61987C0359

Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 1 de Dezembro de 1988. - PIETRO PINNA CONTRA CAISSE D'ALLOCATIONS FAMILIALES DE LA SAVOIE. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICAL DO COUR DE CASSATION DA FRANCA. - DECLARACAO PREJUDICIAL DE INVALIDADE - EFEITOS - PRESTACOES FAMILIARES. - PROCESSO 359/87.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 00585


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

A - Matéria de facto

1. O processo objecto das presentes conclusões resulta de um pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation francesa. Mais precisamente, trata-se de um segundo recurso prejudicial num litígio que opõe um trabalhador migrante italiano, Pietro Pinna (adiante designado por "recorrente"), à Caisse d' allocations familiales de la Savoie (adiante designada por "recorrida").

2. O recorrente considera ter direito, relativamente aos seus dois filhos Sandro e Rosetta, a abonos de família que lhe foram recusados em determinados períodos durante os quais os filhos efectuaram com a mãe uma estada em Itália. Esta recusa parece ter sido baseada no n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 (1). Esta disposição tem a seguinte redacção:

"O trabalhador assalariado sujeito à legislação francesa tem direito, em relação aos membros da sua família que residam no território de um Estado-membro que não seja a França, aos abonos de família previstos na legislação do Estado em cujo território residem os referidos membros da família; esse trabalhador deve preencher as condições relativas ao emprego das quais a legislação francesa faz depender o direito às prestações."

3. No primeiro pedido de decisão prejudicial, o Tribunal foi interpelado quanto à validade desta disposição. Por acórdão de 15 de Janeiro de 1986 (2), o Tribunal estatuiu da seguinte maneira:

"1) O artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 não é válido, na medida em que exclui a atribuição das prestações familiares francesas aos trabalhadores sujeitos à legislação francesa, relativamente aos membros da sua família que residam no território de outro Estado-membro.

2) A declaração de invalidade do artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71, não pode ser invocada em apoio de reivindicações relativas a prestações referentes a períodos anteriores à data do presente acórdão, salvo quanto aos trabalhadores que, antes desta data, tenham recorrido aos tribunais ou apresentado uma reclamação equivalente."

4. No presente processo, formula-se agora a questão do conteúdo e efeitos daquele acórdão, bem como a de saber quais as normas doravante aplicáveis.

5. O órgão jurisdicional de reenvio apresentou ao Tribunal as seguintes questões:

"1) Se a anulação do n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 leva à generalização do sistema de pagamento das prestações familiares definido no n.° 1 desta disposição ou impõe, pelo contrário, a adopção de novas normas, segundo o processo previsto no artigo 51.° do Tratado de Roma?

2) Na última hipótese, qual seria, durante o período transitório, o sistema aplicável aos trabalhadores migrantes sujeitos à legislação francesa?"

6. De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, incumbe, por um lado, ao Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, adoptar as medidas necessárias, no domínio da segurança social, para o estabelecimento da livre circulação dos trabalhadores, instituindo nomeadamente um sistema que permita garantir, aos trabalhadores migrantes e às pessoas que deles dependem, o pagamento das prestações das pessoas que residem no território dos Estados-membros; por outro lado, o Tribunal declarou que o critério baseado no local de residência não é de molde a assegurar a igualdade de tratamento prescrita no artigo 48.° do Tratado CEE, pelo que não pode ser utilizado neste contexto (3).

7. Contudo, atendendo a que uma regulamentação apenas pode ser adoptada pelo Conselho por unanimidade, sob proposta da Comissão (4), subsiste uma incerteza quanto às disposições que regulam doravante a atribuição das prestações familiares aos trabalhadores migrantes sujeitos à legislação francesa, pelo que deve este Tribunal esclarecer este ponto.

