RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-263/88 ( *1 )

I — Matéria de facto

1. Quadro jurídico

A Decisão 80/1186/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia (JO L 361, p. 1; EE 11 F14 p. 3), foi prorrogada sucessivamente até 28 de Fevereiro de 1986 (Decisão 85/159/CEE do Conselho, de 26 de Fevereiro de 1985, JO L 61, p. 25; EE 11 F21 p. 249) e até 30 de Junho de 1986 (Decisão 86/46/CEE do Conselho, de 3 de Março de 1986, JO L 63, p. 94). O seu artigo 137.° dispõe:

«No que respeita ao regime aplicável em matéria de estabelecimento e de prestações de serviços, as autoridades competentes dos países e territórios tratarão numa base não discriminatória os nacionais e sociedades dos Estados-membros. Todavia, se, relativamente a uma actividade determinada, um Estado-membro não estiver em condições de assegurar um tratamento da mesma natureza aos nacionais ou sociedades da República Francesa, do Reino dos Países Baixos ou do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, estabelecidos num país ou território, assim como às sociedades sujeitas à legislação do país ou território em causa, nele estabelecidas, a autoridade competente desse país ou território não é obrigada a conceder tal tratamento.»

A 1 de Julho de 1986 entrou em vigor a nova Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia, em vigor até 28 de Fevereiro de 1990QO L 175, p. 1).

O seu âmbito de aplicação é limitado aos territórios dependentes da República Francesa, aos países e territórios dependentes do Reino Unido, aos países dependentes do Reino dos Paíse Baixos e, em parte, à Gronelândia (primeiro considerando da Decisão 86/283).

O artigo 176.° deste texto legal mantém a disposição do artigo 137.° da Decisão 80/1186/CEE, incluindo a reserva de reciprocidade.

2. As diligências da Comissão

Foi chamada a atenção da Comissão para o facto de as autoridades francesas não terem adoptado medidas susceptíveis de permitir aos nacionais de um outro Estado-membro, titulares do diploma francês exigido, estabelecerem-se ou prestarem serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários nos países e territórios ultramarinos da França (a seguir «cinco profissões»).

A Comissão considera que a condição de reciprocidade enunciada nos artigos 137.° e 176.° das decisões do Conselho já citadas está preenchida, pelo menos, desde a data de cumprimento das directivas 75/362//CEE, 77/452/CEE, 80/154/CEE, 78/686/CEE e 78/1026/CEE relativas ao reconhecimento mútuo de diplomas, certificados e outros títulos referentes às cinco profissões. A Comissão recorda que, por força destas directivas, os outros Estados-membros devem reconhecer os diplomas franceses, tal como, aliás, os passados por um outro Estado-membro, exigidos para o exercício destas profissões e obtidos por um nacional da República Francesa, sem lhe poder impor qualquer condição quanto ao local de estabelecimento do interessado.

Por conseguinte, a Comissão entendeu que a regulamentação destas profissões nos territórios franceses ultramarinos é incompatível com as decisões do Conselho já referidas e, por carta de 19 de Dezembro de 1985, convidou o Governo francês a apresentar as suas observações no prazo de dois meses. Numa nota recebida pela Comissão a 15 de Abril de 1986, as autoridades francesas não contestaram o incumprimento alegado e referiram que as medidas necessárias para pôr em conformidade as legislações locais estavam a ser elaboradas. Contudo, salientaram que a diversidade dos processos segundo os territórios em causa e a especificidade das situações locais torna difícil o estabelecimento de um calendário preciso, pelo menos antes de Junho de 1986.

Na falta de qualquer outra comunicação, a Comissão proferiu, a 27 de Maio de 1987, um parecer fundamentado, segundo o qual a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem nos termos do artigo 137.° da Decisão 80/1186 do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia, em vigor até 30 de Junho de 1986, e do artigo 176.° da Decisão 86/283 do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia. A República Francesa era convidada a dar cumprimento a este parecer fundamentado no prazo de dois meses.

