61987C0240

Conclusões do advogado-geral Sir Gordon Slynn apresentadas em 31 de Maio de 1988. - C. DEVILLE CONTRA ADMINISTRATION DES IMPOTS. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO TRIBUNAL DE GRANDE INSTANCE DE LILLE. - CONTRIBUICOES NACIONAIS COBRADAS EM VIOLACAO DO DIREITO COMUNITARIO - LIMITACAO, POSTERIORMENTE A UM ACORDAO DO TRIBUNAL, DAS POSSIBILIDADES DE INTENTAR UMA ACCAO DE RESTITUICAO. - PROCESSO 240/87.

Colectânea da Jurisprudência 1988 página 03513


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

Até 1985 havia em França dois tipos de impostos anuais sobre veículos motorizados: em primeiro lugar, um imposto diferencial progressivo incidindo sobre veículos cuja potência, para efeitos fiscais, é igual ou inferior a 16 CV (cavalos fiscais) e, em segundo lugar, um imposto especial fixo incidindo sobre veículos com mais de 16 CV. O imposto especial foi introduzido em 1956 e repetidamente alterado em anos seguintes, tanto no que respeita à estrutura como ao montante, mas este último foi sempre consideravelmente superior ao nível mais alto do imposto diferencial. Em 1985 era, aparentemente, cinco vezes mais alto.

Nenhum automóvel de fabrico francês possuía uma potência fiscal superior a 16 CV. Em consequência, o imposto especial incidia apenas sobre automóveis importados, incluindo automóveis importados de outros Estados-membros, enquanto que todos os automóveis de fabrico francês eram tributados a níveis mais baixos ao abrigo do regime do imposto diferencial. No acórdão de 9 de Maio de 1985 no processo 112/84 (Humblot/Directeur des services fiscaux, Recueil, p. 1367), o Tribunal declarou que tal sistema de tributação era discriminatório e proibido pelo artigo 95.° do Tratado CEE.

O imposto especial foi abolido pelo artigo 18.° da Lei francesa n.° 85-695, de 11 de Julho de 1985, e os automóveis que a ele tinham estado sujeitos ficaram abrangidos pelo sistema do imposto diferencial, cujas taxas foram ajustadas de forma a abarcar os automóveis de maior potência. ((O método de cálculo do imposto diferencial para tais automóveis foi por sua vez considerado discriminatório e declarado contrário ao artigo 95.° pelo Tribunal no seu acórdão de 17 de Setembro de 1987 no processo 433/85, Feldain/Directeur des services fiscaux (Colect., p. 3521), mas não é esse imposto que está em discussão no presente processo). O artigo 18.° da Lei n.° 85-695 regula a questão da restituição da diferença entre o antigo imposto especial e o novo imposto diferencial. O primeiro parágrafo do artigo 18.°, n.° V, estabelece as condições para a resolução das reclamações pendentes e não contém qualquer referência a limites temporais. Relativamente a reclamações feitas após a data do acórdão Humblot, o segundo parágrafo do artigo 18.°, n.° V, estabelece:

"Os contribuintes que apresentem uma reclamação posteriormente a 9 de Maio de 1985 podem obter o reembolso determinado nas mesmas condições, se tal reclamação for apresentada no prazo previsto pelo artigo R 196-1-b do Código de Processo Fiscal, que corre a contar da data do pagamento do imposto especial."

O artigo R 196-1 do Código de Processo Fiscal estabelece na parte relevante:

"Para que possam ser admitidas, as reclamações devem ser apresentadas à administração o mais tardar em 31 de Dezembro do segundo ano subsequente àquele em que, consoante o caso:

a) ...;

b) tenha sido pago o imposto impugnado...;

c) tenha ocorrido o facto que dá origem à reclamação."