8. Os pontos de vista suscitados no Tribunal pelos intervenientes no âmbito deste processo são muito variados. Foi alegado, nomeadamente, que do acórdão no processo 41/84 resultou um vazio jurídico, que apenas pode ser preenchido por via de um acto legislativo do Conselho com base no artigo 51.° do Tratado CEE (5). A fim de se eliminar provisoriamente esta lacuna, foram propostas quatro soluções: em primeiro lugar, o Governo francês considera que, na prática, o regime jurídico anterior ao acórdão no processo 41/84 continua aplicável. As autoridades competentes foram convidadas a aplicá-lo provisoriamente durante o processo inicial. O Governo francês considera possível manter, durante o período transitório, a regulamentação francesa na ausência de novas disposições comunitáras. Outra solução consiste em aplicar o Regulamento n.° 3, fazendo de alguma forma reviver o regime jurídico existente antes da entrada em vigor do Regulamento n.° 1408/71. Finalmente, a Comissão considera que as disposições do n.° 1 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 devem ser aplicadas, pelo menos a título transitório. Por outro lado, diversos intervenientes concluem pela generalização do n.° 1 do artigo 73.°, sem necessidade concreta de adoptar uma norma que venha preencher uma lacuna.

9. Para uma exposição detalhada dos factos e dos diversos argumentos apresentados, remete-se para o relatório para audiência.

B - Tomada de posição

10. O facto de outro pedido de decisão prejudicial ter já sido apresentado ao Tribunal no mesmo processo principal não se opõe à admissibilidade do presente processo. Bastante cedo, o Tribunal entendeu que, embora os orgãos jurisdicionais nacionais estejam vinculados à sua interpretação, compete a estes decidir se estão suficientemente esclarecidos pela decisão prejudicial proferida ou se é necessário recorrer de novo ao Tribunal (6).

11. As questões colocadas visam expressamente saber se, após a anulação do n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, se deve aplicar o sistema de pagamento previsto no n.° 1 do citado artigo ou se o Conselho deve adoptar novas disposições. Apenas nesta última hipótese se coloca a questão do regime transitório. No âmbito da discussão sobre as consequências do acórdão, são também formuladas dívidas quanto à competência do Tribunal para definir as regras aplicáveis, pela razão de que esta implicaria a apropriação de um poder normativo do qual o Tribunal, enquanto órgão jurisdicional, não dispõe. Pelo contrário, competeria aos órgãos legislativos adoptar as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal.

12. No fim de contas, o litígio encontra-se na encruzilhada de vários domínios, que são os da aplicação, da interpretação e do desenvolvimento do direito pelo juiz e o da criação das normas. No caso concreto, não há que realizar uma delimitação abstracta do

âmbito da competência do Tribunal. Ainda assim, deve poder determinar-se qual é, no direito positivo, a competência do Tribunal para dar uma resposta vinculativa às questões prejudiciais. Consequentemente o problema reduz-se a saber se, e em que medida, a definição do conteúdo das regras aplicáveis pedida ao Tribunal releva ainda da interpretação e, por conseguinte, da aplicação do direito, ou se há necessidade de um acto criador de direito, para o que o Tribunal não tem competência.

13. Antes de entrar nos detalhes da análise, há que formular algumas observações gerais sobre as obrigações que resultam de uma decisão prejudicial. O Tratado CEE não contém nenhuma disosição expressa a este respeito, com excepção do seu artigo 176.°, o qual visa, no seu conteúdo e economia, os recursos de anulação e as acções por omissão. O primeiro parágrafo deste artigo prevê que a instituição de que emana o acto anulado, ou cuja omissão tenha sido declarada contrária ao Tratado, deve tomar as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça.

14. Esta disposição pode ser aplicada, por analogia, quando uma situação jurídica comparável resulte da anulação de um acto comunitário e seja necessária a adopção de medidas. Aliás, no passado, o próprio Tribunal já extraiu esta consequência para o recurso prejudicial. Declarou em diversas ocasiões - sempre,

praticamente nos mesmos termos - que, embora o Tratado não preveja expressamente as consequências de uma declaração de invalidade no âmbito de um recurso prejudicial, os artigos 174.° e 176.° contém disposições claras sobre os efeitos da anulação de um regulamento no âmbito de um recurso directo. Deste modo, em vários recursos prejudiciais, o Tribunal baseou-se nas obrigações de agir que resultam, para as instituições comunitárias, de um acórdão do Tribunal (7).

