61987C0344

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 8 de Março de 1989. - I. BETTRAY CONTRA STAATSSECRETARIS VAN JUSTITIE. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICAL DO RAAD VAN STATE. - NOCAO DE TRABALHADOR - NACIONAL COMUNITARIO QUE EXERCE UMA ACTIVIDADE NO AMBITO DE UM EMPREGO SOCIAL. - PROCESSO 344/87.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 01621


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. Neste pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conselho de Estado neerlandês (Raad van State), o Tribunal deve decidir, essencialmente, se uma pessoa se torna um trabalhador na acepção do direito comunitário quando obtém um emprego no âmbito da política social do Estado de formação e reabilitação para o trabalho das pessoas que, devido (em regra) a deficiência física ou mental, não podem competir no mercado do trabalho normal.

2. Resulta do pedido de decisão prejudicial e das observações apresentadas ao Tribunal que o recorrente no processo principal, nacional alemão, entrou nos Países Baixos em 15 de Julho de 1980. Em 1981 e 1982 requereu às autoridades neerlandesas uma autorização de residência; o segundo pedido baseou-se parcialmente no facto de se estar a submeter a tratamento num centro de reabilitação para toxicómanos. Em 1982 os pedidos foram indeferidos; o recorrente recorreu da decisão e o tribunal suspendeu a decisão para lhe permitir que continuasse o tratamento num centro de reabilitação para toxicómanos. Em Novembro de 1982, o tribunal recusou provimento ao recurso mas o recorrente permaneceu nos Países Baixos.

3. Em 10 de Fevereiro de 1983, o recorrente obteve do ministro do Emprego e dos Assuntos Sociais neerlandês uma decisão que o equipara, para efeitos da lei que regula o emprego por razões de carácter social (Wet Sociale Werkvoorziening, daqui em diante "lei do emprego social"), a cidadão neerlandês, uma vez que o esquema estabelecido por essa lei é normalmente reservado a cidadãos neerlandeses. Esta decisão foi expressamente adoptada sem prejuízo do disposto nas leis sobre residência e emprego de estrangeiros. Em 18 de Abril de 1983, o recorrente iniciou um trabalho de carácter temporário na empresa Ergon, em Eindhoven, no âmbito da lei do emprego social, e este trabalho temporário tornou-se tacitamente um contrato de trabalho por tempo indeterminado a partir de 18 de Junho de 1983. O advogado do recorrente declarou na audiência que ele continua a trabalhar na mesma empresa.

4. Em Novembro de 1983, o recorrente pediu novamente uma autorização de residência, com fundamento no facto de estar a desempenhar uma actividade assalariada. Tendo o seu pedido sido indeferido nesse mesmo dia, o recorrente recorreu para o secretário de Estado que, após ter ouvido a comissão consultiva para os estrangeiros, indeferiu o recurso em 14 de Janeiro de 1985. Em consequência, o recorrente recorreu em 5 de Fevereiro de 1985 para o Raad van State, cujo pedido de decisão prejudicial a este Tribunal deu entrada em 6 de Novembro de 1987.

5. A questão apresentada é a seguinte:

"O n.° 1 do artigo 1.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 de 15 de Outubro de 1968 - nos termos do qual qualquer nacional de um Estado-membro, qualquer que seja o local da sua residência, tem direito a aceder a uma actividade assalariada e exercê-la no território de um outro Estado-membro - deve ser interpretado no sentido de que o direito anteriormente referido vale igualmente para o nacional de um outro Estado-membro, que exerce uma actividade no território neerlandês no âmbito da 'Wet Sociale Werkvoorziening' ,

a) embora, anteriormente, este nacional não devesse ser considerado um trabalhador na acepção do n.° 1 do artigo 48.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, noutra qualidade que não no âmbito de um emprego social, e

b) se não faz igualmente parte da categoria de pessoas referidas no título III do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 de 15 de Outubro de 1968?"

