RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-312/89 ( *1 )

I — Matéria de facto e tramitação processual

1.

Nos termos dos artigos L.221-2, L.221-4 e L.221-5 do code du travail em vigor no território da República Francesa, o descanso semanal de que devem beneficiar os trabalhadores assalariados, de uma duração mínima de 24 horas consecutivas, deve ser dado ao domingo.

2.

Esta norma tem numerosas excepções, constantes dos artigos L.221-5-1 e seguintes do mesmo diploma, e que se podem classificar em três grandes categorias:

estabelecimentos pertencentes a sectores taxativamente enumerados, como restaurantes, tabacarias, floristas, hospitais, indústrias que apliquem matérias susceptíveis de alteração muito rápida, etc. (devem ser também classificados nesta categoria determinados estabelecimentos de venda a retalho de produtos alimentares) ;

empresas industriais pertencentes a um sector em relação ao qual uma convenção colectiva tenha previsto uma derrogação à norma do descanso dominical;

empresas que beneficiam de uma autorização prefeitoral dada em razão do facto de o descanso simultâneo ao domingo de todo o pessoal de um estabelecimento ser prejudicial para o público ou poder comprometer o funcionamento normal desse estabelecimento.

3.

Acusando as sociedades SIDEF-Conforama, Arts e meubles e JIMA de abrirem os seus estabelecimentos ao domingo, ocupando assim nesse dia o seu pessoal, a Union départementale des syndicats CGT de l'Aisne recorreu ao juiz encarregado dos processos de medidas provisórias do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, a fim de que fosse proibido às referidas sociedades abrirem os seus estabelecimentos ao domingo, sob pena de sanção pecuniária compulsória.

4.

O presidente do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, decidindo em processo de medidas provisórias, proferiu, em 5 de Outubro de 1989, um despacho pelo qual reenviou ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias duas questões prejudiciais redigidas do seguinte modo:

«Pode a noção de “medida de efeito equivalente” a uma restrição quantitativa à importação, tal como é enunciada no artigo 30.° do Tratado, ser aplicada a uma disposição dé alcance geral que tem como efeito proibir a prestação de trabalho assalariado ao domingo, nomeadamente num ramo de actividade como o de venda de mobiliário a retalho, quando

este ramo recorre em larga medida a produtos importados provenientes, nomeadamente, de países da CEE;

uma parte importante do volume de negócios das empresas que dependem deste sector de actividade é realizada ao domingo, nos casos em que as referidas empresas tomaram a iniciativa de violar as disposições de direito interno;

um encerramento ao domingo é susceptível de reduzir a importância do volume de negócios realizado e, em consequência, o volume das importações provenientes dos países da Comunidade;

por último, a obrigação de conceder aos trabalhadores assalariados o seu descanso semanal ao domingo não existe em todos os Estados-membros?

Em caso afirmativo, podem as características do sector de actividade em questão ser consideradas como correspondendo aos critérios enunciados no artigo 36.° do Tratado?»

5.

O despacho de reenvio foi registado na Secretaria do Tribunal em 11 de Outubro de 1989.

6.

Nos termos do artigo 20.° do Protocolo relativo ao Tribunal de Justiça, foram apresentadas observações escritas: pela demandante no processo principal, representada pelo advogado Khelfat, do foro de Saint-Quentin, e por A. Lyon-Caen, F. Fabiani e L. Liard, advogados no Conseil d'État e na Cour de cassation; pela demandada SIDEF-Conforama, representada por M. Distel, advogado no foro de Paris; pelo Governo da República Francesa, representado por E. Belliard e G. de Bergues, na qualidade de agentes; e pela Comissão das Comunidades Europeias, representada pelo seu consultor jurídico R. Wainwright e por H. Lehman, na qualidade de agentes.

7.

Com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

II — Observações escritas apresentadas ao Tribunal

1.

A demandante considera que existe uma grande semelhança entre o presente processo e o processo C-145/88, Torfaen Borough Council. Recorda que, no acórdão de 23 de Novembro de 1989, Torfaen Borough Council (C-145/88, Colect., p. 3851), o Tribunal considerou que as regulamentações nacionais dos horários de venda a retalho se destinavam a assegurar uma repartição das horas de trabalho e de descanso adaptada às particularidades socioculturais nacionais ou regionais, cuja apreciação, no estado actual do direito comunitário, compete aos Estados-membros. Segundo a demandante, nesse acórdão, o Tribunal declara que o comércio entre Estados-membros não é afectado por essas regulamentações e que compete aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar se os efeitos dessas regulamentações não ultrapassam os efeitos específicos de uma regulamentação comercial relativa à livre circulação de mercadorias.