15. O estabelecimento deste paralelo é tanto mais justificado quanto uma decisão prejudicial pode ter os efeitos de um acórdão de anulação. Ainda que o destinatário da decisão prejudicial seja o órgão jurisdicional do reenvio, a invalidade de um acto jurídico, uma vez estabelecida, impõe-se também aos outros tribunais. Ela constitui - segundo a jurisprudência do Tribunal - uma "razão suficiente" para "considerar como não válido" o acto em litígio de uma instituição comunitária (8).

16. A necessidade desta sintonia de perspectivas resulta do princípio da unidade da jurisprudência. Isto é ainda mais claro à luz da mais recente jurisprudência do Tribunal quanto à sua competência exclusiva para a anulação dos actos comunitários (9). Se, na apreciação da legalidade dos actos das instituições, as vias do recurso directo e do pedido prejudicial têm funções complementares, então a situação não é essencialmente diferente quanto às consequências deste controlo jurídico.

17. O facto do artigo 176.° do Tratado CEE ser potencialmente aplicável na sequência de uma decisão prejudicial não explica, contudo se, no caso concreto, é necessária a aplicação desta disposição. Esta aplicação é ainda menos obrigatória, independentemente das circunstâncias do processo. Uma obrigação de agir para as instituições só tem sentido quando se esgota o poder do Tribunal de definir o direito aplicável, existindo um vazio jurídico que deve ser preenchido.

18. No que respeita à competência do Tribunal para definir ou estabelecer o regime jurídico válido, esta é bastante alargada como resulta, aliás, da sua jurisprudência. No processo 300/86 (10), por exemplo, o Tribunal fixou expressamente o regime provisório que consiste na manutenção da situação jurídica declarada inválida e na sua extensão a categorias objecto de tratamento distinto.

19. Cabe agora averiguar se do acórdão proferido no processo 41/84 resultou efectivamente um vazio jurídico que deve ser preenchido com a criação de novas regras de direito ou se as normas aplicáveis não poderão ser deduzidas com base numa apreciação judiciosa do próprio acórdão.

20. No primeiro parágrafo da parte decisória do acórdão do processo 41/84, o Tribunal de Justiça declarou: "O artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 não é válido, na medida em que exclui a atribuição das prestações familiares francesas aos

trabalhadores sujeitos à legislação francesa, relativamente aos membros da sua família que residam no território de outro Estado-membro". Esta formulação contém uma delimitação material da disposição inválida. É também a única conclusão que se pode tirar do exame dos fundamentos (11). Deve notar-se a este respeito que o Tribunal precisamente não escolheu uma fórmula simples e mais curta como: "O artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 não é válido". O facto de o Tribunal de Justiça, não obstante, ter partido do princípio de que a invalidade se estende ao conjunto do n.° 2, resulta do segundo parágrafo da parte decisória, no qual define quais os efeitos do acórdão para o passado. Este parágrafo tem a seguinte redacção: "A declaração de invalidade do artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71, não pode ser invocada em apoio de reivindicações..."

21. Se admitirmos que o n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 consitui uma excepção à regra geral do seu n.° 1, uma perspectiva baseada na teoria das normas leva a pensar que doravante é aplicada a referida regra. Contudo, esta conclusão enfrenta duas objecções. Por uma lado, os n.os 1 e 2 do artigo 73.° do regulamento parecem dizer respeito a domínios de aplicação distintos, na medida em que o n.° 1 fala de "prestações familiares" enquanto o n.° 2 visa os "abonos de família". Por outro lado, a excepção prevista no n.° 1, na fórmula um "Estado-membro que não seja a França", parece dever conservar a sua validade.

