61987J0053

ACORDAO DO TRIBUNAL DE 5 DE OUTUBRO DE 1988. - CONSORZIO ITALIANO DELLE COMPONENTISTICA DI RICAMBIO PER AUTOVEICOLI E SPA MAXICAR CONTRA REGIE NATIONALE DES USINES RENAULT. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO TRIBUNALE CIVILE E PENALE DE MILAO. - EXERCICIO DOS DIREITOS DERIVADOS DUM MODELO INDUSTRIAL DEPOSITADO RELATIVO A ELEMENTOS DA CARROCARIA DE VEICULOS AUTOMOVEIS - COMPATIBILIDADE COM OS ARTIGOS 30. A 36. E 86. DO TRATADO. - PROCESSO 53/87.

Colectânea da Jurisprudência 1988 página 06039


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

1. Livre circulação de mercadorias - Propriedade industrial e comercial - Desenhos e modelos - Protecção - Condições e modalidades - Fixação pelo direito nacional - Protecção de peças integrantes de um conjunto protegido enquanto tal - Admissibilidade

(Tratado CEE, artigo 36.°)

2. Livre circulação de mercadorias - Propriedade industrial e comercial - Desenhos e modelos - Elementos da carroçaria de automóveis - Exercício do direito pelo construtor titular - Admissibilidade

(Tratado CEE, artigos 30.° e 36.°)

3. Concorrência - Posição dominante - Desenhos e modelos - Elementos da carroçaria de automóveis - Exercício do direito - Abuso - Condições

(Tratado CEE, artigo 86.°)

4. Concorrência - Posição dominante - Desenhos e modelos - Elementos da carroçaria de automóveis - Venda pelo construtor, titular do direito, a um preço superior ao que é praticado pelos fabricantes independentes - Abuso - Inexistência

(Tratado CEE, artigo 86.°)

Sumário


1. Na falta de uma unificação no âmbito da Comunidade ou de uma aproximação das legislações, a fixação das condições e modalidades da protecção dos desenhos e dos modelos compete à legislação interna de cada Estado-membro. Compete ao legislador nacional determinar os produtos que podem beneficiar da protecção, mesmo quando façam parte de um conjunto já protegido enquanto tal.

2. As normas referentes à livre circulação de mercadorias não se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional nos termos da qual um fabricante de veículos automóveis, titular dum modelo ornamental depositado relativo a peças sobresselentes destinadas aos veículos por ele fabricados, pode proibir a fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de peças protegidas ou impedir a importação de outros Estados-membros das peças protegidas, que aí tenham sido fabricadas sem o seu consentimento, tendo em conta que essa regulamentação nacional se destina a proteger a própria substância do direito exclusivo concedido ao titular e é oponível, indeferentemente, quer aos que fabriquem as peças sobresselentes no território nacional quer aos que as importem de outros Estado-membros e não visa favorecer os produtos nacionais face aos produtos provenientes de outros Estados-membros.

3. O simples facto de obter o depósito de modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis não constitui um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.° do Tratado.

Todavia, o exercício do direito exclusivo, que corresponde a esses modelos, pode ser proibido pelo artigo 86.° do Tratado, caso dê origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a determinados comportamentos abusivos, tais como a recusa injustificada de venda de peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes, a fixação do preço das peças sobresselentes a um nível iníquo ou à decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo quando ainda circulam muitos veículos desse mesmo modelo, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-membros.4. O facto de um construtor de automóveis vender elementos da carroçaria, protegidos nos termos do direito da propriedade industrial, a um preço superior ao que é praticado para os mesmos elementos por fabricantes independentes não é necessariamente constitutivo de um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.° do Tratado, dado que o titular de um modelo ornamental depositado pode legitimamente aspirar a uma remuneração das despesas que efectuou para criar o modelo protegido.

Partes


No processo 53/87,

que tem por objecto um pedido submetido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Tribunale civile e penale de Milão, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Consorzio italiano della componentistica di ricambio per autoveicoli e Maxicar

e

Régie nationale des usines Renault,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30.° a 36.° e 86.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL,

coonstituído pelos Srs. Mackenzie Stuart, presidente, G. Bosco, O. Due e J. C. Moitinho de Almeida, presidentes de secção, T. Koopmans, U. Everling, K. Bahlmann, Y. Galmot, R. Joliet, T. F. O' Higgins e F. A. Schockweiler, juízes,

advogado-geral: J. Mischo

secretário: D. Louterman, administradora

vistas as observações apresentadas:

- em representação do Consorzio italiano della componentistica di ricambio per autoveicoli e da sociedade Maxicar, autoras na causa principal, pelos advogados Marino Bin, Fabio Bortolotti, Guido Colonna, Giorgio Floridia, Claudio Maria Prado e Enrico Radice,

- em representação da sociedade Régie nationale des usines Renault, ré na causa principal, pelos advogados Mario Franzosi, Xavier Desjeux, Antoine Braun e Francis Herbert,

- em representação do Governo francês, pelos advogados Edwige Belliard e Philippe Pouzoulet, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo da República Federal da Alemanha, por Martin Seidel, conselheiro do Ministério Federal da Economia, na qualidade de agente,