Por conseguinte, a demandante considera que o Tribunal já respondeu, nesse acórdão de 23 de Novembro de 1989, às questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio e que, deste modo, não há que decidir novamente esse problema.

A demandante conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

declarar que não há que responder às questões prejudiciais apresentadas, às quais já respondeu no referido acórdão de 23 de Novembro de 1989;

subsidiariamente, declarar que :

«O artigo 30.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que proíbe a abertura ao domingo de lojas de venda a retalho quando os efeitos restritivos que dela possam eventualmente resultar para as trocas comunitárias não ultrapassem o âmbito dos efeitos específicos de uma regulamentação desse tipo.»

2.

A demandada refere que, na decisão de reenvio, o órgão jurisdicional nacional declara que o ramo de actividade a que ela pertence comercializa produtos provenientes da Comunidade, que uma parte importante do volume de negócios é realizada ao domingo e que o encerramento dominical, de acordo com o disposto no artigo L.221-5 do code du travail, implicaria uma diminuição do volume de negócios e, consequentemente, do volume das importações provenientes da Comunidade.

Segundo a demandada, resulta dessa constatação de facto, que compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional, que a legislação em causa tem no comércio intracomunitário um efeito restritivo de que o juiz francês podia ter retirado todas as consequências sem solicitar a interpretação do Tribunal de Justiça. A este respeito, recorda que o Tribunal de Justiça, no acórdão de 23 de Novembro de 1989, Torfaen Borough Council, atrás referido, admitiu necessariamente, mas implicitamente, que a legislação britânica, relativa não ao descanso dos trabalhadores assalariados, mas à actividade dos estabelecimentos comerciais ao domingo, implicava, de facto, restrições ao comércio intracomunitário.

Daqui resulta, assim, segundo a demandada, que a resposta que deve ser dada à primeira questão apresentada é a de que a aplicação das disposições do artigo L.221-5 do code du travail constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, na acepção do artigo 30.° do Tratado CEE.

A demandada observa, em seguida, que o disposto no artigo L.221-5 do code du travail não visa um objectivo que se justifica nos termos do direito comunitário. Uma vez que 26 % dos assalariados e 66 % dos não assalariados trabalham ao domingo, parece impossível falar de um princípio relativo ao descanso semanal em direito francês. O carácter puramente acessório da regra do descanso dominical é confirmado pela existência de uma regulamentação específica e desenvolvida relativa ao trabalho ao domingo.

Segundo a demandada, se o descanso dominical, por oposição ao descanso semanal, não é, em direito francês, um princípio fundamental, também não pode constituir um objectivo justificado nos termos do disposto no artigo 36.° do Tratado CEE. Em sua opinião, a proibição do trabalho dominical, que é apenas parcial e que é derrogada com compensações que beneficiam consideravelmente os assalariados, não pode ser justificada«por razões de moralidade pública, ordem pública e segurança pública, de protecção da saúde e da vida das pessoas».

A demandada observa que a modalidade controvertida de exercício do descanso semanal, instituída por um texto que tem mais de meio século que o Tratado CEE, corresponde apenas à consideração de factores religiosos cuja influência era importante em 1906, mas que não devem ser considerados um objectivo justificado face ao direito comunitário e obstar ao princípio da livre circulação de mercadorias, que constitui um aspecto essencial da construção comunitária. Além disso, os entraves que são causados às trocas comerciais intracomunitárias são manifestamente inúteis e excessivos em relação à realização do único objectivo que pode ser considerado justificado nos termos do direito comunitário. A imposição de um dia de descanso semanal obrigatório, a troco de restrições às importações, não pode ser considerada uma medida proporcionada ao único objectivo susceptível de se justificar face ao Tratado CEE, a «melhoria das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores» referida no artigo 117.° do Tratado.