22. a) Examinemos inicialmente a primeira destas objecções. Tanto a noção de "prestações familiares" como a expressão "abonos de família" foram objecto de definição legal no artigo 1.° do Regulamento n.° 1408/71. A alínea u), parágrafos i) e ii), do artigo 1.° tem a seguinte redacção: "i) A expressão 'prestações familiares' designa quaisquer prestações em espécie ou pecuniárias destinadas a compensar os encargos familiares no âmbito de uma das legislações previstas no n.° 1, alínea h), do artigo 4.°, excluindo os subsídios especiais de nascimento mencionados no anexo II"; ii) a expressão "abonos de família" designa as prestações "periódicas pecuniárias, concedidas exclusivamente em função do número e, eventualmente, da idade dos membros da família".

23. A alínea h) do n.° 1 do artigo 4.°, constituída apenas pela expressão "prestações familiares", não contém nenhuma restrição pois limita-se a designar as "prestações familiares" como o tipo de prestações visado pelo regulamento. Da mesma maneira, o anexo I, do ponto de vista dos "abonos de família" enquanto prestações periódicas pecuniárias, não impõe nenhuma restrição no domínio da aplicação. Consequentemente, o parágrafo i) da alínea u) do artigo 1.° pode ler-se do seguinte modo: "a expressão 'prestações familiares' designa quaisquer prestações em espécie ou pecuniárias destinadas a compensar os encargos familiares..."

24. Deste modo, torna-se evidente que os abonos de família constituem apenas uma categoria das prestações familiares. Prestações familiares e abonos de família não são, pois, duas coisas distintas, mas estão, entre si numa relação de conceito geral e conceito especial. Assim, decorre que a relação entre o n.° 1 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 e o seu n.° 2 é ela própria, do ponto de vista material, uma relação entre regra geral e disposição especial.

25. Na sua versão inicial, o n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 continha duas excepções, de diferente natureza, à regra do n.° 1 do artigo 73.° do citado regulamento; tratava-se, por um lado, quanto à substância, da restrição aos meros abonos de família e, por outro, quanto ao âmbito territorial, da restrição ao trabalhador "sujeito à legislação francesa, em relação aos membros da sua família que residam no território de um Estado-membro que não seja a França". Consequentemente, os n.os 1 e 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 apresentam uma relação de regra e excepção. Se estas duas excepções desaparecem, como o Tribunal de Justiça declarou, não pode haver mais dúvidas quanto à generalização do n.° 1.

26. b) Passemos agora - como havíamos anunciado - ao exame do argumento baseado na redacção do n.° 1 do artigo 73.° do regulamento:

27. É exacto que o Tribunal de Justiça não anulou expressamente a fórmula um "Estado-membro que não seja a França". A primeira vista, pode pois deduzir-se que se mantém aplicável. Contudo, como se vai demonstrar, esta interpretação não é conforme nem ao

conteúdo do acórdão visado, nem à economia da parte ainda válida do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71.

28. Para rejeitar a hipótese da manutenção em vigor do n.° 1 do artigo 73.° do Regulameto n.° 1408/71 na sua redacção integral, pode invocar-se primeiro o argumento de forma segundo o qual nenhuma questão foi colocada ao Tribunal de Justiça sobre a validade deste número. Contudo, as considerações seguintes incidirão mais sobre o conteúdo material do acórdão: como se demonstrou acima, no acórdão do processo 41/84, o Tribunal de Justiça declarou inválidos os efeitos materiais do n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71. Se nos reportamos aos fundamentos deste acórdão, o carácter dualista do sistema constituía precisamente um critério de invalidade que acrescia à violação do princípio da igualdade de tratamento. O dualismo em questão residia no facto de o critério de conexão escolhido no n.° 1 do artigo 73.° ser o do país do emprego enquanto que, nas excepções do n.° 2 e nestas apenas, o critério fixado era o do país da residênca. Se se deixar subsistir a excepção prevista no n.° 1 do artigo 73.°, daqui resultaria, como no passado, um sistema dualista embora a sua forma concreta não mais decorra do texto do regulamento. Na medida em que a fórmula em litígio do n.° 1 do artigo 73.° constitui apenas uma remissão para as excepções do n.° 2 anulado, também se encontra visada pelo acórdão no processo 41/84.

