RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-348/89 ( *1 )

I — Enquadramento jurídico

1.

O pedido introduzido junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto tem por objecto o controlo da legalidade de uma cobrança a posteriori de direitos de importação que não foram exigidos ao devedor, em relação a mercadorias declaradas para um regime aduaneiro comportando a obrigação de pagar tais direitos.

2.

O artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 dispõe que

«sempre que as autoridades aduaneiras verifiquem que a totalidade ou parte do montante dos direitos de importação... legalmente devidos por uma mercadoria declarada para um regime aduaneiro que implica a obrigação de pagar os referidos direitos, não foi exigida ao devedor, darão início a uma acção para cobrança dos direitos não recebidos».

Esta disposição formula o princípio geral da obrigação de cobrança dos direitos legalmente devidos e não recebidos. A sua justificação consta da fundamentação do regulamento de acordo com a qual o «caracter essencialmente econômico dos direitos de importação ou dos direitos de exportação em vigor na Comunidade» (primeiro considerando) não é compatível com insuficiências de cobrança que teriam consequências prejudiciais para a economia comunitária.

3.

Esta regra geral sofre duas excepções: a impossibilidade de as autoridades aduaneiras procederem à cobrança dos direitos a posteriori (artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1697/79) ou a possibilidade de as autoridades aduaneiras se coibirem da cobrança a posteriori (artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79).

Nos termos desta última disposição,

«as autoridades competentes podem não proceder à cobrança a posteriori do montante dos direitos de importação ou dos direitos de exportação que não tenham sido cobrados em consequência de um erro das próprias autoridades competentes, que não podia razoavelmente ser detectado pelo devedor, tendo este, por seu lado, agido de boa-fé e cumprido todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor no que respeita à declaração para a alfândega».

4.

A decisão de não proceder à cobrança cabe às autoridades dos Estados-membros ou à Comissão das Comunidades Europeias, consoante o montante dos direitos seja inferior ou superior a 2000 ecus [artigos 2° e 4.° do Regulamento (CEE) n.° 1573/80].

II — Matéria de factos e tramitação processual

5.

A recorrente no processo principal — a sociedade importadora Mecanarte — Metalúrgica da Lagoa (a seguir «Mecanarte») — comprou a um seu fornecedor na República Federal da Alemanha, Schmolz & Bickenbach, uma partida de 42 atados de chapa de aço laminada a quente e apresentou às autoridades aduaneiras portuguesas um certificado de circulação das mercadorias, modelo EUR 1 n.° D 790072, emitido em Dusseldórfia em 18 de Fevereiro de 1986, que indicava que estas mercadorias eram originárias da República Federal da Alemanha.

6.

Como as mercadorias foram declaradas em proveniência da República Federal da Alemanha, foi-lhes aplicado o regime comunitário e foram classificadas nas posições pautais 73.13.230.100 j e 73.13.260.000 t e importadas com isenção dos direitos aduaneiros.

7.

Por carta de 29 de Março de 1988, o serviço de controlo aduaneiro de Dusseldórfia comunicou à Direcção-Geral das Alfândegas Portuguesas que o certificado EUR 1 n.° D 790072 tinha sido anulado porque tinha sido indevidamente emitido pela sociedade Schmolz & Bickenbach, e que os produtos de aço laminado designados no certificado eram originários da República Democrática Alemã e não da República Federal da Alemanha.

8.

Na sequência desta comunicação, a estância aduaneira do Porto procedeu, por intermédio do seu Serviço da Conferência Final, à liquidação a posteriori de direitos num montante de 3611599 ESC, a cargo da sociedade importadora Mecanarte.

9.

Contra o aviso de liquidação, confirmado pela decisão do director das Alfândegas do Porto, que rejeitava um pedido da Mecanarte de que o processo fosse remetido à Comissão das Comunidades Europeias para que esta decidisse a não cobrança a posteriori dos direitos em causa, a Mecanarte interpôs recurso de anulação perante o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto.

10.

O Tribunal considerou que o recurso contencioso que lhe era submetido suscitava certas questões de interpretação e de validade do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79, bem como de interpretação do artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80.

11.

Em consequência, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto, por despachos de 16 de Outubro e de 7 de Novembro de 1989, registados na Secretaria do Tribunal em 15 de Novembro de 1989, suspendeu a instância e colocou ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, as seguintes questões prejudiciais:

«a)

O artigo 5.°, n.° 2, primeiro parágrafo (parte inicial), do Regulamento (CEE) n.° 1697/79, do Conselho de 24 de Julho de 1979 — as autoridades competentes podem não proceder à cobrança — concede a esssas autoridades um poder discricionário ou um poder-dever?

b)

Se concede um poder discricionário em matéria de tributação, essa parte da norma será inválida por violação dos princípios da legalidade tributária, da igualdade dos agentes económicos, de não discriminação e da proibição de arbítrio (artigos 7.° e 28.° do Tratado CEE e artigo 4.° do Tratado CECA)?

c)

Para efeitos do disposto no artigo 5.°, n.° 2, deve entender-se por erro apenas o de cálculo ou de transcrição, ou também os erros induzidos pelo devedor?

d)

O erro relevante é apenas o cometido pelas próprias autoridades competentes para a cobrança a posteriori, ou pode ser um erro cometido pelas autoridades do país de exportação da mercadoria, se este também pertencer às Comunidades Europeias?

e)

Quando o devedor, de boa-fé, fornecer à alfândega elementos de tributação inexactos ou incompletos — como é aquele que respeita à origem da mercadoria — estará, ainda assim, a cumprir todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor no que respeita à declaração para a alfândega, como o artigo 5.°, n.° 2, in fine, exige?

f)

A competência da Comissão atribuída pelo artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980, quanto a montantes superiores a 2000 Ecus, abrange todas as decisões (de cobrança ou não cobrança) ou só as decisões de não cobrança?

g)

Num ordenamento constitucional como o português, que consagra o princípio da primazia do direito internacional sobre o direito interno, a violação do direito comunitário derivado pelo direito interno configura um caso de inconstitucionalidade que dispense o reenvio prejudicial imediato para interpretação do direito comunitário?

h)

Aceitando-se que a decisão de cobrança pertence às autoridades aduaneiras nacionais, no caso de o devedor fazer um requerimento fundamentado de decisão de não cobrança, deve tal requerimento ser apreciado pela Comissão, a fim de esta se decidir ou não pela não cobrança, ou podem as autoridades aduaneiras nacionais decidirem por si esse requerimento?»

12.

Em conformidade com o artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, foram apresentadas observações escritas:

em 9 de Fevereiro de 1990, pelo Governo português, representado por Luís Inês Fernandes, director dos Serviços de Assuntos Jurídicos da Direcção-Geral das Comunidades Europeias, e por Maria Luísa Duarte, consultora dos Serviços de Assuntos Jurídicos da Direcção-Geral das Comunidades Europeias;

em 9 de Abril de 1990, pelo Ministério Público, representado por Isabel Aguiar;

em 14 de Fevereiro de 1990, pela sociedade importadora Mecanarte, representada por Ricardo Garção Soares e Adriano Garção Soares, advogados no Porto;

em 21 de Fevereiro de 1990, pelo Conselho das Comunidades Europeias, representado por Bjarne Hoff-Nielsen, chefe de divisão, e Amadeu Lopes-Sabino, administrador principal do Serviço Jurídico do Conselho das Comunidades Europeias, na qualidade de agentes;

em 20 de Fevereiro de 1990, pela Comissão das Comunidades Europeias, representada por Jörn Sack e Herculano Lima, seus consultores jurídicos, na qualidade de agentes.