6. Resulta claramente da decisão de reenvio que o que está em causa no presente caso é o direito de residência. A questão põe-se da seguinte maneira: Nos termos do artigo 48.° do Tratado a liberdade de circulação de trabalhadores deve ser assegurada no interior da Comunidade. Esta liberdade implica a abolição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade entre trabalhadores dos Estados-membros, quanto a emprego, remuneração e outras condições de trabalho e inclui o direito, sujeito a limitações justificadas por razões de ordem, segurança ou saúde pública, de aceitar ofertas de emprego efectivamente feitas, de se deslocar livremente dentro do território dos Estados-membros para esse efeito, de permanecer num Estado-membro para efeitos de emprego e de nele ficar após o termo desse emprego.

7. De acordo com o artigo 49.° do Tratado, estas disposições foram executadas 'inter alia pelo Regulamento (CEE) n.° 1612/68, do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO 1968, L 257; EE 05 F1 p. 77) e pela Directiva do Conselho 68/360/CEE, da mesma data, relativa à supressão das restrições à deslocação e permanência dos trabalhadores dos Estados-membros e suas famílias na Comunidade (JO 1968, L 257, p. 13; EE 05 F1 p. 88).

8. O Regulamento (CEE) n.° 1612/68 divide-se em quatro partes. A parte I denomina-se "Do emprego e da família dos trabalhadores" e a parte II "Do contacto e compensação das ofertas e pedidos de emprego". O título primeiro da parte I denomina-se "Do acesso ao emprego", e o artigo 1.° dispõe o seguinte:

"1. Os nacionais de um Estado-membro, independentemente do local da sua residência, têm o direito de aceder a uma actividade assalariada e de exercer no território de outro Estado-membro, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais deste Estado.

2. Beneficiarão, nomeadamente, no território de outro Estado-membro, da mesma prioridade que os nacionais deste Estado no acesso aos empregos disponíveis."

9. A Directiva 68/360/CEE, que regula detalhadamente o exercício do direito de residência, aplica-se expressamente, de acordo com o seu artigo primeiro, aos nacionais dos Estados-membros abrangidos pelo Regulamento n.° 1612/68. A questão apresentada é, portanto, a de saber se um nacional de um Estado-membro tem o direito de residência noutro Estado-membro exclusivamente devido ao seu emprego no âmbito de um esquema tal como o regulado pela lei do emprego social. Se ele tem efectivamente esse direito, então, por efeito do disposto no artigo 4.° da directiva, tem direito à autorização de residência a que se refere esse artigo, contra a apresentação do documento a coberto do qual ele entrou no território e da confirmação do emprego pelo empregador ou por um certificado de emprego.

10. Para compreender inteiramente o alcance da questão é necessário analisar com algum detalhe o esquema instituído pela lei do emprego social. Trata-se de um programa social destinado a manter, restabelecer ou desenvolver a capacidade para o trabalho de pessoas que têm capacidade para trabalhar mas que, devido a circunstâncias de carácter pessoal, estão (talvez apenas temporariamente) incapazes para trabalhar normalmente. Tornou-se claro na audiência que o objectivo e o alcance da lei do emprego social era mais restrito do que resultava do pedido de decisão prejudicial e das observações escritas apresentadas ao Tribunal. Difere em especial de esquemas que permitem a pessoas deficientes obterem emprego em empresas comerciais normais. O agente do Governo dos Países Baixos esclareceu na audiência que esse esquema existe nos Países Baixos mas no âmbito de outra legislação.

11. A lei do emprego social também não se destina aos trabalhadores aptos a exercer uma actividade que se encontram em situação de desemprego, quer de curta duração quer de longa duração. Destina-se aos que sofrem de uma incapacidade, quer física quer mental, e que não podem, pelo menos provisoriamente, trabalhar normalmente. O próprio I. Bettray, pessoa que seguiu um tratamento contra a toxicomania, é talvez um muito bom exemplo do tipo de pessoas para que o programa foi concebido.

