61989C0073

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 20 de Maio de 1992. - A. FOURNIER E OUTROS CONTRA V. VAN WERVEN, BUREAU CENTRAL FRANCAIS E OUTROS. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: TRIBUNAL DE GRANDE INSTANCE DE TOULON - FRANCA. - SEGURO AUTOMOVEL - TERRITORIO DE ESTACIONAMENTO HABITUAL. - PROCESSO C-73/89.

Colectânea da Jurisprudência 1992 página I-05621


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. O tribunal de grande instance de Toulon (Var, França), submeteu ao Tribunal uma questão prejudicial relativa ao sentido da expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual" constante do artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113), com a redacção resultante do artigo 4. da Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 (JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244).

2. A questão surgiu no quadro de um litígio originado por um acidente de viação que ocorreu em França em 25 de Julho de 1985. O veículo em que viajava a família Fournier foi embatido por um carro conduzido por Vaiter Van Werven, que foi, aparentemente, o responsável pela colisão. O automóvel por ele conduzido tinha sido originariamente matriculado na Alemanha, mas a matrícula foi cancelada, na sequência do roubo do carro nos Países Baixos. Na altura do acidente, o carro era portador de chapas de matrícula neerlandesas com um número que tinha sido atribuído a um outro carro pertencente ao Sr. Koppelman. Vaiter Van Werven não tinha o seguro obrigatório previsto pelo artigo 3. da Directiva 72/166.

3. A família Fournier propôs contra Vaiter Van Werven e o Bureau central français des assurances (a seguir "Gabinete" ou "Gabinete francês") uma acção judicial. A alegada responsabilidade do Gabinete baseava-se no disposto no artigo R 420-1 do code des assurances francês (código dos seguros), nos termos do qual o Gabinete tem a responsabilidade do pagamento da indemnização às vítimas de acidentes provocados por veículos automóveis cujo território habitual de estacionamento é um Estado-membro da Comunidade. O Gabinete alegou que não estava obrigado a indemnizar a família Fournier, porque as chapas de matrícula neerlandesas de que o carro era portador não eram autênticas. Sustentou que nessas circunstâncias, nos termos de um acordo entre os dois organismos, a responsabilidade incumbia a um outro organismo, o Fonds de garantie automobile. Por outro lado, o Gabinete chamou em garantia o seu homólogo neerlandês, o Nederlands Bureau der Morrijtuigverzekeraars (a seguir "Gabinete neerlandês"), com fundamento no facto de que este organismo poderia ser considerado responsável, visto que o veículo conduzido por V. Van Werven era portador de chapas de matrícula neerlandesas. O Gabinete neerlandês, por sua vez, chamou à autoria o organismo correspondente na Alemanha - o HUK-Verband - e o HUK-Coburg, a companhia de seguros alemã onde o carro tinha estado seguro quando ainda estava na posse do seu legítimo proprietário.

4. A questão fundamental a resolver no processo do tribunal nacional é a de saber qual dos cinco organismos acima mencionados - o Gabinete francês, o Fonds de garantie automobile, o Gabinete neerlandês, o HUK-Verband ou o HUK-Coburg - deve, finalmente, assumir a responsabilidade perante os Fournier. O tribunal de grande instance de Toulon foi de parecer que a resposta a esta questão dependia do siginificado da expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual" constante do n. 4 do artigo 1. da Directiva 72/166, na sua actual redacção. Explicarei mais adiante como (ou se) é que esta disposição é pertinente para a solução do presente caso. De qualquer modo, o tribunal de grande instance, através da sua decisão de 26 de Setembro de 1988, que deu entrada no Tribunal em 9 de Março de 1989, deferiu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

"Qual o território de estacionamento habitual, na acepção do artigo 1. , n. 4, da Directiva comunitária 72/166, de 24 de Abril de 1972, alterado pela directiva comunitária de 30 de Dezembro de 1983, de um veículo sucessivamente matriculado em diversos Estados-membros, no caso de as matrículas terem sido regularmente atribuídas pelas autoridades competentes ou quando resultem da colocação no veículo de chapas de matrícula falsas?"