13.

O Tribunal, com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, decidiu, em conformidade com o artigo 95.° do Regulamento de Processo, remeter o processo para a Terceira Secção e dar início à fase oral sem instrução prévia.

III — Observações escritas apresentadas ao Tribunal

1. Sobre a primeira questão

14.

O Governo português, o Ministério Público, o Conselho e a Comissão defendem que as autoridades nacionais exercem no âmbito do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 uma competência vinculada de apreciação. A Mecanarte não toma uma posição definitiva sobre esta questão, mas não exclui que o artigo 5.°, n.° 2, do referido regulamento conceda às autoridades nacionais um poder discricionário.

15.

a)

O Governo português defende que o artigo 5.° do Regulamento n.° 1697/79 consagra uma excepção ao princípio geral do artigo 2.°, n.° 1, do mesmo regulamento visando a obrigação de cobrar os direitos aduaneiros legalmente devidos e não cobrados fazendo-o no respeito dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé do devedor. O respeito destes valores, a própria ratio legis da disposição, está em contradição com a atribuição às autoridades nacionais do poder de decidir cobrar ou não cobrar os direitos, desde que estejam preenchidas as condições previstas por esta disposição. O Governo português recorda neste contexto que o Tribunal de Justiça no acórdão de 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost (314/85, Colect., p. 4199), considerou que a disposição do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 deve ser interpretada no sentido de que o devedor tem direito a que não seja efectuada a cobrança desde que estejam preenchidas todas essas condições. Se o devedor tem direito à não cobrança dos direitos uma vez verificadas todas as condições, as autoridades nacionais exercem, segundo o Governo português, no quadro do artigo 5.°, n.° 2, uma competência vinculada de apreciação. Segundo o Governo português, o emprego do termo «podem» ficou-se a dever a uma exigência de técnica legislativa que levou à contraposição do artigo 5.°, n.° 1, «nenhuma acção para cobrança pode ser iniciada» com o n.° 2 «as autoridades competentes podem não proceder à cobrança a posteriori*. O n.° 1 consagra uma verdadeira impossibilidade legal de cobrança a posteriori, enquanto o n.° 2 aponta duas soluções possíveis, das quais uma é a de que autoridades nacionais não podem proceder à cobrança se se verificarem, de forma cumulativa, as condições previstas por esta disposição.

16.

Segundo o Ministério Público português o «poder» evocado no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 deve ser considerado um poder-dever limitado, por um lado, pela obrigação geral de cobrança a posteriori consagrada no artigo 2.° do mesmo regulamento e, por outro, pelo direito do devedor à não cobrança a posteriori quando estejam reunidas as condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, daquele regulamento.

17.

b) O Conselho alega que o poder das autoridades concedido no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 continua dependente da verificação das condições exigidas para não proceder à cobrança. Estas condições possuem carácter objectivo cuja verificação pode ser controlada pelos sujeitos de direito e, eventualmente, constituir materia de recurso para as instancias judiciais. Segundo o Conselho, não parece, pois, adequado falar de «poder discricionário», uma vez que a legalidade das medidas adoptadas pelas autoridades competentes pode, sob o ângulo das condições exigidas para não proceder à cobrança, ser submetida à apreciação do juiz.

18.

O Conselho acrescenta que a diferença de formulação entre o n.° 2 — «As autoridades competentes podem não...»— e o n.° 1 — «Nenhuma acção para cobrança pode ser iniciada...»— se deve ao facto de o Conselho ter habilitado a Comissão a determinar a aplicação do n.° 2 (ver segundo parágrafo do n.° 2).

19.

Na opinião do Conselho, esta interpretação assegura o respeito dos princípios de segurança-jurídica e de confiança legítima, nos termos dos quais a legislação comunitária deve ser clara e previsível para os sujeitos de direito tendo, além disso, sido consagrada pelo Tribunal no processo Foto-Frost (314/85, já referido).

20.

Em conclusão, o Conselho sugere ao Tribunal que responda do seguinte modo à primeira questão:

«O n.° 2, primeiro parágrafo (parte inicial), do artigo 5.° do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, formula três condições precisas para que as autoridades competentes possam não proceder à cobrança a posteriori. Esta disposição deve pois ser interpretada no sentido de que, desde que se encontrem preenchidas todas essas condições, o devedor tem direito a que não se proceda à cobrança.»

21.

c) A Comissão refere-se à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça de acordo com a qual o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 «deve ser interpretado no sentido de que, desde que as três condições nele enunciadas se mostrem preenchidas, o devedor tem o direito a que se não proceda à cobrança a posteriori» (acórdãos de 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost, 314/85, já referido; de 23 de Maio de 1989, Top Hit, 378/87, Colect., p. 1359 e de 12 de Julho de 1989, Binder, 161/88, Colea., p. 2415). A luz desta jurisprudência, a Comissão considera que, desde que verificadas as condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, a autoridade nacional deixa de dispor da faculdade de exigir a cobrança a posteriori.

22.

d) A Mecanarte considera que não existem inconvenientes em admitir a existência de um poder discricionário no artigo 5.°, n.° 2, já que o mesmo deve ser exercido por uma única entidade em relação ao espaço comunitário, a Comissão das Comunidades Europeias. Esse poder discricionário não é absoluto, antes tem fortes aspectos de vinculação, quais sejam os que obrigam ao preenchimento dos requisitos que o artigo 5.°, n.° 2, taxativamente enumera.

2. Quanto à segunda questão

23.

a) O Governo português, o Ministério Público, o Conselho e a Comissão observam que tendo em conta a resposta à primeira questão, a segunda não tem objecto.

24.

O Conselho alega que de qualquer modo o artigo 5.°, n.° 2, não constitui uma violação dos princípios mencionados pelo juiz nacional visto todos os agentes económicos estarem sujeitos à mesma regulamentação e a apreciação dos factos ser obrigatoriamente controlada pela Comissão que decidirá finalmente a tal propósito.

25. b)

A Mecanarte sublinha que não haverá poder discricionário intolerável na medida em que a decisão de cobrança ou de não cobrança cabe sempre à Comissão. Deste modo, tal interpretação não corre o risco, segundo a Mecanarte, de ser incompatível com a protecção dos princípios mencionados pelo juiz nacional.

3. Sobre a terceira questão

26.

a) O Governo português, o Ministério Público e a Comissão são de parecer que o termo «erro», na acepção do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79, abrange todo o erro cometido pelas próprias autoridades competentes, não se limitando apenas aos erros de cálculo ou transcrição.

27.