Segundo a demandada, o princípio da proporcionalidade impõe que o custo de uma medida seja compensado pelo benefício social, na acepção mais ampla, que daí se possa retirar. No presente processo, o reconhecimento do respeito, pela legislação contestada, do princípio da proporcionalidade implica que seja demonstrado que a realização do objectivo que essa legislação prossegue justifica as restrições feitas ao comércio intracomunitário.

Em sua opinião, a análise revela que, no plano da dinâmica comunitária, essa justificação não pode existir. A obrigação de dar o descanso semanal ao domingo, distinta de dar um descanso semanal, de que é apenas uma modalidade, não se revela necessária ao objectivo de melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Segundo a demandada, uma vez que o objectivo social prosseguido pode não ser, e não é, na prática, em numerosos casos, realizado por uma medida que implica restrições, essa medida é desproporcionada e constitui uma medida de efeito equivalente, que não pode ser justificada pela invocação do disposto no artigo 36.° do Tratado CEE.

Por outro lado, a demandada considera que o Tribunal de Justiça deve também examinar a compatibilidade das disposições nacionais em questão com o artigo 85.° do Tratado CEE. A análise do sistema resultante das disposições dos artigos L.221-5 e seguintes do code du travail e da jurisprudência, esclarecendo as suas condições de aplicação, revela que a medida restritiva que consiste em proibir a prestação de trabalho assalariado ao domingo pode, em determinados casos, resultar da existência de acordos ou de práticas concertadas do tipo dos que são proibidos pelo artigo 85.°

A demandada conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne responder do seguinte modo às questões apresentadas:

«1)

Uma disposição de alcance geral que tenha por efeito proibir a prestação de trabalho assalariado ao domingo, nomeadamente num ramo de actividade como a venda de mobiliário ao público, quando esse ramo de actividade recorre, em larga medida, a produtos de importação provenientes, nomeadamente, de países da CEE, quando uma parte importante do volume de negócios das empresas dependentes desse sector de actividade é realizada ao domingo no caso em que as referidas empresas tomaram a iniciativa de violar disposições de direito interno e quando, ainda, um encerramento ao domingo é susceptível de reduzir a importância do volume de negócios realizado e, consequentemente, o volume das importações provenientes dos países da Comunidade, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa incompatível com o Tratado.

2)

Essa disposição não pode relevar do artigo 36.° do Tratado.»

3.

O Governo francês considera que a sua legislação relativa ao descanso semanal dominical não é abrangida pela proibição prevista pelo artigo 30.° do Tratado CEE. Em primeiro lugar, observa que essa legislação é indistintamente aplicável aos produtos importados e nacionais. Em sua opinião, não pode ter nem por objectivo nem por efeito tornar mais difícil ou mais onerosa a comercialização dos produtos importados em relação aos produtos nacionais (ver acórdão de 7 de Abril de 1981, United Foods e Van den Abeele, 132/80, Recueil, p. 995).

Por outro lado, considera que essa legislação constitui a expressão de uma política social protectora dos assalariados. As derrogações previstas pela lei ao princípio do descanso semanal dominical, para além de assentarem também, por vezes, em razões de ordem social, como o exercício ao domingo de um mínimo de actividades necessárias à vida social, baseiam-se em critérios objectivos sem qualquer ligação com a natureza dos produtos, nacionais ou importados, comercializados pelos estabelecimentos que podem beneficiar com isso.

O Governo francês considera que o Tribunal admitiu claramente a compatibilidade deste tipo de legislação com o direito comunitário. Em primeiro lugar, considerou, no acórdão de 14 de Julho de 1981, Oebel (155/80, Recueil, p. 1993), que uma regulamentação nacional relativa aos horários de trabalho, às entregas e venda no sector da padaria e da pastelaria, constituía uma opção de política econòmica e social legítima, de acordo com os objectivos de interesse geral prosseguidos pelo Tratado CEE.

Segundo o Governo francês, deve dar-se mais importância, no presente processo, ao acórdão proferido pelo Tribunal a propósito da legislação britânica que proíbe o exercício de actividades comerciais ao domingo, no qual o Tribunal declarou que «o artigo 30.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que proíbe a abertura ao domingo de lojas de venda a retalho quando os efeitos restritivos que delam possam resultar para as trocas comerciais comunitárias não ultrapassem o âmbito dos efeitos específicos de uma regulamentação deste tipo» (acórdão de 23 de Novembro de 1989, Torfaen Borough Council, atrás referido).

