RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-106/89 ( *1 )

I — Quadro normativo do litígio no processo principal

1.

Nos termos do artigo 395.o do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos tratados ( 1 ), estes dois novos Estados-membros porão em vigor as medidas necessárias para darem cumprimento, a partir da adesão, ao disposto nas directivas comunitárias.

2.

A Primeira Directiva 68/15l/CEE do Conselho, baseada, nomeadamente, no artigo 54.o, n.o 3, alínea g), do Tratado CEE, tem por objectivo assegurar a segurança jurídica nas relações entre certas formas de sociedades, entre as quais as sociedades anónimas e terceiros, bem como entre os sócios.

Para esse efeito, o artigo 11.o limita os casos de invalidade dessas sociedades. Nos termos dessa disposição:

«A legislação dos Estados-membros pode regular o regime das invalidades do contrato de sociedade, desde que respeite as seguintes regras:

1)

a invalidade deve ser reconhecida por decisão judicial;

2)

a invalidade apenas pode ser reconhecida com os seguintes fundamentos:

a)

falta de acto constitutivo ou inobservancia quer das formalidades de fiscalização preventiva quer da forma autêntica,

b)

natureza ilícita ou contrária à ordem pública do objecto da sociedade,

c)

omissão, no acto constitutivo ou nos estatutos, de indicação relativa à denominação da sociedade, às entradas, ao montante total do capital subscrito ou ao objecto social,

d)

inobservância das disposições da legislação nacional relativas à liberação mínima do capital social,

e)

incapacidade de todos os sócios fundadores,

f)

quando, contrariamente à legislação nacional aplicável à sociedade, o número de sócios fundadores for inferior a dois.

Fora destes casos de invalidade, as sociedades não podem ser declaradas nulas, nem ficam sujeitas a qualquer outra causa de inexistência, de nulidade absoluta, de nulidade relativa ou de anulabilidade.»

3.

A lei espanhola, de 17 de Julho de 1951 ( 2 ), relativa ao regime jurídico das sociedades anónimas não regula especificamente os casos de invalidade dessas sociedades. Também a doutrina considera que a matéria é abrangida pelas normas de direito comum, assinalando as dificuldades que coloca a aplicação por analogia dessas normas ( 3 ).

Os artigos 1261.o e 1275.o do código civil espanhol, relativos às condições essenciais de validade dos contratos em direito espanhol dispõem, respectivamente:

— artigo 1261.o:

«Só há contrato quando estiverem reunidas as seguintes condições:

1)

o consentimento das partes,

2)

um objecto determinado que seja a matéria do contrato,

3)

causa da obrigação estabelecida»;

— artigo 1275.o:

«Os contratos sem causa ou com causa ilícita não produzem quaisquer efeitos. A causa é ilícita quando for contrária às leis ou à moral.»

4.

O Reino de Espanha comunicou à Comissão um texto de anteprojecto de lei relativo à reforma parcial e a adaptação da legislação comercial espanhola às directivas da CEE em matéria de direito das sociedades ( 4 ) em cuja exposição dos motivos se afirma:

«Uma importante novidade reside na inclusão de duas disposições relativas à invalidade do contrato de sociedade que, embora inseridas para cumprimento das directivas comunitárias, preenchem, além disso, uma importante lacuna do nosso direito das sociedades. Por um lado, limitam expressamente as causas de invalidade do contrato de sociedade apenas aos casos previstos na lei, com exclusão de qualquer outra, dada a gravidade dos efeitos da invalidade que o juiz é o único a poder declarar. Por outro lado, a invalidade que ocasiona a liquidação da sociedade não pode prejudicar os seus credores, uma vez què a sua declaração não afecta a validade das obrigações ou dos créditos da sociedade perante terceiros.»

O artigo 32.o, alínea f), «Causas de invalidade», do anteprojecto atrás referido prevê:

«...

8.

A invalidade do contrato de sociedade deve ser declarada por decisão judicial e unicamente pelos seguintes motivos:

1)

falta de celebração do acto autêntico de constituição ou a sua não inscrição no registo comercial,

2)

objecto social ilícito ou contrário à ordem pública,

3)

omissão, no acto constitutivo ou nos estatutos, da indicação da denominação da sociedade, das entradas dos sócios, do montante do capital subscrito, do objecto social ou, por último, inobservância da liberação mínima do capital social prevista no artigo 10.o,

4)

incapacidade de todos os sócios fundadores,

5)

o facto do acto constitutivo não exprimir a vontade efectiva de pelo menos dois sócios fundadores, quando estes devem ser vários, de acordo com o artigo 12.o, n.o 1, da presente lei.