Consideram, no entanto, no que diz respeito à natureza do erro que é pertinente para efeitos da cobrança a posteriori, que apenas oskrros «activos» da administração nacional podem ser tomados em consideração para justificar a não cobrança. Devem, em consequência, ser afastados todos os casos em que os próprios agentes da administração são vítimas de um erro cometido por outras pessoas. Em tal caso nenhuma confiança legítima pode resultar do comportamento da administração, dado que esta confiança se deve basear sempre num comportamento da administração pública adoptado com perfeito conhecimento de causa.

28.

b) Segundo a Mecanarte, a terceira questão está intimamente ligada à da existência de boa-fé por parte do devedor. A este respeito, a Mecanarte considera que se este presta as declarações que levam à errada classificação de boa fé, induzindo em erro as autoridades alfandegárias mas sem intenção de provocar esse erro, tal actuação não poderá retirar-lhe o direito a beneficiar de uma decisão de não cobrança. Em tal caso o facto de ter ou não partido de si o fornecimento dos elementos que levaram as referidas autoridades a errar é indiferente.

29.

c) O Conselho não se pronunciou sobre esta questão.

4. Sobre a quarta questão

30.

a) O Governo português considera que «a autoridade competente do Estado-membro onde tiver sido cometido o erro que conduziu à cobrança de um montante insuficiente» a que se referem expressamente os artigos 2.° e 3.° do Regulamento n.° 1573/80 só pode ser aquela que procedeu, ou deveria proceder, à operação de cobrança. A natureza de norma excepcional do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 impede, segundo o Governo português, uma interpretação extensiva que alargue o erro relevante a comportamentos das autoridades alfandegárias do outro Estado-membro, nomeadamente o Estado de exportação.

31.

b) O Ministério Público, a Mecanarte e a Comissão defendem que o erro pertinente para a aplicação do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 abrange o erro cometido tanto pelas próprias autoridades competentes para a cobrança a posteriori como pelas do Estado-membro exportador da mercadoria.

32.

Segundo a Mecanarte tal decorre do simples facto de que se a primeira estância aduaneira errar a segunda cometerá automaticamente o mesmo erro.

33.

A Comissão observa que a sua interpretação sobre este ponto é confirmada pelo artigo 2.° do Regulamento (CEE) n.° 2380/89 da Comissão, de 2 de Agosto de 1989 (JO L 225, p. 30), que substituiu, a partir de 1 de Setembro de 1989, o Regulamento n.° 1573/80 e que especifica que se pode tratar da autoridade competente do Estado-membro no qual o erro foi cometido, mas também da autoridade do Estado-membro onde o erro foi constatado. Referindo que esta precisão não existia nas disposições de execução do Regulamento n.° 1573/80 em vigor no momento da decisão tomada pelas autoridades alfandegárias portuguesas, a Comissão sublinha que ela não teve por objectivo modificar o sentido dó n.° 2 do artigo 5.° do Regulamento n.° 1697/79, mas antes confirmá-lo, abrangendo todo o erro das autoridades nacionais, quer elas estejam na origem do erro, quer elas se limitem a constatá-lo no momento da cobrança a posteriori.

34.

c) O Conselho não se pronunciou sobre esta questão.

5. Sobre a quinta questão

35.

O Governo português, o Ministério Público, a Mecanarte e a Comissão defendem que o artigo 5.°, n.° 2, in fine, do Regulamento n° 1697/79 se aplica à situação em que o devedor praticou todas às exigências legais em relação à declaração, ainda que tenha fornecido, de bóa-fé, elementos inexactos ou incompletos às autoridades competentes. O Conselho não se pronunciou sobre esta questão.

36.

a) O Governo português refere-se ao acórdão do Tribunal de Justiça no processo Foto-Frost (314/85, já referido), em que o Tribunal considerou que a referida condição do artigo 5.°, n.° 2, se verificava na medida em que o operador económico tinha preenchido correctamente a declaração para a alfândega. Segundo o Governo português o preenchimento desta condição não fica prejudicado, mesmo por casos em que o devedor, de boa-fé, forneceu à alfândega elementos inexactos ou incompletos.

37.

b) A Mecanarte alega que a exigência do respeito de «todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor» visa, para além de assegurar que o devedor haja sido diligente na sua actividade, que não tenha resultado de falta sua o erro que deu origem à não cobrança das imposições. Daqui resulta, segundo a Mecanarte, que se o devedor prestar uma falsa informação, mas não o fizer por má fé ou por negligência, terá direito a beneficiar de isenção de pagamento.

38.

c) A Comissão sublinha, a título liminar, que a boa f é e o respeito das «disposições previstas pela regulamentação em vigor relativamente à declaração para a alfândega» constituem duas condições distintas postas pelo artigo 5.°, n.° 2, e que devem ser apreciadas separadamente.

39.

Nó que respeita à condição «respeito das disposições previstas pela regulamentação em vigor», a Comissão refere-se à jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual esta regulamentação abrange, ao mesmo tempo, as regras comunitárias e as regras nacionais que as completam ou as transpõem.

40.

Na medida em que as mercadorias são declaradas para a introdução em livre prática, como no caso concreto, os elementos foram especificados pela Directiva 79/695/CEE do Conselho, de 24 de Julho de 1979, e a sua Directiva de execução 82/57/CEE da Comissão, de 17 de Dezembro de 1981, que visam uma declaração de colocação em livre prática, assim como os documentos que a ela devem ser juntos.

41.

Na opinião da Comissão, estas exigências não podem ir além dos dados e dos documentos que o declarante pode razoavelmente conhecer e que ele pôde obter, seja qual for o regime aduaneiro em causa.

42.

No que respeita à boa-fé do devedor, a Comissão considera que o artigo 5.°, n.° 2, perderia todo o seu efeito útil se a autoridade que cometeu ou constatou o erro pudesse rejeitar o pedido de não cobrança com o fundamento de que o declarante havia fornecido informações ou documentos inexactos, quando essa inexactidão resultasse do próprio erro e não fosse imputável ao declarante.

6. Sobre a sexta questão

43.

a) O Governo português e o Ministério Público consideram que da conjugação do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 com os artigos 2.° e 4.° do Regulamento de execução n.° 1573/80 resulta que o legislador comunitário apenas previu a intervenção da Comissão no caso de as autoridades competentes terem dúvidas sobre a decisão de não cobrança, o que corresponde à necessidade da certeza jurídica e da uniformidade na aplicação do artigo 5.°, n.° 2, e no caso de dívidas aduaneiras iguais ou inferiores a 2000 ecus, o que se justifica pela importância da quantia em jogo e pelos seus reflexos na economia comunitária. Segundo o Governo português, este entendimento é corroborado pelo artigo 8.° do Regulamento n.° 1573/80 que prevê o deferimento tácito do pedido de não cobrança sempre que a Comissão não tome uma decisão no prazo legal.

44.

b) A Comissão observa, antes do mais, que constitui prática corrente nos Estados-membros só submeter à Comissão as decisões a tomar ao abrigo do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 quando o montante dos direitos a cobrar a posteriori ultrapassa os 2000 ecus e o pedido do interessado é considerado justificado pela administração nacional.

45.