5. O Gabinete francês e o HUK-Verband recorreram desta decisão para a cour d' appel de Aix-en-Provence. Por despacho de 4 de Abril de 1990, o Tribunal de Justiça suspendeu o processo prejudicial durante a pendência do recurso. Depois de a decisão de submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial ter sido confirmada pela cour d' appel, o Tribunal decidiu, em 24 de Abril de 1991, o prosseguimento do processo.

O enquadramento legal

6. Desde há várias décadas tem sido obrigatório para os condutores de veículos automóveis, na maior parte dos países da Europa e em muitos países não europeus, a subscrição de um seguro cobrindo os riscos de terceiros por danos corporais ou materiais resultantes de acidente de viação. Os países que impunham essa obrigação aos seus próprios residentes tinham uma natural relutância em admitir veículos de outros países, a menos que estes estivessem cobertos por uma apólice de seguro válida com garantias equivalentes. Foi para resolver este problema que o sistema denominado da "carta verde" foi instituído, na sequência da recomendação n. 5, adoptada, em 25 de Janeiro de 1949, pela Subcomissão dos Transportes Rodoviários da Comissão de Transportes Interiores da Comissão Económica para a Europa das Nações Unidas (v. artigo 1. , n. 5, da Directiva 72/166).

7. Em conformidade com essa recomendação foram criados em cada país gabinetes nacionais de seguros, agrupando as seguradoras autorizadas no país em causa a efectuar contratos de seguro de responsabilidade civil resultantes da circulação de veículos automóveis. As companhias de seguros foram autorizadas a conceder aos seus segurados, em nome do respectivo gabinete nacional, um certificado internacional de seguro, conhecido pelo nome de "carta verde". A carta verde servia para provar que o veículo em questão estava correctamente seguro por responsabilidade civil contra terceiros. Este sistema facilitou, inegavelmente, de modo considerável, a circulação rodoviária internacional, porque simplificou as verificações que tinham que ser efectuadas pelos funcionários das fronteiras para evitar a entrada de veículos sem seguro. Não fez desaparecer, porém, a necessidade dessas verificações, porque continuou a ser necessário verificar, caso a caso, se o veículo estava coberto por uma carta verde. Em 1972, o Conselho decidiu que esses controlos deveriam ser eliminados porque impediam a livre circulação de veículos e de pessoas no interior da Comunidade, prejudicando o funcionamento do mercado comum (v. os três primeiros considerandos da Directiva 72/166). O artigo 2. , n. 1 da Directiva 72/166 prevê, em consequência:

"Cada Estado-membro abster-se-á de fiscalizar o seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de outro Estado-membro.

Cada Estado-membro deve igualmente abster-se de fiscalizar o referido seguro relativamente aos veículos com estacionamento habitual no território de um país terceiro que entrem no seu território, desde que provenientes de um outro Estado-membro. Pode, todavia, efectuar uma fiscalização por sondagem."

Mas este tipo de fiscalização só poderia ser eliminado se os funcionários das fronteiras pudessem considerar que qualquer veículo que se mostrasse matriculado num Estado-membro estava adequadamente coberto por um seguro. Com esta finalidade, o artigo 3. da Directiva 72/166 prevê o seguinte:

"1. Cada Estado-membro, sem prejuízo da aplicação do artigo 4. , adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito de cobertura e as modalidades do seguro.

2. Cada Estado-membro adopta todas as medidas adequadas para que o contrato de seguro abranja igualmente:

- os prejuízos causados no território de um outro Estado-membro, de acordo com a respectiva legislação nacional em vigor;

..."