29. Esta interpretação teleológica dos acórdãos do Tribunal é perfeitamente adequada e até corrente. No processo 130/79 (12), por exemplo, no qual se tratava também das consequências da anulação de um acto jurídico, o Tribunal começou por examinar os fundamentos da invalidade para constatar depois que outros regulamentos de idêntico conteúdo ao da disposição anulada eram também inválidos. No acórdão no processo 33/84 (13), o Tribunal admitiu mesmo a declaração tácita de invalidade de um regulamento. Também neste caso, a invalidade se estendia, tendo em conta o espírito e a finalidade de um acórdão anterior, a regulamentos cujo conteúdo apresentava uma ligação à disposição anulada.

30. A única hipótese na qual se pode considerar que a parte decisória do acórdão no processo 41/84 não assenta nesta declaração tácita de invalidade mas num outro entendimento é aquela na qual, desde o início, o n.° 1 do artigo 73.° não é visto como a regra-base em relação à excepção do n.° 2. A única interpretação possível seria então a seguinte: o n.° 1 do artigo 73.° estabelece uma regra de coordenação para as prestações familiares, regra que se aplica ao conjunto dos Estados-membros, com excepção da França. Seria exclusivamente no caso dos abonos de família que o n.° 2 previria uma regra constitutiva própria para a França.

31. Contudo, esta hipótese não convence por várias razões. Em primeiro lugar, não se vê qualquer razão objectiva para que a França escape totalmente à coordenação comunitária em matéria de prestações familiares. Para além disto, existiria desta maneira

um vazio jurídico mesmo enquanto o n.° 2 foi válido. As prestações familiares que não fossem abonos de família não seriam de modo algum consideradas. Não se pode sustentar seriamente que o legislador comunitário tenha introduzido voluntariamente uma tal lacuna. Mesmo supondo que fora criada uma lacuna por negligência, esta deveria ser integrada em conformidade com a economia do sistema, através do desenvolvimento do direito pelo juiz.

32. Sendo precisamente o Regulamento n.° 1408/71 uma disposição de coordenação que não cria direitos subjectivos de modo autónomo, mas que define o ponto de conexão da ordem jurídica aplicável, não faria sentido excluir do campo de regulamentação uma parte das prestações familiares francesas. Tal exclusão seria já contrária per se ao princípio comunitário da igualdade de tratamento.

33. A teoria desenvolvida na audiência pelo representante do recorrente, sobre a interpretação do acórdão do processo 41/84 parece basear-se, na realidade, na hipótese que acaba de ser rejeitada. Ainda que, no seu raciocínio, delimite e coloque em relação as diferentes passagens do acórdão e do texto do regulamento, não toma em consideração os termos utilizados pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão. Com efeito, o Tribunal de Justiça, no seu acórdão no processo 41/84, considerou manifestamente que a regra de conexão nas prestações familiares era de aplicação geral e que se estendia também à França. No n.° 25 dos fundamentos, indica já que o n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 não é válido, na medida em que exclui a atribuição de prestações familiares francesas aos trabalhadores sujeitos à legislação francesa, relativamente aos membros da sua família que residam no território de um outro Estado-membro. Volta a encontrar-se a mesma formulação no primeiro parágrafo da parte decisória. Estas expressões apenas fazem sentido se se considerar que a atribuição das prestações familiares francesas aos trabalhadores sujeitos à legislação francesa constitui a regra e que apenas a disposição que prevê uma excepção a esta regra é inválida.

34. Sendo pois aplicável, a regra base do n.° 1 do artigo 73.° corresponde também à necessidade, sublinhada pelo Tribunal, de uma regra de coordenação eficaz. Ela é conforme ao princípio comunitário da igualdade de tratamento subjacente aos artigos 7.° e 48.° do Tratado CEE. No que diz respeito ao domínio de aplicação do Regulamento n.° 1408/71, a proibição comunitária de qualquer discriminação é objecto de referência específica no artigo 3.° do regulamento, nos seguintes termos: "As pessoas que residem no território de um dos Estados-membros e às quais se aplicam as disposições do presente regulamento estão sujeitas às obrigações e beneficiam da legislação de qualquer Estado-membro, nas mesmas condições que os nacionais deste Estado..."