12. O esquema é posto em prática nos Países Baixos pelas autoridades locais, as comunas. Verificou-se na audiência que, com esse objectivo, grupos de comunas em todas as regiões dos Países Baixos criaram um total de cerca de 108 projectos destinados a fornecer emprego "social" no âmbito desta lei. A empresa Ergon em Eindhoven (criada pela comuna de Eindhoven e pelas comunas vizinhas) na qual o recorrente trabalha, é um deles. Ao que parece, estas empresas são criadas apenas para benefício de pessoas incapazes de trabalhar normalmente, embora em cada uma delas haja uma equipa administrativa que não sofre de qualquer incapacidade e que é responsável pela sua gestão.

13. O objectivo das empresas não é obter lucros mas responder à necessidade social de fornecer trabalho a pessoas que, de outro modo, não poderiam trabalhar. O esquema é financiado em grande medida pelo Governo central e pelas comunas. Contudo, embora não obtendo efectivamente lucros, parece ser objectivo de cada empresa fornecer aos participantes, dentro dos limites impostos pela lei e a que me voltarei a referir, condições tão próximas quanto possível das condições normais de trabalho. Isto está de acordo com o objectivo da lei do emprego social que é, como acima se referiu, o de permitir a pessoas com determinadas incapacidades aceder ou regressar ao mercado do trabalho.

14. As actividades a que as empresas se podem dedicar estão delimitadas pela lei do emprego social (e seus regulamentos). Em especial, as condições tanto do mercado do trabalho como do mercado dos bens produzidos não podem ser indevidamente afectadas, e a comercialização dos bens produzidos não deve ser efectuada de modo a prejudicar a reputação do "emprego social".

15. Uma pessoa que deseje beneficiar deste esquema, requere-o à comuna local, que decidirá se ela reúne as condições necessárias. Se for aceite, fica sujeita a um período de experiência de dois meses, após o qual o emprego é confirmado se tiver desempenhado satisfatoriamente as suas funções. A relação de trabalho é com a comuna, que lhe pode pôr termo. A comuna paga o salário do interessado e é à comuna que este se dirige em caso de litígio relativo à sua colocação no âmbito do sistema ou ao trabalho que faz. Todavia, esta relação contratual é especificamente regulada pela própria lei do emprego social, deste modo excluindo o interessado do estatuto de trabalhador do serviço público ou de trabalhador "normal". Os deveres do interessado incluem as obrigações de realizar o seu trabalho conscienciosamente e de acordo com as instruções que lhe forem dadas, de procurar aumentar as suas capacidades e de cooperar com as autoridades na obtenção, se possível, de trabalho normal. A remuneração, horas de trabalho e medidas de carácter disciplinar são definidas pelos regulamentos adoptados em aplicação da lei.

16. Os critérios que regem o nível da remuneração são baseados, garantindo que o interessado receba um determinado mínimo que lhe permita prover às suas próprias necessidades e às das pessoas a seu cargo, na quantidade de trabalho desenvolvido e, tanto quanto possível, devem ser equivalentes às remunerações pagas por trabalho idêntico numa empresa que funcione no mercado normal, mas não correspondem à efectiva quantidade de trabalho feita. A lei prevê duas categorias de beneficiários: "A" e "B". A maioria dos participantes são classificados "A" (como I. Bettray) e o rendimento esperado desta categoria de trabalhadores corresponde a cerca de um terço do rendimento de um trabalhador normal. Não se espera que os restantes, em menor número e classificados como "B", tenham o mesmo rendimento; espera-se apenas que eles desenvolvam um trabalho compatível com o seu bem-estar.

17. Resumindo, a lei do emprego social fornece o quadro para a reciclagem de pessoas cujas dificuldades pessoais as impedem de procurar um trabalho normal, tendo em vista a sua acessão ou regresso ao mercado normal de trabalho. Em relação àqueles - normalmente da categoria "B" - que é pouco provável alguma vez poderem entrar no mercado normal de trabalho, assegura uma função terapêutica útil.