8. O Conselho também foi de parecer de que era necessário prever a criação em cada Estado-membro de um organismo capaz de assegurar o atendimento das reclamações relativas a acidentes causados por veículos cujo território de estacionamento habitual fosse noutro Estado-membro, provavelmente com o fundamento de que as vítimas desses acidentes deveriam poder obter a indemnização no seu próprio Estado, em vez de serem obrigadas a apresentar as suas reclamações contra um condutor e uma seguradora estabelecidos noutro país. No entanto, em vez de pedir aos Estados-membros que constituissem um organismo governamental com esse objectivo, o Conselho decidiu confiar essa tarefa aos gabinetes nacionais de seguradoras. Em consequência, o artigo 2. , n. 2 da Directiva 72/166 dispõe:

"No que respeita aos veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de um dos Estados-membros, as disposições da presente directiva, com excepção do disposto nos artigos 3. e 4. , produzem os seus efeitos:

- a partir do momento em que tenha sido concluído um acordo entre os seis serviços nacionais de seguros, nos termos do qual cada serviço nacional se responsabiliza pela regularização, nas condições fixadas pela respectiva legislação nacional do seguro obrigatório, dos sinistros ocorridos no seu território e provocados pela circulação de veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de um outro Estado-membro, estejam ou não seguros,

- a partir da data fixada pela Comissão, após esta ter verificado, em estreita colaboração com os Estados-membros, a existência do referido acordo,

- pelo período de duração do mesmo acordo."

9. Os gabinetes nacionais subscreveram, em 12 de Dezembro de 1973, o acordo a que se refere o artigo 2. , n. 2. Pela Decisão 74/166/CEE, de 6 de Fevereiro de 1974 (JO L 87, p. 13), a Comissão fixou em 15 de Maio de 1974 a data de abolição dos controlos de seguros relativamente aos veículos com estacionamento habitual nos Estados-membros.

10. Note-se que as disposições acima citadas fazem frequente referência ao "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual". Nos termos do n. 4 do artigo 1. da Directiva 72/166, esta expressão significa:

"- o território do Estado onde o veículo se encontra matriculado ou,

- no caso de não existir matrícula para um determinado tipo de veículo que, no entanto, possua uma chapa de seguro ou um sinal distintivo idêntico ao da chapa de matrícula, o território onde essa chapa ou sinal distintivo foi emitido, ou

- no caso de não existir matrícula, nem chapa de seguro ou sinal distintivo para certos tipos de veículos, o território do Estado do domicílio do possuidor...".

O artigo 4. da Directiva 84/5 substituiu o primeiro travessão desta definição pelas palavras "território de cujo Estado o veículo é portador de uma chapa de matrícula".

11. A Directiva 84/5 efectuou outras alterações importantes no sistema estabelecido pela Directiva 72/166. O artigo 1. , n. 1, prevê que o seguro obrigatório a que se refere o artigo 3. , n. 1, da Directiva 72/166 cubra tanto os danos materiais como os danos corporais. O artigo 1. , n. 2, fixa montantes mínimos para o seguro obrigatório. O artigo 1. , n. 4, estabelece:

"Cada Estado-membro deve criar ou autorizar um organismo que tenha por missão reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais ou corporais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no n. 1. Esta disposição não prejudica o direito que assiste aos Estados-membros de atribuírem ou não à intervenção desse organismo um carácter subsidiário, nem o direito de regulamentarem os sistemas de recursos entre este organismo e o ou os responsáveis pelo sinistro e outras seguradoras ou organismos de segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro."

O artigo 2. dispõe:

"1. Cada Estado-membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n. 1 do artigo 3. da Directiva 72/166/CEE, que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

- pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer;

...

seja, por aplicação do n. 1 do artigo 3. da Directiva 72/166/CEE, considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.

...

Os Estados-membros têm a faculdade - relativamente aos sinistros ocorridos no seu território - de não aplicar o disposto no n. 1 no caso de, e na medida em que, a vítima possa obter a indemnização pelo seu prejuízo através de um organismo de segurança social.

2. No caso de veículos roubados ou obtidos por meios violentos, os Estados-membros podem estabelecer que o organismo previsto no n. 4 do artigo 1. intervirá em substituição da seguradora nas condições estabelecidas no n. 1 do presente artigo; se o veículo tiver o seu estacionamento habitual num outro Estado-membro, este organismo não terá possibilidade de recurso contra qualquer organismo desse Estado-membro.