35. Aliás, a manutenção em vigor da redacção completa do n.° 1 do artigo 73.° é, com as consequências jurídicas já mencionadas, contrária à alínea b) do artigo 51.° do Tratado CEE, que assegura

aos trabalhadores migrantes e às pessoas que deles dependam o pagamento das prestações (de um Estado-membro) às pessoas que residam nos territórios dos (outros) Estados-membros.

36. Em contrapartida, o n.° 1 do artigo 73.° na sua versão modificada é conforme não apenas aos princípios que resultam desde logo do Tratado CEE mas também às disposições gerais do Regulamento n.° 1408/71. Tem em conta, por um lado, o princípio da igualdade de tratamento referido no artigo 3.° e também, por outro, a regra do artigo 13.°, segundo a qual os trabalhadores aos quais é aplicável o citado regulamento apenas estão sujeitos à legislação de um único Estado-membro (14), normalmente o do emprego (15).

37. As poucas excepções ao critério do Estado do emprego previstas no próprio regulamento, por exemplo quanto ao seguro-pensão ou quanto aos trabalhadores fronteiriços, não permitem que se ponha em causa a regra considerada aplicável no caso em apreço. Pelo contrário, tanto a redacção inequívoca do artigo 13.° como os considerandos do regulamento vão no sentido da solução acolhida. O trabalhador beneficiário de prestações familiares é aquele que sustenta os seus direitos junto do organismo competente no Estado no qual, para além do mais, ele paga os impostos e as contribuições para a segurança social. Em contrapartida, as excepções ao critério do Estado do emprego, em favor do critério do Estado da residência, são frequentemente fundadas no facto de, em regra, os direitos deverem ser exigidos ao organismo a que foram pagas as contribuições. Esta derrogação não se justifica no caso em apreço.

38. Depois de acima se ter definido a generalização do n.° 1 do artigo 73.° como a solução que decorre do acórdão do processo 41/84, falta examinar a objecção formulada pelo Governo francês e pela recorrida, segundo a qual a generalização do sistema estabelecido no n.° 1 do artigo 73.° é contrária à regra da unanimidade prevista no artigo 51.° do Tratado CEE.

39. Esta objecção não deve ser acolhida. Em virtude do artigo 4.° do referido Tratado, a realização das tarefas confiadas à Comunidade é garantida pelas quatro instituições aí enumeradas; com este fim, cada instituição age dentro dos limites das atribuições que lhes são conferidas pelo Tratado. O n.° 1 do artigo 177.° confere ao Tribunal de Justiça a competência para estatuir a título prejudicial sobre a interpretação do Tratado.

40. No seu acórdão de 15 de Janeiro de 1986, o Tribunal de Justiça não excedeu estes limites:

ao declarar que "este critério (ou seja, o do n.° 2 do artigo 73.° - o Estado em cujo território residem os membros da família) não é de molde a assegurar a igualdade de tratamento prescrita pelo artigo 48.° do Tratado...", interpretou o Tratado;

Ao constatar o seguinte: "Daqui decorre que o artigo 73.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1408/71 não é válido", estatuiu, para além disso, sobre a validade de um acto de uma instituição.

41. Finalmente, o Tribunal pode, quando anula um regulamento, indicar quais são os seus efeitos que devem subsistir. Isto também vale, por analogia, no processo do artigo 177.° (16). O Tribunal não faz outra coisa quando designa as disposições do n.° 1 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 como aquelas que continuam a ser aplicadas depois da anulação do n.° 2. O argumento segundo o qual o Tribunal excede deste modo os limites da sua competência deve, pois, ser rejeitado por não fundamentado.

42. Atinge-se o mesmo resultado com base em considerações que relevam da teoria e da filosofia do direito. Estas estão necessariamente impregnadas de uma coloração pessoal. É a razão pela qual não entendemos ser necessária a sua exposição. O texto do Tratado, cujo respeito se impõe a todos nós, constitui uma base suficiente.

