo conservador do processo de administração extraordinária, a Comissão declara pretender esforçar-se por sugerir ao Tribunal uma resposta para uma questão cuja dificuldade resulta do carácter complexo e ambíguo daquele processo.

Alguns aspectos do processo aproximam-no da falência. Assim, a sua aplicação pressupõe uma decisão do juiz declarando o estado de insolvência ou o não pagamento de, pelo menos, três meses de remunerações; o decreto ministerial que institui o regime é equiparado à decisão que aplica a liquidação coerciva administrativa; em geral, este processo está sujeito, em princípio, às regras da liquidação coerciva administrativa, que é um processo de concurso de credores com natureza liquidatória.

Noutros aspectos, é difícil estender ao processo de administração extraordinária o princípio enunciado pelo Tribunal, segundo o qual a falência deve ser excluída do âmbito de aplicação da directiva comunitária. Com efeito, este processo é decidido pelo Governo e a sua aplicação está sob controlo não da autoridade judicial mas sim da autoridade administrativa; em vez de estar necessariamente sujeita a liquidação, a empresa deve ser objecto de um plano de saneamento e a continuação da sua exploração pode ser autorizada durante um período de quatro anos. Na realidade, a administração extraordinária prossegue um duplo objectivo: enquanto possível, manter viva a empresa e, apenas quando isso se revele impossível, liquidá-la, protegendo simultaneamente os credores.

Ao examinar estes diversos elementos à luz do acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, a Comissão observa que:

por um lado, a aplicação cumulada dos critérios de inaplicabilidade da directiva baseados no controlo judicial e no objectivo de liquidação tem por efeito sujeitar à directiva não só a administração extraordinária como também a liquidação coerciva administrativa, não estando esta última sujeita a um controlo judicial mas sim a um controlo administrativo. Ora, a liquidação coerciva administrativa é um processo alternativo à falência e, por conseguinte, deve sofrer o mesmo tratamento quanto ao âmbito de aplicação da directiva. Para alcançar este resultado, deve deduzir-se que, em caso de conflito entre os dois critérios do controlo judicial e do objectivo de liquidação, deve prevalecer o segundo;

por outro lado, se se aplicar à administração extraordinária o critério segundo o qual são abrangidas pela directiva as transferências efectuadas no âmbito de processos destinados a manter viva a empresa e não as inerentes aos processos destinados a extingui-la, é forçoso declarar a impossibilidade de dar a este problema uma solução válida relativamente a todas as fases do processo. Com efeito, por um lado, este processo é iniciado na esperança do saneamento da empresa, o que justifica a possibilidade de autorizar a prossecução temporária da sua actividade e o aproxima, pois, do processo de administração controlada, o qual é comparável, nomeadamente pela moratória que estatui, ao processo de suspensão de pagamentos sujeito à aplicação da directiva pelo acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido; por outro lado, a prossecução do saneamento é apenas uma eventualidade no caso da administração extraordinária, podendo a autorização de continuar a actividade da empresa ser recusada, caducar ou ser revogada.

Segundo a Comissão, deve, por conseguinte, distinguir-se estas duas eventuais fases do processo:

a)

se, e na medida em que seja autorizada a continuação da actividade da empresa, as transferências devem estar totalmente sujeitas aos princípios da directiva;

b)

se, pelo contrário, não for autorizada ab initio a actividade da empresa ou se a autorização inicial caducar ou for revogada, a empresa está sujeita às regras que regulam a liquidação coerciva administrativa, ou seja, a um processo comparável à falência. Neste caso, as transferências eludem o âmbito de aplicação da directiva.

Segundo a Comissão, a esta solução não é possível contrapor o argumento baseado no facto de, ao permitir evitar os despedimentos e manter para os trabalhadores o benefício do regime da CIGS, a derrogação à transferência automática dos contratos ser afinal favorável ao emprego. Este argumento deve ser rejeitado pelas duas seguintes razões: os Estados-membros não podem substituir o sistema da directiva por um outro regime, ainda que mais adequado aos fins prosseguidos; as relações com os trabalhadores inscritos na CIGS podem ser transferidas para o cessionário no estado em que se encontram, não constituindo certamente essa transferência para o cessionário um encargo económico susceptível de comprometer a cessão.

