61987J0035

ACORDAO DO TRIBUNAL DE 30 DE JUNHO DE 1988. - THETFORD CORPORATION E OUTRA CONTRA FIAMMA SPA E OUTROS. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIA APRESENTADO PELA COURT OF APPEAL DE LONDRES. - PROTECCAO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL E COMERCIAL - PATENTES - LIVRE CIRCULACAO DE PRODUTOS IMPORTADOS. - PROCESSO 35/87.

Colectânea da Jurisprudência 1988 página 03585


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


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Livre circulação das mercadorias - Propriedade industrial e comercial - Direito de patente - Legislação nacional que reconhece o princípio da novidade relativa de uma invenção - Compatibilidade com o artigo 36.° do Tratado - Sentença que proíbe a importação de um produto fabricado em violação de patente - Medida justificada

(Tratado CEE, artigos 30.° e 36.°)

Sumário


No estado actual do direito comunitário, caracterizado pela ausência de harmonização das legislações dos Estados-membros em matéria de patentes, e na ausência de convenções internacionais que a tal se oponham, o artigo 36.° deve ser interpretado no sentido de que não constitui obstáculo à aplicação da legislação de um Estado-membro que reconhece o princípio da novidade relativa e que prevê que uma patente concedida para uma invenção não pode ser anulada apenas pelo facto de essa invenção figurar numa descrição de patente apresentada mais de cinquenta anos antes. Quando o direito nacional prevê normalmente uma proibição como meio de impedir qualquer violação de patente, esta proibição, na medida em que tenha por objecto preservar a essência do direito de patente, é justificada nos termos do artigo 36.°

Partes


No processo 35/87,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Court of Appeal de Londres, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Thetford Corporation e outra

e

Fiamma SpA e outros,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 36.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL,

constituído pelos Srs. Mackenzie Stuart, presidente, G. Bosco, O. Due e J. C. Moitinho de Almeida, presidentes de secção, T. Koopmans, U. Everling, K. Bahlmann, Y. Galmot, C. Kakouris, T. F. O' Higgins e F. Schockweiler, juízes,

advogado-geral: J. Mischo

secretário: B. Pastor, administradora

considerando as observações apresentadas:

- em representação da Thetford Corporation e outra, demandante na acção principal, pela sociedade de advogados Clifford Chance, de Londres, na fase escrita do processo, e na audiência por M. Burkill, barrister,

- em representação de Fiamma SpA e outros, demandada na acção principal, por Evershed e Tomkinson, advogados em Birmingham, na fase escrita do processo, e na audiência por M. Hicks, barrister,

- em representação do Governo britânico, por S. J. Hay, agente, e N. Pumfrey, barrister,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. L. White, membro do seu Serviço Jurídico,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 1 de Março de 1988,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 28 de Abril de 1988,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão registada na Secretaria do Tribunal em 5 de Fevereiro de 1987, o Court of Appeal de Londres submeteu ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 36.° do mesmo Tratado, tendo por objecto apreciar a compatibilidade de certas disposições da legislação nacional sobre as patentes, e especialmente do princípio dito da "novidade relativa", com as regras relativas à livre circulação de mercadorias.

2 Estas questões são colocadas no âmbito de um processo em que são partes as sociedades Thetford Corporation e Thetford (Aqua) Products Limited (adiante designadas "Thetford"), titulares de diversas patentes britânicas relativas a sanitários portáteis, e as sociedades Fiamma SpA, fabricante desse tipo de produto em Itália, e Fiamma UK (adiante designadas "Fiamma"), importadora desses produtos no Reino Unido.

3 Resulta da decisão de reenvio que a Thetford intentou uma acção contra a Fiamma por violação de duas patentes britânicas que lhe foram concedidas ao abrigo do Patents Act de 1949, sob os n.os 1 226 235 (adiante designada "patente 235") e 1 530 155. Estes produtos, que constituem o objecto da alegada violação, são fabricados em Itália e vendidos no Reino Unido. A Fiamma não possui qualquer licença da Thetford, seja no Reino Unido, em Itália ou em qualquer outro país.