- em representação do Governo espanhol, por Francisco Javier Conde de Saro, director-geral da Coordenação Jurídica e Institucional Comunitária, e Rafael García-Valdecasas Fernández, chefe do Serviço Jurídico do Estado, na qualidade de agentes,

- em representação do Governo italiano, por Ivo M. Braguglia, avvocato dello Stato, na qualidade de agente,

- em representação do Governo britânico, por H. R. L. Purse, do Treasury Solicitor' s Department, na qualidade de agente,

- em representação da Comissão, por Giuliano Marenco e Karen Banks, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 18 de Maio de 1988,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 21 de Junho de 1988,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 18 de Setembro de 1986, recebido no Tribunal em 20 de Fevereiro de 1987, o Tribunale civile e penale de Milão submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 30.° a 36.° e 86.° do Tratado CEE, para ser apreciada, por um lado, a compatibilidade de uma legislação nacional, que permite proteger, pelo depósito de modelo ornamental, peças da carroçaria de veículos automóveis, com as normas comunitárias relativas à livre circulação de mercadorias e, por outro, a natureza abusiva que pode, em certas circunstâncias, revestir o exercício desse direito.

2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe o Consorzio italiano della componentistica di ricambio per autoveicoli (de ora em diante, o "Consorzio"), associação que agrupa várias empresas italianas que fabricam e comercializam peças avulsas de carroçaria para automóveis e a Maxicar, empresa que faz parte do Consorzio, à Régie nationale des usines Renault (de ora em diante, a "Renault").

3 Numa acção intentada perante o órgão jurisdicional nacional, o Consorzio e a Maxicar pedem, por um lado, que sejam declarados nulos os modelos ornamentais depositados de que é titular a Renault, na medida em que esses modelos visam peças avulsas da carroçaria de veículos automóveis, peças que, enquanto tais, não apresentam qualquer valor estético autónomo e, por outro, que se declare que a produção e comercialização de peças sobresselentes, que não sejam de origem, não constitui uma infracção às disposições nacionais relativas à concorrência desleal. A Renault, em reconvenção, pede que seja reconhecida e imputada às autoras a contrafacção dos modelos.

4 O órgão jurisdicional nacional considera que a protecção, como modelo ornamental, dos elementos da carroçaria dos veículos automóveis é conforme ao direito italiano. Todavia, entende que o exercício dos direitos exclusivos que resultam dessa protecção parece, no presente caso, ser contrário às normas do Tratado.

5 A este propósito, argumenta que a remuneração do titular do direito já está garantida pelo direito exclusivo que recai sobre o conjunto da carroçaria e que a protecção dos seus elementos de forma separada não é, pois, justificada. Acrescenta que a Renault, que, naturalmente, é destinatária de uma parte das encomendas dos consumidores para peças destinadas aos veículos do seu fabrico, beneficia de uma posição de monopólio que lhe permite eliminar a concorrência dos fabricantes independentes de peças sobresselentes, continuando a praticar preços elevados.

6 Segundo o órgão jurisdicional nacional, resulta das precedentes considerações que a protecção de que beneficia a Renault pode constituir uma forma de discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio de peças sobresselentes entre os Estados-membros, na acepção do artigo 36.° do Tratado, e que a posição de monopólio, que dessa forma é garantida à interessada, pode eventualmente cair na alçada do artigo 86.° do Tratado.

7 O órgão jurisdicional nacional decidiu, nestas condições, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

"1) Os artigos 30.° a 36.° do Tratado CEE devem ser interpretados no sentido de que impedem que o titular de um modelo ornamental depositado num Estado-membro possa invocar o respectivo direito exclusivo para proibir a terceiros o fabrico e a venda, bem como a exportação para outro Estado-membro, de peças avulsas que integram, no seu conjunto, a carroçaria de um automóvel já comercializado, ou seja, das peças avulsas destinadas a serem vendidas como peças sobresselentes do mesmo automóvel?

2) O artigo 86.° do Tratado CEE é aplicável para proibir o abuso da posição dominante que os fabricantes de automóveis detêm no mercado de sobresselentes para os automóveis da sua fabricação e que consiste em prosseguir, por meio do depósito de modelos, a finalidade de eliminar a concorrência das empresas independentes que fabricam peças sobresselentes?"

8 Para mais ampla exposição da matéria de facto e do enquadramento jurídico do litígio na causa principal, da tramitação processual, bem como das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

Quanto à primeira questão

9 Resulta da decisão de reenvio que os fabricantes independentes de peças sobresselentes para veículos invocam as normas relativas à livre circulação de mercadorias para que o juiz nacional afaste a aplicação de uma legislação nacional relativa à propriedade industrial por força da qual um fabricante de automóveis pode obter, por meio do depósito do modelo ornamental, uma protecção de certas peças sobresselentes destinadas aos veículos que fabrica. Esses fabricantes independentes pretendem dessa forma evitar acções de contrafacção destinadas a impedir-lhes o fabrico, para venda no mercado interno ou para exportação, de peças cobertas pelo direito exclusivo ou destinadas a proibir-lhes a importação, de outros Estados-membros, das peças protegidas que tenham sido fabricadas sem o consentimento do titular do modelo industrial.