18. O problema centra-se, portanto, na questão de saber se uma pessoa adquire a qualidade de trabalhador na acepção do direito comunitário ao obter um emprego no âmbito deste esquema. A definição de "trabalhador" foi já pedida ao Tribunal em diversas ocasiões e é necessário referir a jurisprudência nesta matéria ainda que, por razões a que me referirei adiante, não pense que essa jurisprudência possa ser directamente transposta para as pouco usuais circunstâncias do presente caso. O Tribunal sublinhou que este termo define o campo de aplicação de uma das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado e não pode ser interpretado restritivamente: processo 53/81, Levin/Staatssecretaris van Justitie (Recueil 1982, p. 1035). Neste processo, o Tribunal declarou que uma pessoa deve ser considerada como um trabalhador para efeitos do direito comunitário ainda que trabalhe a tempo parcial e que a respectiva remuneração seja inferior à remuneração mínima de subsistência, desde que essa pessoa exerça uma actividade assalariada real e efectiva.

19. Os critérios definidos no acórdão Levin foram clarificados e amplificados numa série de decisões subsequentes. No processo 139/85, Kempf/Staatssecretaris van Justitie (Colect. 1986, p. 1741), de novo um pedido de decisão prejudicial do Raad van State dos Países Baixos, tratava-se de um trabalhador, Kempf, que exercia a actividade de professor de música a tempo parcial dando 12 lições por semana, tendo o Governo dos Países Baixos dúvidas se esse trabalho podia ser considerado como constituindo por si só trabalho real e efectivo que preenchesse as condições do acórdão Levin. Contudo, o Tribunal considerou não ser necessário examinar essa questão, uma vez que o próprio Raad van State tinha considerado que a actividade de Kempf não era tão reduzida que pudesse ser considerada marginal ou acessória. O Tribunal, à luz dessa consideração, declarou que uma pessoa que trabalha real e efectivamente a tempo parcial não deixa de ser um trabalhador para efeitos do direito comunitário apenas porque a remuneração que recebe está abaixo do nível mínimo de subsistência, ainda que necessite de assistência financeira dos fundos públicos para complementar essa remuneração.

20. No processo 66/85, Lawrie-Blum/Land Baden-Wuerttemberg (Colect. 1986, p. 2121 a 2144 (n.° 17) o Tribunal declarou que "a característica essencial da relação de trabalho é a circunstância de uma pessoa realizar, durante certo tempo, em benefício de outra e sob a sua direcção, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração".

21. No processo 197/86, Brown/Secretary of State for Scotland, acórdão de 21 de Junho de 1988, o Tribunal declarou (n.° 23):

"...um nacional de outro Estado-membro que inicia uma relação laboral num Estado de acolhimento por um período de oito meses com o objectivo de aí realizar em seguida estudos universitários no mesmo domínio profissional, e que não teria sido contratado pela entidade patronal se não tivesse já sido admitido pela universidade, deve ser considerado trabalhador, na acepção do n.° 2 do artigo 7.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68".

Contudo, o Tribunal acrescentou (n.° 27) que o estatuto do trabalhador não confere nestas circunstâncias direito a uma bolsa de estudos nos termos do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento (CEE) n.° 1612/68, uma vez que a relação laboral é neste caso meramente acessória em relação aos estudos universitários.

22. O Governo dos Países Baixos afirma que o trabalho desempenhado no âmbito da lei do emprego social não pode ser considerado como uma actividade real e efectiva da mesma natureza que a actividade considerada no acórdão Levin. O Governo refere os objectivos e as características especiais da lei do emprego social, e salienta especialmente as características a seguir referidas.