A Comissão propõe, por fim, a seguinte resposta :

«A Directiva 77/187/CEE aplica-se às transferências de empresas, de estabelecimentos ou de partes de estabelecimentos efectuadas no decurso de um processo como o de administração extraordinária, enquanto for autorizada a continuação da actividade da empresa. Em contrapartida, não se aplica em caso de inexistência, de caducidade ou de revogação da referida autorização.»

Quanto à primeira questão prejudicial

1.

Os requerentes no processo principal sustentam que a resposta à primeira questão apenas pode ser afirmativa.

O Tribunal já decidiu nesse sentido, nomeadamente no acórdão de 10 de Fevereiro de 1988, Daddy's Dance Hall (324/86, Colect., p. 739). Além disso, a própria redacção das disposições em causa da directiva de 14 de Fevereiro de 1977 não autoriza uma interpretação diferente, uma vez que, embora se afirme que os direitos e as obrigações emergentes de uma relação de trabalho existente são transferidos do vendedor para o comprador após a transferência, com isto apenas se quer dizer que a relação de trabalho continua sem qualquer interrupção.

2.

Segundo as requeridas no processo principal, o disposto na directiva de 14 de Fevereiro de 1977 não pode ser interpretado num sentido que implique a transferência automática do cedente para o cessionário das relações de trabalho relativas à empresa cedida e existentes no momento da transferência desta empresa.

Tendo em conta a jurisprudência do Tribunal (acórdãos de 10 de Fevereiro de 1988, Daddy's Dance Hall, já referido; de 5 de Maio de 1988, Berg e Besselsen, 144/87 e 145/87, Colect., p. 2559; de 17 de Dezembro de 1987, Ny Mølle Kro, 287/86, Colea., p. 5465), a finalidade da directiva é evitar que, após a transferência do estabelecimento, o trabalhador exerça a sua actividade na empresa do cessionário em condições mais desfavoráveis do que beneficiava na empresa do cedente, e não impor a passagem automàtica ao cessionàrio de todos os trabalhadores em actividade na empresa do cedente.

Interpretar de outra forma a directiva significaria violar todos princípios da livre iniciativa e até a liberdade individual ao impor, em todos os casos de transferência de estabelecimentos, a passagem automática de todas as relações de trabalho do cedente para o cessionário. Além disso, gerar-se-ia uma sobreposição inadmissível e injustificada em relação à autonomia sindical e aos acordos sindicais que, à semelhança do litígio no processo principal, tem por objecto regulamentar, no interesse geral, as modalidades de transferência e o número de trabalhadores transferidos de uma empresa para outra. Por fim, dissuadir-se-ia o cessionário potencial de adquirir a empresa se tivesse que tomar a seu cargo todas as relações de trabalho: deste modo, todos os postos de trabalho correriam o risco de ser suprimidos.

Deste modo, em conformidade com a própria letra da directiva, com a sua fundamentação e com a sua ratio, deve responder-se pela negativa à primeira questão prejudicial.

3.

O Governo francês considera que, nos termos da directiva, a transferência para o cessionário da relação de trabalho relativa à empresa cedida e existente no momento da transferência só é obrigatória em caso de fusão de empresa ou de cessão convencional.

Em direito francês, as disposições do artigo L 122-12 do code du travail (código do trabalho), destinadas a garantir a estabilidade dos postos de trabalho, têm natureza pública e impõem-se aos sucessivos trabalhadores e dirigentes de empresa.

Não obstante, antes da alteração de entidade patronal, um trabalhador pode ser despedido se a tal impuser a reorganização que o futuro empregador pretenda efectuar durante o período de administração provisória. Durante o processo especial de recuperação de empresas por decisão judicial, os despedimentos só podem ser efectuados sob controlo do juiz.