10 Convém começar por sublinhar que, como o Tribunal já decidiu no seu acórdão de 14 de Setembro de 1982 (Keurkoop, 144/81, Recueil, p. 2853), relativo à protecção dos desenhos e modelos, no presente estado do direito comunitário e na falta de uma unificação no âmbito da Comunidade ou de uma aproximação das legislações, a fixação das condições e modalidades dessa protecção compete à lei interna. Compete ao legislador nacional determinar os produtos que podem beneficiar da protecção, mesmo quando façam parte de um conjunto já protegido enquanto tal.

11 Seguidamente, importa observar que a faculdade, para o titular do modelo ornamental depositado, de se opor à fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de produtos que incorporem o modelo ou de impedir a importação de produtos semelhantes que tenham sido fabricados sem o seu consentimento nos outros Estados-membros constitui a substância do seu direito exclusivo. Impedir a aplicação da legislação nacional, em semelhantes condições, traduzir-se-ia, pois, em pôr em causa a própria existência desse direito.

12 Há ainda que recordar que, por força do artigo 36.°, as restrições à importação ou à exportação que se justifiquem por razões de protecção da propriedade industrial e comercial são admissíveis na medida em que não constituam nem uma forma de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros. A este propósito, basta ter presente, face aos documentos que constam dos autos, que o direito exclusivo concedido pela legislação nacional aos titulares dos modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis é oponível, indiferentemente, quer aos que fabriquem as peças sobressalentes no território nacional quer aos que as importem de outros Estados-membros e que essa legislação não visa favorecer os produtos nacionais face aos produtos provenientes de outros Estados-membros.

13 Nestas condições, há que responder à primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional que as normas referentes à livre circulação de mercadorias não se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional nos termos da qual um fabricante de veículos automóveis, titular dum modelo ornamental depositado relativo a peças sobresselentes destinadas aos veículos por ele fabricados, pode proibir a fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de peças protegidas ou impedir a importação de outros Estados-membros das peças protegidas que aí tenham sido fabricadas sem o seu consentimento.

Quanto à segunda questão

14 Mediante a segunda questão, o órgão jurisdicional nacional visa saber, em substância, se a obtenção do depósito de modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis e o exercício dos direitos exclusivos que daí resultam constitui um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.° do Tratado.

15 Há, desde logo, que observar que o simples facto de obter o benefício do direito exclusivo concedido pela lei, direito cuja substância consiste em poder impedir a fabricação e a venda dos produtos protegidos por terceiros não autorizados, não pode ser visto como uma forma abusiva de eliminação da concorrência.

16 No que se refere ao exercício do direito exclusivo, pode ser proibido pelo artigo 86.°, caso dê origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a determinados comportamentos abusivos, tais como a recusa injustificada de venda de peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes, a fixação do preço das peças sobresselentes a um nível iníquo ou à decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo quando ainda circulam muitos veículos desse mesmo modelo, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-membros.

17 Tratando-se, mais precisamente, da diferença de preço entre as peças vendidas pelo construtor e as que são vendidas pelos fabricantes independentes, convém observar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão de 29 de Fevereiro de 1968, processo 24/67, Parke, Davis and Co. Recueil, p. 83), o preço mais elevado das primeiras face às segundas não constitui necessariamente um abuso, dado que o titular de um modelo ornamental depositado pode legitimamente aspirar a uma remuneração das despesas que efectuou para desenvolver o modelo protegido.

18 Nestas condições, há que responder à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional que:

- o simples facto de obter o depósito de modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis não constitui um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.° do Tratado;

- o exercício do direito exclusivo, que corresponde a esses modelos, pode ser proibido pelo artigo 86.° do Tratado, caso dê origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a determinados comportamentos abusivos, tais como a recusa injustificada de venda de peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes, a fixação do preço das peças sobresselentes a um nível iníquo ou à decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo quando ainda circulam muitos veículos desse mesmo modelo, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-membros.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

19 As despesas efectuadas pelo Governo da República Federal da Alemanha, o Governo francês, o Governo espanhol, o Governo britânico, o Governo italiano e a Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Tribunale civile e penale de Milão, por despacho de 18 de Setembro de 1986, declara:

1) As normas relativas à livre circulação de mercadorias não se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional nos termos da qual um fabricante de veículos automóveis, titular de um modelo ornamental depositado relativo a peças sobresselentes destinadas aos veículos por ele fabricados, pode proibir a fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de peças protegidas ou impedir a importação de outros Estados-membros das peças protegidas que aí tenham sido fabricadas sem o seu consentimento.

2) O simples facto de obter o depósito de modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis não constitui um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86.° do Tratado; o exercício do direito exclusivo que corresponde a esses modelos pode ser proibido pelo artigo 86.° do Tratado, caso dê origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a determinados comportamentos abusivos, tais como a recusa injustificada de venda de peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes, a fixação do preço das peças sobresselentes a um nível iníquo ou à decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para determinado modelo quando ainda circulam muitos veículos desse mesmo modelo, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-membros.