Em carta de 3 de Agosto de 1987, a representação permanente da França junto das Comunidades Europeias transmitiu à Comissão as informações solicitadas. Delas decorre que nenhuma disposição de direito interno se opõe à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços de nacionais dos outros Estados-membros da Comunidade Económica Europeia, titulares dos diplomas franceses exigidos para o acesso às cinco profissões em questão, em quatro dos seis territórios referidos no parecer fundamentado: trata-se das terras austrais e antárcticas francesas, das ilhas Wallis e Futuna, de Mayotte e de São Pedro e Miquelon.

No que respeita aos outros territórios, as autoridades francesas informam que, por um lado, na Nova Caledónia e suas dependências, os nacionais de outros Estados-membros titulares de diplomas franceses que dão acesso à profissão de enfermeiro se podem estabelecer ou prestar serviços; em contrapartida, para as outras profissões foram iniciados os trâmites legislativos e regulamentares. Por outro lado, na Polinésia Francesa não se verificou qualquer alteração, mas a assembleia do território deve decidir quanto às cinco profissões em questão.

As autoridades francesas consideraram então ser previsível um prazo de seis meses para a adopção, a nível local, dos diversos textos legais necessários para pôr a legislação destes dois territórios em conformidade com o direito comunitário.

A 22 de Janeiro de 1988, uma carta do representante da França informou a Comissão da evolução da legislação na Nova Caledónia: a lei aplicável aos médicos, parteiras e odontologistas foi alterada em Agosto de 1987 e o processo relativo aos veterinários está a decorrer.

O atraso havido na adopção da regulamentação na Polinésia explica-se pelos acontecimentos de Dezembro de 1987, que levaram à formação de uma nova maioria política, à demissão do governo do território e à sua substitução.

Considerando que a República Francesa não deu cumprimento ao parecer fundamentado, uma vez que não modificou a regulamentação relativa aos veterinários na Nova Caledónia nem a relativa às cinco profissões na Polinésia Francesa, a Comissão intentou a presente acção.

II — Tramitação processual e pedidos das partes

A petição da Comissão foi registada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de Setembro de 1988.

A fase escrita do processo decorreu regularmente.

Com base no relatório preliminar do juiz relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução. Convidou entretanto a Comissão a remeter a carta n.° 406, de 26 de Março de 1986, da representação permanente da França junto das Comunidades Europeias.

A Comissão das Comunidades Europeias, demandante, concluiu pedindo que o Tribunal se digne:

declarar que a República Francesa, ao não ter adoptado as medidas necessárias para permitir aos nacionais de um outro Estado-membro, titulares do diploma francês exigido na matéria, o livre estabelecimento ou a prestação de serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários no território ultramarino da Polinésia Francesa e como veterinários na Nova Caledónia e suas dependências, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem nos termos do artigo 137.° da Decisão 80/1186 do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia, prorrogada até 30 de Junho de 1986, e do artigo 176.° da Decisão 86/283 do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativa à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia;

condenar a República Francesa nas despesas do processo.

O Governo francês limitou-se a declarar que desenvolveu e desenvolverá todos os seus esforços para solucionar o presente contencioso no mais breve prazo.

III — Fundamentos e argumentos das partes

O Governo fiancés não contesta o incumprimento quanto ao fundo. Invoca a especificidade da organização territorial da Polinésia Francesa e da Nova Caledónia e o facto de no processo estarem em jogo as competências respectivas do poder central e local. Além disso, salienta os esforços que desenvolveu para chegar a uma solução; em especial, refere a deliberação n.° 79, de 26 de Janeiro de 1989, do Congresso do território da Nova Caledónia, que alargou a todos os titulares do diploma francês exigido na matéria a possibilidade de se estabelecerem e de prestarem serviços de medicina e cirurgia veterinária (Journal officiel de L Nouvelle-Calédonie de 14.2.1989, p. 295).