Deste modo, segundo o Governo francês, enquanto não se alterar a situação jurídica da empresa sob administração extraordinária, esta pode despedir os seus trabalhadores. Em contrapartida, a partir da cessão ou da fusão da empresa em causa, é aplicável o disposto no artigo 3.°, n.° 1, da directiva, sendo obrigatória a transferência dos contratos de trabalho.

O Governo francês propõe que o Tribunal dê a seguinte resposta:

«O disposto no artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Directiva 77/187 é aplicável na hipótese de uma cessão convencional ou de uma fusão de empresas sob administração extraordinária.»

4.

O Governo italiano entende que, tendo em conta a resposta que propõe para a segunda questão, é desnecessário responder à primeira.

Não obstante, entende ser útil apresentar as seguintes considerações.

A regra consagrada no artigo 3.°, n.° 1, da directiva de 14 de Fevereiro de 1977 deve ser lida e considerada também em conjugação com o disposto no artigo 4.°, n.° 1. Deste modo, a directiva não impõe de forma absoluta a transferência automática para o serviço do cessionário de todos os trabalhadores ocupados na empresa cedida, uma vez que não exclui que a transferência da empresa possa ser acompanhada por despedimentos fundamentados nas razões enumeradas nessas normas.

Segundo o Governo italiano, o artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 835/1986 estabelece a seguinte regulamentação para os trabalhadores que prestam serviço na empresa cedente: se forem transferidos simultaneamente, passam para o serviço do cessionário mantendo os seus direitos; se não forem transferidos simultaneamente, por serem em número excessivo para o saneamento da empresa cedida, permanecem ao serviço do cedente para continuarem a beneficiar do regime da CIGS e, no fim da concessão deste regime, podem ser despedidos com os mesmos fundamentos que os previstos no artigo 4.°, n.° 1, da directiva. Deste modo, o legislador italiano pretendeu evitar que os trabalhadores não transferidos simultaneamente, na medida em que são em número excessivo, possam perder o seu posto de trabalho devido a um despedimento colectivo de outro modo possível e, aliás, inevitável; ao manterem-se ao serviço da empresa cedente, os trabalhadores podem beneficiar das regalias sociais previstas pela legislação nacional no caso das empresas em crise. Por conseguinte, a regulamentação nacional é mais favorável para os trabalhadores do que a directiva.

Segundo o Governo italiano, a resposta a dar à primeira questão prejudicial deve ser a seguinte:

«A directiva CEE do Conselho de 14 de Fevereiro de 1977 permite a um Estado-membro estabelecer em sede legal, em caso de transferência de estabelecimento, na acepção do artigo l.°, n.° 1, da refenda directiva, a passagem de apenas uma parte dos trabalhadores cujos contratos estejam em vigor na data da transferência, se esta restrição permitir evitar ou atrasar despedimentos por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças no plano do emprego.»

5.

A Comissão considera que, ao falar de transferência «automática» para o cessionário das relações de trabalho com a empresa cedida, o juiz nacional não suscita o problema do efeito directo da directiva de 14 de Fevereiro de 1977. O que este pretende saber é se a directiva considera automática a transferência das relações de trabalho, no sentido de que é ineficaz a vontade expressa manifestada pelas partes a esse respeito.

Segundo a Comissão, o Tribunal já se pronunciou claramente no acórdão de 10 de Fevereiro de 1988, Dadd/s Dance Hall, já referido, quanto ao carácter de ordem pública do artigo 3.°, n.° 1, da directiva e, por isso, quanto à impossibilidade de lhe renunciar e quanto à ineficácia de uma manifestação de vontade das partes em sentido contrário. Esta decisão terá sido confirmada no acórdão de 5 de Maio de 1988, Berg e Besseren, já referido.