A Comissão considera que esta prática se justifica pela redacção dos artigos 2.° e 4.° do Regulamento n.° 1573/80 que só abrangem os casos em que, estando preenchidas todas as condições previstas no citado artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79, a autoridade nacional entende renunciar à cobrança a posteriori e que estabelecem processos distintos consoante o montante a cobrir seja ou não superior a 2000 ecus. A autoridade nacional pode pois decidir em todos os casos em que ela considera que as condições de protecção da confiança legítima não estão preenchidas.

46.

Admitindo que o texto do Regulamento n.° 1573/80 não implica necessariamente uma tal interpretação, a mesma decorre, no entanto, segundo a Comissão, da finalidade da atribuição à Comissão de um poder decisório nesta matéria, e isto, nomeadamente pelas duas razões seguintes.

47.

Em primeiro lugar, a reserva do poder de decisão da Comissão nos casos economicamente mais importantes permitirá assegurar uma aplicação uniforme do direito comunitário. Esta seria ameaçada se as autoridades nacionais continuassem a referir-se a critérios e práticas nacionais na interpretação do direito comunitário, designadamente no que se refere à protecção da confiança legítima. A unidade do direito comunitário é sobretudo ameaçada nos casos em que é atendido o pedido de renúncia à cobrança a posteriori, dado que a decisão das autoridades nacionais é quase sempre definitiva, uma vez que o interessado se lhe não opõe e a Comissão não intervém. Entretanto, as consequências da decisão de proceder à cobrança a posteriori são menos gravosas para a unidade do direito comunitário. Não está, certamente, excluído que os Estados-membros tratem estes casos de forma diferenciada, mas compete aos interessados nestes casos solicitar ou não uma modificação da decisão a fim de garantir a aplicação ao seu caso de critérios uniformes.

48.

Em segundo lugar, o poder de decisão da Comissão reside no facto de o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 tratar da renúncia aos recursos próprios da Comunidade. E é imediatamente compreensível que, na qualidade de organismo competente para a execução do orçamento comunitário, a Comissão deva exercer uma forte influência sobre tais decisões. Daí resulta, segundo a Comissão, que não é necessário atribuir-lhe um poder de decisão quando as autoridades nacionais ordenam a cobrança a posteriori.

49.

Além disso, a Comissão considera que o seu poder de decisão na matéria em causa deve constituir a excepção, tanto mais que o procedimento perante a Comissão é muito mais dispendioso que o seguido a nível nacional. É precisamente por isso que a Comissão se esforça desde há algum tempo por transferir, no maior número possível de casos, o seu poder de decisão às autoridades dos Estados-membros. Esforço que já se concretizou com a adopção do Regulamento n.° 2380/89, atrás referido, que substituiu o Regulamento n.° 1573/80.

50.

A Comissão propõe, portanto, que se responda à sexta questão que a competência da Comissão atribuída pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 da Comissão, apenas abrange as decisões de não cobrança a posteriori, quanto a montantes superiores a 2000 ecus.

51.

c) Em contrapartida, a Mecanarte considera, que a atribuição à Comissão do poder de decidir da cobrança ou não cobrança é o único meio de se assegurar um exercício uniforme e igualitário desse poder, com perfeito respeito das regras comunitárias de igualdade de tratamento entre os cidadãos dos diversos Estados-membros.

52.

Segundo a Mecanarte, o entendimento de que a decisão pode ser das autoridades nacionais mesmo que o montante seja superior a 2000 ecus apenas considera o interesse da cobrança das receitas, mas despreza a exigência de que essa cobrança deve ter lugar com respeito dos requisitos de igualdade e uniformidade, sem discriminação em razão do território ou da nacionalidade.

53.

d) O Conselho não se pronunciou sobre esta questão.

7. Sobre as sétima e oitava questões

54.

No que se refere à oitava questão, tanto o Governo português como a Mecanarte e a Comissão sublinham que a mesma se encontra estreitamente ligada à sexta questão.

55.

O Governo português e o Ministério Público sublinham que os requerimentos dos operadores económicos devem ser entregues junto das autoridades nacionais competentes, e só essa apreciação permitirá a actuação das competências previstas nos artigos 2.° e 4.° do Regulamento n.° 1573/80. O Ministério Público português considera que se devem distinguir duas situações:

nos casos de pedidos de não cobrança a posteriori de direitos aduaneiros de montante inferior a 2000 ecus, são as autoridades nacionais as competentes para apreciar da verificação concreta dos requisitos referidos no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 e depois decidir da sua não cobrança, devendo apenas remeter os mesmos à Comissão se não estiverem em condições de apreciar o pedido;

nos casos de pedidos de não cobrança a posteriori de direitos de montante igual ou superior a 2000 ecus, a autoridade nacional deverá submetê-los sempre à apreciação da Comissão que decidirá se existe ou não existe o direito do devedor à não cobrança a posteriori.

56.

A Comissão remete para as suas considerações sobre a sexta questão de onde resulta que as autoridades nacionais devem apreciar o requerimento e se concluem pela verificação das condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79, isto é, se concluem pela não cobrança devem submeter o caso à apreciação da Comissão, se o montante em causa ultrapassa os 2000 ecus.

57.

A Mecanarte alega que pelas mesmas razões pelas quais se entende não dever ser reconhecida às autoridades nacionais competência para a decisão espontânea de não cobrar se lhe não deve reconhecer competência para, quando tendo decidido cobrar, o devedor se lhes dirige pedindo-lhes para o não fazerem e apresentando-lhes razões para tanto.

58.

b) Quanto à sétima questão, o Governo português e a Mecanarte salientam, a título liminar, que esta questão de interpretação surge porque o juiz a quo sustenta a existência de uma contradição notória entre a regulamentação aduaneira portuguesa em causa e os artigos 2° e 4.° do Regulamento n.° 1573/80. Na sua opinião esta contradição não existe.

59.

O Governo português observa que o legislador português se limitou, no que diz respeito às disposições aduaneiras portuguesas em causa, a reconhecer competência à «conferência final» e à direcção-geral para exercerem os poderes que o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79, conjugado com os artigos 2.° e 4.° do Regulamento n.° 1573/80, reservam às autoridades nacionais. Com efeito, segundo o Governo português, o legislador comunitário definiu um espaço de acção para as autoridades nacionais, mas deixou ao critério do legislador nacional a determinação dos órgãos da administração aduaneira competentes para o efeito. Através da adopção de normas internas de execução, o legislador português, por razoes de optimização e racionalidade da decisão, concentrou na Direcção-Geral das Alfândegas a competência no domínio das cobranças e das não cobranças a posteriori, decidindo, nomeadamente, e sempre que estejam reunidas as condições exigidas, pedir a intervenção da Comissão.

60.

A Mecanarte declara, em primeiro lugar, que, quanto aos processos de valor inferior a 2000 ecus não existe qualquer contradição com a regulamentação comunitária porque ela mesma prevê que quer a apreciação quer a decisão quanto à cobrança ou não cobrança cabem à administração nacional competente, em Portugal à Direcção-Geral das Alfândegas. Em segundo lugar, a Mecanarte considera que se pode igualmente excluir tal contradição quanto aos processos de valor superior a 2000 ecus se se entender que a decisão a tomar pela direcção-geral será a de os submeter à apreciação da Comissão das Comunidades e não a de conhecer ela mesma do fundo da questão.