23. Em primeiro lugar, esta actividade destina-se a manter, restabelecer ou desenvolver a capacidade para o trabalho de pessoas que não podem trabalhar em condições normais. Porém, parece-me que, por exemplo, um trabalhador deficiente, que devido à sua deficiência não pode trabalhar em condições normais mas apesar disso tem um emprego em que exerce uma efectiva e real actividade, deve ser considerado como um trabalhador para efeitos do direito comunitário, pelo que esta primeira característica não afasta uma pessoa do âmbito de aplicação das disposições comunitárias relevantes. Estas aplicam-se, em meu entender, mesmo que a pessoa em questão esteja permanentemente deficiente, sendo portanto improvável que volte a trabalhar em condições normais mesmo com reabilitação e terapia.

24. Em segundo lugar, o Governo neerlandês refere que a produtividade dos participantes no sistema é muito baixa para lhes permitir o exercício de uma actividade em termos normais, que a sua remuneração não está dependente da produtividade e que uma grande parte dos custos do sistema é suportada pelas autoridades públicas. Penso que esta característica também não altera a questão, uma vez que é comum a existência de vários tipos de esquemas de trabalho subsidiados por fundos públicos - e mesmo por fundos comunitários - com finalidades sociais e económicas variadas.

25. Em terceiro lugar, embora aceite (correctamente, à luz do acórdão Lawrie-Blum, já citado) que o sistema contém elementos de uma relação laboral normal, nomeadamente prestação de trabalho sob a autoridade de outra pessoa em troca de uma remuneração, o Governo neerlandês considera estes elementos como simples meios de realização dos objectivos sociais do sistema. Trata-se de medidas de carácter social, substancialmente financiadas pelas autoridades públicas com esse objectivo.

26. Esta consideração, que foi salientada pelo agente do Governo neerlandês na audiência, suscita, em minha opinião, a questão central deste caso. Se é certo que os elementos de uma relação normal de trabalho são na realidade meramente incidentais em relação aos objectivos sociais do sistema, então a actividade em questão poderia ser considerada puramente "acessória" para citar o termo usado no acórdão Levin, em relação aos objectivos de carácter social. Na verdade, ainda se poderia dizer que as "actividades em questão são de tal modo reduzidas que se apresentam como puramente marginais ou acessórias". Aqui a actividade era essencial. Mas o caso Levin referia-se a uma relação de trabalho normal em que se podia dizer que a actividade no seu todo era de certo modo "acessória". Além disso, ainda que o Tribunal no processo Brown tenha declarado que Brown era um trabalhador, embora o emprego em questão fosse meramente acessório em relação aos seus estudos universitários, essa decisão inscreve-se também no contexto de uma relação de trabalho normal.

27. A este respeito deve recordar-se qual o objectivo da livre circulação de trabalhadores. É, como foi referido no acórdão no processo Levin, n.° 15: "inter alia (promover) um desenvolvimento harmonioso das actividades económicas em toda a Comunidade e um aumento do nível de vida".

28. É certo que a livre circulação de trabalhadores tem objectivos mais amplos, referidos em especial no preâmbulo do Regulamento (CEE) n.° 1612/68. No terceiro considerando afirma-se:

"Considerando que a livre circulação constitui para os trabalhadores e para as suas famílias um direito fundamental; que a mobilidade da mão-de-obra na Comunidade deve ser para o trabalhador um dos meios de garantir a possibilidade de melhorar as suas condições de vida e de trabalho e de facilitar a sua promoção social, contribuindo simultaneamente para a satisfação das necessidades decorrentes da economia dos Estados-membros; que é conveniente afirmar o direito de todos os trabalhadores dos Estados-membros de exercerem a actividade de sua escolha na Comunidade".

29. Este considerando mostra que o trabalho não deve, em direito comunitário, ser visto como uma mercadoria e atribui de modo notável precedência aos direitos fundamentais dos trabalhadores sobre a satisfação das exigências das economias dos Estados-membros.