Quanto às restrições ao exercício das profissões em causa na Polinésia Francesa, o Governo francês indica que preparou um projecto de lei a submeter, nos termos do artigo 74.° da Constituição, à assembleia territorial, a qual já emitiu o seu parecer.

A Comissão tomou nota da informação de que o Congresso do território da Nova Caledónia adaptou a regulamentação local às exigências do direito comunitário. Em contrapartida, mantém os pedidos apresentados no requerimento, mais especialmente a propósito das cinco profissões em questão na Polinésia Francesa.

Gordon Slynn

Juiz relator


( *1 ) Lingua do processo: francis.


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

12 de Dezembro de 1990 ( *1 )

No processo C-263/88,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por Etienne Lasnet, conselheiro jurídico, na qualidade de agente, com domicilio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Guido Berardis, Centre Wagner, Kirchberg,

demandante,

contra

República Francesa, representada por Edwige Belliard, subdirectora na direcção jurídica do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, e por Marc Giacomini, secretário dos Negócios Estrangeiros neste ministério, na qualidade de agente suplente, com domicilio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de França, 9, boulevard Prince-Henri,

demandada,

que tem por objecto obter a declaração de que a República Francesa, ao não ter adoptado as medidas necessárias para permitir aos nacionais de um outro Estado-membro, titulares do diploma francês exigido na matéria, estabelecerem-se ou prestarem serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários no território ultramarino da Polinesia Francesa e como veterinários na Nova Caledónia e suas dependências, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 137.° da Decisão 80/1186/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, e do artigo 176.° da Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativas à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia (JO 1980, L 361, p. 1; EE 11 Fl4 p. 3; e JO 1986, L 175, p. 1, respectivamente),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

constituído pelos Srs. G. F. Mancini, presidente de secção, f. f. de presidente, T. F. O'Higgins, J. C. Moitinho de Almeida e G. C. Rodriguez Iglesias, presidentes de secção, Sir Gordon Slynn, R. Joliét e F. Grévisse, juízes,

advogado-geral : J. Mischo

secretário: D. Louterman, administradora principal

visto o relatório para audiência,

ouvidas as partes em alegações na audiência de 3 de Abril de 1980,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Maio de 1990,

profere o presente

Acórdão

1

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal em 23 de Setembro de 1988, a Comissão das Comunidades Europeias intentou, nos termos do artigo 169.° do Tratado CEE, uma acção que visa obter a declaração de que a República Francesa, ao não ter adoptado as medidas necessárias para permitir aos nacionais de um outro Estado-membro, titulares do diploma francês exigido na matéria, estabelecerem-se ou prestarem serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários no território ultramarino da Polinésia Francesa e como veterinários na Nova Caledónia e suas dependências, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 137.° da Decisão 80/1186/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, e do artigo 176.° da Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativas à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia (JO 1980, L 361, p. 1; EE 11 F14 p. 3; e JO 1986, L 175, p. 1, respectivamente).

2

As decisões já citadas estabelecem em termos idênticos que :

«No que respeita ao regime aplicável em matéria de estabelecimento e de prestações de serviços, as autoridades competentes dos países e territórios tratarão numa base não discriminatória os nacionais e sociedades dos Estados-membros. Todavia, se, relativamente a uma actividade determinada, um Estado-membro não estiver em condições de assegurar um tratamento da mesma natureza aos nacionais ou sociedades da República Francesa, do Reino dos Países Baixos ou do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, estabelecidos num país ou território, assim como às sociedades sujeitas à legislação do país ou território em causa, nele estabelecidas, a autoridade competente desse país ou território não é obrigada a conceder tal tratamento.»

3

A Comissão entendeu que a regulamentação destas profissões nos territórios franceses ultramarinos era incompatível com as decisões já citadas do Conselho e, na sequência de uma troca de cartas, na qual o Governo francês não contestou o incumprimento alegado, proferiu um parecer fundamentado em 27 de Maio de 1987.