A Comissão acrescenta que a transferência ipso jure das relações de trabalho se limita aos contratos existentes na data da transferência (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1985, Wendelboe, 19/83, Recueil, p. 457; Botzen, 186/83, Recueil, p. 519), facto cuja verificação depende em primeira linha do direito nacional (acórdãos de 7 de Fevereiro de 1985, Wendelboe, já referido; 11 de Julho de 1985, Mikkelsen, 105/84, Recueil, p. 2639), e aos trabalhadores afectados à parte transferida da empresa (acórdão 7 de Fevereiro de 1985, Botzen, já referido). Contudo, estas circunstâncias não parecem suscitar dúvidas ao juiz de reenvio, o qual se refere expressamente às relações de trabalho com a empresa cedida existentes no momento da transferência da empresa.

Segundo a Comissão, por conseguinte, deve responder-se deste modo à primeira questão prejudicial:

«O artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da directiva exige a transferência ipso jure para o cessionário das relações de trabalho inerentes ao estabelecimento cedido existentes no momento da transferência deste último, sem que a esse respeito seja eficaz uma eventual manifestação de vontade das partes em sentido contrário.»

F. Grévisse

Juiz relator


( *1 ) Língua do processo: italiano.


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

25 de Julho de 1991 ( *1 )

No processo C-362/89,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Pretore de Milão, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Giuseppe d'Urso, Adriana Ventadorí e outros

e

Ercole Marelli Elettromeccanica Generale SpA (sob administração extraordinária), Ercole Marelli Nuova Elettromeccanica Generale SpA (actualmente ABB Tecnomasio SpA e ABB Industria Sri) e outros,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: O. Due, presidente, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias e M. Diez de Velasco, presidentes de secção, Sir Gordon Slynn, C. N. Kakouris, R. Joliét, F. A. Schockweiler, F. Grévisse e M. Zuleeg, juízes,

advogado-geral: W. Van Gerven

secretário: D. Louterman, administradora principal

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação das requerentes no processo principal, por Alfonso F. Ognibene, advogado no foro de Milão,

em representação das requeridas no processo principal, por Giacinto Favalli e Salvatore Trifirò, advogados no foro de Milão,

em representação do Governo francês, por Claude Chavance, adido principal de administração central no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

em representação do Governo italiano, por Oscar Fiumara, avvocato dello Stato, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Giuliano Marenco, consultor jurídico, assistido por Karen Banks, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações dos requerentes no processo principal, representados por Alfonso Ognibene e Sergio Galleano, advogados no foro de Milão, das requeridas no processo principal, do Governo italiano e da Comissão das Comunidades Europeias, na audiência de 18 de Abril de 1991,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 30 de Maio de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por despacho de 23 de Outubro de 1989, que deu entrada no Tribunal em 17 de Novembro seguinte, o Pretore de Milão submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122, a seguir «directiva»).

2

Estas questões foram submetidas no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, Giuseppe d'Urso, Adriana Ventadori e outros e, por outro, a sociedade Ercole Marelli Elettromeccanica Generale SpA (a seguir «EMG»), sob administração extraordinária, e a sociedade Ercole Marelli Nuova Elettromeccanica Generale SpA (a seguir «Nuova EMG»).

3

Resulta das indicações prestadas no despacho de reenvio que a EMG foi sujeita ao regime designado de administração extraordinária por decreto do ministro da Indústria datado de 26 de Maio de 1981, embora tenha sido autorizada a prosseguir a sua actividade. Em Setembro de 1985, a totalidade da empresa foi cedida à sociedade Nuova EMG, constituída para esse efeito. Nos termos do contrato de cessão e em conformidade com os acordos sindicais a que este se reportava, 940 trabalhadores passaram a depender da cessionária. 518 outros trabalhadores permaneceram a cargo da sociedade cedente; contudo, foi suspensa a relação de trabalho destes últimos, sendo a sua remuneração tomada a cargo pela Cassa integrazione guadagni straordinaria.