61.

O Ministério Público considera que a sétima questão não tem carácter de questão de interpretação que condicione a decisão a tomar no caso concreto. Em sua opinião é possível tornar compatível a aplicação da regulamentação aduaneira portuguesa em causa com os artigos 2.° e 4.° do Regulamento de execução n.° 1573/80.

62.

A Comissão concentra as suas observações em certos princípios a respeitar no âmbito do artigo 177.° do Tratado CEE. Observa, a este respeito, que o Tribunal de Justiça não é competente para apreciar da hierarquia das leis nacionais e também não pode pronunciar-se sobre a oportunidade do reenvio prejudicial. A Comissão sublinha ainda que as jurisdições nacionais não são competentes para decidir da invalidade dos actos das instituições comunitárias e deverão, por consequência, submeter a questão à apreciação do Tribunal de Justiça.

63.

c) O Conselho não se pronunciou nem sobre a sétima nem sobre a oitava questão.

M. Zuleeg

Juiz-relator


( *1 ) Língua do processo: português.


 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

27 de Junho de 1991 ( *1 )

No processo C-348/89

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto e destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Mecanarte — Metalúrgica da Lagoa Lda.

e

Chefe do Serviço da Conferência Final da Alfândega do Porto,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação e a validade do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, relativo à cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação (JO L 197, p. 1; EE 02 F6 p. 54), bem como sobre a interpretação do artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980, que fixa as disposições de aplicação do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 QO L 161, p. 1; EE 02 F6 p. 273).

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: J. C. Moitinho de Almeida, presidente de secção, F. Grévisse e M. Zuleeg, juízes,

advogado-geral : G. Tesauro,

secretario: J. A. Pompe, secretário adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação da Mecanarte por Ricardo Garção Soares e Adriano Garção Soares, advogados no Porto,

em representação do Ministério Público por Isabel Aguiar, representante do Ministério Público junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto,

em representação do Governo português por Luis Inês Fernandes, director dos Serviços de Assuntos Jurídicos da Direcção-Geral das Comunidades Europeias, e por Maria Luisa Duarte, consultora dos Serviços de Assuntos Jurídicos da Direcção-Geral das Comunidades Europeias,

em representação do Conselho das Comunidades Europeias por Bjarne Hoff-Nielsen, chefe de divisão, e Amadeu Lopes-Sabino, administrador principal do Serviço Jurídico do Conselho das Comunidades Europeias, na qualidade de agentes

em representação da Comissão das Comunidades Europeias por Jörn Sack e Herculano Lima, seus consultores jurídicos, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações orais da recorrente no processo principal, do Governo português, do Conselho das Comunidades Europeias e da Comissão das Comunidades Europeias, na audiência de 12 de Dezembro de 1990,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 6 de Fevereiro de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por despacho de 16 de Outubro de 1989, entrado no Tribunal em 14 de Novembro seguinte, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto colocou, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, oito questões prejudiciais sobre a interpretação e validade do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, relativo à cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação (JO L 197, p. 1; EE 02 F6 p. 54), bem como sobre a interpretação do artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980, que fixa as disposições de aplicação do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79 (JO L 161, p. 1; EE 02 F6 p. 273).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um recurso pelo qual a sociedade importadora Mecanarte-Metalúrgica da Lagoa Lda. (a seguir «Mecanarte») pede a anulação do aviso de liquidação a posteriori de direitos aduaneiros emitido pela estância aduaneira do Porto.

3

A Mecanarte importou para Portugal uma partida de 42 atados de chapa de aço laminada a quente, comprados a um seu fornecedor na República Federal da Alemanha, Schmolz & Bickenbach, e apresentou às autoridades aduaneiras portuguesas um certificado de circulação das mercadorias, modelo EUR 1 n.° D 790072, emitido em Dusseldórfia em 18 de Fevereiro de 1986, que indicava que estas mercadorias eram originárias da República Federal da Alemanha.

4

A autoridade aduaneira portuguesa, considerando que a mercadoria era declarada como sendo proveniente da República Federal da Alemanha, classificou-a, em aplicação do regime comunitário, nas posições pautais 73.13.230.100 j e 73.13.260.000 t da pauta aduaneira comum e isentou-a dos direitos aduaneiros de importação.

5

Por carta de 29 de Março de 1988, o serviço de controlo aduaneiro de Dusseldórfia comunicou à Direcção-Geral das Alfândegas Portuguesas que o certificado EUR 1 n.° D 790072 tinha sido anulado porque tinha sido indevidamente emitido pela sociedade Schmolz & Bickenbach, e que os produtos de aço laminado designados no certificado eram originários da República Democrática Alemã, e não da República Federal da Alemanha.

6

Na sequência desta comunicação, a estância aduaneira do Porto procedeu, por intermédio do seu Serviço da Conferência Final, à liquidação a posteriori de direitos num montante de 3611599 ESC, a cargo da Mecanarte.

7

Contra o aviso de liquidação, confirmado pela decisão do Director das Alfândegas do Porto, que rejeitava um pedido da Mecanarte de que o processo fosse remetido à Comissão das Comunidades Europeias para que esta decidisse a não cobrança a posteriori dos direitos em causa, a Mecanarte interpôs recurso de anulação perante o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto.

8

Tendo dúvidas quanto à interpretação e à validade do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 do Conselho e igualmente quanto à interpretação do artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 da Comissão, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal as seguintes questões prejudiciais:

«a)

O artigo 5.°, n.° 2, primeiro parágrafo (parte inicial), do Regulamento (CEE) n.° 1697/79, do Conselho, de 24 de Julho de 1979 — as autoridades competentes podem não proceder à cobrança — concede a esssas autoridades um poder discricionário ou um poder-dever?

b)

Se concede um poder discricionário em matéria de tributação, essa parte da norma será inválida por violação dos princípios da legalidade tributária, da igualdade dos agentes económicos, de não discriminação e da proibição de arbítrio (artigos 7° e 28.° do Tratado CEE e artigo 4.° do Tratado CECA)?

c)

Para efeitos do disposto no artigo 5.°, n.° 2, deve entender-se por erro apenas o de cálculo ou de transcrição, ou também os erros induzidos pelo devedor?

d)

O erro relevante é apenas o cometido pelas próprias autoridades competentes para a cobrança a posteriori, ou pode ser um erro cometido pelas autoridades do país de exportação da mercadoria, se este também pertencer às Comunidades Europeias?

e)

Quando o devedor, de boa-fé, fornecer à alfândega elementos de tributação inexactos ou incompletos — como é aquele que respeita à origem da mercadoria — estará, ainda assim, a cumprir todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor no que respeita à declaração para a alfândega, como o artigo 5.°, n.° 2, in fine, exige?

f)

A competência da Comissão atribuída pelo artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 1573/80, da Comissão, de 20 de Junho de 1980, quanto a montantes superiores a 2000 ecus, abrange todas as decisões (de cobrança ou não cobrança) ou só as decisões de não cobrança?

g)

Num ordenamento constitucional como o português, que consagra o princípio da primazia do direito internacional sobre o direito interno, a violação do direito comunitário derivado pelo direito interno configura um caso de inconstitucionalidade que dispense o reenvio prejudicial imediato para interpretação do direito comunitário?

h)

Aceitando-se que a decisão de cobrança pertence às autoridades aduaneiras nacionais, no caso de o devedor fazer um requerimento fundamentado de decisão de não cobrança, deve tal requerimento ser apreciado pela Comissão, a fim de esta se decidir ou não pela não cobrança, ou podem as autoridades aduaneiras nacionais decidirem por si esse requerimento?»