4

Por cartas de 3 de Agosto de 1987 e de 22 de Janeiro de 1988,.as autoridades francesas informaram a Comissão da evolução da regulamentação nos territórios ultramarinos. Delas resulta, contudo, que a situação não tinha sido ainda alterada no que se refere aos veterinários na Nova Caledónia e às cinco profissões em questão na Polinesia Francesa. Não tendo recebido posteriormente qualquer informação sobre o estado da regulamentação em questão, a Comissão intentou a presente acção, que apenas visa os dois territórios supra-indicados.

5

Para mais ampla exposição dos factos, fundamentos e argumentos das partes, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação do Tribunal.

6

O Governo francês não contesta o incumprimento, mas salienta que o atraso havido para pôr o direito nacional em conformidade com o direito comunitário é devido à especificidade de organização territorial nos territórios ultramarinos e ao facto de neste processo estarem em jogo as competências respectivas dos poderes centrais e locais.

7

A este propósito, segundo uma jurisprudência constante, um Estado-membro não pode invocar disposições, práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para justificar o incumprimento das obrigações e prazos estabelecidos pelas normas comunitárias (acórdão de 3 de Outubro de 1984, Comissão/República Italiana, 254/83, Recueil, p. 3395).

8

O Governo francês refere igualmente a adopção na Nova Caledónia de uma deliberação do Congresso do território da Nova Caledónia e suas dependências, que alargou a todos os nacionais dos Estados-membros da Comunidade Europeia possuidores do diploma francês exigido na matéria a faculdade de se estabelecerem ou prestarem serviços de medicina e cirurgia veterinária.

9

Não é menos certo ter esta medida sido adoptada após a introdução da acção. A este propósito, importa lembrar que o objecto de uma acção intentada nos termos do artigo 169.° é fixado pelo parecer da Comissão e que, mesmo no caso de o incumprimento ter sido eliminado posteriormente ao prazo fixado nos termos do segundo parágrafo do mesmo artigo, a continuação da acção tem interesse para estabelecer a base de responsabilidade que pode, nesse caso, caber ao Estado-membro em consequência do seu incumprimento, perante outros Estados-membros, a Comunidade ou particulares.

10

Segue-se que, ao não adoptar as medidas necessárias para permitir aos nacionais de outro Estado-membro possuidores do diploma francês exigido na matéria, estabelecerem-se ou prestarem serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários no território ultramarino da Polinésia Francesa e ao não ter adoptado nos prazos exigidos as disposições necessárias relativas à profissão de veterinário na Nova Caledónia e suas dependências, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 137.° da Decisão 80/1186/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, e do artigo 176.° da Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativas à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Económica Europeia.

Quanto às despesas

11

Por força do disposto no n.° 2 do artigo 69.° do Regulamento Processual, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. Tendo a República Francesa sido vencida no essencial, há que condená-la nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide :

 

1)

Ao não ter adoptado as medidas necessárias para permitir aos nacionais de outro Estado-membro, possuidores do diploma francês exigido na matéria, estabelecerem-se ou prestarem serviços como médicos, enfermeiros responsáveis por cuidados gerais, parteiras, odontologistas e veterinários no território ultramarino da Polinésia Francesa e ao não ter adoptado nos prazos requeridos as disposições necessárias relativas à profissão de veterinário na Nova Caledónia e suas dependências, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 137.° da Decisão 80/1186/CEE do Conselho, de 16 de Dezembro de 1980, e do artigo 176.° da Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986, relativas à associação dos países e territórios ultramarinos à Comunidade Econômica Europeia.

 

2)

A República Francesa é condenada nas despesas.

 

Mancini

O'Higgins

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Slynn

Joliét

Grévisse

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de Dezembro de 1990.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente f. f.

G. F. Mancini

presidente de secção


( *1 ) Lingua do processo: francis.