9.

Fora dos casos referidos no número anterior, não podem ser declaradas nem a inexistência nem a nulidade absoluta ou relativa da sociedade.»

5.

Este anteprojecto de lei tornou-se a Lei 19/1989, de 25 de Julho de 1989 ( 5 ). O artigo 31.o, inserido na quarta secção («Da invalidade da sociedade»), retoma os quatro últimos casos de invalidade referidos no citado anteprojecto.

Nos termos das suas disposições finais, a lei entra em vigor a 1 de Janeiro de 1990.

II — Factos e tramitação processual

A sociedade Marleasing SA intentou, em 29 de Setembro de 1987, no Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.o 1 d'Oviedo, uma acção de anulação do contrato de sociedade, por simulação, e do acto constitutivo da sociedade La Comercial Internacional de Alimentación SA, por falta de causa, e, subsidiariamente, a anulação do contrato de sociedade e do acto constitutivo atrás referidos, por fraude dos direitos dos credores e, ainda a título subsidiário, a anulação da entrada em espécie pela sociedade Barviesa SA a favor da La Comercial Internacional de Alimentación SA, por fraude dos direitos dos credores.

Este pedido era fundamentado na convicção de que a demandada, constituída em 7 de Abril de 1987, tinha sido criada entre a sociedade comercial Barviesa e dois testas-de--ferro, com o único objectivo de furtar o activo desta última sociedade à acção dos credores, entre os quais a sociedade Marleasing SA. O pedido era fundamentado nas disposições gerais do código civil, isto é, o artigo 1261.o relativo às condições de existência dos contratos, e o artigo 1275.o relativo a ausência de efeitos dos contratos sem causa.

A requerida conclui pedindo que se negue integralmente provimento ao pedido, invocando, nomeadamente, que a primeira directiva, cujo artigo 11.o contém a lista exaustiva dos casos em que uma sociedade anónima pode ser declarada inválida, não prevê a ausência de causa.

O órgão jurisdicional nacional salientou que a primeira directiva não foi cumprida pelo Reino de Espanha, não obstante a obrigação de o fazer a partir de 1 de Janeiro de 1986, por força do artigo 395.o do acto atrás referido. Também o órgão jurisdicional nacional considerou que o litígio colocava a questão do efeito directo, nas relações entre particulares, das directivas comunitárias não transpostas pelos Estados-membros dentro dos prazos previstos. Ao enumerar as causas de invalidade de modo exaustivo, o artigo 11.o da primeira directiva não deixa qualquer margem de apreciação para a sua ampliação no direito interno. Por outro lado, no caso de efeito directo em relação a particulares, a invalidade da sociedade anónima afecta um quadro mais amplo do que o das relações entre particulares, na medida em que diz respeito aos interesses dos sócios e de terceiros, cuja protecção é assegurada pelo artigo 54.o, n.o 3, alínea g), do Tratado CEE.

Por despacho de 13 de Março de 1989, o órgão jurisdicional nacional decidiu, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, suspender a instância até que o Tribunal de Justiça se pronuncie a título prejudicial sobre a seguinte questão de interpretação:

«O artigo 11.o da Directiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de Março de 1968, que não foi transposta para o direito interno, é directamente aplicável para impedir a declaração de invalidade de uma sociedade anónima por causa diferente das enumeradas no citado artigo?»

O despacho que reenvia para o Tribunal de Justiça a questão prejudicial foi registado na Secretaria do Tribunal em 3 de Abril de 1989.

Nos termos do artigo 20.o do Protocolo Relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, foram apresentadas observações escritas pela Comissão das Comunidades Europeias representada por A. Caeiro, consultor jurídico da Comissão, e por D. Calleja, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, e pela requerida no processo principal, representada por J. R. Buzón Ferrerò, advogado no foro de Oviedo.

Com base no relatório preliminar do juiz relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução prévia. Nos termos do artigo 95.o, n.os 1 e 2, do Regulamento Processual, o Tribunal remeteu o processo para a Sexta Secção por decisão de 17 de Janeiro de 1990.

III — Observações escritas apresentadas no Tribunal

A Comissão das Comunidades Europeias recorda que o Tribunal de Justiça reconheceu, em jurisprudência constante ( 6 ), a possibilidade de as disposições claras, incondicionais e suficientemente precisas de uma direttiva comunitária serem invocadas perante um órgão jurisdicional nacional por um particular em relação a qualquer autoridade pública do Estado-membro que não cumpriu a obrigação de transpor a referida directiva para a sua ordem jurídica interna no prazo por ela previsto.