No entanto, segundo o Governo francês, o Tribunal de Justiça deixou em aberto, nesse acórdão, a hipótese segundo a qual os efeitos dessas regulamentações podem ultrapassar o âmbito dos efeitos específicos de uma regulamentação desse tipo. Considera que tal não é o caso da legislação francesa, indistintamente aplicável aos produtos nacionais e importados e cujas derrogações limitadas são baseadas em critérios objectivos sem qualquer ligação com a natureza dos produtos, nacionais ou importados, comercializados pelos estabelecimentos susceptíveis de beneficiar das mesmas.

O Governo francês considera que a circunstância de determinados ramos de actividade em causa recorrerem largamente às importações, de uma parte importante do volume de negócios das empresas obrigadas a cessar a sua actividade ao domingo ser, em caso contrário, realizada nesse dia ou ainda de o volume de negócios e, indirectamente, as importações provenientes de outros Esta-dos-membros da Comunidade serem afectados por essa proibição, além de ser de difícil compreensão, não pode pôr em causa a compatibilidade desse tipo de legislação com o direito comunitário.

Tendo em consideração as observações precedentes, o Governo francês é também de opinião de que não se pode alegar a existência de legislações mais liberais noutros Estados-membros para defender a incompatibilidade da legislação francesa com o direito comunitário. Em seu entender, a eventual disparidade de legislações nacionais em vigor num dado sector decorre, com efeito, da própria falta de harmonização nesse sector, e essa disparidade não pode implicar, enquanto tal, a incompatibilidade das legislações mais restritivas com o direito comunitário, excepto se se considerar que uma obrigação de harmonização das legislações nacionais impende sobre as instituições comunitárias em todos os sectores.

Em conclusão, o Governo francês propõe ao Tribunal de Justiça que responda ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 30.° deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que impõe que o descanso semanal seja dado ao domingo, salvo derrogações baseadas em critérios objectivos.

Em sua opinião, esta conclusão não pode ser afectada pela importância das importações em determinados ramos da economia em questão, ou pela circunstância de o volume de negócios das empresas obrigadas a cessar a sua actividade nesse dia poder ser reduzido, ou ainda pela existência de legislações mais liberais noutros Estados-membros.

4.

A Comissão recorda que o acórdão de 23 de Novembro de 1989, proferido no processo C-145/88 (Torfaen Borough Council, atrás referido), considera que as questões apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio devem ser apreciadas à luz do princípio definido por esse acórdão. Todavia, contrariamente à legislação então examinada, a regulamentação nacional em questão não diz respeito à proibição de abrir os estabelecimentos comerciais ao domingo, mas à obrigação de dar um dia de descanso semanal, o domingo, aos trabalhadores assalariados.

A Comissão refere que se trata de uma disposição de direito social que se estende para além do sector comercial, uma vez que abrange todos os sectores de actividade, como os sectores industriais ou associativos; pelo contrário, não abrange todo o comércio, uma vez que são expressamente excluídos os restaurantes, as lojas de bebidas e de tabacos, as lojas de flores naturais, as empresas de jornais e de informação, certas lojas de venda de produtos alimentares a retalho, que podem dar o descanso semanal por rotação, bem como as empresas que beneficiam de uma autorização administrativa.

Considera que uma legislação de direito social que tenha um efeito directo na comercialização dos produtos é susceptível de afectar as possibilidades de venda de mercadorias importadas e, assim, eventualmente a importação das mercadorias. A proibição de prestação de trabalho assalariado ao domingo, nas condições descritas, constitui uma medida indistintamente aplicável aos produtos nacionais e aos produtos importados: assim, no caso apresentado pelo órgão jurisdicional nacional, a proibição de abrir os estabelecimentos de venda de móveis afecta, é certo, a venda ao domingo dos móveis importados, mas nas mesmas proporções que os móveis produzidos no território do Estado-membro.

A Comissão indica que, no acórdão de 23 de Novembro de 1989, Torfaen Borough Council, já referido, o Tribunal de Justiça decidiu que a apreciação de uma medida indistintamente aplicável dessa natureza devia ser feita, por um lado, examinando se a regulamentação em causa prossegue um fim justificado nos termos do direito comunitário e, por outro, investigando se os eventuais entraves causados às trocas comerciais comunitárias não ultrapassam o que é necessário para atingir o objectivo visado.