..."

12. Não foi submetida ao Tribunal nenhuma questão relativa à interpretação dos artigos 1. , n. 4, e 2. , da Directiva 84/5. A relevância destas disposições para o caso em apreço dependerão largamente da forma como e da altura em que a França transpôs a directiva. Estes são aspectos a considerar pelo órgão jurisdicional nacional.

13. Foi pedido aos Estados-membros que alterassem as suas disposições nacionais em conformidade com a Directiva 84/5 até 31 de Dezembro de 1987 (artigo 5. , n. 1). As disposições assim alteradas deveriam ser aplicadas o mais tardar em 31 de Dezembro de 1988 (artigo 5. , n. 2).

A jurisprudência do Tribunal

14. O artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166 foi objecto de dois acórdãos prejudiciais proferidos pelo Tribunal em 9 de Fevereiro de 1984. O processo Gambetta Auto (344/82, Recueil, p. 591) teve origem num acidente ocasionado em Paris por um veículo com uma chapa de matrícula austríaca. O veículo tinha sido regularmente registado na Áustria, mas tinha-lhe sido retirada a autorização para circular alguns meses antes, na sequência do cancelamento do seguro. Os veículos com estacionamento habitual na Áustria eram considerados como tendo estacionamento habitual na Comunidade, nos termos do artigo 7. , n. 2, da Directiva 72/166, uma vez que os gabinetes nacionais de seguradoras tinham concluído um acordo de garantia com a Áustria. A questão colocada ao Tribunal consistia essencialmente em saber se esse veículo devia ainda ser considerado como tendo estacionamento habitual no país da matrícula, apesar de lhe ter sido retirada autorização para circular. O Tribunal decidiu (n.os 13 a 15):

"Deve lembrar-se que a directiva pretende abolir a fiscalização da carta verde nas fronteiras. Para este efeito, é imprescindível que o Estado de estacionamento possa ser facilmente identificado, o que se garante através da emissão de uma chapa de matrícula. Exigir que essa chapa esteja válida equivaleria, de facto, a substituir o controlo da carta verde por uma verificação sistemática da matrícula e privaria a directiva de qualquer efeito útil.

De onde se conclui que, para efeitos de aplicação da directiva do Conselho, o veículo portador de uma chapa de matrícula deve ser considerado como tendo estacionamento no território da matrícula, mesmo que a autorização para a sua utilização tenha sido entretanto retirada.

Pelas razões expostas, deve responder-se à questão colocada que, quando um veículo é portador de uma chapa de matrícula regularmente emitida, deve ser considerado como tendo estacionamento no território da matrícula, mesmo que a autorização para a sua utilização tenha entretanto sido retirada."

15. O advogado-geral Sir Gordon Slynn tinha chegado a uma conclusão semelhante nas suas conclusões neste processo, acresentando:

"Esta conclusão é limitada aos casos em que foi emitida uma chapa de matrícula por uma autoridade competente relativamente a um veículo determinado que a utiliza. Outras situações referidas nas observações escritas e na audiência - em que por exemplo uma matrícula aparente é uma fraude, ou em que uma chapa autêntica foi mudada, por um ladrão ou por qualquer outra pessoa, para um veículo que a não possui - levantam questões diferentes que não cabe resolver aqui."

16. O processo Bureau central français (64/83, Recueil, p. 689) teve origem num acidente ocasionado em França por um veículo roubado com uma chapa de matrícula alemã. A matrícula tinha sido cancelada na sequência do roubo. Respondendo a uma questão sobre a interpretação do artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166, o Tribunal declarou:

"Quando um veículo é portador de uma chapa de matrícula regularmente emitida, deve ser considerado que tem estacionamento habitual, para efeitos da directiva, no território do Estado em que está matriculado, ainda que na altura em questão a autorização para utilização do veículo tenha sido retirada, independentemente do facto de o cancelamento da autorização tornar a matrícula inválida ou implicar que esta seja retirada."