A Comissão coloca, em seguida, a questão de saber se é admissível em direito comunitário que as disposições de uma directiva sejam invocadas por um particular no âmbito de uma relação jurídica com outro particular quando a directiva ainda não foi transposta para a ordem jurídica do Estado destinatário no termo do prazo previsto para a sua transposição.

A resposta a esta questão parece ser negativa. A Comissão recorda, a este propósito, que, no seu acórdão Marshall ( 7 ), o Tribunal afirmou claramente que:

«...

Segundo o artigo 189.o do Tratado, o carácter vinculativo de uma directiva, sobre o qual se baseia a possibilidade de a invocar perante um tribunal nacional, existe apenas relativamente ao ‘Estado-membro destinatário’. Do que resulta que uma direttiva não pode, por si só, criar obrigações na esfera jurídica de um particular e que uma disposição de uma direttiva não pode ser, portanto, invocada enquanto tal, contra tal pessoa.»

Resulta do que precede e da doutrina dominante que as directivas comunitárias não têm efeito jurídico «horizontal» e que as suas disposições não podem ser invocadas no âmbito de uma relação jurídica entre particulares. A objecção fundamental é, sem qualquer dúvida, a insegurança jurídica que a solução contrária ocasionaria nas relações jurídicas entre particulares.

A Comissão considera que o artigo 11.o da primeira directiva, cujo objectivo último é assegurar tanto quanto possível a segurança jurídica, limitando os casos de invalidade das sociedades dotadas de personalidade jurídica, impõe aos Estados-membros destinatários uma obrigação de resultado clara, incondicional e suficientemente precisa.

A jurisprudência do Tribunal não permite, no entanto, que tal disposição, não transposta para o direito interno no prazo previsto, como no caso em apreço, possa ser invocada por um particular contra outro particular, o qual, nos termos do artigo 189.o do Tratado, não é seu destinatário. Parece que deve ser especialmente assim numa matéria tão delicada como o direito das socie-, dades, na qual o regime comunitário deve ser interpretado de modo uniforme, tendo em consideração o equilíbrio procurado na protecção dos interesses dos accionistas, dos credores e dos terceiros em geral. E evidente a insegurança jurídica que ocasionaria a faculdade de invocar a disposição da directiva comunitária perante outro particular que tivesse confiado na validade do direito nacional em vigor. Não parece aceitável querer opor a um particular esta disposição de um acto comunitário cuja publicação não é obrigatória e de que não é destinatário.

Por conseguinte, parece que a resposta a dar à questão apresentada pelo órgão jurisdicional espanhol deve ser negativa.

Não obstante, a Comissão considera que a antiga legislação espanhola consagrava em grande medida os princípios fundamentais enunciados na primeira directiva, ainda que não totalmente. A principal divergência entre a directiva e a antiga lei espanhola relativa às sociedades anónimas ou, mais exactamente, entre a directiva e a interpretação dessa lei pela doutrina, reside no facto de a directiva só admitir como causas de invalidade as que enuncia expressamente (artigo 11.o, n.o 2), ao passo que a antiga lei nada dizia a este respeito.

Esta lacuna — que o legislador espanhol reconhece expressamente na exposição de motivos do anteprojecto de lei referido — é colmatada, segundo a doutrina, pelo recurso às regras gerais aplicáveis aos contratos em matéria cível, às quais acrescem as causas extraídas do incumprimento das normas comerciais aplicáveis à constituição das sociedades anónimas (inexistência ou nulidade de uma menção essencial do acto, subscrição incompleta do capital social, etc).

Tendo em consideração o que precede, a Comissão considera que convém colocar a questão de saber se a lacuna jurídica que existia no respeitante à invalidade das sociedades anónimas não pode ser colmatada, não com base nas regras gerais aplicáveis aos contratos civis, mas pelo recurso aos princípios e regras do direito comunitário contidos na primeira directiva.

É um facto que o Reino de Espanha deveria ter adoptado as medidas necessárias para adaptar o seu direito interno ao direito comunitário em 1 de Janeiro de 1986.

Todavia, a antiga legislação espanhola já se orientava no mesmo sentido, procurando atingir os mesmos objectivos que a primeira directiva em matéria de direito das sociedades.