4

Os requerentes no processo principal, que fazem parte desses 518 trabalhadores, requereram ao Pretore de Milão que declare que a sua relação de trabalho se mantém com a sociedade cessionária, nos termos do artigo 2112.°, n.° 1, do Codice civile (código civil), o qual estabelece que «em caso de transferência de estabelecimento, se o alienante o não rescindir em tempo útil, o contrato de trabalho continua com o adquirente e o prestador de trabalho mantém os direitos derivados da antiguidade adquiridos anteriormente à transferência».

5

As sociedades requeridas no processo principal contestaram o pedido invocando uma disposição da legislação nacional segundo a qual, no caso de empresas sob administração extraordinária, as disposições acima referidas do Codice civile não se aplicam ao pessoal não transferido no mesmo momento da empresa.

6

Entendendo que a solução do litígio no processo principal implicava a interpretação da directiva, o Pretore de Milão decidiu suspender a instância até que o Tribunal se pronunciasse a título prejudicial sobre as seguintes questões:

«1)

Se o artigo 3.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da directiva prevê a transferência automática para o cessionário das relações de trabalho inerentes ao estabelecimento cedido e existentes à data da sua transmissão?

2)

Se a directiva acima referida se aplica às cessões efectuadas por empresas em administração extraordinária?»

7

Para mais ampla exposição dos factos do litígio no processo principal, da tramitação processual, bem como das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

Quanto à primeira questão prejudicial

8

Através desta questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta se o artigo 3.°, n.° 1, da directiva deve ser interpretado no sentido de que todos os contratos ou relações laborais existentes, à data da transferência de uma empresa, entre o cedente e os trabalhadores afectados a essa empresa, são automaticamente transmitidos para o cessionàrio pelo simples facto da transferencia.

9

Conforme o Tribunal afirmou (acórdão de 5 de Maio de 1988, Berg, n.°s 12 e 13, 144/87 e 145/87, Colect., p. 2559), a directiva tem por objectivo assegurar a manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de mudança de empresário, permitindo-lhes continuar ao serviço do novo empresário nas mesmas condições acordadas com o cedente. As regras aplicáveis em caso de transferência de uma empresa ou de um estabelecimento para outro empresário destinam-se a salvaguardar, no interesse dos trabalhadores, as relações de trabalho existentes que fazem parte do conjunto económico transferido.

10

Resulta também da jurisprudência (acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Botzen, n.° 16, 186/83, Recueil, p. 519) que o artigo 3.°, n.° 1, da directiva engloba os direitos e obrigações que resultam para o cedente de um contrato ou de uma relação laboral existente à data da transferencia e celebrado com os trabalhadores afectados, para exercer funções, à parte transferida da empresa ou do estabelecimento.

11

O Tribunal afirmou ainda, no acórdão de 10 de Fevereiro de 1988, Daddy's Dance Hall, n.° 14 (324/86, Colect., p. 739), que as regras da directiva devem ser consideradas imperativas, no sentido de que não podem ser derrogadas de forma desfavorável para os trabalhadores. Deste modo, a concretização dos direitos conferidos aos trabalhadores pela directiva não pode estar sujeita ao consentimento do cedente ou do cessionário, nem dos representantes dos trabalhadores, nem dos próprios trabalhadores, salvo, no que diz respeito a estes últimos, a possibilidade que lhes é dada, após uma decisão por eles livremente adoptada, de não prosseguir, após a transferência, a relação laboral com o novo empresário (acórdão de 11 de Julho de 1985, Mikkelsen, n.° 16, 105/84, Recueil, p. 2639).

12

Daqui decorre que, em caso de transferência de empresa, o contrato ou a relação laboral que vincula o pessoal afectado à empresa transferida não pode ser mantido com o cedente e continua automaticamente com o cessionário, tendo em consideração que, nos termos da jurisprudência (acórdão de 15 de Junho de 1988, Bork, n.° 17, 101/87, Colect., p. 3057), a existência ou não de um contrato ou de uma relação de trabalho nessa data deve ser apreciada à luz do direito nacional.