4 A Fiamma, após ter refutado a acusação de violação da patente, alegou perante o Patents Court, por um lado, que a patente da Thetford era nula devido à falta de novidade e de actividade inventiva e, por outro, que, mesmo no caso de a patente ser válida, os artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE limitariam as reparações que os órgãos jurisdicionais do Reino Unido deviam conceder ao titular da patente.

5 Tendo o Patents Court acolhido o pedido da Thetford, a Fiamma interpôs recurso para o Court of Appeal. Este órgão jurisdicional declarou que, considerando a inexistência de jurisprudência relevante do Tribunal a propósito das questões suscitadas pelas demandadas, as suas alegações constituem uma argumentação defensável. Em consequência, decidiu submeter ao Tribunal as seguintes questões:

"1) Uma patente actualmente em vigor, que foi concedida no Reino Unido ao abrigo das disposições do Patents Act de 1949, relativa a uma invenção que, a não existirem as disposições da Secção 50 dessa lei, seria considerada antecipada (por falta de novidade) por uma descrição anterior - conforme resulta dos parágrafos a) ou b) da Secção 50 (1) da mesma lei - constitui propriedade industrial ou comercial digna de protecção nos termos do artigo 36.° do Tratado de Roma ?

2) Caso a referida patente seja considerada merecedora da protecção a que acima se faz referência, a única reparação a que o seu titular tem direito ao abrigo do artigo 36.° do Tratado de Roma consiste, conforme sustenta a demandada Fiamma, na condenação no pagamento de um 'royalty' razoável (ou qualquer outra compensação monetária), mas não numa proibição?"

6 Para mais ampla exposição da matéria de facto da acção principal, da regulamentação nacional aplicável e das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida necessária à fundamentação do Tribunal.

Quanto à primeira questão

7 A primeira questão do Court of Appeal refere-se à questão de saber se a derrogação aos regimes dos artigos 30.° e 34.° do Tratado CEE que consta da primeira frase do artigo 36.° se aplica necessariamente a qualquer patente concedida nos termos de uma legislação nacional ou se, pelo contrário, não beneficia as patentes concedidas por força do princípio da novidade relativa.

8 O princípio da novidade relativa, nos termos em que foi adoptado, na época, pela legislação do Reino Unido, resulta da Secção 50 (1) do Patents Act de 1949, que estabelecia o seguinte:

"nenhuma invenção reivindicada num processo completo será considerada como carecida de novidade apenas pelo facto de ter sido publicada no Reino Unido:

a) num processo apresentado em apoio de um pedido feito no Reino Unido mais de 50 anos antes da data de apresentação do referido processo completo,

b) num processo que descreve a invenção para efeitos de um pedido de protecção feito num país que não o Reino Unido pelo menos 50 anos antes dessa data,

c) ..."

Assim, segundo a lei de 1949, não podia proceder uma acção de anulação de patente num processo, britânico ou outro, datando de há mais de 50 anos.

9 A título preliminar, é necessário salientar que, como as partes reconheceram na audiência, a questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional está centrada no princípio da novidade relativa, visto que o Patents Act de 1949 não concedia a possibilidade de anular uma patente pelo simples facto da sua divulgação anterior fora de um período fixado pela lei;

10 A este respeito, deve recordar-se que, por força das disposições do Tratado relativas à livre circulação das mercadorias, em particular do artigo 30.°, são proibidas entre os Estados-membros as medidas restritivas de importações e todas as medidas de efeito equivalente. Todavia, nos termos do artigo 36.°, essas disposições não impedem as proibições ou restrições de importações justificadas por razões de protecção da propriedade industrial ou comercial. Tais proibições ou restrições não devem, no entanto, constituir nem um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros.