Nestas condições, não parece que, na ausência de disposição expressa das antigas disposições espanholas relativas às causas de invalidade das sociedades, o órgão jurisdicional nacional não possa colmatar essa lacuna da sua ordem interna interpretando o direito nacional de acordo com a directiva, na linha do artigo 11.o, n.o 2, que indica quais os únicos casos em que pode ser declarada a invalidade de uma sociedade.

Ņa medida em que o juiz nacional pode escolher entre diversas interpretações do seu direito nacional, a Comissão considera que não se pode impedir que esta autoridade jurisdicional escolha a interpretação de acordo com a directiva comunitária. Não se trata, portanto, de substituir o direito nacional por uma directiva que ainda não tinha sido transposta para o direito espanhol e que não podia ser invocada em relação a um particular. Tão-pouco se trata de obrigar o juiz nacional a escolher uma interpretação contra legem, aplicando directamente a directiva comunitária, uma vez que não existia disposição expressamente aplicável.

Trata-se simplesmente de considerar que, na ausência das condições que permitam à directiva produzir plenamente os seus efeitos em direito interno, o mecanismo de interpretação das disposições do direito nacional de acordo com o direito comunitário permite salvaguardar os princípios do direito comunitário. O efeito do referido mecanismo pode determinar que a interpretação do direito nacional de acordo com o direito comunitário prime sobre as normas de interpretação geralmente admitidas no ordenamento interno, mas, precisamente por força do princípio do primado do direito comunitário, devem considerar-se excluídas todas as regras de interpretação que possam impedir o resultado desejado pelos autores de uma directiva.

Devido à adesão da Espanha às Comunidades Europeias, o juiz espanhol dispõe de uma nova ordem jurídica sobre a qual pode fundamentar-se para interpretar o direito nacional em determinadas matérias. Esta ordem jurídica faz parte integrante do direito interno, uma vez que o juiz nacional é também juiz comunitário. Não se pode recusar ao juiz nacional a possibilidade de fazer referência à solução outorgada pelo legislador comunitário ao interpretar o seu direito interno quando aí existe uma lacuna. Não se pode impedir que esse órgão jurisdicional interprete a antiga lei espanhola de acordo com a solução aplicada nos outros Estados-membros da Comunidade.

A demandante no processo principal considera que a directiva não é aplicável no presente processo.

Com efeito, as directivas só obrigam os Estados-membros, nos termos do n.o 3 do artigo 189.o do Tratado CEE, e só vinculam os Estados-membros destinatários, não podendo o seu conteúdo ser directamente imposto aos particulares.

Uma directiva é, por definição, uma norma incompleta que não pode produzir qualquer efeito horizontal entre particulares. Estes só podem ser directamente vinculados pela disposição nacional de execução da directiva.

O próprio Tribunal de Justiça não reconhece às directivas não transpostas dentro dos prazos previstos qualquer efeito directo nas relações entre particulares, situação que poderia ocasionar uma insegurança para o cidadão, na medida em que obrigaria este último, para se defender nos litígios de direito interno, a adquirir conhecimentos exaustivos na matéria, sobretudo se se tiver em consideração o facto de a publicação não ser uma das condições da entrada em vigor das directivas.

As directivas não podem, em geral, criar direitos susceptíveis de serem invocados judicialmente pelos particulares. Da mesma forma, não se pode censurar um particular de não dar cumprimento a uma obrigação que não o afecte directamente, uma vez que tem outro destinatário, isto é, os Estados-membros.

No caso em apreço, o litígio opõe duas sociedades comerciais espanholas, que têm o seu estabelecimento e a sua sede no território espanhol, a propósito de uma questão de direito civil e comercial; por conseguinte, não há que fazer uma interpretação extensiva da aplicação da primeira directiva, uma vez que, concretamente, esta não contém qualquer disposição que permita considerar — excepcionalmente — que, embora dirigida apenas aos Estados-membros, ela diz também respeito aos particulares. A directiva também não tem qualquer conexão directa com um artigo do Tratado ou de um regulamento que lhe permita entrar no âmbito dos textos excepcionalmente aplicáveis.

A directiva esclarece no seu título, nos seus considerandos e no seu texto que é adoptada «para proteger os interesses dos sócios e de terceiros». A melhor forma de proteger os interesses dos terceiros é, evidentemente, proibir que se constituam, precisamente ao abrigo de uma interpretação extensiva de uma directiva que não tem nada de fundamental, sociedades fantasmas que, absorvendo o património de outras sociedades anteriores, tornam completamente impossível a satisfação dos direitos dos seus credores e, por conseguinte, impedem o cumprimento das obrigações e dos contratos.