Segundo a Comissão, o Tribunal pretendeu, assim, definir um princípio aplicável ao conjunto das regulamentações dessa natureza existentes na Comunidade. De facto, é fácil verificar que a regulamentação em questão pretende proteger os trabalhadores assalariados, garantindo-lhes, por um lado, um dia de descanso semanal e, por outro, que esse dia de descanso seja o mesmo para todos a fim de permitir a vida familiar e, como observava o advogado-geral nas conclusões apresentadas no processo C-145/88, a promoção das actividades não profissionais e dos contactos sociais, resultando a escolha do domingo de uma tradição histó-rico-religiosa. Tal constitui efectivamente uma opção de política económica e social conforme com os objectivos de interesse geral prosseguidos pelo Tratado CEE e comparável às medidas de protecção social constituídas pela proibição do trabalho nocturno, pela limitação da duração semanal e diária do trabalho ou pela atribuição de férias anuais pagas.

No respeitante à apreciação da proporcionalidade dos eventuais entraves ao comércio intracomunitário em relação aos objectivos legítimos prosseguidos, o Tribunal considerou, no acórdão Torfaen Borough Council, já referido, que «a questão de saber se os efeitos de uma regulamentação nacional determinada não ultrapassam esse âmbito integra-se na apreciação dos factos, que compete ao órgão jurisdicional nacional».

A Comissão considera que essa apreciação não pode ser deixada aos órgãos jurisdicionais nacionais. Em sua opinião, em primeiro lugar, é de temer que, ao fazerem essa apreciação, os órgãos jurisdicionais nacionais cheguem, em determinados casos, a soluções contrárias ao direito comunitário. Por outro lado, corre-se o risco real de que diferentes órgãos jurisdicionais cheguem a soluções divergentes em casos similares, ou mesmo idênticos, na falta de unificação por uma jurisdição única ao nível da Comunidade.

A Comissão considera que, embora a diversidade das legislações nacionais em matéria de dias e de horas de abertura do comércio torne delicada uma apreciação uniforme, a análise de uma regulamentação concreta deve, apesar disso, permitir dizer se as suas normas são ou não contrárias ao direito comunitário e dar ao juiz nacional a solução do problema de interpretação que lhe permitirá resolver o litígio que lhe é submetido.

No presente processo, considera não se verificar que os efeitos restritivos, para a livre circulação de mercadorias, da proibição de prestação de trabalho assalariado ao domingo, atenuada por excepções relativas principalmente à venda de bens de consumo imediato, sejam desproporcionados em relação ao resultado procurado. Esses efeitos são, na realidade, muito limitados. Sem dúvida, os consumidores encontram-se impossibilitados de adquirir, ao domingo, determinadas mercadorias, importadas ou não, tais como mobiliário no processo examinado pelo órgão jurisdicional nacional. Não é impensável que essa impossibilidade faça diminuir a procura total de determinados produtos e reduza, por conseguinte, as suas importações.

No entanto, a Comissão considera que, globalmente, é pouco provável que o encerramento de determinadas categorias de lojas ao domingo leve os consumidores a renunciar definitivamente a adquirir os produtos vendidos nos outros seis dias da semana. De facto, o consumidor, que não ignora que determinadas mercadorias não podem ser adquiridas ao domingo, adapta-se a essa situação e organiza as suas aquisições em conformidade. Além disso, não é evidente que a ligeira adaptação que pode afectar o consumo não beneficie produtos importados.

A Comissão considera que o facto de a obrigação de dar aos assalariados o descanso semanal ao domingo, que não existe em todos os Estados-membros, não é susceptível de diminuir as trocas comerciais intracomunitárias. As diferenças entre os dias e horas de abertura das lojas podem, pelo contrário, aumentar as trocas comerciais entre os Estados-membros que tenham uma fronteira comum.

Em sua opinião, estes elementos permitem afirmar que a proibição de prestação de trabalho assalariado ao domingo não implica efeitos desproporcionados nas trocas comerciais em relação ao objectivo legítimo de protecção social. Do mesmo modo, tendo em consideração as derrogações concedidas pela lei relativamente às lojas que vendem produtos de consumo imediato, não parece que o objectivo de protecção social prosseguido pela legislação possa ser atingido por outro meio que dificulte menos as trocas comerciais.