13

Para contestar essa interpretação da directiva, as requeridas no processo principal e o Governo italiano apresentaram ao Tribunal três tipos de argumentos.

14

Em primeiro lugar, sustentaram que, ao ser interpretada desse modo, a directiva viola a liberdade de iniciativa.

15

A este respeito, deve observar-se que essa violação é inerente ao próprio objecto da directiva que pretende, no interesse dos trabalhadores, transferir para o cessionário as obrigações decorrentes dos contratos ou das relações laborais.

16

Em segundo lugar, esta interpretação da directiva levaria, em casos como o do litígio no processo principal, a pôr em causa acordos celebrados com as organizações sindicais e relativos às modalidades de transferência e ao número de trabalhadores transferidos.

17

Este argumento não pode ser tomado em consideração, na medida em que, conforme foi indicado anteriormente, as regras da directiva se impõem a quaisquer pessoas, incluindo aos representantes sindicais dos trabalhadores, que as não podem derrogar por via de acordos celebrados com o cedente ou o cessionário.

18

Em último lugar, foi alegado que uma interpretação da directiva que conduz a impedir a manutenção ao serviço do cedente dos trabalhadores em excesso da empresa pode ser menos favorável a estes últimos, quer porque um potencial cessionário pode ser dissuadido de adquirir a empresa se tiver que manter o pessoal em excesso da empresa transferida, quer porque esse pessoal pode ser despedido, perdendo assim as regalias que eventualmente poderia obter da prossecução das suas relações laborais com o cedente.

19

Contra esta argumentação, deve recordar-se que, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, a directiva proíbe, é certo, que a transferência constitua em si mesma um motivo de despedimento para o cedente ou para o cessionário mas, em contrapartida, «não constitui obstáculo aos despedimentos efectuados por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças no plano do emprego». Deve acrescentar-se que a direttiva também não constitui obstáculo a que, se, a fim de evitar na medida do possível despedimentos, uma regulamentação nacional consagrar em favor do cedente disposições que permitam reduzir ou suprimir os encargos ligados ao emprego dos trabalhadores em excesso, estas normas se apliquem, após a transferência, em favor do cessionário.

20

Por conseguinte, deve responder-se à primeira questão prejudicial que o artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 77/187 do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, deve ser interpretado no sentido de que todos os contratos ou relações laborais existentes, à data da transferência de uma empresa, entre o cedente e os trabalhadores afectados à empresa transferida, são transmitidos ipso jure ao cessionário pelo simples facto da transferência.

Quanto à segunda questão prejudicial

21

Resulta do texto e dos fundamentos do despacho de reenvio que, através desta questão, o Pretore de Milão pretende saber se a directiva é, utilizando os termos do seu artigo 1.°, n.° 1, «aplicável às transferências de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos que resultem de uma cessão convencional ou de fusão que impliquem mudança de empresário», quando a empresa interessada seja regulada por disposições do tipo das do Decreto-Lei n.° 26, de 30 de Janeiro de 1979, relativo às medidas de urgência para a administração extraordinária das grandes empresas em crise (GURI n.° 36 de 6.2.1979), convertido com alterações na Lei n.° 95, de 3 de Abril de 1979 (GURI n.° 94 de 4.4.1979).

22

Para responder a esta questão, devem recordar-se as distinções estabelecidas pelo Tribunal, nomeadamente, no acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis (135/83, Recueil, p. 469) e, aliás, sucintamente resumidas pelo Pretore de Milão.

23

O Tribunal afirmou que a directiva não se aplicava às transferências efectuadas no âmbito de um processo de falência que tenham em vista, sob controlo da autoridade judicial competente, a liquidação dos bens do cedente. Baseou esta conclusão na inexistência, na directiva, de uma disposição expressa relativa à falência (n.° 17); na finalidade da directiva, que é impedir que a reestruturação no interior do mercado comum se efectue em prejuízo dos trabalhadores das empresas a que diz respeito (n.° 18); e no risco sério de uma deterioração, no plano global, das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores, contrariamente aos objectivos sociais do Tratado (n.° 23), caso a directiva se aplicasse às transferências efectuadas no curso um processo de falência.