T. F. O'Higgins

Juiz relator


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

( 1 ) JO 1985, L 302, p. 23.

( 2 ) DOE n.o 199, de 18.7.1951, com corrigendum no DOE n.o 218, de 6.8.1951.

( 3 ) Ver Garrigues, J.: Cuno de Derecho Mercantil, tomo I, Madrid, 1982, p. 435 c seguintes.

( 4 ) Ministerio da Justiça: Suplemento ao Boletim n.o 1469, de 5.10.1987, ano XLI, Madrid, 1987.

( 5 ) Lei 19/1989, de 25 de Julho de 1989, relativa à reforma parcial e à adaptação da legislação comercial às directivas da Comunidade Económica Europeia (CEE) em matéria de sociedades.

( 6 ) Ver, nomeadamente, o acórdão de 19 de Janeiro de 1982, Becker (8/81, Recuei], p. 53).

( 7 ) Acórdão de 26 de Fevereiro de 1986, Marshall (152/84, Colect., p. 723).


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

13 de Novembro de 1990 ( *1 )

No processo C-106/89,

que tem por objecto um pedido apresentado ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.o 1 de Oviedo (Espanha), destinado a obter, no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre

Marleasing SA

e

La Comercial Internacional de Alimentación SA,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 11.o da Primeira Directiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de Março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO L 65, p. 8; EE 17 FI p. 3),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

constituído pelos Srs. G. F. Mancini, presidente de secção, T. F. O'Higgins, M. Diez de Velasco, C. N. Kakouris e P. J. G. Kapteyn, juízes,

advogado-geral: W. van Gerven

secretário: H. A. Rühi, administrador principal

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação de Marleasing SA, por José Ramón Buzón Ferrerò, advogado no foro de Oviedo,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, pelo seu consultor jurídico, António Caeiro, e por Daniel Calleja, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 6 de Junho de 1990,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 12 de Julho de 1990,

profere o presente

Acórdão

1

Por despacho de 13 de Março de 1989, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de Abril seguinte, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.o 1 de Oviedo apresentou, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 11.o da Directiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de Março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO L 65, p. 8).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe a sociedade Marleasing SA, demandante no processo principal, a um determinado número de demandadas, entre as quais figura La Comercial Internacional de Alimentación SA (a seguir «La Comercial»). Esta última foi constituída sob a forma de uma sociedade anónima por três pessoas, entre as quais a sociedade Barviesa, que entrou com o seu património.

3

Resulta dos fundamentos do despacho de reenvio que a Marleasing pede, a título principal, com fundamento nos artigos 1261.o e 1275.o do código civil espanhol, que privam de efeito jurídico os contratos sem causa ou cuja causa seja ilícita, a anulação do contrato de sociedade que institui La Comercial, com fundamento em que a sua constituição é desprovida de causa jurídica, afectada de simulação e foi efectuada com fraude dos direitos dos credores da sociedade Barviesa, co-fundadora de La Comercial. La Comercial pede que se julgue totalmente improcedente o pedido, invocando, nomeadamente, o facto de a Directiva 61/151, atrás citada, cujo artigo 11.o contém a lista limitativa dos casos de invalidade das sociedades anónimas, não incluir a inexistência de causa jurídica entre esses casos.

4

O órgão jurisdicional nacional recordou que, de acordo com o artigo 395.o do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa às Comunidades Europeias, (JO 1985, L 302, p. 23), o Reino de Espanha era obrigado a transpor a directiva em vigor desde a sua adesão, transposição ainda não ocorrida na data do despacho de reenvio. Considerando, assim, que o litígio suscitava um problema de interpretação do direito comunitário, o órgão jurisdicional nacional apresentou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão :

«O artigo 11.o da Directiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de Março de 1968, que não foi transposta para o direito interno, é directamente aplicável para impedir a declaração de invalidade de uma sociedade anónima fundada numa causa diferente das enumeradas no citado artigo?»

5

Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, da tramitação processual e das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

6

Quanto a saber se um particular pode invocar a directiva contra uma lei nacional, deve recordar-se a jurisprudência constante do Tribunal, segundo a qual uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações na esfera de um particular e, por conseguinte, a disposição de uma directiva não pode ser invocada, enquanto tal, contra essa pessoa (acórdão de 26 de Fevereiro de 1986, Marshall, 152/84, Colect., p. 723).