A relevância da questão colocada e a competência do Tribunal para lhe responder

17. Como já referi, o problema central no processo perante o órgão jurisdicional nacional é de saber qual dos diferentes organismos envolvidos deve, finalmente, assumir a responsabilidade perante os Fournier. A Comissão defendeu, tanto nas observações escritas como nas respostas às questões colocadas pelo Tribunal, que a lei comunitária é omissa a este respeito. As directivas não se pronunciam sobre a questão de saber se o gabinete nacional do Estado-membro onde o acidente ocorreu tem o direito, depois de indemnizar as vítimas nos termos da garantia prevista pelo artigo 2. , n. 2, da Directiva 72/166, a ser reembolsado pelo gabinete nacional do Estado-membro onde o veículo tem estacionamento habitual. Essa questão é deixada à lei nacional e aos acordos de direito privado que o artigo 2. , n. 2, prevê. Como foi decidido no processo Demouche (152/83, Colect. 1987, p. 3833), o Tribunal não tem competência para interpretar um acordo desse tipo, uma vez que não é um acto de uma instituição comunitária.

18. A Comissão tem inegavelmente razão quando declara que a questão de saber se o gabinete francês pode reclamar o reembolso a outro gabinete nacional dos montantes pagos às vítimas de uma acidente é regulado pelo direito nacional e pelos acordos celebrados entre gabinetes e que o direito comunitário não restringe a liberdade dos gabinetes de celebrarem os acordos que lhes pareçam mais adequados a esse respeito. É igualmente evidente que o Tribunal não tem competência para interpretar um acordo desse tipo. O que não quer dizer, porém, que o Tribunal não tenha competência para responder à questão colocada pelo tribunal nacional no presente caso.

19. O tribunal de grande instance pediu ao Tribunal para interpretar uma expressão utilizada numa directiva comunitária. Aparentemente esta interpretação é solicitada porque foi utilizada a mesma expressão num acordo de direito privado entre gabinetes nacionais de seguradoras e a solução do caso pendente nesse tribunal depende do significado da expressão no contexto do acordo. A situação lembra a que existia nos processos apensos Dzodzi (C-297/88 e C-197/89, Colect. 1990, p. I-3763) e no processo Gmurzynska-Bscher (C-231/89, Colect. 1990, p. I-4003). Nestes processos, o Tribunal decidiu que tinha competência para decidir sobre a interpretação de disposições comunitárias não para efeitos de aplicação dessas mesmas disposições, mas para aplicar legislação nacional em que figuravam referências às disposições comunitárias. Naturalmente, esse princípio não se aplica necessariamente a todos os casos que dizem respeito à interpretação de um contrato privado que utiliza conceitos de direito comunitário. Considero, porém, que deve ser aplicado neste caso, porque o acordo entre gabinetes nacionais, longe de ser um vulgar contrato regulado pelo direito privado, é um elemento essencial do sistema instituído pela Directiva 72/166. Não apenas porque o acordo foi previsto pela directiva, mas porque a sua celebração era uma condição da entrada em vigor da maior parte das disposições da directiva.

20. De onde concluo que o Tribunal tem competência para responder à questão colocada pelo tribunal de grande instance. Deve sublinhar-se, porém, que ao interpretar as duas directivas, a tarefa do Tribunal se limita a dizer qual é o significado da expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual" nessas mesmas directivas. A questão de saber se a expressão tem o mesmo significado no acordo intergabinetes é inteiramente da competência do órgão jurisidicional nacional. Do mesmo modo, este Tribunal não deveria deixar-se influenciar, na interpretação das directivas, pelas repercussões que a sua decisão possa ter para a interpretação desse acordo. Deixarei, portanto, de lado, por irrelevante, toda a argumentação apresentada ao Tribunal relativamente à solução da questão de saber quem deverá, finalmente, assumir a responsabilidade pelas consequências do acidente sofrido pelos Fournier.