24

No mesmo acórdão, em contrapartida, o Tribunal afirmou que a directiva é aplicável a um processo do tipo da «surséance van betaling» (suspensão de pagamentos), embora este apresente certas características comuns ao processo de falência. Com efeito, o Tribunal entendeu que as razões que justificam a inaplicabilidade da directiva no caso de processos de falência não são válidas quando o processo em causa inclua uma fiscalização do juiz de alcance mais restrito do que na falência e quando o seu objectivo seja, em primeiro lugar, a salvaguarda do património e, eventualmente, a continuação da actividade da empresa através de uma suspensão colectiva de pagamentos destinada a conseguir um acordo que permita assegurar a actividade da empresa no futuro (n.° 28).

25

Deve observar-se que se, no n.° 28, o acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, menciona o alcance da fiscalização exercida pelo juiz sobre o processo, esta referência, explicada pela dificuldade, exposta no n.° 12 do acórdão, de definir o conceito de cessão convencional, na acepção do artigo 1.°, n.° 1, da directiva, tendo em conta as diferenças entre os sistemas jurídicos dos Estados-membros, não permite, conforme indica de resto o acórdão no n.° 13, fixar o alcance da directiva com base unicamente na interpretação literal desse conceito de cessão convencional nem, por conseguinte, determinar o seu âmbito de aplicação segundo a natureza da fiscalização exercida pela autoridade administrativa ou judicial sobre as transferências de empresas no âmbito de um determinado processo de concurso de credores.

26

A luz de todas as considerações desenvolvidas pelo Tribunal no acórdão Abels, o critério determinante a tomar em consideração é, por conseguinte, o do objectivo prosseguido pelo processo em causa.

27

A lei italiana de 3 de Abril de 1979 prevê a aplicação por decreto do regime de administração extraordinária às empresas por ela indicadas. Nos termos desta lei, o decreto comporta ou pode comportar dois tipos de efeitos.

28

Por um lado, para a aplicação «com todos os efeitos» da lei relativa à falência, deve ser equiparado ao decreto que ordena a liquidação coerciva administrativa prevista pelos artigos 195.° e seguintes e pelo artigo 237.° da lei relativa à falência. Resulta de todas estas últimas disposições que, sem prejuízo das suas especificidades, a liquidação coerciva administrativa tem efeitos que, em substância, são os da falência.

29

Por outro lado, o decreto que decida aplicar o regime de administração extraordinária também pode decidir a prossecução da actividade da empresa sob a direcção de um administrador durante um período cujas modalidades de cálculo são definidas na lei. Segundo o artigo 2.° da lei de 3 de Abril de 1979, faz parte das atribuições desse administrador estabelecer um programa cuja execução deverá ser autorizada pela autoridade de fiscalização que deve incluir, na medida do possível e tendo em conta os interesses dos credores, um «plano de saneamento, compatível com as grandes linhas de política industrial, com indicação específica das instalações a reactivar e daquelas a encerrar, bem como das instalações e estabelecimentos das empresas a transferir».

30

Resulta do que precede que uma legislação como a lei italiana relativa à administração extraordinária das grandes empresas em crise apresenta características diferentes consoante o decreto que ordene a liquidação coerciva administrativa decida ou não a prossecução da actividade da empresa.