30. Além disso, como os termos do considerando claramente demonstram, a preocupação do Tratado e da legislação relativa à livre circulação de trabalhadores é assegurar a igualdade de acesso ao emprego de todos os cidadãos da Comunidade, independentemente da sua nacionalidade. As pessoas que não estão em condições de responder a ofertas de emprego não entram no campo de aplicação destas disposições.

31. Esta posição pode apoiar-se no disposto no próprio Tratado, que no artigo 48.°, n.° 3, alíneas a), b) e c), se refere aos direitos de "responder a ofertas de emprego efectivamente feitas", "deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados-membros" e "permanecer no território de um Estado-membro depois de nele ter exercido uma actividade laboral, nas condições que serão objecto de regulamentos de execução a estabelecer pela Comissão". A mesma conclusão se pode tirar do sistema e das disposições do Regulamento (CEE) n.° 1612/68, nomeadamente do disposto no artigo 1.° do regulamento acima referido; recorde-se que a Directiva 68/360 (CEE) se aplica expressamente aos nacionais dos Estados-membros a que o referido regulamento é aplicável.

32. As pessoas que não estão em condições de responder a ofertas de emprego no mercado do trabalho não entram portanto, em minha opinião, no campo de aplicação das disposições do Tratado nem da legislação subsequente. I. Bettray, uma pessoa que se submeteu a tratamento para a toxicomania, não estava em condições de trabalhar normalmente. Foi aceite no sistema criado pela lei do emprego social, e este facto mostra que ele estava impedido de trabalhar normalmente. Não entrou em concorrência com outros trabalhadores na procura de um emprego no mercado normal de trabalho. Uma vez completada a sua recuperação, sairá do sistema nos termos da lei do emprego social, ficando então na posição de um cidadão normal da Comunidade, com direito a entrar em qualquer Estado-membro para procurar trabalho ( processo 316/85, Centro Público de Ajuda Social de Courcelles/Lebon, acórdão de 18 de Julho de 1987) e com direito a residir nesse Estado se encontrar um trabalho real e efectivo.

33. O que é significativo no presente caso é a natureza essencialmente social do sistema criado pela lei do emprego social. Embora as condições de trabalho nas empresas sejam o mais próximo possível das condições de trabalho no mercado livre, isso acontece com fins de recuperação; os bens produzidos e o trabalho prestado são cuidadosamente circunscritos de modo a não competir deslealmente com os bens e o trabalho no mercado livre. Este sistema é comparável àqueles, frequentemente geridos por instituições sem fim lucrativo, em que os deficientes produzem ou embalam pequenos produtos de uso doméstico. Estes podem ser vendidos, mas o comprador geralmente compra-os não porque precise deles, mas para contribuir para o fim social. Deste modo, a actividade social pode prosseguir um duplo objectivo. Recolhe fundos e faz com que os beneficiários tenham uma actividade - e faz ainda com que esses mesmos beneficiários tenham a oportunidade de sentir que estão a contribuir para a sua própria manutenção. Porém, o trabalho feito pelos beneficiários não tem o objectivo de contribuir para as actividades económicas da Comunidade, nem para aumentar o nível de vida; tem um carácter puramente social e é deliberadamente conservado fora do mercado livre. Embora o esquema criado pela lei do emprego social seja gerido pelo Estado e não por uma entidade de carácter social, prossegue apesar disso um objectivo essencialmente social e o facto de ser prestado trabalho e de serem fornecidos bens é puramente acessório. Embora nestes sistemas sejam produzidos e vendidos bens e prestado trabalho, em condições destinadas a corresponder a condições normais de trabalho, essas actividades não são, em minha opinião, susceptíveis de constituir uma actividade real e efectiva na acepção do acórdão Levin ou do artigo 48.° do Tratado.