9

Para mais ampla exposição dos factos do litígio no processo principal, da tramitação processual, bem como das observações escritas apresentadas perante o Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo só serão adiante retomados na medida em que tal seja necessário à fundamentação da decisão do Tribunal.

10

No presente processo estão essencialmente em causa duas disposições:

o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, que dispõe que

«as autoridades competentes podem não proceder à cobrança a posteriori do montante dos direitos de importação ou dos direitos de exportação que não tenham sido cobrados em consequência de um erro das próprias autoridades competentes, que não podia razoavelmente ser detectado pelo devedor, tendo este, por seu lado, agido de boa fé e cumprido todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor no que respeita à declaração para a alfândega».

bem como

o artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980, que dispõe que

«quando a autoridade competente do Estado-membro onde foi cometido o erro não estiver em condições de se assegurar, pelos seus próprios meios, de que todas as condições definidas no n.° 2 do artigo 5.° do regulamento de base estão preenchidas, ou quando o montante dos direitos em causa for igual ou superior a 2000 ecus, essa autoridade submete à Comissão um pedido de decisão contendo todos os elementos de apreciação necessários».

Quanto às primeira e segunda questões

11

Através das primeira e segunda questões pergunta-se se o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 concede às autoridades competentes o poder discricionário de procederem ou não à cobrança a posteriori de direitos aduaneiros e, em caso de resposta afirmativa, se esta disposição é válida tendo em conta os princípios fundamentais consagrados pelo Tratado.

12

No que se refere à primeira questão, deve salientar-se que, segundo jurisprudência assente do Tribunal, o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 deve ser interpretado no sentido de que, desde que todas as condições exigidas por este texto estejam satisfeitas, o devedor tem direito a que não se proceda à cobrança a posteriori (ver acórdãos de 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost, n.° 22, 314/85, Colect., p. 4199; de 23 de Maio de 1989, Top Hit, n.° 18, 378/87, Colect., p. 1359, e de 12 de Julho de 1989, Binder, n.° 16, 161/88, Colect., p. 2415).

13

Na medida em que o devedor tem tal direito, as autoridades nacionais competentes são obrigadas a não proceder à cobrança a posteriori, sem o que este direito perderia o seu valor.

14

Convém, assim, responder à primeira questão que o artigo 5.°, n° 2, parte inicial, do Regulamento n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, deve ser interpretado no sentido de que confere às autoridades nacionais competentes um poder vinculado no que se refere à decisão de não procederem à cobrança a posteriori, quando estejam preenchidas as condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, daquele regulamento.

15

Quanto à segunda questão, deve assinalar-se que o órgão jurisdicional nacional só a colocou na eventualidade de resultar da resposta dada à primeira questão que o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 concede às autoridades nacionais um poder discricionário.

16

Dada a resposta à primeira questão, a segunda questão fica sem objecto.

Quanto às terceira e quarta questões

17

Pelas terceira e quarta questões, que convém examinar conjuntamente, o juiz nacional solicita ao Tribunal que esclareça o âmbito da expressão «erro das próprias autoridades competentes, que não podia razoavelmente ser detectado pelo devedor» constante do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79.

18

Estas questões suscitam três problemas distintos:

o primeiro é o de saber se o termo «erro» abrange unicamente os erros de cálculo ou de transcrição;

o segundo é o de saber se se deve entender por «autoridades competentes» apenas as autoridades competentes para a cobrança «a posteriori» ou igualmente as autoridades nacionais do Estado-membro exportador da mercadoria;

o terceiro é o de saber se os erros visados no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 são todos os erros cometidos pelas autoridades competentes ou apenas os que lhes sejam imputáveis.

19

Convém, a titulo liminar, salientar que o artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 tem por objectivo proteger a confiança legítima do devedor quanto à razoabilidade do conjunto dos elementos que concorrem para a decisão de cobrar ou não os direitos aduaneiros.

20

Daqui resulta, em primeiro lugar, que a noção de erro não pode ser limitada aos meros erros de cálculo ou de transcrição, abrangendo todo e qualquer tipo de erro que vicie a decisão tomada, como é nomeadamente o caso de uma interpretação ou de uma aplicação incorrecta das normas de direito aplicáveis.

21

A este respeito, a referência ao erro de cálculo e de transcrição feita nos considerandos do Regulamento n° 1697/79 deve ser vista como um mero exemplo, que não esgota todos os casos possíveis de erros a tomar em consideração no âmbito do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79.

22

Daqui resulta, em segundo lugar, que, na ausência de definição precisa e exaustiva das «autoridades competentes» dada pelo Regulamento n.° 1697/79 ou pelo Regulamento n.° 1573/80 adoptado em sua aplicação, em vigor na época em que ocorreram os factos que deram origem ao litígio no processo principal, qualquer autoridade que, no âmbito das suas competências, forneça elementos que entrem em linha de conta para a cobrança dos direitos aduaneiros e possa assim suscitar a confiança legítima do devedor deve ser considerada uma «autoridade competente» para efeitos do disposto no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79. Assim é nomeadamente quanto às autoridades aduaneiras do Estado-membro exportador que intervenham quanto à declaração aduaneira.

23

Daqui resulta, em terceiro lugar, que a confiança legítima do devedor só é digna da protecção prevista no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 se forem as «próprias» autoridades competentes que, tal como é expressamente previsto pelo texto do regulamento, tiverem criado a base em que assentava a confiança do devedor. Deste modo, só os erros imputáveis a um comportamento activo das autoridades competentes e que não tenham podido ser razoavelmente detectados pelo devedor dão direito à não cobrança a posteriori dos direitos aduaneiros.

24

Esta condição não se pode considerar preenchida se as autoridades competentes forem induzidas em erro, nomeadamente quanto à origem da mercadoria, por declarações inexactas do devedor, cuja validade não devem verificar ou apreciar. Em tal caso é o devedor que, segundo jurisprudência assente do Tribunal, suporta os riscos resultantes de um documento comercial que se revele ser falso aquando de um controlo posterior (acórdão de 13 de Novembro de 1984, Van Gend en Loos, n.° 20, 98/83 e 230/83, Recueil, p. 3763).

25

Em contrapartida, se a inexactidão das declarações do devedor mais não for do que a consequência de informações erradas dadas por autoridades competentes e que vinculem estas últimas, as disposições do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 constituem obstáculo à cobrança a posteriori dos direitos de importação e de exportação.