11 A demandada na acção principal sustenta que a derrogação prevista no artigo 36.° só pode aplicar-se se um direito de patente concedido ao abrigo de uma legislação nacional preencher certas condições fundamentais. Em particular, não pode considerar-se abrangida pela noção de "protecção da propriedade industrial ou comercial" uma patente concedida sem que tenha havido novidade ou actividade inventiva.

12 A este respeito, recorde-se que, como o Tribunal já decidiu no seu acórdão de 14 de Setembro de 1982 (Keurkoop, 144/81, Recueil, p. 2853), relativo à protecção dos desenhos e modelos, "no estado actual do direito comunitário e na ausência de uma unificação no âmbito da Comunidade ou de uma aproximação das legislações, a fixação das condições e modalidades de protecção depende das normas nacionais" (tradução provisória).

13 A demandada na acção principal alegou todavia que a jurisprudência do Tribunal em matéria de desenhos e modelos não pode ser transposta para o domínio das patentes, tendo em conta o grau mais elevado de harmonização das legislações nacionais já realizado neste último sector e a existência de convenções internacionais que reconhecem o princípio da novidade absoluta.

14 Este argumento não pode ser aceite. Com efeito, por um lado, nenhuma harmonização das legislações nacionais dos Estados-membros em matéria de patentes foi efectuada até ao presente por actos de direito comunitário. Por outro lado, nenhuma das convenções internacionais em vigor em matéria de patentes pode, no caso sub judice, apoiar a tese avançada pela demandada na acção principal. A entrada em vigor da Convenção de Munique de 1973 sobre a concessão da patente europeia, que consagra o princípio da novidade absoluta, não afectou a existência das legislações nacionais em matéria de concessão de patentes. O n.° 2 do artigo 2.° da convenção afirma expressamente que "em cada um dos Estados contratantes para o qual é concedida, a patente europeia tem os mesmos efeitos e está sujeita ao mesmo regime de uma patente nacional concedida nesse Estado". Quanto à Convenção de Estrasburgo de 1963 sobre a unificação de certos elementos do direito das patentes de invenção, saliente-se que esta convenção, tendo entrado em vigor posteriormente à concessão da patente em questão, não pode ser utilizada como elemento determinante para efeitos da interpretação do direito comunitário. O único acto cujas disposições seriam susceptíveis de apoiar a posição da demandada na acção principal quanto ao reconhecimento na ordem jurídica comunitária do princípio da novidade absoluta, a Convenção do Luxemburgo de 1975 sobre a patente comunitária, que tem uma estreita ligação com a citada Convenção de Munique, não entrou em vigor.

15 Daqui decorre que, tal como o Tribunal decidiu no seu acórdão de 29 de Fevereiro de 1968 (Parke Davis, 24/67, Recueil, p. 82), relevando actualmente a existência do direito de patente apenas da legislação interna, a legislação de um Estado-membro em matéria de patentes, como é o caso da legislação que ora se discute, está em princípio incluída nas derrogações ao artigo 30.° admitidas pelo artigo 36.°

16 Em seguida, é necessário examinar se a aplicação do referido princípio não é susceptível de constituir um meio de discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros, na acepção da segunda frase do artigo 36.°

17 No que respeita à primeira possibilidade, isto é, de se tratar de um meio de discriminação arbitrária, basta recordar, para afastar tal argumento, que, na audiência, o agente do Governo britânico expôs, sem ser desmentido pelas outras partes, que a aplicação da Secção 50 (1) do Patents Act de 1949 não dá lugar a qualquer discriminação. Com efeito, por um lado, esta regra exclui que sejam considerados processos que descrevam uma invenção apresentados tanto no Reino Unido como noutro Estado; por outro, nenhuma discriminação com base na nacionalidade dos requerentes de patentes existe, tendo os cidadãos estrangeiros que requerem uma patente no Reino Unido os mesmos direitos que os cidadãos britânicos.