Em 10 de Dezembro de 1982, Christian Deville de Bachy, França, pagou o imposto especial às autoridades fiscais francesas, relativamente a um automóvel Ferrari fabricado num outro Estado-membro e cuja potência fiscal fora fixada em França em mais de 16 CV. Em 31 de Dezembro de 1985, cerca de sete meses após o acórdão no caso Humblot, reclamou o reembolso de diferença entre o imposto especial e o imposto diferencial. Por decisão de 6 de Junho de 1986 as autoridades rejeitaram a reclamação com base no facto de ter sido apresentada fora de prazo, dado que o artigo R 196-1-b do Código de Processo Fiscal estabelece que a reclamação devia ter sido apresentada o mais tardar até 31 de Dezembro de 1984.

Em 21 de Agosto de 1986, C. Deville impugnou esta decisão perante o tribunal de grande instance de Lille. C. Deville alegou que o artigo R 196-1-c do Código de Processo Fiscal lhe concedia a faculdade de contar o prazo a partir da ocorrência do facto que motivou a reclamação, que o acórdão do Tribunal no processo Humblot constituía um facto para os efeitos desta disposição, e que a sua reclamação tinha sido apresentada menos de dois anos após a data do acórdão, pelo que não era extemporânea. O prazo estabelecido no segundo parágrafo do artigo 18.°, n.° V, da Lei n.° 85-695 em conjugação com o artigo R 196-1-b do Código de Processo Fiscal impediu o exercício dos direitos que o direito comunitário lhe concede e privou o acórdão Humblot de efeito útil no seu caso. As autoridades fiscais francesas responderam que o artigo 18.°, n.° V, era válido e aplicável ao seu caso. Em consequência, o tribunal de grande instance submeteu a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça:

"O facto de se limitarem no tempo, como o faz o artigo 18.°, n.° V, segundo parágrafo, da Lei n.° 85-695, de 11 de Julho de 1985, os efeitos da supressão retroactiva do imposto especial sobre os veículos com mais de 16 CV, declarado contrária às disposições do artigo 95.° do Tratado de Roma pelo acórdão de 9 de Maio de 1985 no processo 112/84, do mesmo Tribunal, está em conformidade com os princípios gerais do direito comunitário?"

Deville alega que uma decisão a título prejudicial do Tribunal de Justiça sobre uma norma de direito comunitário define os efeitos dessa norma a partir do momento em que entrou em vigor, tanto para relações jurídicas passadas como futuras, e que os Estados-membros não podem limitar tais efeitos no tempo, como o faz o segundo parágrafo do artigo 18.°, n.° V. Assim, sugere que se responda à questão prejudicial afirmando que o acórdão do Tribunal do processo Humblot impõe ao Estado francês a obrigação de devolver o montante do imposto especial relativo a todo o período em que esteve em vigor.

O Governo francês invoca a jurisprudência do Tribunal segundo a qual, na ausência de medidas de harmonização do legislador comunitário, as regras processuais aplicáveis às acções de restituição de imposições nacionais cobradas em violação do direito comunitário têm de ser determinadas pelo sistema jurídico nacional de cada Estado-membro. Sugere que a resposta à questão apresentada deve ser no sentido de que o direito comunitário não impede que seja estabelecido um prazo para o exercício do direito de obter em juízo uma restituição, dado que cabe a cada Estado-membro fixar as condições em que pode ser pedido o reembolso das imposições que tenham sido declaradas incompatíveis com o direito comunitário.

O Governo irlandês afirma que a questão submetida deve ser respondida pela afirmativa, isto é no sentido de que a fixação de um prazo, como o que consta do segundo parágrafo do artigo 18.°, n.° V, está em conformidade com o direito comunitário dado que o Conselho não adoptou quaisquer medidas de harmonização relevantes, e que, de acordo com o acórdão do processo 33/76 (Rewe/Landwirtschaftskammer Saarland, Recueil 1976, p. 1989), o direito comunitário não obriga a que seja reaberto ou alargado o prazo para a reclamação de um imposto que já tenha terminado nos termos do direito nacional.