26

Do que precede resulta que se deve responder às terceira e quarta questões que os erros visados no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 abrangem todos os erros de interpretação ou de aplicação dos textos relativos aos direitos de importação e de exportação que não puderam ser razoavelmente detectados pelo devedor, desde que sejam a consequência de um comportamento activo, quer das autoridades competentes para a cobrança a posteriori, quer das do Estado-membro de exportação, o que exclui os erros provocados por declarações inexactas do devedor, sem prejuízo dos casos em que a inexactidão destas declarações mais não seja do que a consequência de informações erradas dadas por autoridades competentes e vinculando estas últimas.

Quanto à quinta questão

27

Através da quinta questão pretende essencialmente saber-se se o devedor que forneça de boa-fé à alfândega elementos de tributação inexactos ou incompletos satisfaz no entanto todas as disposições previstas pela regulamentação em vigor no que diz respeito à declaração aduaneira, na acepção do artigo 5.°, n.° 2, primeiro parágrafo, in fine, do Regulamento n.° 1697/79.

28

Tal como o Tribunal sublinhou no acórdão Top Hit, já referido (n.os 22 e 26), o respeito das disposições previstas pela regulamentação em vigor no que respeita à declaração aduaneira exige que o declarante forneça às autoridades aduaneiras todas as informações necessárias, previstas pelas normas comunitárias e pelas normas nacionais que as completam ou, sendo caso disso, as transpõem, relativas ao tratamento aduaneiro solicitado para a mercadoria em causa.

29

Esta obrigação não pode no entanto ir para além da apresentação dos dados e documentos que o devedor pode razoavelmente conhecer e obter. Daqui decorre que, se um operador econômico referir de boa-fé elementos que, embora sendo inexactos ou incompletos, são os únicos que podia razoavelmente conhecer ou obter e, portanto, mencionar na declaração aduaneira, deve considerar-se que se encontra preenchida a condição do respeito das disposições em vigor relativas à declaração aduaneira.

30

Deve assim responder-se à quinta questão que o artigo 5.°, n.° 2, primeiro parágrafo, in fine, do Regulamento n.° 1697/79 deve ser interpretado no sentido de que se aplica à situação em que o devedor satisfez todas as exigências previstas nas normas comunitárias relativas à declaração aduaneira e nas normas nacionais que, sendo caso disso, as completam ou as transpõem, ainda que tenha fornecido de boa-fé elementos inexactos ou incompletos às autoridades competentes, desde que estes elementos sejam os únicos que podia razoavelmente conhecer ou obter.

Quanto à sexta questão

31

Através da sexta questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se, por força do artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80, a Comissão só é competente para decidir da não cobrança a posteriori de direitos aduaneiros, ou se a sua competência é igualmente extensiva às decisões de cobrança, quando o montante dos direitos não cobrados seja igual ou superior a 2000 ecus.

32

Como resulta já do acórdão do Tribunal de 26 de Junho de 1990, Deutsche Fernsprecher, n.os 12 e 13 (C-64/89, Colect., p. I-2535), o poder de decisão atribuído à Comissão pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 só diz respeito aos casos em que as autoridades nacionais competentes estejam convencidas que as condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 se encontram preenchidas e considerem, portanto, não dever proceder à cobrança a posteriori.

33

Esta interpretação está, como foi sublinhado pelo Tribunal no mesmo acórdão, em conformidade com a finalidade do Regulamento n.° 1573/80, que consiste em garantir a aplicação uniforme do direito comunitário. Esta pode ser posta em causa nos casos em que é deferido um pedido de renúncia à cobrança a posteriori, uma vez que a apreciação na qual um Estado-membro se pode basear para adoptar uma decisão favorável pode, na prática, devido à provável inexistência de recurso contencioso, subtrair-se a um controlo que permita assegurar uma aplicação uniforme das condições previstas na legislação comunitária. Em contrapartida, não é esse o caso quando as autoridades nacionais procedem à cobrança, qualquer que seja o montante em causa. Neste caso, é possível ao interessado contestar essa decisão perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Por conseguinte, a uniformidade do direito comunitário pode ser assegurada pelo Tribunal de Justiça no âmbito de um processo prejudicial.

34

Deve pois responder-se à sexta questão que a competência atribuída à Comissão pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 só abrange as decisões de não cobrança a posteriori relativas a direitos de montante igual ou superior a 2000 ecus.

Quanto à oitava questão

35

Através da oitava questão, que se encontra estreitamente ligada à sexta questão e que convém assim examinar em seguida, o juiz nacional pergunta ao Tribunal se, quando a decisão de cobrança incumbe às autoridades nacionais e o devedor apresenta um pedido fundamentado para que não se proceda à cobrança, este pedido deve ser submetido à apreciação da Comissão ou se compete às autoridades nacionais decidir quanto ao mesmo.

36

Tal como o Tribunal já decidiu no acórdão de 26 de Junho de 1990, Deutsche Fernsprecher, atrás referido, compete às autoridades nacionais proceder à cobrança dos direitos de importação e de exportação, seja qual for o montante em causa. Tendo em conta a finalidade do Regulamento n.° 1573/80 que, como o Tribunal o sublinhou no mesmo acórdão, é garantir a aplicação uniforme do direito comunitário, cabe também às autoridades nacionais decidir de um pedido fundamentado apresentado por um devedor com vista a uma decisão de não cobrança. A obrigação de submeter o caso à apreciação da Comissão só existe, como foi dito atrás no n.° 34, na medida em que as autoridades nacionais se pronunciem pela não cobrança e o montante em causa seja igual ou superior a 2000 ecus.

37

Deve pois responder-se à oitava questão que, quando o devedor apresente um pedido para que não se proceda à cobrança dos direitos de importação ou de exportação, cabe às autoridades nacionais decidir sobre este pedido e só lhes incumbe submeter o caso à apreciação da Comissão quando encarem não cobrar direitos de montante igual ou superior a 2000 ecus.

Quanto à sétima questão

38

Através da sétima questão, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto suscita problemas de natureza processual relativos à aplicação do artigo 177.o do Tratado CEE.

39

Decorre da fundamentação da decisão prejudicial que o órgão jurisdicional nacional parte da ideia de que as duas disposições do regulamento das alfândegas português, aplicáveis ao caso concreto, além de serem contrárias ao direito comunitário, estão igualmente afectadas por vícios de inconstitucionalidade funcional e material, resultantes do facto, por um lado, de terem sido adoptadas no exercício da função administrativa e não no da função legislativa que, no caso concreto, incumbe à Assembleia da República e, por outro, de serem contrárias ao princípio do primado do direito internacional sobre o direito interno.

40

Nesta base, o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto interroga-se, em primeiro lugar, sobre se é competente para proceder ao reenvio prejudicial na medida em que verifica a inconstitucionalidade das disposições nacionais em causa, dado que a declaração da inconstitucionalidade de uma norma de direito interno está sujeita, de acordo com o artigo 280.°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa, a recurso para o Tribunal Constitucional e, consequentemente, só este último seria competente para proceder ao reenvio prejudicial em tais casos. Interroga-se, em segundo lugar, sobre se o reenvio prejudicial não é supérfluo na medida em que se poderiam sanar, na ordem jurídica nacional, os vícios de uma disposição nacional.