O significado da expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual"

21. O tribunal de grande instance pediu que fosse interpretado o artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166, com a redacção dada pela Directiva 84/5. Antes da alteração, o n. 4 do artigo 1. definia a expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual", como significando (salvo em certas situações excepcionais) "território do Estado onde o veículo se encontra matriculado". O artigo 4. da Directiva 84/5 substituiu esta expressão por "território de cujo Estado o veículo é portador de uma chapa de matrícula". Na altura em que o acidente ocorreu, ainda não tinha expirado o prazo para transposição da Directiva 84/5. É claro, a partir de quanto disse até agora, que, na minha opinião, não é tarefa deste Tribunal decidir se a questão é ou não relevante. Competindo ao tribunal nacional decidir se um termo usado no acordo intergabinetes tem o mesmo significado que na Directiva 72/166, é ao mesmo tribunal nacional que compete decidir se o termo deve ser interpretado por referência à versão original da directiva, ou à modificada. Limitar-me-ei de ora em diante à questão colocada pelo tribunal de grande instance, procurando interpretar o artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166, alterado pela Directiva 84/5.

22. A expressão território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual é usada pelo menos uma dezena de vezes nos artigos 2. , 3. , 5. , 6. e 7. da Directiva 72/166. O artigo 2. impõe aos Estados-membros que se abstenham de fiscalizar o seguro de responsabilidade civil relativamente aos veículos com estacionamento habitual no território doutro Estado-membro. O artigo 3. estabelece que cada Estado-membro deverá adoptar todas as medidas adequadas para garantir que os veículos com estacionamento habitual no respectivo território estejam cobertos pelo seguro. Os artigos 6. e 7. determinam, essencialmente, que cada Estado-membro deverá assegurar-se de que os veículos com estacionamento habitual num país terceiro estão cobertos por um seguro válido, quando entram em território comunitário, para circularem neste mesmo território.

23. Se estas disposições forem interpretadas à luz dos objectivos da Directiva 72/166, o significado da expressão "território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual" não pode, na minha opinião, dar origem a muitas dúvidas. O objectivo é o de suprimir os controlos fronteiriços dos seguros obrigatórios para facilitar a livre circulação de veículos automóveis e de pessoas entre Estados-membros (v. o segundo e terceiro considerandos da directiva). O sistema estabelecido pela directiva baseia-se na presunção de que os veículos estão devidamente matriculados e seguros no país de cuja chapa de matrícula são portadores, independentemente de saber se essa chapa é autêntica. Quando um funcionário das fronteiras francês vê um carro com uma chapa de matrícula neerlandesa, abstém-se de verificar se o condutor tem uma carta verde, porque o direito comunitário, nos termos do disposto no artigo 3. da Directiva 72/166, lhe impõe que presuma que o veículo está matriculado nos Países Baixos e correctamente seguro, ou, pelo menos, que, no caso de não estar seguro, o gabinete francês indemnizará as vítimas do acidente causado por esse carro (sem prejuízo de um eventual direito de regresso contra o gabinete neerlandês, se tal estiver previsto no acordo entre gabinetes. Se se pedisse aos funcionários das fronteiras que se abstivessem apenas de fiscalizar os documentos dos veículos efectivamente matriculados num Estado-membro, o objectivo do sistema seria frustrado. Antes de autorizar um veículo a passar a fronteira, o funcionário teria que verificar que a matrícula era autêntica, o que só poderia fazer examinando os documentos de matrícula de que o condutor fosse portador. De pouco serviria abolir a fiscalização dos documentos de seguro se se tornasse essa abolição dependente da fiscalização de outros documentos (v. o n. 13 do acórdão Gambetta Auto, já referido no n. 14).

24. De onde se conclui que, se se analisar o artigo 1. , n. 4, da Directiva 72/166 à luz da finalidade prosseguida pela directiva, se deve interpretá-lo como significando que um veículo deve ser considerado como tendo o seu estacionamento habitual no país de cuja chapa de matrícula é portador, independentemente de se saber se essa chapa é autêntica. O artigo 2. , n. 1, da directiva seria destituído de fundamento se o artigo 1. , n. 4, devesse ser interpretado de outro modo. Esta conclusão parece inevitável mesmo em relação à versão original do artigo 1. , n. 4. Se se tiver em conta a alteração efectuada pelo artigo 4. da Directiva 84/5, ainda há menos lugar para dúvidas. A nova redacção do artigo 4. , n. 1, estabelece que um veículo deve ser considerado como tendo estacionamento habitual no território do Estado de cuja chapa de matrícula é portador. Na sequência da alteração, a interpretação literal coincide com a interpretação baseada na finalidade prosseguida pela lei.