18 É ainda necessário determinar se a aplicação do princípio em causa não pode dar lugar a uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros.

19 A este respeito, a justificação da regra da novidade relativa, conforme resulta do processo, consiste no objectivo prosseguido pelo legislador britânico aquando da introdução, em 1902, da regra dos "cinquenta anos", que era o de favorecer a actividade criativa dos inventores no interesse da indústria. Paraeste efeito, a regra em causa tinha por objectivo permitir a recompensa que constitui a concessão de uma patente, mesmo nos casos de "redescoberta" de uma invenção "antiga". Em tais casos, a legislação britânica visava evitar que a existência de uma antiga descrição de patente nunca utilizada ou publicada pudesse constituir motivo de anulação de uma patente validamente concedida.

20 Nestas condições, uma regra como a dos "cinquenta anos" não pode ser considerada como constituindo uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros.

21 Face às considerações que precedem, deve responder-se à primeira questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional afirmando que, no estado actual do direito comunitário, o artigo 36.° deve ser interpretado no sentido de que não constitui obstáculo à aplicação da legislação de um Estado-membro em matéria de patentes que disponha que uma patente concedida para uma invenção não pode ser anulada apenas pelo facto de essa invenção figurar numa descrição de patente apresentada mais de cinquenta anos antes.

Quanto à segunda questão

22 Esta questão visa, no essencial, determinar se o juiz nacional é livre para escolher entre as diferentes formas de reparação permitidas pelo seu direito em caso de violação de patente, ou se, pelo contrário, a única compensação autorizada nos termos do artigo 36.° do Tratado é uma decisão que ordene o pagamento de "royalties" razoáveis (ou outra compensação pecuniária), mas não uma sentença que proíba a importação de outro Estado-membro do produto fabricado em violação de patente.

23 A Fiamma alega a este respeito que o princípio da "proporcionalidade", tal como é entendido pela jurisprudência do Tribunal e nomeadamente pelo seu acórdão de 20 de Maio de 1976 (De Peijper, 104/75, Recueil, p. 613), devia também ser aplicado ao sector da propriedade industrial e comercial. Em particular, tendo em conta a especificidade do caso em apreço, no qual a protecção conferida pelo artigo 36.° diz respeito a uma patente obtida ao abrigo da regra da novidade relativa, o objecto específico da patente em causa seria já objecto de protecção suficiente através do reconhecimento ao titular da patente do direito de obter uma recompensa pela comercialização do produto objecto da mesma, pelo que não se justifica o direito de obter uma proibição.

24 É todavia necessário recordar a este respeito que, segundo a jurisprudência do Tribunal (em último lugar, acórdão de 9 de Julho de 1985, Pharmon, 19/84, Recueil, p. 2281), o direito reconhecido ao titular da patente de se opor à importação e à comercialização dos produtos fabricados no âmbito de uma licença obrigatória faz parte da essência do direito das patentes. Esta conclusão deve aplicar-se, por maioria de razão, num caso como o que nos ocupa, em que nenhuma licença foi concedida no país de fabrico pelo titular da patente.

25 Nestas condições, deve responder-se à segunda questão afirmando que, quando o direito nacional prevê normalmente uma proibição como meio de impedir qualquer violação de patente, esta medida é justificada nos termos do artigo 36.°

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

26 As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não podem ser reembolsadas. Tendo o processo, para as partes na acção principal, o carácter de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, cabe a este pronunciar-se quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL,

deliberando sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Court of Appeal de Londres, declara:

1) No estado actual do direito comunitário, o artigo 36.° não constitui obstáculo à aplicação da legislação de um Estado-membro em matéria de patentes que disponha que uma patente concedida para uma invenção não pode ser anulada apenas pelo facto de essa invenção figurar numa descrição de patente apresentada mais de cinquenta anos antes.

2) Quando o direito nacional prevê normalmente uma proibição como meio de impedir qualquer violação de patente, esta medida é justificada nos termos do artigo 36.°