41

Assim a sétima questão prejudicial suscita dois problemas distintos relativos às modalidades de aplicação do artigo 177.° do Tratado CEE:

o primeiro é o de saber se o órgão jurisdicional nacional, que considera existir a inconstitucionalidade de uma disposição nacional, fica privado da faculdade de submeter à apreciação do Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação ou à validade do direito comunitário, pelo facto de a declaração de inconstitucionalidade estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional;

o segundo é o de saber se o órgão jurisdicional nacional pode deixar de proceder ao reenvio prejudicial se a ordem jurídica nacional previr os meios para sanar os vícios de uma disposição nacional.

42

No que se refere ao primeiro problema, deve recordar-se que o artigo 177.° do Tratado atribui competência ao Tribunal para decidir, a título prejudicial, tanto sobre a interpretação dos Tratados e dos actos das instituições comunitárias, bem como sobre a validade destes actos. Este artigo dispõe, no seu segundo parágrafo, que os órgãos jurisdicionais nacionais podem submeter tais questões ao Tribunal, e, no seu terceiro parágrafo, que são obrigados a fazê-lo se as suas decisões não forem susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

43

A competência reconhecida ao Tribunal pelo artigo 177.° tem essencialmente por finalidade assegurar a aplicação uniforme do direito comunitário pelos órgãos jurisdicionais nacionais. Para o efeito, o artigo 177.° fornece ao juiz nacional um meio para superar as dificuldades que possam eventualmente resultar da exigência de dar ao direito comunitário o seu pleno efeito no quadro dos sistemas jurisdicionais dos Estados-membros.

44

O efeito útil do sistema instaurado pelo artigo 177.° do Tratado exige que os órgãos jurisdicionais nacionais disponham da faculdade mais ampla possível de submeter um reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça se considerarem que num processo pendente perante eles se suscitam questões que tornam necessária, para a resolução do litígio que lhes foi submetido, a interpretação ou a apreciação da validade das disposições do direito comunitário.

45

Além disso, a eficácia do direito comunitário encontrar-se-ia posta em causa se a existência de um recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional pudesse impedir o juiz nacional, a quem tenha sido submetido um litígio regido pelo direito comunitário, de exercer a faculdade que lhe é atribuída pelo artigo 177.° do Tratado de submeter à apreciação do Tribunal de Justiça as questões relativas à interpretação ou à validade do direito comunitário, a fim de lhe permitir julgar se uma norma nacional é ou não compatível com aquele.

46

Em consequência, deve responder-se à primeira parte da sétima questão que um órgão jurisdicional nacional, ao qual tenha sido submetido um litígio relativo ao direito comunitário, e que verifique a inconstitucionalidade de uma disposição nacional, não se encontra privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo 177.° do Tratado CEE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação ou à validade do direito comunitário pelo facto de esta verificação estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.

47

Quanto ao segundo problema, basta recordar que, segundo jurisprudência assente, no âmbito da repartição das funções jurisdicionais entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal, prevista no artigo 177.° do Tratado, os órgãos jurisdicionais nacionais detêm o poder de apreciação no que diz respeito à questão de saber se é necessária uma decisão sobre um problema de direito comunitário para lhes permitir proferir o seu julgamento (ver, nomeadamente, acórdão de 6 de Outubro de 1982, Cilfit, n.° 10, 283/81, Recueil, p. 3415).

48

A este respeito, há que salientar que o poder de apreciação do juiz nacional para efeitos do disposto no artigo 177.°, segundo parágrafo, do Tratado CEE é igualmente extensivo à questão de decidir em que momento da instância cabe submeter ao Tribunal uma questão prejudicial.

49

Deve assim responder-se à segunda parte da sétima questão que, por força do artigo 177.°, segundo parágrafo, do Tratado CEE, cabe ao juiz nacional apreciar a pertinência das questões de direito suscitadas pelo litígio que lhe é submetido e a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir o seu julgamento, bem como em que momento da instância tal questão deve ser submetida à apreciação do Tribunal.

Quanto às despesas

50

As despesas efectuadas pelo Governo português, pelo Ministério Público, pelo Conselho das Comunidades Europeias e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto, por despacho de 16 de Outubro de 1989, declara:

 

1)

O artigo 5.°, n.° 2, parte inicial, do Regulamento n.° 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979, relativo à cobrança a posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação, deve ser interpretado no sentido de que confere às autoridades nacionais competentes um poder vinculado no que se refere à decisão de não procederem à cobrança a posteriori quando estejam preenchidas as condições previstas no artigo 5.°, n.° 2, daquele regulamento.

 

2)

Os erros visados no artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1697/79 abrangem todos os erros de interpretação ou de aplicação dos textos relativos aos direitos de importação e de exportação que não puderam ser razoavelmente detectados pelo devedor, desde que sejam a consequência de um comportamento activo, quer das autoridades competentes para a cobrança a posteriori, quer das do Estado-membro de exportação, o que exclui os erros provocados por declarações inexactas do devedor sem prejuízo dos casos em que a inexactidão destas declarações mais não seja do que a consequência de informações erradas dadas por autoridades competentes e vinculando estas últimas.

 

3)

O artigo 5.°, n.° 2, primeiro parágrafo, in fine, do Regulamento n.° 1697/79 deve ser interpretado no sentido de que se aplica à situação em que o devedor satisfez todas as exigências previstas nas normas comunitárias relativas à declaração aduaneira e nas normas nacionais que, sendo caso disso, as completam ou as transpõem, ainda que tenha fornecido de boa-fé elementos inexactos ou incompletos às autoridades competentes, desde que estes elementos sejam os únicos que podia razoavelmente conhecer ou obter.

 

4)

A competência atribuída à Comissão pelo artigo 4.° do Regulamento n.° 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980, que fixa as disposições de aplicação do artigo 5.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1697/79, só abrange as decisões de não cobrança a posteriori relativas a direitos de montante igual ou superior a 2000 ecus, e isto mesmo que exista um requerimento fundamentado apresentado por um devedor contra uma decisão de cobrança adoptada pelas autoridades nacionais competentes.

 

5)

Quando o devedor apresente um pedido para que não se proceda à cobrança dos direitos de importação ou de exportação, cabe às autoridades nacionais decidir sobre este pedido e só lhes incumbe submeter o caso à apreciação da Comissão quando encarem não cobrar direitos de montante igual ou superior a 2000 ecus.

 

6)

Um órgão jurisdicional nacional, ao qual tenha sido submetido um litígio relativo ao direito comunitário, e que verifique a inconstitucionalidade de uma disposição nacional, não se encontra privado da faculdade ou dispensado da obrigação, previstas no artigo 177.° do Tratado CEE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação ou à validade do direito comunitário pelo facto de esta verificação estar sujeita a recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional. Cabe ao juiz nacional apreciar a pertinência das questões de direito suscitadas pelo litígio que lhe é submetido e a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir o seu julgamento, bem como em que momento da instância tal questão deve ser submetida à apreciação do Tribunal.

 

Moitinho de Almeida

Grévisse

Zuleeg

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 27 de Junho de 1991.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Terceira Secção

J. C. Moitinho de Almeida


( *1 ) lingua do processo: português.