25. Que esta interpretação é a correcta confirma-se pelo penúltimo considerando da Directiva 84/5, onde se afirma que a abolição da fiscalização do seguro fica condicionada à garantia de que os gabinetes nacionais asseguram a indemnização dos danos causados por veículos com estacionamento habitual noutro Estado-membro e que, "para determinar se um veículo tem o seu estacionamento habitual num dado Estado-membro, o critério mais simples é o da chapa de matrícula desse mesmo Estado". A simplicidade deste critério ficaria seriamente comprometida se os funcionários das fronteiras tivessem que investigar se uma chapa de matrícula com toda a aparência de uma chapa autêntica regularmente emitida num Estado-membro era realmente o que parecia.

26. A interpretação ora proposta pode ainda ser confirmada pelos trabalhos preparatórios da Directiva 84/5. Quando a proposta de uma segunda directiva em matéria de seguro automóvel foi submetida ao Comité Económico e Social, este sugeriu que a chapa de matrícula fosse o elemento decisivo apenas quando se tratasse de "uma chapa legalmente atribuída ao veículo, mesmo que essa chapa tenha perdido a validade, e não... de uma chapa falsificada ou abusivamente aposta no veículo." [ponto 6.2 do parecer do Comité Económico e Social, JO 1981, C 138, p. 15). O Parlamento Europeu propôs igualmente (JO 1981, C 287, p. 44) que o primeiro travessão do artigo 4. , n. 1, tivesse a seguinte redacção:

"o território de cujo Estado o veículo é portador de uma chapa de matrícula regularmente emitida".

E apesar disso, nenhum vestígio dessas propostas do Comité Económico e Social e do Parlamento Europeu se encontra na versão final da Directiva 84/5. O que parece indicar, de modo conclusivo, que o legislador comunitário escolheu deliberadamente não distinguir entre chapas autênticas apostas num veículo em conformidade com uma matrícula válida, e chapas falsas ilegalmente apostas num veículo sem autorização da autoridade competente. Através de qualquer delas pode-se determinar o lugar de estacionamento habitual de um veículo.

27. Embora possa haver quem julgue esta solução chocante na medida em que permite ao ladrão ou falsificador desencadear várias consequências legais através do seu acto ilegal, há que notar que na maior parte dos casos esta solução é conforme à realidade. Os carros roubados, tanto como os carros conduzidos pelos legítimos proprietários, podem ter o seu "estacionamento habitual" em qualquer lado, e não é necessário conhecer muito bem a mentalidade do criminoso para considerar que uma pessoa que, com conhecimento de causa, conduz um veículo roubado, segundo todas as probabilidades, lhe aporá chapas de matrícula do território onde o utiliza; equipar um veículo roubado com chapas de matrícula estrangeiras levaria a chamar a atenção das autoridades - o que os ladrões normalmente procuram evitar. Portanto, na grande maioria dos casos, um veículo com uma chapa de matrícula falsa terá, de facto, "estacionamento habitual" no país que essas chapas indicam.

28. Sou, portanto, de opinião de que se deve responder pela forma seguinte à questão colocada pelo tribunal de grande instance de Toulon (Var):

"Quando um veículo matriculado num Estado-membro é roubado e no qual são ilegalmente apostas chapas de matrícula que criam a convicção de que está matriculado noutro Estado-membro, o artigo 1. , n. 4 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, com a redacção dada pelo artigo 4. da Directiva 84/5/CEE do Conselho, deve ser interpretado no sentido de que esse veículo tem estacionamento habitual no território do segundo Estado-membro."

(*) Língua original: inglês.