43. Naturalmente - e não fazemos mais do que recordar um facto evidente - a generalização do n.° 1 do artigo 73.° nada retira à competência do Conselho e da Comissão para modificar as disposições aplicáveis. Não existe, pois, nenhuma obrigação de manter a regra do n.° 1 do artigo 73.° O Conselho pode perfeitamente procurar uma outra solução e, aliás, parece que é

exactamente o que faz neste momento. A única coisa que não pode fazer é a seguinte: aplicar a regra do n.° 2 do artigo 73.°, pois não é de molde a assegurar a igualdade de tratamento prescrita pelo Tratado.

44. Cabe acrescentar ainda, para terminar, uma nota sobre os artigos 60.° e 220.° do Acto de Adesão de Espanha e de Portugal, mencionados na discussão, embora estas disposições não tenham, na nossa opinião, nenhuma incidência directa sobre as questões colocadas no caso em apreço. Estes dois artigos contêm, respectivamente quanto à Espanha e a Portugal, uma remissão para o artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71. Em particular, a remissão para o n.° 2 do artigo 73.°, entre outros, e o recurso a uma aplicação por analogia estabelecem um regime transitório em vigor até ao fim de 1988. Diferentemente do artigo 73.° do regulamento, as disposições dos actos de adesão não são, por outro lado, sujeitas a um controlo da sua validade pelo Tribunal de Justiça e não têm que ser apreciadas no âmbito de tal controlo em relação aos princípios do Tratado CEE pois encontram-se na mesma categoria que este, enquanto direito comunitário primário (17).

45. Na medida em que os artigos 60.° e 220.° do acto de adesão remetem para o artigo 99.° do Regulamento n.° 1408/71, é necessária a intervenção do legislador comunitário para a implementação, também nos estados ibéricos, de um sistema uniforme que deve ser instaurado com base nesta disposição. O regime do n.° 1 do artigo 73.°, declarado de aplicação geral no processo Pinna, deve a sua validade a um processo de categoria inferior à do Acto de Adesão e também não corresponde ao método de instauração de uma "solução uniforme" prevista no próprio acto de adesão.

46. Contudo, as considerações precedentes são teóricas sob dois pontos de vista, na medida em que, por um lado, os artigos 60.° e 220.° do acto de adesão não têm qualquer incidência quanto à aplicação do direito no processo Pinna e em que, por outro, resulta das próprias disposições que o regime transitório expira no fim do ano de 1988.

47. As despesas realizadas pelos governos francês, italiano, português e grego, bem como pela Comissão, não podem ser objecto de reembolso. No que respeita às partes no processo principal, o processo perante o Tribunal de Justiça reveste o carácter de um incidente. Cabe, pois, ao órgão jurisdicional do reenvio decidir sobre as despesas.

C - Conclusão

48. Tendo em consideração o que precede, propomos que se responda como se segue às questões apresentadas ao Tribunal:

"Depois da anulação do n.° 2 do artigo 73.° do Regulamento n.° 1408/71 pelo acórdão do processo 41/84, é aplicável o sistema geral previsto no n.° 1 do mesmo artigo, inclusive em França. Este sistema aplica-se sem restrição, enquanto os órgãos legislativos comunitários não fizerem uso do seu poder de modificação. Consequentemente, os n.os 1 e 2 do artigo 73.° devem ser lidos como se segue:

O trabalhador assalariado sujeito à legislação de um Estado-membro tem direito, em relação aos membros da sua família que residam no território de um outro Estado-membro, às prestações familiares previstas na legislação do primeiro Estado, como se residissem no território deste último."

(*) Língua original: alemão.

(1) Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, JO 1971, L 149, p. 2; (EE 05 F1 p. 98), na versão actualizada que resulta do Regulamento (CEE) n.° 2001/83, de 2 de Junho de 1983, JO L 230, de 22 de Agosto de 1983, p. 6; EE 05 F3 p. 53).

(2) Acórdão de 15 de Janeiro de 1986, processo 41/84, Pinna/Caisse d' allocations familiales de la Savoie, Colect. 1986, p. 1 e seguintes.