No que diz respeito ao regime das derrogações administrativas previsto pelo code du travail, a Comissão considera que, se a autoridade administrativa competente fosse levada a autorizar a abertura ao domingo de lojas que vendem mais produtos de origem nacional, recusando essa autorização a estabelecimentos que vendem mercadorias comparáveis, mas mais de origem comunitária, haveria uma prática discriminatória em relação aos produtos importados. Nessa hipótese, que não parece corresponder ao caso submetido ao exame do juiz nacional, tra-tar-se-ia de uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa, distintamente aplicável apenas aos produtos importados sem poder ser justificada por uma exigência imperativa e, assim, contrária à proibição contida no artigo 30.°

Por conseguinte, a Comissão propõe ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão apresentada:

«O artigo 30.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que proíbe a prestação de trabalho assalariado ao domingo nos estabelecimentos comerciais, desde que as derrogações concedidas não impliquem uma discriminação de facto para os produtos importados em relação aos produtos nacionais.»

M. Diez de Velasco

Juiz-relator


( *1 ) Língua do processo: francês.


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

28 de Fevereiro de 1991 ( *1 )

No processo C-312/89,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo presidente do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, decidindo em processo de medidas provisórias, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Union départementale des syndicats CGT de l'Aisne

e

SIDEF-Conforama,

Arts et meubles,

JIMA,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por O. Due, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias e M. Diez de Velasco, presidentes de secção, R. Joliét, F. Grévisse e M. Zuleeg, juízes,

advogado-geral: W. Van Gerven

secretário: D. Louterman, administradora principal

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação da Union départementale des syndicats CGT de l'Aisne, por Arnaud Lyon-Caen, Françoise Fabiani e Louis Liard, advogados junto do Conseil d'État e da Cour de cassation,

em representação da sociedade SIDEF-Conforama, por Michel Distel, advogado no foro de Paris,

em representação do Governo francês, por Edwige Belliard, subdirectora dos assuntos jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Géraud de Bergues, secretário adjunto principal no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

em representação da Comissão, por Richard Wainwright, consultor jurídico, e Hervé Lehman, funcionário francês destacado no Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Union départementale des syndicats CGT de l'Aisne, representada por F. Thiriez, advogado junto do Conseil d'État e da Cour de cassation, da sociedade Conforama, da sociedade JIMA, representada por J.-C. Fourgoux, advogado no foro de Paris, do Governo francês e da Comissão, na audiencia de 26 de Setembro de 1990,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 22 de Novembro de 1990,

profere o presente

Acórdão

1

Por despacho de 5 de Outubro de 1989, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de Outubro seguinte, o presidente do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, decidindo em processo de medidas provisórias, apresentou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 30.° e 36.° do mesmo Tratado, com vista a apreciar a compatibilidade, com essas disposições, de uma regulamentação nacional que proíbe o trabalho assalariado ao domingo.

2

Nos termos dos artigos L.221-2 e L.221-4 e L.221-5 do code du travail em vigor em França, o descanso semanal de que devem beneficiar os trabalhadores assalariados, de duração mínima de 24 horas consecutivas, é obrigatoriamente concedido ao domingo.

3

Acusando as sociedades SIDEF-Conforama, Arts e meubles e JIMA de abrirem os seus estabelecimentos ao domingo e de ocuparem nesse dia o seu pessoal, a Union départementale des syndicats CGT de l'Aisne recorreu ao juiz encarregado dos processos de medidas provisórias do tribunal de grande instance de Saint-Quentin a fim de ser proibido às referidas sociedades abrirem os seus estabelecimentos ao domingo, sob pena de sanção pecuniária compulsória.

4

O presidente do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, decididindo em processo de medidas provisórias, proferiu um despacho pelo qual apresentou ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais com a seguinte redacção :

«Pode a noção de “medida de efeito equivalente” a uma restrição quantitativa à importação, tal como é enunciada no artigo 30.° do Tratado, ser aplicada a uma disposição de alcance geral que tem como efeito proibir a prestação de trabalho assalariado ao domingo, nomeadamente num ramo de actividade como o da venda de mobiliário a retalho, quando

este ramo recorre em larga medida a produtos importados provenientes, nomeadamente, de países da CEE;

uma parte importante do volume de negócios das empresas que dependem deste sector de actividade é realizada ao domingo, nos casos em que as referidas empresas tomaram a iniciativa de violar as disposições de direito interno;

um encerramento ao domingo é susceptível de reduzir a importância do volume de negócios realizado e, em consequência, o volume das importações provenientes dos países da Comunidade;

por último, a obrigação de conceder aos trabalhadores assalariados o seu descanso semanal ao domingo não existe em todos os Estados-membros?