A Comissão salienta que, apesar de no actual estádio do direito comunitário o processo de restituição de imposições nacionais cobradas em violação do direito comunitário caber ao direito nacional, as regras deste último não podem impossibilitar na prática o exercício de faculdades que decorrem do direito comunitário. A Lei francesa n.° 85-695 viola tal regra na medida em que o prazo de dois anos que impõe priva de efeito útil o acórdão do Tribunal no caso Humblot, que não limita o seu âmbito de aplicação.

Em minha opinião deve partir-se do princípio de que, quando o Tribunal profere, ao abrigo do artigo 177.°, uma decisão que incide sobre a interpretação e o alcance de uma regra de direito comunitário, tal decisão é vinculativa para todas as medidas nacionais e relações individuais sujeitas a essa regra, quer tenham lugar antes ou depois da data do acórdão: ver, por exemplo, processo 61/79 Amministrazione delle finanze dello Stato/Denkavit italiana (Recueil 1980, p. 1205), recentemente confirmado pelo n.° 11 do acórdão proferido no processo 309/85, Barra/Estado belga (Colect., p. 55), de 2 de Fevereiro de 1988. Excepcionalmente, o Tribunal, e só o Tribunal, pode limitar os efeitos temporais das suas decisões de forma a que sejam válidos apenas para o futuro: ver processos 43/75, Defrenne/Sabena (Recueil 1976, p. 455); Denkavit; Barra (n.os 12 e 13). O acórdão Humblot não contém tal limitação. Assim, é aplicável a relações jurídicas constituídas antes da data respectiva. Deste modo, em princípio deve aplicar-se aos pagamentos do imposto especial sobre veículos a motor de potência superior a 16 CV feitos antes de 9 de Maio de 1985. Tais pagamentos são contrários ao artigo 95.° do Tratado CEE mesmo quando feitos antes da data do acórdão Humblot.

No entanto, é pacífico que as condições processuais a que estão submetidas as acções de restituição de imposições nacionais cobradas em violação do direito comunitário são determinadas pelo sistema jurídico nacional de cada Estado-membro, na ausência de regras comunitárias sobre a matéria, desde que se respeitem duas condições. Primeiro, as condições processuais impostas pelo direito nacional relativamente às acções de restituição de imposições nacionais cobradas em violação do direito comunitário não podem ser menos favoráveis do que as relativas a acções semelhantes de natureza interna e, em segundo lugar, tais condições não podem tornar impossível, na prática, o exercício dos direitos concedidos pelo direito comunitário que os tribunais nacionais estão obrigados a tutelar (processo 33/76, Rewe, já citado).

Caso qualquer uma dessas condições seja violada, as regras processuais nacionais são incompatíveis com o direito comunitário. Assim, o Tribunal julgou incompatíveis com o direito comunitário regras nacionais relativas à prova concebidas de forma a tornar impossível ou excessivamente difícil a propositura de uma acção de restituição de imposições nacionais cobradas em violação do direito comunitário (ver processo 199/82, Amministrazione delle finanze dello Stato/San Giorgio, Recueil 1983, p. 3595, confirmado pelo acórdão de 25 de Fevereiro de 1988 nos processos apensos 331, 336 e 378/85, Les fils de Jules Bianco/Directeur général des douanes, Colect., p. 1099, e pelo acórdão de 24 de Março de 1988 no processo 104/86, Comissão/Itália, Colect., p. 1799). Do mesmo modo, um prazo estabelecido pela legislação nacional que prive os particulares do direito de obterem o reembolso de somas pagas de forma contrária ao direito comunitário não é compatível com este e não pode ser oposto aos demandantes: Barra, onde o Tribunal julgou (no n.° 19) que uma medida legislativa que limita o reembolso apenas aos demandantes que o requereram em juízo antes do proferimento do acórdão Gravier de 13 de Fevereiro de 1985 (Recueil, p. 593) privava os sujeitos que não tinham intentado tais acções do direito de obterem a restituição de somas ilegalmente pagas e tornava impossível o exercício por eles dos direitos conferidos pelo Tratado CEE. Assim, o Tribunal decidiu que os tribunais nacionais obrigados a aplicar integralmente o direito comunitário e a proteger os direitos que este sistema jurídico confere aos particulares não devem aplicar tal regra do direito nacional.