31

Não existindo uma decisão quanto a este último ponto ou cessando de vigorar a decisão que autorizou a prossecução da actividade da empresa, o objectivo, as consequências e os riscos de um processo como a liquidação coerciva administrativa são semelhantes aos que levaram o Tribunal a concluir no acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, que o artigo 1.°, n.° 1, da directiva se não aplicava às transferências de uma empresa, de um estabelecimento ou de uma parte de estabelecimento quando o cedente tenha sido declarado falido. A semelhança da falência, este processo tem por objectivo a liquidação dos bens do devedor com vista ao pagamento dos credores em geral, sendo, por conseguinte, as transferências operadas nesse quadro jurídico excluídas do âmbito de aplicação da directiva. Conforme observou o Tribunal no acórdão de 7 de Fevereiro de 1985, Abeis, já referido, se não se operar essa exclusão, não é possível afastar o risco sério de uma deterioração, no plano global, das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores, contrariamente aos objectivos do Tratado.

32

Em contrapartida, resulta do disposto na lei italiana que, quando o decreto que aplica o regime de administração extraordinária decida também a prossecução da actividade da empresa, sob direcção de um administrador, em regime de administração extraordinária, o objectivo deste processo é, em primeiro lugar, conferir à empresa um equilíbrio que permita assegurar a sua actividade no futuro. O objectivo económico e social assim prosseguido não explica nem justifica que, quando a empresa em causa seja objecto de uma transferência total ou parcial, os seus trabalhadores sejam privados de direitos que lhes são reconhecidos pela directiva nas condições que esta estipula.

33

A este respeito, o juiz nacional observa, nomeadamente no seu despacho de reenvio, que os considerandos do Decreto-Lei n.° 26/1979 afirmam que o escopo do processo é manter as partes substancialmente sãs da empresa, que a empresa sob administração extraordinária pode obter créditos cujo reembolso é garantido pelo Estado e que são destinados à reactivação e ao acabamento de instalações, imóveis e equipamentos industriais, e que, por último, no processo de administração extraordinária, a tutela dos interesses dos credores é menos incisiva que noutros processos de liquidação, sendo-lhes, em especial, vedada qualquer interferência nas decisões relativas à continuação da actividade da empresa.

34

Por conseguinte, deve responder-se à segunda questão prejudicial que o artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 77/187 do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, não se aplica às transferências de empresas efectuadas no âmbito de um processo de concurso de credores do tipo do consagrado pela legislação italiana sobre «liquidazione coatta amministrativa» (liquidação coerciva administrativa), à qual se refere a lei de 3 de Abril de 1979 relativa à administração extraordinária das grandes empresas em crise. Em contrapartida, as mesmas disposições da referida directiva aplicam-se sempre que, no quadro de um conjunto de disposições como as que regulam a administração extraordinária das grandes empresas em crise, a prossecução da actividade da empresa tenha sido decidida e enquanto esta última decisão permanecer em vigor.

Quanto às despesas

35

As despesas efectuadas pelo Governo francês, pelo Governo italiano e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Pretore de Milão, por despacho de 23 de Outubro de 1989, declara:

 

1)

O artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos, deve ser interpretado no sentido de que todos os contratos ou relações laborais existentes, à data da transferência de uma empresa, entre o cedente e os trabalhadores afectados à empresa transferida, são transmitidos ipso jure ao cessionário pelo simples facto da transferência.

 

2)

O artigo l.°, n.o 1, da Directiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, não se aplica às transferências de empresas efectuadas no ámbito de um processo de concurso de credores do tipo do consagrado pela legislação italiana sobre «liquidazione coatta amministrativa» (liquidação coerciva administrativa), à qual se refere a lei de 3 de Abril de 1979 relativa à administração extraordinária das grandes empresas em crise. Em contrapartida, as mesmas disposições da referida directiva aplicam-se sempre que, no quadro de um conjunto de disposições como as que regulam a administração extraordinária das grandes empresas em crise, a prossecução da actividade da empresa tenha sido decidida e enquanto esta última decisão permanecer em vigor.

 

Due

Mancini

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Diez de Velasco

Slynn

Kakouris

Joliét

Schockweiler

Grévisse

Zuleeg

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 25 de Julho de 1991.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente

O. Due


( *1 ) Língua do processo: italiano.