34. Num caso como o que está em apreço, a relação entre o indivíduo e o trabalho é inversa da existente numa situação de trabalho normal. Nesta, a finalidade é produzir bens ou serviços, e o trabalho constitui um meio com vista a esse fim. Além disso, a pessoa do trabalhador não é em geral importante. Mas em sistemas como os que referi, é a pessoa que é central e o trabalho é criado e adaptado para satisfazer as suas necessidades. O trabalho em si próprio não tem significado económico, é apenas criado para corresponder aos objectivos do sistema. A posição poderia ser bem diferente se os participantes nestes esquemas fossem colocados numa empresa normal. Mas no presente caso, a própria empresa foi criada para fornecer condições simuladas de emprego em benefício dos participantes.

35. Antes de finalizar, referir-me-ei ao fundamento invocado a título subsidiário pelo recorrente de que, se não puder ser considerado como um trabalhador, deve ser considerado como detentor de um estatuto privilegiado na qualidade de destinatário de prestação de serviços. Ainda que a questão não tenha sido apresentada pelo tribunal nacional, é talvez conveniente assinalar que se poderia levantar a questão de saber se ao recorrente pode ser aplicado o capítulo do Tratado referente à prestação de serviços (artigos 59.° a 66.°), devido à sua qualidade de destinatário de serviços e se, na falta do direito de permanência na qualidade de trabalhador, é no mínimo titular dos direitos previstos no artigo 4.°, n.° 2, da Directiva do Conselho 73/148/CEE, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO 1973, L 162, p. 14; EE 06 F1 p. 132) que dispõe:

"Relativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, o direito de permanência corresponde à duração da prestação."

Todavia, as disposições do Tratado relativas à prestação de serviços estão limitadas, nos termos do artigo 60.°, aos serviços normalmente prestados contra remuneração, pelo que essas disposições parecem não ser aplicáveis neste caso. Além disso, estas disposições não se referem às estadias de duração muito longa ou indeterminada. No seu acórdão de 5 de Outubro de 1988 no processo 196/87, U. Steymann/Staatssecretaris van Justitie, o Tribunal considerou que uma actividade exercida de modo permanente ou sem limite previsível de duração não pode ser regida pelas disposições do direito comunitário relativas à prestação de serviços e que os artigos 59.° e 60.° do Tratado não são aplicáveis à situação de um nacional de um Estado-membro que se desloca para o território de outro Estado-membro e aí fixa a sua residência principal, com o fim de fornecer ou de receber prestações de serviço durante um período indeterminado. Por estas razões, o fundamento subsidiário do recorrente deve, em meu entender, ser rejeitado.

36. Voltando à questão central, gostaria de salientar que os factos deste caso são fora do vulgar e a conclusão a que chego tem portanto um âmbito limitado. Em minha opinião, não é determinante o facto de uma pessoa ser incapaz, devido a qualquer deficiência, de trabalhar num ambiente normal de trabalho uma vez que, se lhe fosse possível trabalhar nesse ambiente por efeito das especiais condições nele existentes, poderia ser considerada como um trabalhador. Também não é decisiva a questão de saber se o sistema é de carácter privado ou se é essencialmente financiado pelas autoridades públicas. Não é decisivo que o participante seja admitido pela própria empresa ou que a relação de trabalho seja estabelecida com autoridades públicas, já que o que interessa é a essência dos acordos, não a sua forma legal. Em minha opinião, o único elemento decisivo é que a empresa existe única e especificamente para fornecer, às pessoas incapazes de trabalhar em condições normais, uma actividade semelhante à que uma pessoa poderia desenvolver, se fosse capaz de trabalhar num ambiente normal de trabalho. Nesta situação, a actividade é criada para a pessoa e não existe qualquer questão de acesso ao emprego.

37. Consequentemente, em minha opinião, a questão apresentada pelo Raad van State deve ser respondida da seguinte maneira:

As disposições de direito comunitário relativas à livre circulação dos trabalhadores não se aplicam aos nacionais de um Estado-membro, inaptos para trabalhar em condições normais de trabalho, que exercem uma actividade profissional noutro Estado-membro, numa empresa criada única e especificamente com vista a possibilitar essa actividade.

(*) Língua original: inglês.