7

No entanto, resulta dos autos que o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se o juiz nacional ao qual foi submetido um litígio numa matéria que faz parte do domínio de aplicação da Directiva 68/151 é obrigado a interpretar o seu direito nacional à luz do texto e da finalidade dessa directiva, a fim de impedir a declaração de invalidade de uma sociedade anónima por um fundamento diferente dos enumerados no artigo 11.o

8

Para responder a esta questão, deve recordar-se que, como o Tribunal precisou no acórdão de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann, n.o 26 (14/83, Recueil, p. 1891), a obrigação dos Estados-membros, decorrente de urna directiva, de atingir o resultado por ela prosseguido, bem como o seu dever, por força do artigo 5.o do Tratado, de tomar todas as medidas gerais ou especiais adequadas a assegurar a execução dessa obrigação, impõem-se a todas as autoridades dos Estados-membros, incluindo, no âmbito das suas competências, os órgãos jurisdicionais. Daqui resulta que, ao aplicar o direito nacional, quer se trate de disposições anteriores ou posteriores à directiva, o órgão jurisdicional nacional chamado a interpretá-lo é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva, para atingir o resultado por ela prosseguido e cumprir desta forma o artigo 189.o, terceiro parágrafo, do Tratado.

9

Daqui resulta que a exigência de uma intrepretação do direito nacional conforme ao artigo 11.o da Directiva 68/151 proíbe interpretar as disposições do direito nacional relativas às sociedades anónimas de modo a que a invalidade de uma sociedade anónima possa ser declarada por motivos diferentes dos limitativamente enunciados no artigo 11.o da directiva em causa.

10

No que respeita à interpretação do artigo 11.o da directiva e, nomeadamente, ao seu n.o 2, alínea b), deve referir-se que essa disposição proíbe às legislações dos Estados-membros preverem o reconhecimento judicial da invalidade fora dos casos limitativamente enunciados na directiva, entre os quais figura a natureza ilícita ou contrária à ordem pública do objecto da sociedade.

11

Segundo a Comissão, «o objecto da sociedade» deve ser interpretado no sentido de que se refere exclusivamente ao objecto da sociedade como é descrito no seu acto constitutivo ou nos seus estatutos. Conclui-se que a declaração de invalidade de uma sociedade não pode resultar da actividade que realmente exerce, tal como, por exemplo, expoliar os credores dos fundadores.

12

Esta tese deve ser acolhida. Como resulta do preâmbulo da Directiva 68/151, o seu objectivo era limitar os casos de invalidade e o efeito retroactivo da sua declaração para garantir a «segurança jurídica, tanto nas relações entre a sociedade e terceiros, como entre os sócios» (sexto considerando). Além disso, a protecção de terceiros «deve ser assegurada por disposições que limitem, na medida do possível, as causas de invalidade das obrigações contraídas em nome da sociedade». Assim, conclui-se que cada fundamento de invalidade previsto pelo artigo 11.o da directiva é de interpretação restrita. Nessas circunstâncias, as palavras «objecto da sociedade» devem ser compreendidas como fazendo referência ao objecto da sociedade tal como é descrito no seu acto constitutivo ou nos estatutos.

13

Assim, há que responder à questão apresentada que o juiz nacional a quem for submetido um litígio em matéria que se inclui no âmbito de aplicação da Directiva 68/151 deve interpretar o direito nacional à luz do texto e da finalidade desta directiva para impedir a declaração de invalidade de uma sociedade anónima por um fundamento diferente dos enumerados no artigo 11.o

Quanto às despesas

14

As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentou observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Tendo o processo, em relação às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

decidindo sobre a questão que lhe foi submetida pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.o 1 de Oviedo, por despacho de 13 de Março de 1989, declara:

 

O juiz nacional a quem é submetido um litígio em matéria abrangida pela Directiva 68/15 l/CEE do Conselho, de 9 de Março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para protecção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-membros às sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade, deve interpretar o direito nacional à luz do texto e da finalidade desta directiva para impedir a declaração de invalidade de uma sociedade anónima por um fundamento diferente dos enumerados no seu artigo 11.o

 

Mancini

O'Higgins

Diez de Velasco

Kakouris

Kapteyn

Proferido em audiencia pública no Luxemburgo, em 13 de Novembro de 1990.

O secretario

J.-G. Giraud

O presidente da Sexta Secção

G. F. Mancini


( *1 ) Lingua do processo: espanhol.