O artigo 18.°, n.° V, da Lei n.° 85-695 não limita as reclamações, como o fazia a medida legislativa analisada no acórdão Barra, às apresentadas antes do acórdão Humblot. No entanto, limita as reclamações às já apresentadas no prazo do artigo R 196-1-b e não me parece ser relevante a questão de saber se o artigo 18.°, n.° V, impõe um novo prazo de caducidade ou, conforme julgo, limita um dos prazos gerais de caducidade anteriormente existentes.

Parece-me que se um tribunal nacional concluir que nos termos da lei nacional em vigor à data do acórdão Humblot, o prazo estabelecido no artigo R 196-1-b é o único prazo de caducidade relevante, então o estabelecido pelo artigo 18.°, n.° V, da Lei n.° 85-695 não é incompatível com o direito comunitário. Conforme o Tribunal decidiu no processo 33/76, Rewe, o estabelecimento de prazos de caducidade razoáveis não torna impossível, na prática, o exercício dos direitos reconhecidos pelo ordenamento comunitário, que os tribunais nacionais são obrigados a respeitar.

A existência de um prazo de caducidade é justificada por razões de certeza jurídica: o prazo estabelecido pelo artigo R 196-1-b não pode, em minha opinião, ser considerado pouco razoável. Se tal era o único prazo de caducidade relevante, o artigo 18.°, n.° V, não suprimiu quaisquer direitos existentes.

Por outro lado, considero que a legislação nacional adoptada na sequência de uma decisão do Tribunal, que afecta prazos de caducidade pré-existentes e reduz o efeito da sentença do Tribunal, é incompatível com o direito comunitário.

Parece-me que pode ter havido uma intenção da parte do poder legislativo de limitar os efeitos do acórdão Humblot. A "alteração" introduzida pelo artigo 18.° foi especificamente apresentada na assembleia nacional como sendo introduzida para limitar as eventuais consequências financeiras do acórdão Humblot (segunda sessão de 20 de Junho de 1985).

A questão relevante é, no entanto, a de saber se o artigo 18.°, n.° V, teve tal efeito. Se não fosse o artigo 18.°, n.° V, C. Deville poderia, segundo afirma ter invocado o artigo R 196-1-c do Código de Processo Fiscal, como parte do regime geral, ou ainda, como parece ter sido decidido pelo tribunal de grande instance de Chambéry em 11 de Junho de 1987 no processo Gorlier/Services fiscaux (Gazette du Palais de 17 e 19.1.1988, p. 12 e 13), o prazo de caducidade de trinta anos estabelecido pelo Code civil. Portanto, o artigo 18.°, n.° V, teve por efeito reduzir os seus direitos e limitar o efeito do acórdão Humblot. Isto é, tornou-lhe impossível, na prática, exercer direitos atribuídos pelo ordenamento comunitário que os tribunais nacionais são obrigados a proteger. Em qualquer dos casos, a referida restrição não é válida na medida em que é contrária ao direito comunitário, e não pode ser oposta pelos tribunais nacionais aos pedidos de reembolso de imposições nacionais cobradas em violação do artigo 95.° do Tratado.

Em consequência, na minha opinião, deve responder-se à questão submetida a título prejudicial da seguinte forma:

"Não é conforme aos princípios gerais do direito comunitário impor um prazo de caducidade, conforme o faz o segundo parágrafo do artigo 18.°, n.° V, da Lei n.° 85-695, de 11 de Julho de 1985, na sequência de uma decisão prejudicial do Tribunal de Justiça que declarou que uma imposição nacional é contrária ao Tratado, se tal prazo de caducidade for menor do que aquele que normalmente resultaria do direito do Estado-membro em causa na situação vigente no momento do acórdão".

As despesas efectuadas pelo Governo francês, pelo Governo irlandês e pela Comissão não podem ser objecto de reembolso. Cabe ao tribunal nacional pronunciar-se sobre as despesas relativamente a C. Deville.

(*) Tradução do inglês.