(3) Ver o acórdão do processo 41/84; ibidem, n.° 24 dos fundamentos.

(4) Resulta do processo que a Comissão apenas apresentou uma proposta sobre este assunto em 2 de Fevereiro de 1988.

(5) Este argumento foi invocado nomeadamente pela recorrida e pelo Governo francês.

(6) Ver o acórdão de 24 de Junho de 1969, processo 29/68, Milch- Fett- und Eierkontor GmbH/Hautpzollamt Saarbruecken, Recueil 1969, p. 165, n.° 3 dos fundamentos. Ver também o acórdão de 13 de Maio de 1981, processo 69/80, SpA International Chemical Corporation/Amministrazione delle finanze dello Stato, Recueil 1981, p. 1191, n.° 14 dos fundamentos.

(7) Acórdão do 19 de Outubro de 1977, processos apensos 117/76 e 16/77, Albert Ruckdeschel & Co. e Hansa-Langerhaus Stroeh & Co./Hauptzollamt Hamburg-St. Annen; Diamalt AG/Hautpzollamt Itzehoe, Recueil 1977, p 1753; acórdão de 19 de Outubro de 1977, processos apensos 124/76 e 20/77, SA Moulins et huileries de Pont-à-Mousson/Office national interprofessionnel des céréales; Société coopérative "Providence agricole de la Champagne"/Office national interprofessionnel des céréales, Recueil 1977, p. 1795; acórdão de 15 de Outubro de 1980, processo 4/79, Société coopérative "Providence agricole de la Champagne"/Office national interprofessionnel des céréales (ONIC), Recueil 1980, p. 2823, n.os 44 e 46 dos fundamentos; acórdão de 15 de Outubro de 1980, processo 109/79, SARL Maïseries de Beauce/Office national interprofessionnel des céréales (ONIC), Recueil 1980, p. 2883, n.os 44 e 46 dos fundamentos; acórdão de 15 de Outubro de 1980, processo 145/79, SA Roquette Frères/Estado francês (administration des douanes), Recueil 1980, p. 2917, n.os 51 e 53 dos fundamentos; acórdão no processo 66/80, ibidem, n.° 16 dos fundamentos.

(8) Acórdão no processo 66/80, ibidem, n.° 13 dos fundamentos; acórdão no processo 112/83, Société des produits de maïs SA/Administration des douanes et droits indirects, Recueil 1985, p. 719, n.° 16 dos fundamentos.

(9) Ver acórdão de 22 de Outubro de 1987, processo 314/85, Foto-Frost, Ammersbek/Hauptzollamt Luebeck-Ost (Colect. 1987, p. 4199.

(10) Ver o acórdão de 29 de Junho de 1988, processo 300/86, Luc Van Landschoot/MV Mora, de Veurne, n.° 3 da parte decisória, Colect. 1988, p. 3443.

(11) Acórdão no processo 41/84, ibidem, n.os 21 a 25 dos fundamentos, p. 25.

(12) Ver o acórdão de 12 de Junho de 1980, processo 130/79, Express Dairy Foods Limited/Intervention Board for Agricultural Produce, Recueil 1980, p. 1887.

(13) Ver o acórdão de 22 de Maio de 1985 no processo 33/84, SpA Fragd/Amministrazione delle finanze dello Stato, Recueil 1985, p. 1605, n.° 13 dos fundamentos.

(14) Ver o n.° 1 do artigo 13.° do regulamento.

(15) Ver alínea a) do n.° 1 do artigo 13.° do regulamento.

(16) Acórdão no processo 4/79, ibidem, n.os 44 e 46 dos fundamentos; acórdão no processo 109/79, ibidem, n.os 44 e 46 dos fundamentos; acórdão no processo 145/79, ibidem, n.os 51 e 53 dos fundamentos.

(17) Ver também o acórdão de 28 de Abril de 1988 nos processos 31/86 e 35/86, SA Laisa e outros/Conselho das Comunidades Europeias, Colect. 1988, p. 2285.