Em caso afirmativo, podem as características do sector de actividade em questão ser consideradas como correspondendo aos critérios enunciados no artigo 36.° do Tratado?»

5

Para mais ampla exposição do enquadramento jurídico e dos factos no processo principal, da tramitação processual e das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação do Tribunal.

6

Em primeiro lugar, há que observar que, embora não seja da competência do Tribunal de Justiça, no âmbito do artigo 177.° do Tratado, pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma disposição nacional com o Tratado, em contrapartida, o Tribunal é competente para fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação que relevam do direito comunitário que podem permitir-lhe apreciar essa compatibilidade no litígio submetido à sua apreciação.

Quanto à primeira questão

7

Através da primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se disposições que proíbem o trabalho assalariado ao domingo, nomeadamente num ramo de actividade como a venda de mobiliário ao público, constituem uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas, na acepção do artigo 30.° do Tratado.

8

Em primeiro lugar, há que salientar que uma regulamentação nacional que proíbe o trabalho assalariado ao domingo num ramo de actividade como a venda de mobiliário ao público não tem por objectivo regular as trocas comerciais. Apesar disso, é susceptível de ocasionar efeitos restritivos na livre circulação de mercadorias. Com efeito, embora seja pouco provável que o encerramento de alguns desses estabelecimentos ao domingo leve os consumidores a renunciar definitivamente à aquisição dos produtos que estão disponíveis nos outros dias da semana, também não deixa de se verdade que a proibição em causa pode ter consequências negativas no volume das vendas e, por conseguinte, das importações.

9

Em seguida, deve observar-se que uma regulamentação desse tipo afecta tanto a venda de produtos nacionais como a de produtos importados. Em princípio, a comercialização dos produtos importados de outros Estados-membros não é, deste modo, tornada mais difícil do que a dos produtos nacionais (ver, neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 1989, Torfaen Borough Council, B & Q pic, 145/88, Colect., p. 3851).

10

Nesse acórdão, o Tribunal decidiu essencialmente, a propósito de uma regulamentação nacional similar, que proíbe o comércio retalhista de abrir ao domingo, que essa proibição só é compatível com o princípio da livre circulação de mercadorias previsto pelo Tratado na condição de os eventuais entraves que cause às trocas comerciais comunitárias não irem além do que é necessário para assegurar o objectivo visado e de esse objectivo se justificar à luz do direito comunitário.

11

Nestas condições, é necessário declarar, em primeiro lugar, que uma regulamentação como aquela que aqui está em causa prossegue um objectivo justificado face ao direito comunitário. Com efeito, o Tribunal já considerou, no acórdão de 23 de Novembro de 1989, atrás referido, que as regulamentações nacionais que regulam os horários de venda a retalho constituem a expressão de determinadas opções políticas e económicas na medida em que visam garantir uma repartição das horas de trabalho e de descanso adaptada às especificidades socioculturais nacionais ou regionais cuja apreciação compete, no estado actual do direito comunitário, aos Estados-membros.

12

Em segundo lugar, há que referir que os efeitos restritivos, para as trocas comerciais, que possam eventualmente decorrer dessa regulamentação não se revelam excessivos relativamente ao objectivo prosseguido.

13

Assim, há que responder à primeira questão que o artigo 30.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que proíbe a prestação de trabalho assalariado ao domingo.

Quando à segunda questão

14

Tendo em consideração a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda.

Quanto às despesas

15

As despesas efectuadas pelo Governo francês e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo presidente do tribunal de grande instance de Saint-Quentin, por despacho de 5 de Outubro de 1989, declara:

 

O artigo 30.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição nele prevista não se aplica a uma regulamentação nacional que proíbe a prestação de trabalho assalariado ao domingo.

 

Due

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Diez de Velasco

Joliét

Grévisse

Zuleeg

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 28 de Fevereiro de 1991.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente

O. Due


( *1 ) Língua do processo: francês.